Resumo
Neste artigo discute-se as correlações entre habitação, meio ambiente e saúde na comunidade da Vila Santa Luzia, no Distrito Federal. O objetivo geral do trabalho é conhecer as percepções, interpretações e representações da amostra de um grupo de moradores e líderes comunitários acerca das referidas vinculações. Em termos teóricos, o projeto fundamentou-se no enfoque da promoção da saúde e habitação saudável. Metodologicamente, os dados foram coletados com a técnica da entrevista. O principal resultado alcançado sugere que existe disposição entre as partes para alcançar uma resolução satisfatória, razoável e republicana ao conflito em questão. A conclusão do texto assinala que a experiência socioambiental e sanitária da Vila Santa Luzia é relevante e significativa, quer em termos empíricos, quer em termos analíticos (políticas públicas).
Palavras-chave:
Promoção da Saúde; Saúde Comunitária; Saúde da População Urbana; Habitação; Meio Ambiente Construído; Vulnerabilidade em Saúde
Introdução
A partir de entrevistas com atores locais, neste artigo examina-se as tensões entre saúde coletiva, meio ambiente e habitação observadas no caso da Vila Santa Luzia, comunidade localizada no Distrito Federal. A Vila Santa Luzia é um assentamento que apresenta alta vulnerabilidade social, sanitária e ambiental. Embora o conceito de vulnerabilidade apresente diversas definições, entende-se que implica uma condição gerada por situações estruturais, derivadas das desigualdades sociais, que limitam as capacidades, operando em âmbito individual, programático e social (Mann, 1993MANN, J. A aids no mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993.). Ela remete a uma dimensão política e é relacional em termos dos contextos e os atores sociais envolvidos na análise. Além disso, esse território se caracteriza por uma complexa correlação com o Parque Nacional de Brasília, o que resulta em um crescente e preocupante conflito socioambiental e sanitário entre as partes, conforme será discutido (Rezende et al., 2020REZENDE, V. et al. O ecossistema urbano da ocupação Santa Luzia. Análise dos impactos por técnicas de geoprocessamento e proposição de Soluções baseadas na Natureza. Paranoá. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, n. 26, p. 219-240, 2020.).
O objetivo do estudo foi identificar as percepções dos moradores em relação a saúde, ambiente e habitação. A pergunta orientadora buscou compreender como e por que a experiência da Vila Santa Luzia se erige em um caso de interesse para os estudos e as pesquisas interdisciplinares em saúde coletiva. Em termos teórico-metodológicos e empíricos, o estudo se apoia no enfoque da promoção da saúde e da habitação saudável.
O argumento central do artigo corrobora a tensa relação entre saúde coletiva, meio ambiente e habitação na referida localidade, e propõe contribuir para um gradual entendimento e atuação sobre o persistente conflito socioambiental e sanitário mediante a formulação de políticas setoriais e da conscientização dos atores envolvidos. Entende-se que os ensinamentos e conhecimentos adquiridos poderão servir como alicerces na formulação e implementação de políticas públicas mais efetivas para o referido caso, e susceptíveis de eventual replicação em outras situações de conflito socioambiental e sanitário semelhantes ou comparáveis (Werneck; Carvalho, 2020WERNECK, G.; CARVALHO, M. A pandemia de covid-19 no Brasil: crônica de uma crise sanitária anunciada. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 5, p. 1-4, 2020.).
Delimitação do problema-objeto
A Vila Santa Luzia - também conhecida como Chácara Santa Luzia ou simplesmente Santa Luzia - é um assentamento humano informal, existente desde 2002. Desde então ela se caracterizou pela sua alta vulnerabilidade social, ambiental e sanitária, bem como por uma segregação espacial, ocupação desordenada do solo e a prática de loteamentos clandestinos. Atualmente, na referida ocupação vivem aproximadamente 16 mil pessoas que habitam em moradias precárias e sem acesso a saneamento básico, tendo como agravante o fato de estar localizada próxima ao antigo aterro sanitário de Brasília. Além disso, corrobora-se a existência de problemas de regularização fundiária urbana, agravados por uma tensa coexistência com uma das mais importantes reservas naturais do Distrito Federal - isto é, o Parque Nacional de Brasília.
Em termos teóricos, a análise se fundamenta no paradigma da promoção da saúde, no conceito de cidade e habitação saudável, e na teoria das representações sociais (Cohen et al., 2019COHEN, S. C. et al. Habitação saudável e biossegurança: estratégias de análise dos fatores de risco em ambientes construídos. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 123, p. 1194-1204, 2019.; Moscovici, 2021MOSCOVICI, S. Representações Sociais: Investigações em Psicologia Social. 7a ed. Petrópolis: Vozes, 2021.; Opas, 2006OPAS - ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Vivienda Saludable: Reto del Milenio en los asentamientos precarios de la América Latina y el Caribe. Guía para las autoridades nacionales y locales. Washington, DC, 2006.). Também, em critérios de políticas públicas e práticas fundamentais conexas, tais como a saúde pública, o meio ambiente construído, a conservação dos recursos naturais, o saneamento de residências, a habitação popular de interesse social, o habitat, a vulnerabilidade em saúde, a teoria das políticas públicas, saúde comunitária e os indicadores de desenvolvimento sustentável (Lima; Lima, 2020LIMA, F. A.; LIMA, S. Construindo cidades saudáveis: a instrumentalização de políticas públicas intersetoriais em saúde a partir do Planejamento Estratégico Situacional. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 1-20, 2020.).
No que diz respeito à delimitação espacial e temporal, é importante assinalar que a Vila Santa Luzia surgiu como uma zona de expansão do bairro da Estrutural. Ocorre que grande parte da Estrutural foi recentemente regularizada. Entretanto, a Vila Santa Luzia, por estar localizada no limite e interagir com o Parque Nacional de Brasília, continua numa situação de irregularidade fundiária urbana, com o agravante de estar sob questionamento judicial, em virtude de possível risco ao referido parque. Eis a origem e evolução de um conflito socioambiental e sanitário complexo, multidimensional e de grande relevância.
Em síntese, o conflito socioambiental e sanitário de interesse para os fins deste estudo é marcado, de um lado, pela luta dos seus moradores no tocante ao reconhecimento e cumprimento de direitos humanos básicos. Do outro, não é possível desdenhar ou ignorar o dilema especificamente ambiental - conservação dos recursos naturais -, da controvérsia. Ambos os princípios, as visões, os posicionamentos e os valores estão consagrados na Carta Magna do Brasil, na Lei Orgânica do Distrito Federal e em muitas outras normas legais. É justamente na interface desse conflito socioambiental e sanitário que está delimitado o problema-objeto desta pesquisa.
Metodologia
A entrevista é uma técnica que forma parte do conjunto dos métodos qualitativos de pesquisa das ciências sociais em saúde, em particular, e das ciências humanas, em geral. Resumidamente, a entrevista qualitativa procura uma aproximação às percepções e interpretações de um problema-objeto a partir de relatos verbais fornecidos por interlocutores-chave. Nos dizeres de Taylor e Bogdan (1996TAYLOR, S. J.; BOGDAN, R. Introducción a los métodos cualitativos de investigación. 2ª ed. Barcelona: Paidós, 1996., p. 101), a entrevista pode ser entendida como “encontros cara a cara entre o pesquisador e os informantes, encontros estes dirigidos para a compressão das perspectivas que têm os informantes a respeito de suas vidas, experiências ou situações, tal como as expressam com suas próprias palavras”.
De modo geral, as entrevistas são flexíveis, dinâmicas e abertas. O projeto desta pesquisa optou pela modalidade semiestruturada. Isto é, com a utilização de um roteiro ou instrumento de entrevista integrado por quinze questões abertas, divididas em três blocos, contendo cinco perguntas cada. O primeiro bloco de perguntas trata da temática da habitação e saúde. Foram feitas cinco questões que buscavam identificar como os entrevistados percebiam suas condições de habitação, o entorno construído e sua saúde. O segundo bloco de perguntas abordou questões acerca da governança, do urbanismo, da infraestrutura e do papel das autoridades governamentais sob a perspectiva dos atores locais. E o terceiro bloco de perguntas procurou mapear as impressões dos informantes sobre o conflito socioambiental e sanitário decorrente da tensa correlação destes com a igualmente necessária preservação do Parque Nacional de Brasília.
Sabe-se que existem três tipos básicos de entrevistas: a história de vida, a pesquisa com N pequeno, e a pesquisa com N intermediário e grande. Nesta oportunidade, foi utilizada a segunda alternativa. Com efeito, mediante uma amostragem por conveniência, foram selecionados dez informantes ou entrevistados - doravante identificados como E1 a E10. Foram considerados como critérios de inclusão para participar do estudo: ser morador da Vila Santa Luzia há mais de cinco anos e concordar em assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Como critérios de exclusão considerou-se: não morar na Vila Santa Luzia, morar nessa comunidade há menos de cinco anos ou não concordar em assinar o TCLE.
Todos os informantes - oito mulheres e dois homens - se declararam de cor parda. Em termos educacionais, cinco dos participantes afirmaram ter ensino fundamental incompleto; três deles o ensino fundamental completo; um afirmou ter o ensino superior incompleto; e um se disse analfabeto. A média de filhos por família ficou em 2,5 pessoas. No tocante ao período de residência na vila, os entrevistados manifestaram ter entre seis e 20 anos. As moradias geralmente são construídas de forma improvisada, sendo por eles denominadas de barracos. A renda média mensal dos interlocutores girou em torno de R$ 938,00. A comunidade não dispõe de saneamento básico. Destarte, o acesso à água e luz se dá de forma clandestina. Em suma, trata-se de uma comunidade informal, com alta vulnerabilidade socioambiental e sanitária e com alguma irregularidade fundiária (CODEPLAN, 2021CODEPLAN - COMPANHIA DE PLANEJAMENTO DO DISTRITO FEDERAL. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) 2021. Brasília, DF: GDF, 2021.).
A coleta dos dados foi feita entre os dias 1º e 10 de abril de 2022. Os encontros incluíram a aplicação de um questionário para identificar o perfil socioeconômico e a realização de uma entrevista que seguia um roteiro contendo 15 questões. O referido instrumento procurou mapear e apreender as percepções dos moradores da Vila Santa Luzia. As informações foram colhidas na residência dos informantes. Sempre que possível, procurou-se que a entrevista fosse realizada em um local isolado, para que os informantes se sentissem à vontade para expressar seus pontos de vista sobre a temática abordada. Os participantes foram previamente avisados sobre a finalidade da pesquisa e o anonimato das informações obtidas. Ao mesmo tempo, foi solicitada a permissão para gravar suas respostas. Ao final, as entrevistas foram transcritas na íntegra e os informantes identificados como “Entrevistado” por meio de números de 1 a 10. Logo, houve a decodificação e transcrição das entrevistas. Posteriormente, realizou-se uma análise interpretativa dos dados, apoiada na técnica de análise de conteúdo de Bardin (2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Almedina Brasil, 2016.).
Observe-se que o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Brasília número CAAE 39177620.5.0000.8093, em virtude de atender a todos os requisitos éticos comuns à pesquisa envolvendo seres humanos. Ademais, foram respeitadas todas as normas estabelecidas para experimentação em humanos, de acordo com a Resolução n. 466/2012 CNS/MS.
Resultados e discussão
As entrevistas realizadas resultaram em cinco horas de interlocução e coleta de informações. Após a correspondente decodificação e transcrição, elas se erigem em dados susceptíveis de uma análise interpretativa. Para efeitos desta pesquisa, e mantendo a sequência dos três blocos de perguntas e respostas referidas na parte teórico-metodológica, foi possível avançar na apreciação e resolução do problema-objeto do estudo, inclusive com as subsequentes inferências descritivas e causal-explicativas.
Com relação ao primeiro bloco de perguntas e respostas, cumpre insistir que elas pretendiam destacar, sob a perspectiva dos entrevistados, a representação das condições de habitação, entorno construído e saúde. Assim sendo, uma apreciação geral acerca dos determinantes sociais em saúde dos interlocutores da Vila Santa Luzia permitiu identificar padrões de autopercepção, posicionamento e representação social.
Note-se que entre os aspectos que agradam às pessoas que vivem na Vila Santa Luzia se destacam a amizade e a boa relação com os vizinhos. Também, percebe-se a formação de uma rede de solidariedade e apoio entre os moradores. Outrossim, é evidente que eles comungam da insatisfação e do desagrado de viverem em um lugar precário em saneamento básico, com falta de água, rede de esgoto, pavimentação e energia elétrica.
Outro fator que marca o cotidiano dos moradores da Vila Santa Luzia é o convívio ao lado do antigo aterro sanitário. Apesar de já ter sido parcialmente desativado e hoje conter camadas de terra de proteção sobre a área, amenizando o mau cheiro e a proliferação de animais vetores de doenças, os danos ambientais presentes no local associados à falta de saneamento básico intensificam os riscos de adoecimento. Sem falar que a produção de chorume e o gás constantemente emanado do antigo lixão é um outro grande problema a ser sanado. Sobre esse assunto, Giacomazzo e Almeida (2020GIACOMAZZO, A.; ALMEIDA, W. Estudo do potencial de contaminação do Aterro Controlado do Jóquei Clube, Distrito Federal. Engenharia Sanitária e Ambiental, Rio de Janeiro, v. 25, n. 6, p. 909-920, 2020.) destacam a necessidade de se acompanhar a migração desses gases diariamente para avaliar de forma mais precisa o grau de periculosidade que essas emissões de biogás podem representar para a população que vive próxima ao local. O chorume e a produção de biogás na Santa Luzia é sem dúvida uma grande preocupação para os interlocutores. Essa apreciação pode ser confirmada no seguinte depoimento:
Tinha o antigo lixão que acabou. Não tem mais aquela podridão, aqueles entulhos. O risco das pessoas ficarem doente diminuiu. Mas um perigo é que ficou muito gás. Eles colocam fogo. É aceso dia e noite para não poder explodir. Eu entrei. Eu vi como é. Cada local tinha um buraco, e uma tocha de fogo queimando dia e noite. Está só formando mais gás, mais chorume. O que é uma coisa terrível que vai para o solo e estraga o solo. Aí o pessoal quer fazer uma horta, plantar umas coisas e não pode por causa do chorume. (E1)
Pela fala acima nota-se que, no simbólico do entrevistado, o antigo aterro, mesmo inoperante, apresenta-se como um constante risco de saúde coletiva. Outrossim, o estigma de viver próximo ao que restou do antigo aterro aparece nas falas dos entrevistados. A segregação socioespacial foi mencionada como barreira que inviabiliza a inserção no mercado de trabalho. Borges e Carvalho (2017BORGES, A.; CARVALHO, I. Revisitando os efeitos de lugar: segregação e acesso ao mercado de trabalho em uma metrópole brasileira. Cadernos CRH, Salvador, v. 30, n. 79, p. 121-135, 2017.) chamam esse fenômeno de “efeito território”, ou seja, o local onde as pessoas vivem interfere na inserção no mercado de trabalho, influenciando principalmente as pessoas que moram nas áreas periféricas e marginais dos centros urbanos, como é o caso da Vila Santa Luzia.
Às vezes a gente não consegue arrumar um emprego fora porque as pessoas não querem contratar alguém da Santa Luzia. Já vi várias pessoas perdendo o emprego e até mentindo sobre onde mora, pedindo o endereço de algum colega que mora na Estrutural. (E6)
Eu mesmo eu já perdi emprego por falar que moro na Estrutural. Não foi nem na Santa Luzia em si. Se falar que morava na Estrutural, já era uma discriminação grande. (E9)
O informante 9, inclusive, chega a mencionar acerca de como foi tratado no comércio quando mencionou que morava na Vila Santa Luzia:
Quando eu entrava numa loja as pessoas perguntavam: “você quer fazer empréstimo, cartão de crédito, comprar no boleto?”. Eu dizia “não, que eu não tenho salário”. Eles falavam “vamos fazer, pelo menos o carnê”. Quando chegava aquela hora de pedir o endereço e a gente falava que morava na comunidade Santa Luzia na Estrutural, de repente o vendedor já rodava a loja toda e ia para lá, vinha pra cá, tentava dar uma desculpa: “infelizmente o sistema não está aprovando”. (E9)
Apesar de todas as dificuldades relatadas pelos entrevistados com relação às condições em que vivem, quando perguntados sobre o que a sua moradia representava para eles, as falas traziam em comum uma visão de proteção, segurança, refúgio e lar. Evidentemente, o assunto é importante sob a perspectiva da promoção da saúde, das cidades saudáveis, da saúde comunitária e dos determinantes sociais em saúde. Cumpre assinalar que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística denomina formalmente a esse tipo de comunidade urbano-periférica de “aglomerado subnormal” (IBGE, 2010IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo Demográfico 2010. Aglomerados subnormais: primeiros resultados. Rio de Janeiro, 2011.), por se tratar de uma ocupação irregular em área pública e sem acesso a serviços públicos básicos. Nessa linha, considere-se os seguintes trechos das entrevistas:
Pra mim é tudo que eu tenho é este barraquinho, e peço a Deus que o governo não o tire. Tá ainda desse jeito, mas para mim representa tudo! Porque eu não estou no sol, não estou debaixo de uma lona, nem debaixo de uma ponte. (E7)
É meu refúgio. Único lugar que eu tenho para viver. Minha rede de proteção. (E3)
É meu conforto, aqui a gente se sente segura. A insegurança é muito grande aqui. Então a minha casa é meu tudo. (E9)
Assim, nota-se que no imaginário dessas pessoas existe a possibilidade de ter um lugar que pode ser chamado de seu. Isto é, onde se sentem seguros e protegidos, mesmo no meio de precárias condições de vida e dos riscos que isso possa implicar para sua saúde. Muitos procuram o local para morar por não terem outra opção. Estudo de Castelaneli et al. (2019CASTELANELI, I. K. et al. Na ausência de endereço, onde mora a saúde? Determinantes sociais e populações de ocupações. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 8, p. 11-24, 2019.) sobre uma área ocupada em Campinas, estado de São Paulo, apontou que entre os principais motivos das pessoas procurarem o local para morar estavam: (1) era uma opção para não ficarem na rua; (2) assegurar moradia para os filhos; (3) desemprego; (4) dificuldade para pagar aluguel; e (5) possibilidade de adquirir um imóvel. Ao mesmo tempo, é importante mencionar que a questão da falta de segurança no local foi mencionada pela maioria dos entrevistados. No entanto, na percepção de um entrevistado, a segurança pública e a ordem social na Vila Santa Luzia melhoraram gradualmente nos últimos meses:
Já foi o tempo que a Estrutural foi realmente perigosa. Foi assim que começou na época do Cristovam [Buarque, ex-governador do Distrito Federal, entre 1995 e 1999]. Aí sim, ela era perigosa. Mas agora não é mais. Hoje em dia está uma benção. A polícia bota quente em cima dos malandros. Vagabundo não tem vez não. (E1)
Ainda sobre a representação da habitação, entorno construído e saúde, perguntou-se aos entrevistados como foi o isolamento social e a convivência durante o período da pandemia de covid-19 que assolou o país, entre 2020 e 2022. A intenção da pergunta cinco era, justamente, apreender acerca dos anseios e sentimentos dos moradores da Vila Santa Luzia com relação à pandemia e ao impacto desta nas suas vidas. A esse respeito, foi possível coletar os seguintes depoimentos:
Não tinha como fazer isolamento social porque a gente sobrevive do básico. O lado bom foi que teve muita ajuda. O lado ruim foi que o pessoal não respeitou o isolamento social. Aqui em casa eu acho que se uma pessoa pegasse, eu acho que todo mundo ia pegar por causa da infraestrutura. São só quatro cômodos. (E3)
O período da pandemia foi muito difícil. Muita insegurança em relação à saúde. Muitas pessoas morando nos barracos, idosos, crianças. (E4)
Todo mundo tinha que sair pra trabalhar, se virar. Todo mundo tinha que correr atrás do pão de cada dia. Se virar nos 30, como o povo fala. (E1)
A esse respeito, Bógus e Magalhães (2021BÓGUS, L. M. M.; MAGALHÃES, L. F. A. Desigualdades socioespaciais e pandemia: a dimensão metropolitana da Covid-19. In: LEITE, R. P.; VIEIRA, E. (Org.). Distopias urbanas. Aracajú: Criação, 2021. p. 47-66.) afirmam que a disseminação do vírus se deu nas áreas metropolitanas basicamente por dois fatores: as condições de moradias e o trabalho. Para os autores, o home office para as pessoas de baixa renda foi algo impossível de ser respeitado por questões econômicas, mesmo na presença do auxílio emergencial aprovado pelo Congresso Nacional.
Infere-se desse primeiro bloco de perguntas e respostas a grande relevância para os informantes da habitação, entorno construído e saúde. Assim sendo, as representações sociais mais presentes no simbólico dos entrevistados têm a ver com o estigma de morar em uma comunidade territorial caracterizada pela falta de saneamento básico - água, esgoto na rua, falta de luz -, bem como irregularidade fundiária urbana e a segregação socioespacial. A boa convivência com os vizinhos apresentou-se como um dos aspectos positivos mencionados pelos informantes. Apesar do risco de adoecimento, por estarem ao lado de um antigo aterro sanitário e da falta de saneamento básico, percebeu-se nas falas dos informantes que a preocupação em ter onde morar se sobressaía com relação ao risco de adoecimento.
O segundo bloco de perguntas e respostas desta pesquisa abordou a representação da governança, infraestrutura e urbanismo. Desse modo, quando questionados sobre a expectativa de melhoria na infraestrutura da Vila Santa Luzia, notou-se nas falas dos participantes que a preocupação de serem discriminados e do descaso governamental aparece novamente. A expectativa de regularização fundiária da área vem associada à ideia de se desconstruir o estigma de favela imposta à referida vila.
O que eu queria era que regularizasse aqui. Acho que o povo de Brasília inteiro vê a Santa Luzia como uma favela. Devia fazer uma cidadezinha, um conjunto habitacional, alguma coisa para ficar melhor aqui. (E3)
Espero que um dia o governo olhe por nós. Não tem infraestrutura nenhuma aqui. Aqui não tem nada. Nem água, nem luz, nem esgoto. É tudo clandestino. (E6)
Houve relatos acerca do clientelismo político, paternalismo e populismo de certos candidatos, especialmente em anos eleitorais, e com relação ao processo de regularização da Vila Santa Luzia. Segundo as informações obtidas, durante os períodos eleitorais as visitas de pretendentes interessados em votos são muitas, assim como promessas de regularização fundiária da área. Destarte, relaciona-se à ideia de Gonçalves (2011GONÇALVES, A. Notas sobre o clientelismo político no Brasil. Leopoldianum, Santos, v. 37, n. 101/102/103, p. 97-130, 2011.) de que o ponto de ruptura do clientelismo político passa pela conquista da cidadania plena, caso contrário, esse tipo de comportamento pode se perpetuar nesse tipo de território. Entretanto, notou-se que no simbólico dos informantes há descrédito e ceticismo muito grande com relação aos políticos, devido a várias promessas não cumpridas. Nesse sentido, considere-se o seguinte depoimento: “Um milhão de promessas, eles vêm fazer promessas que vai regularizar, que vai melhorar e nunca vem. Então, assim, a questão política não tem olhos pra Santa Luzia” (E9).
Quando questionados sobre o projeto do governo de construir prédios multifamiliares e um complexo habitacional no local, as opiniões divergiram. Por um lado, alguns informantes acham que seria uma boa alternativa para resolver a situação da Vila Santa Luzia. “É bom demais porque vai ter saneamento básico, benfeitorias. Seria uma benção de Deus acabar com aquela lixaiada. Tudo novo. Tudo com documento. Seria uma maravilha”, destacou o informante E1. Por outro lado, alguns moradores não a consideram como uma saída adequada para a comunidade. Por exemplo:
Eu não aprovo, porque se aqui tem condições de ter prédio, tem condições de ter casa. E assim, têm famílias aqui com dez pessoas, filhos especiais, pais idosos. Como é que a pessoa vai subir a escada com uma cadeira de rodas? Porque no projeto que eles implantaram, que eles apresentaram, não tem elevadores. Como é que uma pessoa que já tem problema na coluna vai subir com um filho cadeirante, de cadeira de rodas em escada, não assiste as pessoas que aqui moram. (E9)
Notou-se na perspectiva dos informantes uma insegurança muito grande com relação à construção de prédios multifamiliares, com apoio de instituições governamentais. Dentre tais preocupações, sobressai a possibilidade de perder o local em que vivem, bem como abdicar da expectativa de se tornarem proprietários desses loteamentos atualmente irregulares (Santos et al., 2017SANTOS, A. P. et al. O lugar dos pobres nas cidades: exploração teórica sobre periferização e pobreza na produção do espaço urbano Latino-Americano. Urbe: Revista Brasileira de Gestão Urbana, Curitiba, v. 9, n. 3, p. 430-442, 2017.) Isto é, um local que, apesar da falta de infraestrutura básica, é considerado como seu espaço e fonte de identidade individual, familiar e social (coletiva). Isso porque para construir os prédios multifamiliares no mesmo local, suas habitações teriam que ser demolidas. Evidentemente, tal hipótese gera muitas desconfianças e incertezas:
No meu ver seria melhor eles regularizarem a casa de cada pessoa que já está aqui, em vez de derrubar tudo e complicar mais ainda a vida das pessoas. Já que cada um já está com o seu cantinho, já regulariza. (E3)
Eu vi o protótipo e eu não gostei muito. Tem famílias que são grandes onde moram 15 pessoas numa casa só. Não daria pra colocar num apartamento. Como eu viveria em um apartamento? Tenho crianças, cachorros e gatos. (E6)
Deduz-se desse segundo bloco de perguntas e respostas a existência de representações sociais que aportam para a discriminação, insegurança, medo e oportunismo político. Todas essas representações são construídas em torno da ideia de eventual retirada e despejo dos moradores do local, bem como da proposta apresentada pelo governo de construir prédios multifamiliares. Percebeu-se que no simbólico dos informantes estava presente o medo de perderem o único local que eles têm para morar, já que para construir os prédios se faz necessário demolir todas as construções existentes no local. Associado a isso, percebeu-se também que havia muita incerteza se realmente iriam receber um apartamento para morar.
Com relação ao poder público, as falas apontaram para a percepção de total descaso e abandono. Associada a essa percepção, apareceu a ameaça e o fantasma do cumprimento da ação cível pública, que dispõe acerca da remoção de todas as habitações localizadas no limite de trezentos metros do Parque Nacional de Brasília. A desesperança em uma solução pacífica para o problema socioambiental e sanitário da Vila Santa Luzia apareceu em várias falas dos informantes. Esse desalento foi percebido, também, quando os entrevistados mencionaram que são vítimas de candidatos a cargos eletivos, que só procuram a comunidade para conseguir voto e se eleger, prometendo soluções que nunca são cumpridas, particularmente no tocante a uma regularização fundiária urbana.
O terceiro bloco de perguntas e respostas abordou a representação da tensão socioambiental e sanitária dos moradores da Vila Santa Luzia com relação aos limites do Parque Nacional de Brasília - principal reserva de conservação ambiental do Distrito Federal. Como já mencionado, tem-se aqui uma tensão socioambiental e sanitária a ser resolvida. Por um lado, constatou-se a existência do Parque Nacional de Brasília, responsável por parte significativa do abastecimento de água - inclusive do vital reservatório de Santa Maria - e outros bens públicos ambientais de enorme relevância distrital. Por outro lado, observou-se a Vila Santa Luzia, ocupação humana que, localizada no extremo sul do parque, interage e pressiona os limites dessa área de proteção, mediante o alto e crescente risco de queimadas, depredação da fauna e flora, descarte de lixo, contaminação de nascentes de água.
Adicionalmente, desde o ponto de vista legal, há, desde 2015, uma ação cível pública que exige a remoção de todas as moradias construídas a menos de 300 metros da cerca do parque. Tal determinação judicial implica, por exemplo, a execução urgente de ações concretas de reacomodação das famílias que ali vivem, inclusive em prédios multifamiliares, conforme mencionado em parágrafos anteriores.
Além disso, é importante destacar que a ameaça ao Parque Nacional de Brasília não provém tão somente da Vila Santa Luzia. Com efeito, a própria presença do antigo aterro sanitário constitui, desde muito tempo atrás, um desafio socioambiental e sanitário de grande relevância no Distrito Federal. Todavia, estudo de Miranda e Andrade (2019MIRANDA, J.; ANDRADE, L. Análise comparativa segundo as dimensões da sustentabilidade entre a ocupação das chácaras Santa Luzia e a proposta para habitação social do governo de Brasília. In: MARTINS, B. (Org.). O Essencial da Arquitetura e Urbanismo 3. Ponta Grossa: Atena, 2019. p. 54-72.) aponta que existem outros empreendimentos comerciais, residenciais e industriais, próximos ao local, tais como a assim chamada Cidade do Automóvel. Comparativamente, esses outros empreendimentos podem até representar ameaças mais graves à conservação dos recursos naturais do Parque Nacional do que as habitações instaladas, quer na Vila Santa Luzia, quer na cidade Estrutural.
Nessa ordem de ideais, percebe-se na fala abaixo o descontentamento e insatisfação de um informante com o papel do governo ao longo dos anos, especialmente no que diz respeito ao controle da expansão da Vila Santa Luzia rumo a área do parque:
O aumento crescente da Santa Luzia também é questão política, porque se o governo não olha para a Santa Luzia, não vê que está crescendo… O que é que o governo alega? Ter o Parque Nacional. Mas ele não olha pela pessoa que está precisando morar ali. Ele não faz uma coisa de prevenção. Aí depois não adianta ele vir querer tirar a 300 metros, porque já tem pessoas que estão instaladas ali há três anos. Ele tem que fazer uma coisa de prevenção, para que aquelas pessoas não cheguem a precisar morar ali. Para depois ele não ter que remover (E10).
Esse mesmo informante, que está entre as pessoas que moram a menos de 300 metros da cerca do parque, e que, portanto, corre o risco de perder sua casa, traz na sua fala representações de revolta e desilusão, com relação ao mandado judicial de remoção. A esse respeito, a fonte alegou que:
Na verdade, eu até parei de acompanhar as reportagens com relação a esse mandado judicial. Parei, porque eu estava ficando doente, isso deixa a gente muito abalado. A gente vai dormir sem ter a certeza de que quando acordar onde vai ficar. Se eles tivessem pelo menos o bom senso de retirar as pessoas para colocar em um lugar melhor, tudo bem. Mas eles colocam a gente a mercê de rato, barata, poeira, sem água, sem tudo. Larga o indivíduo pra lá e os moradores são quem sofrem as consequências. (E10)
Destarte, percebe-se pela fala dos entrevistados que uma suposta falta de ação dos órgãos governamentais com relação ao processo de regularização fundiária poderia terminar agravando o problema, pois faria com que outras pessoas passassem a ocupar também a área. Nessa linha, um informante traz o seguinte arrazoado:
No Parque [Nacional de Brasília] tem que ter segurança para evitar esses problemas. Porque as próprias pessoas que moram no local quando vê uma pessoa precisando, leva para casa dele. Aí chega um certo ponto que ele já não quer mais aquela pessoa [em sua casa] e dá um jeito dele arrumar um pedacinho de terra por ali mesmo para dar àquela pessoa, que faz um barraquim. Com uns dias vai essa pessoa ser dono. Nisso vai aumentando a população nesses locais. (E1)
Observe-se que, para os participantes, o Parque Nacional apresenta-se como um grande desafio, isto é, o maior obstáculo para a almejada regularização fundiária da Vila Santa Luzia. No entanto, vale reconhecer que o local abriga uma rica diversidade do bioma Cerrado do Planalto Central, protegendo centenas de nascentes e microbacias, que formam a barragem de Santa Maria, responsável por fornecer aproximadamente 25% do abastecimento de água do Distrito Federal. Em outras palavras, o Parque Nacional tem uma importância crucial para o sistema hídrico e para o desenvolvimento humano dessa unidade da federação. Não se admitindo, portanto, qualquer irresponsabilidade ou negligência das autoridades públicas na gestão do problema-objeto deste estudo.
Uma informante expôs o seguinte: “A gente não tem muita interação com o parque. A gente sabe que ele está ali. Sabe que algumas pessoas moram embaixo. E que a Santa Luzia não foi regularizada por causa da proximidade com o parque” (E6). Outros problemas também são mencionados. Esses informantes trouxeram outras percepções sobre a insegurança que o parque, supostamente, representa para eles:
Eu já vi anta, lobo-guará, capivara, cobra, todo tipo de bicho [sic]. A gente não chegou a ver a onça. Mas a gente viu a pegada da onça praticamente dentro daqui, porque pra lá tem uma cerca. Mas é como se não tivesse a cerca. O pessoal atravessa aquela pista para cá. É uma vantagem ter o parque por perto por causa da natureza. Mas é uma desvantagem. É que é muito perigoso! (E3)
O parque é tão perto e tão distante. A comunidade tem receio de ir ao parque por não conhecer o local. Tem pessoas [maldosas], que vão lá pra fazer mau uso do parque. Pra queimar, jogar lixo, sabendo que pode espalhar fogo. A gente não usa por conta da insegurança. (E10)
Todavia, em termos mais abrangentes, apesar da convivência ao lado do principal parque de conservação ambiental do Distrito Federal, alguns moradores relataram que não usam o local em benefício próprio ou comunitário. Tal constatação pode contribuir a explicar a tensa relação com o mesmo, e o persistente conflito socioambiental e sanitário entre as partes. Sobre este tema, Dias (2021DIAS, G. F. Percepção ambiental: Sincretismo, gratidão, tributo e conspiração pela vida na terra. Brasília, DF: Genebaldo Freire Dias, 2021.) discute a percepção ambiental desde a perspectiva da “isquemia perceptiva”, isto é, expressão que sinaliza que ainda se vê a natureza como provedora infindável de recursos, bem como hostil, assustadora, inimiga e vingativa. Em última instância, segundo esse autor, a natureza é representada como um obstáculo e impedimento. Sendo assim, ele se questiona sobre qual seria o catalizador-mor para despertar as pessoas dessa ilusão e falha de percepção. A preocupação de Dias (2021DIAS, G. F. Percepção ambiental: Sincretismo, gratidão, tributo e conspiração pela vida na terra. Brasília, DF: Genebaldo Freire Dias, 2021.) com relação à mencionada “isquemia perceptiva” poderia ser sustentada no trecho de entrevista a seguir:
Mesmo a gente morando ao lado do Parque Nacional, a gente não pode desfrutar do ambiente. A gente tem um parque dentro da Estrutural mesmo, que é o parque Estrutural. Mas a gente não frequenta por conta da insegurança. Tem usuários de drogas. As pessoas vão e deixam cavalo. As ruas aqui não têm pavimentação. Não tem tratamento de esgoto. É saco de lixo na rua. Abandono de cachorro aqui na Santa Luzia é muito grande, principalmente depois da pandemia. Tem hora que você flagra cachorro brigando no meio da rua. A insegurança é muito grande também. E o entorno aqui é bem feio. (E9)
Valida-se nas falas apresentadas que o principal parque de conservação ambiental do Distrito Federal aparece como um desafio para a comunidade. Ocorre que, em parte, o conflito socioambiental e sanitário em questão também é decorrente da prática de loteamentos clandestinos, grilagem de terra e da ocupação desordenada do solo. Essas irregularidades não podem ser desdenhadas pelos atores com vínculos e interesses no problema-objeto. Em outras palavras, os moradores da Vila Santa Luzia devem assumir suas responsabilidades no marco geral dessa problemática de possível segregação, quer desde a perspectiva socioespacial e sanitária, quer da perspectiva ambiental (Gomes-Ribeiro; Queiroz-Ribeiro, 2021GOMES-RIBEIRO, M.; QUEIROZ-RIBEIRO, L. C. Segregação socioespacial e desigualdades de renda da classe popular na metrópole do Rio de Janeiro, Brasil. EURE, Santiago de Chile, v. 47, n. 142, p. 27-48, 2021.).
Em suma, depreende-se desse terceiro bloco de perguntas e respostas que a regularização fundiária urbana demanda responsabilidade. A expansão descontrolada da Vila Santa Luzia, mesmo que em circunstâncias não desejadas nem planejadas, por razões de vulnerabilidade social, constitui uma ameaça ao Parque Nacional de Brasília, em particular, e ao desenvolvimento sustentável do Distrito Federal, em geral. Tendo dito isso, entende-se que, na busca de soluções para o referido conflito socioambiental e sanitário, deve ser considerado um critério de corresponsabilidade social e ambiental, conforme sugerido pelas autoridades e gestores do Parque Nacional de Brasília, além de pesquisadores, representantes da sociedade civil organizada (movimento ambientalista) e poder público. Por último, mas não menos importante, é o fato de que o Parque Nacional está sob responsabilidade do governo federal, pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Consequentemente, o destino desse parque de conservação ambiental é de interesse virtualmente nacional.
Considerações finais
Com fundamentação em evidência, atesta-se que na Vila Santa Luzia persiste um conflito socioambiental e sanitário complexo, transcendente e urgente. Efetivamente, há no local uma sobreposição de fatores ambientais, sanitários e sociais que implicam sérios riscos de adoecimento, com destaque para a presença do antigo aterro sanitário. Ocorre que esse aterro continua produzindo gases tóxicos e chorume. Além disso, os moradores da Vila Santa Luzia questionam a falta de saneamento básico - especialmente de água tratada e rede de esgoto -, a falta de pavimentação e suas mazelas - como poeira no período da seca, lama e umidade no período da chuva -, o excesso de lixo entre as ruelas, a presença de animais domésticos abandonados, o persistente loteamento e uso irregular do solo, a precariedade das habitações, e a segregação socioespacial, entre outras questões conexas (Cohen et al., 2019COHEN, S. C. et al. Habitação saudável e biossegurança: estratégias de análise dos fatores de risco em ambientes construídos. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 43, n. 123, p. 1194-1204, 2019.).
Capta-se pelas narrativas que ter um lugar para morar é tão importante que eles se sujeitam às condições existentes, colocando sua saúde e até a própria vida em risco. O Parque Nacional de Brasília, que deveria ser visto como um espaço promotor de saúde para essas pessoas, aparece nas falas dos entrevistados como um desafio, já que inviabiliza a regularização fundiária da área. Nesse caso, faz-se necessário promover ações técnicas e educativas que auxiliem na convivência pacífica e harmônica no local. Acredita-se que investir em programas de atenção primária ambiental poderia resultar em ferramentas de otimização, cujo resultados adviriam em um processo gradativo de melhoria da qualidade de vida. Para tanto, é urgente consolidar propostas voltadas para a eventual regularização fundiária urbana da Vila Santa Luzia, e uma rigorosa política de preservação dos limites do Parque Nacional de Brasília - já que se trata do principal parque de conservação ambiental do Distrito Federal.
Reconhece-se que é imprescindível o envolvimento da comunidade na busca por melhorias. Demonstrou-se que as precárias condições habitacionais e a falta de saneamento influenciam negativamente o ecossistema local. Tal situação evidencia a necessidade de melhorar a eficácia e eficiência das políticas públicas, principalmente as voltadas para saúde, habitação, ambiente e infraestrutura do local. Espera-se que os conhecimentos obtidos possam subsidiar decisões que venham reforçar os apelos pela concretização de cidades saudáveis com condições de habitação dignas e promotora de saúde. Eis oportunidades e desafios para uma agenda de pesquisa ainda mais abrangente nessa temática, nomeadamente no tocante à intervenção de atores locais na formulação e implementação de políticas públicas setoriais.
Nessa linha de pensamento, alguns dos autores deste estudo acreditam que o projeto governamental de construção de prédios multifamiliares de interesse social contribuiria positivamente na resolução do conflito socioambiental e sanitário observado. Mesmo que determinados entrevistados nesta pesquisa tenham se posicionado desfavoravelmente com relação ao projeto dos prédios multifamiliares, outras experiências semelhantes no Distrito Federal sugerem que esse tipo de iniciativa é plausível, oportuna e pertinente, quer em termos sociais, quer em termos ambientais e sanitários. Salvo melhor interpretação, outras alternativas aventadas - tais como, a remoção definitiva, o cumprimento de mandado judicial, a inércia governamental ou a penetração e ocupação irregular do solo dentro dos limites do próprio parque - poderiam ser menos satisfatórias para as partes envolvidas.
Em suma, almeja-se que os conhecimentos levantados possam contribuir para amenizar as marcantes injustiças e mazelas socioambientais e sanitárias da população que vive na Vila Santa Luzia, principalmente no que se refere a subsidiar a formulação e implementação de políticas públicas voltadas para a consolidação de edificação de habitações saudáveis. Sendo assim, entende-se que existe suficiente evidência para se propor uma solução construtiva, global e republicana para esse conflito socioambiental e sanitário de interesse local, distrital e nacional.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Dez 2023 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
17 Jan 2023 - Aceito
31 Mar 2023