Resumo
Este estudo trata sobre as competências colaborativas para o fortalecimento do trabalho em equipe e colaboração interprofissional nos serviços de Atenção Primária à Saúde, apoiado no referencial do processo de trabalho em saúde, trabalho interprofissional e competências. Tem o objetivo de compreender as concepções e experiências dos profissionais das equipes da Estratégia Saúde da Família sobre as competências colaborativas centrais: comunicação interprofissional e atenção centrada no paciente. Trata-se de uma pesquisa qualitativa exploratória e interpretativa. Foi utilizado banco de dados secundário, com 34 entrevistas realizadas com profissionais das equipes de três unidades de saúde localizadas em dois municípios. Adotou-se análise de conteúdo temática, com apoio do software WebQDA. Os resultados evidenciam o entendimento dos profissionais sobre as competências colaborativas como complementares, não podendo ser tratadas de forma independente. A comunicação interprofissional é reconhecida como foco no atendimento às necessidades de saúde do usuário, limitada pelas condições de trabalho insatisfatórias. A atenção centrada no paciente aparece de forma frágil, visto que o sentido da participação do usuário prevalece como transferência da responsabilidade pelo seu cuidado para os profissionais e de forma minoritária, como compartilhamento na construção do plano de cuidado.
Palavras-chaves:
Relações Interprofissionais; Competência Profissional; Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família
Introdução
Este estudo trata do trabalho interprofissional das equipes de Estratégia Saúde da Família (ESF), em particular, das competências colaborativas centrais, comunicação interprofissional e atenção centrada no paciente, no cotidiano de trabalho, considerando seu potencial para o fortalecimento do trabalho em equipe e da prática interprofissional colaborativa nos serviços de Atenção Primária à Saúde (APS) do Sistema Único de Saúde (SUS).
A pesquisa está fundamentada no referencial teórico conceitual do processo de trabalho em saúde, do trabalho interprofissional e das competências. A categoria analítica do processo de trabalho em saúde consolidou-se no campo da Saúde Coletiva como referencial, por meio do diálogo interdisciplinar com as Ciências Sociais, das quais advém a categoria trabalho e processo de trabalho (Mendes-Gonçalves, 2017MENDES-GONÇALVES, R. B. Práticas de saúde: processos de trabalho e necessidades. In: AYRES, R. C. M; SANTOS, L. Sociedade, saúde e história. São Paulo: HUCITEC; Porto Alegre: Rede Unida, 2017. p. 298-374.). Esta análise permitiu compreender as práticas de saúde na sua articulação com as demais práticas sociais e o processo de trabalho em saúde constituído na dialética de seus componentes: objeto de trabalho, instrumentos, finalidade e agentes, bem como na consubstancialidade entre processo de trabalho e necessidades de saúde (Mendes-Gonçalves, 2017MENDES-GONÇALVES, R. B. Práticas de saúde: processos de trabalho e necessidades. In: AYRES, R. C. M; SANTOS, L. Sociedade, saúde e história. São Paulo: HUCITEC; Porto Alegre: Rede Unida, 2017. p. 298-374.).
As ações de saúde, nas equipes ESF, mantêm a intersubjetividade como característica - no encontro e interação profissional com o usuário, a literatura sobre trabalho em equipe mostra que este requer interação social e comunicação entre os profissionais, bem como destes com os usuários e a população. Neste estudo, a investigação sobre trabalho interprofissional está apoiada na concepção de processo de trabalho em saúde e, também, do agir instrumental e agir comunicativo, pressupondo a relação recíproca entre trabalho e interação social (Peduzzi et al., 2020PEDUZZI, M. et al. Trabalho em equipe uma revisita ao conceito e seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. Suppl 1, 2020.).
O estudo também utilizou a concepção de competências de Zarifian (2001ZARIFIAN, P. Competência: Definição, implicações e dificuldades. In: ZARIFIAN, P. Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas, 2001. p. 66-87.), autor do campo da sociologia do trabalho francesa, que entende a competência como indissociável da ação do profissional. Além disso, define competências como a tomada de iniciativa do trabalhador frente à situação trazida pelo usuário ou população, mobilizando conhecimentos, habilidades, atitudes e valores, para além da mera resposta técnica, com responsabilidade, que é a contrapartida da autonomia e da descentralização da tomada de decisão (Zarifian, 2001ZARIFIAN, P. Competência: Definição, implicações e dificuldades. In: ZARIFIAN, P. Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas, 2001. p. 66-87.).
O trabalho interprofissional é constituído por diferentes formas de organização, como trabalho em equipe, colaboração, prática colaborativa e trabalho em rede. O trabalho em equipe constitui o núcleo de produção do cuidado, visto que a equipe é responsável por um conjunto de famílias e usuários adscritos a ela, se caracterizando pela existência de objetivos comuns, intensa interdependência das ações, clareza dos papéis e compartilhamento da identidade e responsabilidade entre os membros (Reeves et al., 2010REEVES, S. et al. Interprofessional teamwork for health and social care. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.; Reeves, Xyrichis, Zwarenstein, 2018REEVES, S.; XYRICHIS, A.; ZWARENSTEIN, M. Teamwork, collaboration, coordination, and networking: Why we need to distinguish between different types of interprofessional practice. Journal of interprofessional care, Abingdon, v. 32, n. 1, pp. 1-3, 2018.; Peduzzi; Agreli, 2018PEDUZZI, M.; AGRELI, H. F. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, v. 22, n. 2, p. 1525-1534, 2018.; Peduzzi et al., 2020PEDUZZI, M. et al. Trabalho em equipe uma revisita ao conceito e seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. Suppl 1, 2020.).
A colaboração interprofissional diz respeito a profissionais de diferentes áreas que querem trabalhar juntos porque reconhecem que a cooperação promove melhor atenção e melhores resultados para os usuários e a população. A colaboração, quando implementada na prática do cuidado, constitui prática colaborativa interprofissional, assim como quando se refere à Rede de Atenção à Saúde (RAS) e ao trabalho em rede colaborativa (Peduzzi; Agreli, 2018PEDUZZI, M.; AGRELI, H. F. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, v. 22, n. 2, p. 1525-1534, 2018.).
Nas últimas duas décadas, o trabalho em equipe e a educação interprofissional vêm ganhando renovado destaque mundial, em especial a partir da divulgação de estudos que associam os erros médicos e dos profissionais de saúde às dificuldades de comunicação entre as diferentes áreas diretamente envolvidas com os cuidados aos pacientes. Quando as equipes são efetivas, há uma melhoria na qualidade da assistência e satisfação do paciente (Giardina et al., 2013GIARDINA, T. D. et al. Root cause analysis reports help identify common factors in delayed diagnosis and treatment of outpatients. Health affairs, Millwood VA, v. 32, n. 8, p. 1368-1375, 2013.; Schmutz; Manser, 2013SCHMUTZ, J.; MANSER, T. Do team processes really have an effect on clinical performance? A systematic literature review. British Journal of Anaesthesia, Altrincham, v. 110, n. 4, p. 529-544, 2013.). Portanto, os profissionais de saúde precisam desenvolver competências colaborativas para além daquelas que são específicas da sua profissão, e das quais se apropriam na sua formação inicial e na prática cotidiana de trabalho.
A referência às competências colaborativas coloca em cena o que efetivamente os profissionais e os estudantes do campo da saúde estão aptos a executar, não apenas restrito ao âmbito do conhecimento, mas também abarcando as habilidades, os saberes, as atitudes e os valores que são capazes de mobilizar e colocar em ação, frente às situações trazidas pelos usuários, famílias e comunidades (Thistlethwaite et al., 2014THISTLETHWAITE, J. E. et al. Competencies and frameworks in interprofessional education: a comparative analysis. Academic Medicine, Philadelphia, v. 89, n. 6, p. 869-875, 2014.).
Thistlethwaite et al. (2014THISTLETHWAITE, J. E. et al. Competencies and frameworks in interprofessional education: a comparative analysis. Academic Medicine, Philadelphia, v. 89, n. 6, p. 869-875, 2014.) analisam que a implementação de serviços de saúde, organizados com base no trabalho em equipe e a necessidade correlata de educação interprofissional, tornou necessário o desenvolvimento de marcos de referências sobre as competências colaborativas para a construção de um alinhamento e uma lente comum para que as diversas profissões e disciplinas do campo da saúde pudessem atuar na atenção à saúde e na formação dos profissionais. Os autores destacam que, apesar de persistir algum grau de confusão sobre o tema, foram elaborados quatro marcos de referências sobre competências colaborativas que têm ajudado a avançar na sua compreensão e prática interprofissional: The Interprofessional Capability Framework (2004), no Reino Unido; A National Interprofessional Competency Framework (2010), no Canadá; Core Competencies for Interprofessional Collaborative Practice (2011), nos Estados Unidos; e a National Common Health Competency Resource for the Australian Health Workforce (2013), na Austrália.
Neste estudo, foi adotado o marco de referência de competências colaborativas desenvolvido no Canadá (CIHC, 2010CIHC - CANADIAN INTERPROFESSIONAL HEALTH COLLABORATIVE. A national interprofessional competency framework. Vancouver, 2010. Disponível em: Disponível em: https://phabc.org/wp-content/uploads/2015/07/CIHC-National-Interprofessional-Competency-Framework.pdf . Acesso em: 11 out. 2022.
https://phabc.org/wp-content/uploads/201... ), para abordagem das concepções e experiências dos profissionais de saúde da ESF. O referencial canadense define seis domínios de competências colaborativas: comunicação interprofissional e atenção centrada no paciente, reconhecidas como centrais, no sentido de constituírem o núcleo em torno do qual a colaboração interprofissional se estabelece; e clareza dos papéis, funcionamento da equipe, liderança colaborativa e resolução de conflitos interprofissionais.
A pesquisa foi realizada em serviços com ESF, que constitui o modelo de atenção e estratégia prioritária para a expansão e consolidação da APS (Giovanella; Franco; Almeida, 2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1475-1482, 2020.), sendo a porta de entrada preferencial e o primeiro nível de cuidado à saúde, do que decorre configurar-se como coordenadora da atenção à saúde na RAS (Brasil, 2017BRASIL. Portaria n. 2436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão das diretrizes para a organização da atenção básica, no âmbito do sistema único de saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017.). A ESF é reconhecida internacionalmente como modelo de excelência na APS (Macinko; Harris, 2015MACINKO, J.; HARRIS, M. J. Brazil’s family health strategy: delivering community-based primary care in a universal health system. New England Journal of Medicine, Boston, v. 372, n. 23, p. 2177-2181, 2015.), visto suas contribuições na melhoria das condições de saúde de usuários e da população, evidenciadas em pesquisas (Macinko; Mendonça, 2018MACINKO, J.; MENDONÇA, C. S. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de Atenção Primária à Saúde que traz resultados. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, p. 18-37, 2018.).
O estudo foi desenvolvido a partir das concepções - enquanto ideias, noções e conceitos - e das experiências relatadas pelos profissionais das equipes, na acepção de Larrosa (2016LARROSA, J. Tremores. Escritos sobre a Experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. ). Dessa forma, a experiência é tida como “o que nos acontece, o que nos toca”, não apenas no sentido do sujeito técnico, que executa o trabalho, e do sujeito crítico capaz de reflexão sobre a prática, mas também de sujeito implicado que, a partir do seu envolvimento com a prática, compartilha os sentidos do seu cotidiano de trabalho (Larrosa, 2016LARROSA, J. Tremores. Escritos sobre a Experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. , p. 18).
A pesquisa tem o objetivo de compreender as concepções e experiências dos profissionais das equipes de ESF sobre as competências colaborativas centrais: comunicação interprofissional e atenção centrada no paciente.
Metodologia
Trata-se de estudo descritivo exploratório, com abordagem qualitativa do tipo estudo de caso múltiplo (Yin, 2014YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2014.), que foi realizado em três unidades básicas de saúde (UBS), além de derivado de uma pesquisa mais ampla, desenvolvida pelo grupo de pesquisa ao qual a pesquisadora principal está vinculada. A investigação maior analisou as competências dos profissionais de saúde da APS para o trabalho em equipe e prática colaborativa interprofissional, propôs um caminho metodológico para a construção de competências e realizou o mapeamento das ações de cada categoria como etapa necessária para avançar na definição dos domínios de competências.
O estudo foi desenvolvido em dois municípios com realidades distintas, em duas UBS do município Curitiba/PR e uma UBS do município de Guarulhos/SP. Ambas as unidades apresentaram, no momento da pesquisa, equipes incompletas, porém com diferentes cenários e modelos de gestão municipal. O município de Curitiba/PR possuía ampla rede dos serviços de APS, com 225 equipes de ESF e 158 equipes de saúde bucal distribuídas em 110 UBS, e vivenciava mudança da gestão municipal e do Plano Municipal de Saúde (PMS), com aumento do número de ações ofertadas nas unidades, entre elas a ampliação do horário de funcionamento dos serviços, das consultas agendadas e do atendimento à demanda espontânea. O município de Guarulhos/SP contava com 69 UBS, tendo 55 equipes de ESF cadastradas e 61 equipes de ESF com saúde bucal. De acordo com o PMS, a gestão local tinha como principal diretriz a conversão do modelo de atenção para a ESF como estratégia prioritária de organização e ordenação do sistema de saúde.
Este estudo utilizou o banco de dados qualitativos da pesquisa original referida, no qual constam as entrevistas realizadas com profissionais das três UBS selecionadas para esta investigação.
Os critérios de seleção das três unidades, utilizados originalmente, foram: classificação de desempenho ótimo no primeiro ciclo do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB), localização em município com no mínimo três UBS com equipes de ESF completas e UBS com duas ou mais equipes de ESF. A seleção dos entrevistados obedeceu aos critérios: profissionais com no mínimo um ano de trabalho na UBS, com tempos variados de atuação na APS, atuantes nas atividades e nas interações com demais profissionais da equipe, e inclusão de um ou dois profissionais de cada categoria a partir da indicação do gerente da unidade.
Participaram da pesquisa os profissionais das equipes de ESF: agentes comunitários de saúde (ACS), auxiliares/técnicos de enfermagem, auxiliares/técnicos de saúde bucal, cirurgiões-dentistas, enfermeiros e médicos.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (CAAE 45956515.4.0000.5392, parecer número 1.180.576), seguindo os preceitos éticos previstos na Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012, e foi desenvolvida no período de janeiro de 2015 a janeiro de 2017.
Para análise dos dados, adotou-se a técnica de análise de conteúdo temática (Bardin, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições Setenta, 2016.). Foi realizada leitura flutuante e sucessivas consultas ao material empírico, acompanhadas da audição dos registros, o que permitiu a impregnação por parte da pesquisadora.
Com base neste processo, foi realizada a codificação e construção das categorias seguindo o processo sistemático de: análise individual da entrevista, seguida da análise do conjunto de entrevistas da UBS e, por fim, a análise transversal das entrevistas das três UBS. Neste processo também foi considerado, para conhecimento das unidades, o registro do caderno de campo efetuado durante a coleta de dados da pesquisa original.
Na análise dos dados, foi utilizado software de análise qualitativa Web Qualitative Data Analysis (WebQDA), por propiciar a organização dos dados da pesquisa. Isso possibilitou maior rigor técnico e metodológico na análise das entrevistas, bem como trabalho colaborativo entre a pesquisadora principal e a orientadora, para validação da construção das categorias (Costa et al., 2019COSTA, A. P. et al. webQDA - Qualitative data analysis. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2019.).
Na apresentação dos resultados, os entrevistados foram identificados pela categoria profissional e letra de identificação da UBS (A, B, C), objetivando contextualizar os relatos dos profissionais.
Resultados
Os resultados iniciam com a caracterização dos participantes e seguem com a apresentação das concepções e experiências dos profissionais das equipes de ESF acerca das competências colaborativas centrais.
Foram entrevistados 34 profissionais, sendo seis ACS, seis auxiliares/técnicos de enfermagem, cinco auxiliares/técnicos de saúde bucal, cinco cirurgiões-dentistas, seis enfermeiros e seis médicos. Destaca-se o predomínio do sexo feminino, com 28 (82%) participantes, faixa etária média de 46 anos, variando entre 26 e 57 anos, tempo de atuação na instituição com média de 14 anos, variando entre seis meses e 28 anos, e tempo de trabalho na UBS com média de 6,5 anos, variando entre seis meses e 17 anos.
Concepções e experiências dos profissionais das equipes ESF sobre as competências colaborativas centrais
Quanto à concepção e às experiências dos profissionais sobre a comunicação interprofissional, identificaram-se duas categorias que fazem referência ao cotidiano das práticas de saúde nos serviços de APS: comunicação interprofissional com foco no atendimento ao usuário e condições de trabalho limitantes para a comunicação interprofissional.
A comunicação interprofissional com foco no atendimento ao usuário foi reconhecida nas equipes das três UBS como a conversa que ocorre entre diferentes membros da equipe frente ao atendimento do usuário. O referencial do processo de trabalho em saúde e sua relação recíproca com as necessidades de saúde permite a caracterização da comunicação interprofissional como aquela que é pautada nas necessidades de saúde reconhecidas pelos profissionais (Mendes-Gonçalves, 2017MENDES-GONÇALVES, R. B. Práticas de saúde: processos de trabalho e necessidades. In: AYRES, R. C. M; SANTOS, L. Sociedade, saúde e história. São Paulo: HUCITEC; Porto Alegre: Rede Unida, 2017. p. 298-374.).
A articulação dos saberes de diferentes áreas se dá com base na mobilização das competências específicas de cada categoria e o reconhecimento de certos limites para lidar com a situação apresentada pelo usuário (Zarifian, 2001ZARIFIAN, P. Competência: Definição, implicações e dificuldades. In: ZARIFIAN, P. Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas, 2001. p. 66-87.). Isso leva os profissionais a mobilizarem outros integrantes da equipe para garantir a resolutividade.
[...] quando mais complexo envolve mais áreas, mais profissionais, quando é uma coisa mais simples a gente acaba não conversando com todo mundo porque normalmente é alguma coisa que a gente como técnico consegue resolver. (Auxiliar/técnica de enfermagem - UBS A)
Os participantes apontaram que a complexidade dos casos leva a frequentes discussões pontuais das situações apresentadas pelos usuários, na busca de trocas e orientações complementares para o atendimento das necessidades de saúde.
Por outro lado, as condições de trabalho são limitantes para a comunicação interprofissional, em especial a presença e manutenção de equipes incompletas nas unidades A e B, que foram referidas como limitadoras para que os profissionais e equipes encontrem ou criem momentos de interação e comunicação entre seus membros.
É muito valorizado você atender a demanda em quantidade, do que qualidade. Isso faz com que basicamente suas atividades sejam atender a demanda, mas você precisa de espaço e tempo para se reunir com a equipe e dialogar com as pessoas. (Médico - UBS B)
Nas UBS A e C, os profissionais se referiram à sobrecarga de trabalho e se perceberam limitados ao atendimento da demanda agendada e espontânea, visto a reduzida disponibilidade de tempo para se comunicarem com os demais membros da equipe.
[…] tem que marcar menos pacientes para poder ir à reunião, mas os pacientes que a dentista não atendeu, vai ter que atender na semana […] e depois ela é cobrada pelas metas. (Auxiliar/técnico de saúde bucal - UBS C)
Frente ao cenário de equipes incompletas, cabe destacar que, na UBS B, os entrevistados relataram a ausência de agenda para a realização das reuniões de equipe que antes integravam o cotidiano do trabalho.
No entanto, na UBS C, a discussão e compartilhamento de informações acerca do acompanhamento de usuários foi reconhecida, durante a reunião de equipe, como um espaço que potencializa a comunicação interprofissional a partir da interação entre os profissionais:
[…] nas reuniões da equipe temos a oportunidade de trocar as informações a respeito da saúde da família e ter contato com o enfermeiro, o auxiliar de enfermagem, então aquela família, você pode ter respostas a mais, não só da consulta com o dentista […] A gente tem essa interação na reunião da equipe. (Cirurgião-dentista - UBC C)
Atenção centrada no usuário
A concepção da atenção centrada no paciente aparece de forma frágil, visto que poucos entrevistados referiram propor um convite à participação do usuário no próprio cuidado, controle social e compartilhamento de responsabilidades entre profissionais e usuários.
A maioria dos entrevistados nas três UBS reconheceu a participação do usuário junto à unidade e à equipe, através dos grupos de prevenção e promoção à saúde, como oportunidade que proporciona o fortalecimento do vínculo entre usuário e equipe, a convivência entre usuários e demais membros da comunidade, a troca de experiências, o acesso à informação sobre a doença e, ainda, como oportunidade de ampliar a orientação ao usuário e sua família, de acordo com as necessidades de tratamentos e cuidados.
[...] a família entra nesse trabalho quando os profissionais da equipe fazem um grupo [...] esse paciente tem a oportunidade de estar com vários profissionais, esclarecendo dúvidas, tendo orientação (Cirurgião-dentista - UBS C).
No entanto, as UBS A e B apontaram que os grupos de prevenção e promoção à saúde tiveram suas agendas reduzidas, devido à instabilidade na composição das equipes e a reorganização do processo de trabalho da gestão municipal, com ampliação do atendimento à demanda espontânea e centralização do acolhimento das queixas agudas, em detrimento das ações com foco na prevenção de doenças e agravos em saúde.
Quanto às atividades nas quais os usuários participam junto às equipes, os profissionais das três UBS reconheceram as reuniões mensais do Conselho Gestor Local como espaço que possibilita a escuta da população sobre as necessidades de melhorias e pontos positivos que devem ser mantidos na rotina da unidade e do trabalho das equipes. Porém os entrevistados, em sua maioria, apontaram que a participação dos usuários acontece de forma incipiente. “São poucos que participam. A gente convida muito quando tem uma reunião do conselho, só que, às vezes, eles vêm mais quando tem crítica” (ACS - UBS B).
A maioria dos entrevistados assinalou o esvaziamento do Conselho Gestor como espaço de participação. Uma das participantes destacou a necessidade de motivar os usuários, de maneira que compreendam o significado da participação social.
Pouca participação dos usuários no conselho […] É que conselho você tem que sempre estar motivando e o usuário entendendo o resultado disso. Tem que ser uma coisa mais palpável para o usuário, senão ele […] se afasta. (Enfermeira - UBS A)
A atenção centrada no paciente como compartilhamento de responsabilidade pelo cuidado é trazida pelos profissionais de modo a evidenciar uma tensão entre duas percepções distintas. De um lado, a compreensão sobre o compartilhamento de responsabilidade do cuidado entre profissional e usuário e, de outro, o entendimento acerca da ocorrência de transferência de responsabilidade do cuidado do usuário para os profissionais.
No conjunto de entrevistas, apenas três profissionais apontaram estímulo para a participação do usuário no autocuidado por meio da orientação, escuta e valorização do seu papel no cuidado, configurando o que, neste estudo, denomina-se compartilhamento da responsabilidade - parceria do cuidado entre profissional e usuário.
[…] O próprio usuário, a família, o cuidador, trabalha conosco em equipe […] Eu acredito que o usuário, além de ser o centro, agora ele participa, ele é coparticipante […] Quando nós trabalhamos em equipe facilita bastante quando a família está empoderada e entende a situação. (Enfermeira - UBS C)
Profissionais das equipes das UBS A e B referiram o inverso, isto é, na sua percepção há a transferência de responsabilidade do cuidado do usuário para os profissionais da equipe, situação em que o usuário apresenta dificuldade em ocupar seu lugar como protagonista no autocuidado e concentra essa responsabilidade na equipe que o acompanha.
[…] elas esperam que você resolva todas as queixas, todas as demandas e não é assim que funciona. Então a equipe de saúde tem a responsabilidade de fazer a parte da equipe, a pessoa continua com a responsabilidade dos seus cuidados pessoais e a família do seu cuidado com os seus parentes, mas não é isso que está acontecendo.(Médico - UBS A)
Em síntese, a comunicação interprofissional se refere à comunicação entre profissionais de diversas áreas, orientada pelas e para as necessidades de saúde, porém, sem a participação dos usuários. A limitação ou exclusão dos usuários na concepção de comunicação interprofissional restringe seu alcance à esfera de saberes e práticas das profissões, portanto, tendendo ao predomínio do agir instrumental, no qual a lógica que fundamenta a interação é a dos saberes técnico-científicos. Isso tem repercussões no cuidado, à medida que a complexidade das necessidades dos usuários - que abarcam o âmbito do cuidado clínico, psicológico, social, epidemiológico e cultural - requer abertura dos profissionais também ao agir comunicativo, que busca o entendimento entre os todos envolvidos, com base em relações horizontais e diálogo (Peduzzi et al., 2020PEDUZZI, M. et al. Trabalho em equipe uma revisita ao conceito e seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. Suppl 1, 2020.).
A pesquisa também evidencia a concepção de comunicação interprofissional, com ênfase na dimensão individual do cuidado e apartada da abordagem territorial, visto que não contempla as necessidades relativas às famílias e às comunidades dos territórios.
Também foi evidenciado que a comunicação entre os profissionais reflete o contexto das práticas de saúde, no sentido das condições de trabalho impróprias ao perfil de necessidades dos usuários, o que configura uma limitação à comunicação interprofissional efetiva, ou seja, aquela que permite reconhecer e responder às necessidades de saúde de usuários, famílias e comunidade.
Quanto à atenção centrada no usuário, os resultados mostram que o sentido predominante para as equipes de ESF remete à participação do usuário no cuidado e no controle social, embora de forma frágil, visto que a maioria dos profissionais reconhece como espaço de participação apenas os grupos de prevenção e promoção da saúde, e estes haviam sido reduzidos nas unidades A e B.
A participação dos usuários na tomada de decisão sobre o plano de cuidado promove o compartilhamento de responsabilidade que é assinalado, na literatura, como elemento-chave da prática interprofissional colaborativa. No entanto, esta concepção aparece restrita à experiência de poucos profissionais. Um estudo mostra que, entre os participantes, predomina o sentido de transferência de responsabilidade pelo cuidado do usuário para os profissionais - como se os usuários não tivessem interesse e possibilidades de participar. Isso evidencia que a comunicação interprofissional está centrada nos profissionais e nas equipes, o que contraria a literatura sobre o tema, que destaca o protagonismo dos usuários na construção e execução de seu plano de atenção à saúde. (CIHC, 2010CIHC - CANADIAN INTERPROFESSIONAL HEALTH COLLABORATIVE. A national interprofessional competency framework. Vancouver, 2010. Disponível em: Disponível em: https://phabc.org/wp-content/uploads/2015/07/CIHC-National-Interprofessional-Competency-Framework.pdf . Acesso em: 11 out. 2022.
https://phabc.org/wp-content/uploads/201... ; Fox; Reeves, 2015FOX, A.; REEVES, S. Interprofessional collaborative patient-centred care: a critical exploration of two related discourses. Journal of Interprofessional Care, Abingdon, v. 29, n. 2, p. 113-118, 2015.; Peduzzi et al., 2020PEDUZZI, M. et al. Trabalho em equipe uma revisita ao conceito e seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. Suppl 1, 2020.).
Discussão
Os resultados do estudo trazem quatro categorias, que expressam o entendimento e a experiência dos 34 profissionais, integrantes das 11 equipes de ESF das três UBS estudadas: duas referidas à comunicação interprofissional e duas acerca da atenção centrada no paciente.
Quanto à comunicação interprofissional, os profissionais das equipes das três UBS convergem que esta ocorre entre profissionais de diferentes áreas, com foco no atendimento do usuário. Ou seja, está baseada no reconhecimento e na atenção às necessidades de saúde dos usuários de forma direta, o que lhes atribui um caráter próprio e peculiar. Entretanto, trata-se de uma concepção de comunicação em equipe que exclui a participação dos usuários, comprometendo seu potencial como competência para a melhoria do cuidado e o fortalecimento do trabalho interprofissional (CIHC, 2010CIHC - CANADIAN INTERPROFESSIONAL HEALTH COLLABORATIVE. A national interprofessional competency framework. Vancouver, 2010. Disponível em: Disponível em: https://phabc.org/wp-content/uploads/2015/07/CIHC-National-Interprofessional-Competency-Framework.pdf . Acesso em: 11 out. 2022.
https://phabc.org/wp-content/uploads/201... ; Metersky et al., 2022METERSKY, K. et al. Patient roles in primary care interprofessional teams: a constructivist grounded theory of patient and health care provider perspectives. Journal of interprofessional care, Abingdon, v. 36, n. 2, p. 177-185, 2022.).
Em uma das UBS do estudo, os profissionais das equipes relacionaram a comunicação interprofissional com a interação e comunicação frequente e pontual entre profissionais de diferentes áreas, dada a complexidade das situações apresentadas pelos usuários. Uma revisão de literatura sobre o tema aponta que a comunicação frequente e informal é a principal característica da prática colaborativa interprofissional (Morgan; Pullon; McKinlay, 2015MORGAN, S.; PULLON, S.; MCKINLAY, E. Observation of interprofessional collaborative practice in primary care teams: An integrative literature review. International Journal of Nursing Studies, Oxford, v. 52, n. 7, p. 1217-1230, 2015.).
Segundo o referencial teórico adotado, o trabalho interprofissional é constituído por diversas formas de organização das atividades de cuidado à saúde. Dessa forma, a comunicação interprofissional é um requisito para todas: trabalho em equipe, prática colaborativa interprofissional e trabalho em rede (Reeves et al., 2010REEVES, S. et al. Interprofessional teamwork for health and social care. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.; Reeves, Xyrichis, Zwarenstein, 2018REEVES, S.; XYRICHIS, A.; ZWARENSTEIN, M. Teamwork, collaboration, coordination, and networking: Why we need to distinguish between different types of interprofessional practice. Journal of interprofessional care, Abingdon, v. 32, n. 1, pp. 1-3, 2018.; Peduzzi et al., 2020PEDUZZI, M. et al. Trabalho em equipe uma revisita ao conceito e seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. Suppl 1, 2020.).
A pesquisa evidencia que nem toda comunicação entre profissionais de diferentes áreas tem característica de comunicação interprofissional. Esta ocorre quando a conversa ou o diálogo entre os profissionais de uma equipe, de diferentes equipes ou mesmo com a gestão do serviço ou da RAS está orientado pela atenção ao usuário e com a sua participação.
Este resultado retoma a análise de que o trabalho em equipe interprofissional consiste na interação social e na comunicação entre os profissionais, para articulação das ações de atenção à saúde que constituem as práticas no cotidiano das UBS, e que toda interação é social, mesmo sendo pessoa a pessoa (Peduzzi et al., 2020PEDUZZI, M. et al. Trabalho em equipe uma revisita ao conceito e seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. Suppl 1, 2020.). Destaca-se que a comunicação interprofissional convive com a pessoal, presente nas trocas e interações que dizem respeito a outras esferas da vida e das práticas de saúde. O que é denominado, neste estudo, de comunicação pessoal, se refere àquela que não está orientada, de imediato, à atenção à saúde, no sentido ampliado que o SUS lhe atribui, que abarca: promoção, proteção, prevenção, recuperação e reabilitação da saúde.
A comunicação interprofissional requer a construção de ambiente seguro, no qual ocorre a interação sem constrangimentos, o que possibilita o compartilhamento de ideias, dúvidas e conhecimentos, deslocando o centro da comunicação dos profissionais e do serviço para as necessidades de cada usuário (Peduzzi; Agreli, 2018PEDUZZI, M.; AGRELI, H. F. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, v. 22, n. 2, p. 1525-1534, 2018.).
Contudo, o entendimento e experiência dos participantes da pesquisa não inclui o usuário como parceiro na construção e na implementação do plano de cuidados à saúde, pois o foco está no atendimento individual, sobretudo de caráter biomédico (Davidson et al., 2022DAVIDSON, A. R. et al. What do patients experience? Interprofessional collaborative practice for chronic conditions in primary care: an integrative review. BMC Primary Care, Londres, v. 23, n. 1, p. 1-12, 2022.), e nas trocas e diálogos entre os profissionais, excluindo os usuários.
Os resultados mostram que a concepção de comunicação interprofissional também não inclui família e comunidade, embora a ESF da APS no SUS tenha sido implantada e desenvolvida com base na concepção ampliada de saúde, que contempla a determinação social do processo saúde-doença, cuidado e a dimensão da subjetividade, que requerem a abordagem territorial. A atuação das equipes de ESF com foco no atendimento do usuário, sem referência à família e ao território atesta a ênfase na abordagem individual, clínica e descontextualizada contrária à integralidade da saúde, e corrobora com as políticas federais recentes na perspectiva da APS restrita e seletiva (Giovanella; Franco; Almeida, 2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1475-1482, 2020.). Este resultado chama atenção, pois os dados secundários aqui analisados se referem ao banco de entrevistas realizadas em 2016 e no início de 2017, anterior à publicação da PNAB vigente (Brasil, 2017).
Também foi evidenciado que a concepção de comunicação interprofissional aponta, de forma inequívoca, que as condições de trabalho, quando não adequadas e pertinentes ao perfil de necessidades dos usuários e da população, constituem limites à própria comunicação, com foco no atendimento ao usuário, o que pode comprometer a qualidade do cuidado à saúde. Reeves et al. (2010REEVES, S. et al. Interprofessional teamwork for health and social care. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.) analisam que o trabalho em equipe precisa ser compreendido com base em dois componentes relevantes: o perfil de necessidades dos usuários e população atendida, e as condições de trabalho em que atuam as equipes.
Uma revisão de literatura sobre a experiência dos profissionais na APS com o trabalho em equipe e a colaboração interprofissional mostra que o trabalho interprofissional constitui um processo diário, cujas condições e consequências remetem a barreiras de ordem estrutural, ideológica, organizacional e das interações. Entre as barreiras organizacionais, constam: a carga de trabalho; a ausência de número satisfatório de profissionais segundo as demandas do serviço; iniquidades nas relações de poder e diferenças de contratos e de salários entre as categorias profissionais (Sangaleti et al., 2017SANGALETI, C. et al. Experiences and shared meaning of teamwork and interprofessional collaboration among health care professionals in primary health care settings: a systematic review. JBI Database of Systematic Reviews and Implementation Reports, Adelaide, v. 15, n. 11, p. 2723-2788, 2017.). As condições de trabalho impróprias em que atuam as equipes de ESF estão relacionadas ao crônico subfinanciamento do SUS, que se agravou a partir do congelamento de recursos financeiros advindos da Emenda Constitucional 95, de 15 de dezembro de 2016, bem como da ausência de concursos públicos e de processos seletivos para reposição das equipes, o que compromete o desempenho de suas atividades de forma segura e colaborativa (Rede de pesquisa APS, 2022REDE DE PESQUISA EM APS (Org.). Bases para uma Atenção Primária à Saúde integral, resolutiva, territorial e comunitária no SUS: aspectos críticos e proposições. Rio de Janeiro: Abrasco, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2021/02/e-book_rede_APS_29_07.pdf >. Acesso em: 11 out. 2022.
https://www.abrasco.org.br/site/wp-conte... ).
O subdimensionamento das equipes de saúde, em especial na APS, acarreta sobrecarga de trabalho e comprometimento do tempo dispensado para cada paciente durante a prestação do cuidado. Além disso, o modelo de gestão de gerencialismo (Paula, 2005PAULA, A. P. P. Administração pública brasileira entre o gerencialismo e a gestão social. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 45, n. 1, p. 36-49, 2005.), atualmente adotado pelos serviços de saúde, prevê o cumprimento de metas de produtividade cada vez mais audaciosas, comprometendo o bem-estar dos profissionais que compõem as equipes.
Quanto à atenção centrada no paciente, os resultados evidenciam que as concepções e experiências dos profissionais das três UBS convergem para duas formas principais de manifestação: como participação do paciente no cuidado e no controle social, com compartilhamento da responsabilidade entre profissionais e usuários, e como transferência de responsabilidade pelo cuidado do usuário ao profissional.
O convite à participação do paciente no cuidado esteve relacionado sobretudo à participação em espaços de cuidado coletivo, dos grupos de prevenção e promoção à saúde. Os grupos visam a promoção do autocuidado apoiado, uma proposta de gestão do cuidado que incorpora colaboração entre pacientes e equipe de saúde, em substituição à atuação prescritiva. A proposta dos grupos de prevenção e promoção em saúde dialoga com a perspectiva ampliada do cuidado à saúde e reconhecimento dos determinantes sociais do processo saúde-doença e cuidado, bem como da esfera de subjetividade presente na atenção à saúde.
Contudo, na contramão dos possíveis avanços da participação do paciente sob a perspectiva ampliada do cuidado, os entrevistados relatam uma diminuição na realização de grupos de prevenção e promoção à saúde, relacionada à ampliação do atendimento a queixas agudas. Estudos recentes analisam que as ações de saúde voltam a se concentrar na atenção individual, nas consultas e nas queixas agudas (Giovanella; Franco; Almeida, 2020GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1475-1482, 2020., Pinto et al. 2021PINTO, L. F. Primary Care Asssement Tool: diferenças regionais a partir da Pesquisa Nacional de Saúde do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 9, p. 3965-3979, 2021.). Nota-se, neste cenário, um retorno à prática clínica convencional, sem foco nos espaços necessários para informação, reflexão e investimentos para que usuários tomem decisões informadas sobre seus cuidados (Fox; Reeves, 2015FOX, A.; REEVES, S. Interprofessional collaborative patient-centred care: a critical exploration of two related discourses. Journal of Interprofessional Care, Abingdon, v. 29, n. 2, p. 113-118, 2015.). Como analisado por Fox e Reeves (2015FOX, A.; REEVES, S. Interprofessional collaborative patient-centred care: a critical exploration of two related discourses. Journal of Interprofessional Care, Abingdon, v. 29, n. 2, p. 113-118, 2015.), tanto a atenção centrada no paciente como a prática colaborativa interprofissional podem se converter em meros discursos, sem sua efetiva incorporação às mudanças que ensejam as práticas de saúde integral e orientadas às necessidades de usuários e população de forma abrangente.
O convite à participação dos usuários no controle social esteve presente no seu envolvimento na esfera da gestão do SUS, sobretudo nas reuniões do Conselho Gestor. Os conselhos gestores são instrumentos de expressão, participação e representação, com vistas à transformação política, mas os usuários precisam ter oportunidades de aprendizado sobre os espaços de participação social (Fox, Reeves, 2015FOX, A.; REEVES, S. Interprofessional collaborative patient-centred care: a critical exploration of two related discourses. Journal of Interprofessional Care, Abingdon, v. 29, n. 2, p. 113-118, 2015.; Metersky et al., 2022METERSKY, K. et al. Patient roles in primary care interprofessional teams: a constructivist grounded theory of patient and health care provider perspectives. Journal of interprofessional care, Abingdon, v. 36, n. 2, p. 177-185, 2022.). Portanto, não se trata apenas do número de participantes da comunidade (Gohn, 2019GOHN, M. G. Teorias sobre a participação social: desafios para a compreensão das desigualdades sociais. Caderno CrH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 63-81, 2019.), embora seja esse um indicativo de interesse em participar. Com relação à baixa participação dos usuários nas reuniões, Fernandes, Spagnuolo e Bassetto (2017FERNANDES, V. C.; SPAGNUOLO, R. S.; BASSETTO, J. G. B. A participação comunitária no Sistema Único de Saúde: Revisão integrativa da literatura. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, Fortaleza, v. 30, n. 1, p. 125-34, 2017.) destacam que, na maioria das vezes, a comunidade tem pouco conhecimento da existência do Conselho, desconhecendo o quanto podem se empoderar através de um Conselho ativo.
Os resultados referentes à atenção centrada no paciente mostram a dupla raiz do compartilhamento da responsabilidade pelo cuidado entre profissionais e pacientes: de um lado, os profissionais que não reconhecem os usuários como parceiros genuínos no cuidado; do outro, os pacientes que, com dificuldade em assumir o protagonismo em seu autocuidado, transferem à equipe essa responsabilidade. Portanto, tanto os profissionais quanto usuários reiteram a posição deste em seu papel de “paciente”, em que os profissionais assumem total controle do cuidado à saúde, relegando aos usuários um papel de passividade, com ênfase no agir instrumental.
Em estudo sobre o papel dos usuários nas equipes da APS, Metersky et al. (2022METERSKY, K. et al. Patient roles in primary care interprofessional teams: a constructivist grounded theory of patient and health care provider perspectives. Journal of interprofessional care, Abingdon, v. 36, n. 2, p. 177-185, 2022.) propõem que a participação dos usuários nas equipes ocorra como gestores do autocuidado e coparticipantes na tomada de decisões. Para desempenhar tais papéis, os usuários precisam se sentir empoderados por seu acúmulo de conhecimento e respeitados pelos profissionais, no sentido de desenvolverem um papel ativo em seu próprio cuidado. O desequilíbrio nas relações de poder entre profissionais e usuários, bem como a ausência de uma cultura que apoie o compartilhamento de responsabilidades no cuidado, se caracterizam como barreiras à participação de usuários e população (Agreli et al., 2019AGRELI, H. F. et al. Patient involvement in the implementation of infection prevention and control guidelines and associated interventions: a scoping review. BMJ open, Londres, v. 9, n. 3, e025824, 2019.). Van Dongen et al. (2017VAN DONGEN, J. J. J. et al. Successful participation of patients in interprofessional team meetings: a qualitative study. Health Expectations, Oxford, n. 20, v. 4, pp. 724-33, 2017.), em análise sobre a participação de pacientes em reuniões de equipe da APS, descrevem que a mudança nas relações de poder a fim de favorecer o compartilhamento da responsabilidade pelo cuidado pode tomar tempo, pois pacientes e profissionais precisam “desaprender” padrões previamente estabelecidos em suas relações de cuidado meramente prescritivo e subordinado à autoridade profissional. O tempo para desenvolvimento de vínculo entre profissionais e usuários é descrito por Metersky et al. (2022METERSKY, K. et al. Patient roles in primary care interprofessional teams: a constructivist grounded theory of patient and health care provider perspectives. Journal of interprofessional care, Abingdon, v. 36, n. 2, p. 177-185, 2022.) como condição essencial para participação e comunicação dos pacientes nas equipes interprofissionais.
Foram identificadas duas limitações do estudo. Uma se refere à análise de duas UBS em um município e apenas uma UBS em outro. A outra se deve ao desenvolvimento do estudo com base em dados secundários, coletados por outras pesquisadoras de campo, o que pode ter comprometido em parte a apropriação do material pela pesquisadora principal. Contudo, o processo de impregnação do material empírico foi realizado por meio da escuta das entrevistas e análise do material transcrito na íntegra.
Considerações finais
A pesquisa contempla o objetivo proposto apresentando o entendimento e experiência dos profissionais das equipes de ESF sobre as duas competências colaborativas centrais. A primeira, comunicação interprofissional, foi caracterizada como aquela que ocorre quando o foco está no atendimento às necessidades de saúde dos usuários, e a segunda competência, atenção centrada no usuário, quando ocorre a sua participação na construção do plano de cuidado com compartilhamento de responsabilidades entre equipes e usuários. Portanto, o estudo evidencia que as duas são complementares e não podem ser tratadas de forma independente.
Os resultados permitem levantar a hipótese de que a comunicação interprofissional entre equipe e usuários será mais efetiva, no sentido de produzir os melhores resultados na atenção à saúde, se for promovido o engajamento dos usuários no reconhecimento das necessidades de saúde e na definição do plano de cuidado. Também será mais efetivo se as equipes atuarem com condições de trabalho adequadas, ou seja, com quadro de profissionais de saúde que corresponda às demandas de serviço.
A pesquisa traz contribuições para a gestão do SUS e a gerência específica das UBS, à medida que evidencia elementos-chave das competências colaborativas que precisam ser desenvolvidas e mobilizadas para o efetivo trabalho interprofissional. Isso indica a necessidade de ações de gestão do trabalho que busquem assegurar condições de trabalho pertinentes às necessidades de usuários e população, bem como de educação permanente que apoie a colaboração interprofissional.
Os resultados do estudo mostraram que as concepções dos profissionais das equipes de ESF sobre a prática colaborativa interprofissional e as competências centrais para sua consolidação, comunicação interprofissional e atenção centrada no paciente estão em processo de construção e aparecem nos relatos dos profissionais com tensões, contradições e fragilidade. No entanto, a ESF na APS do SUS constitui um espaço privilegiado de aprendizado e mobilização das competências colaborativas investigadas.
Referências
- AGRELI, H. F. et al. Patient involvement in the implementation of infection prevention and control guidelines and associated interventions: a scoping review. BMJ open, Londres, v. 9, n. 3, e025824, 2019.
- BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições Setenta, 2016.
- BRASIL. Portaria n. 2436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão das diretrizes para a organização da atenção básica, no âmbito do sistema único de saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017.
- CIHC - CANADIAN INTERPROFESSIONAL HEALTH COLLABORATIVE. A national interprofessional competency framework. Vancouver, 2010. Disponível em: Disponível em: https://phabc.org/wp-content/uploads/2015/07/CIHC-National-Interprofessional-Competency-Framework.pdf Acesso em: 11 out. 2022.
» https://phabc.org/wp-content/uploads/2015/07/CIHC-National-Interprofessional-Competency-Framework.pdf - COSTA, A. P. et al. webQDA - Qualitative data analysis. Aveiro: Universidade de Aveiro, 2019.
- DAVIDSON, A. R. et al. What do patients experience? Interprofessional collaborative practice for chronic conditions in primary care: an integrative review. BMC Primary Care, Londres, v. 23, n. 1, p. 1-12, 2022.
- FERNANDES, V. C.; SPAGNUOLO, R. S.; BASSETTO, J. G. B. A participação comunitária no Sistema Único de Saúde: Revisão integrativa da literatura. Revista Brasileira em Promoção da Saúde, Fortaleza, v. 30, n. 1, p. 125-34, 2017.
- FOX, A.; REEVES, S. Interprofessional collaborative patient-centred care: a critical exploration of two related discourses. Journal of Interprofessional Care, Abingdon, v. 29, n. 2, p. 113-118, 2015.
- GIARDINA, T. D. et al. Root cause analysis reports help identify common factors in delayed diagnosis and treatment of outpatients. Health affairs, Millwood VA, v. 32, n. 8, p. 1368-1375, 2013.
- GIOVANELLA, L.; FRANCO, C. M.; ALMEIDA, P. F. Política Nacional de Atenção Básica: para onde vamos? Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 4, p. 1475-1482, 2020.
- GOHN, M. G. Teorias sobre a participação social: desafios para a compreensão das desigualdades sociais. Caderno CrH, Salvador, v. 32, n. 85, p. 63-81, 2019.
- LARROSA, J. Tremores. Escritos sobre a Experiência. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.
- MACINKO, J.; HARRIS, M. J. Brazil’s family health strategy: delivering community-based primary care in a universal health system. New England Journal of Medicine, Boston, v. 372, n. 23, p. 2177-2181, 2015.
- MACINKO, J.; MENDONÇA, C. S. Estratégia Saúde da Família, um forte modelo de Atenção Primária à Saúde que traz resultados. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 1, p. 18-37, 2018.
- MENDES-GONÇALVES, R. B. Práticas de saúde: processos de trabalho e necessidades. In: AYRES, R. C. M; SANTOS, L. Sociedade, saúde e história. São Paulo: HUCITEC; Porto Alegre: Rede Unida, 2017. p. 298-374.
- METERSKY, K. et al. Patient roles in primary care interprofessional teams: a constructivist grounded theory of patient and health care provider perspectives. Journal of interprofessional care, Abingdon, v. 36, n. 2, p. 177-185, 2022.
- MORGAN, S.; PULLON, S.; MCKINLAY, E. Observation of interprofessional collaborative practice in primary care teams: An integrative literature review. International Journal of Nursing Studies, Oxford, v. 52, n. 7, p. 1217-1230, 2015.
- REDE DE PESQUISA EM APS (Org.). Bases para uma Atenção Primária à Saúde integral, resolutiva, territorial e comunitária no SUS: aspectos críticos e proposições. Rio de Janeiro: Abrasco, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2021/02/e-book_rede_APS_29_07.pdf >. Acesso em: 11 out. 2022.
» https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2021/02/e-book_rede_APS_29_07.pdf - REEVES, S. et al. Interprofessional teamwork for health and social care. Chichester: Wiley-Blackwell, 2010.
- REEVES, S.; XYRICHIS, A.; ZWARENSTEIN, M. Teamwork, collaboration, coordination, and networking: Why we need to distinguish between different types of interprofessional practice. Journal of interprofessional care, Abingdon, v. 32, n. 1, pp. 1-3, 2018.
- SANGALETI, C. et al. Experiences and shared meaning of teamwork and interprofessional collaboration among health care professionals in primary health care settings: a systematic review. JBI Database of Systematic Reviews and Implementation Reports, Adelaide, v. 15, n. 11, p. 2723-2788, 2017.
- SCHMUTZ, J.; MANSER, T. Do team processes really have an effect on clinical performance? A systematic literature review. British Journal of Anaesthesia, Altrincham, v. 110, n. 4, p. 529-544, 2013.
- PAULA, A. P. P. Administração pública brasileira entre o gerencialismo e a gestão social. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 45, n. 1, p. 36-49, 2005.
- PEDUZZI, M.; AGRELI, H. F. Trabalho em equipe e prática colaborativa na Atenção Primária à Saúde. Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, v. 22, n. 2, p. 1525-1534, 2018.
- PEDUZZI, M. et al. Trabalho em equipe uma revisita ao conceito e seus desdobramentos no trabalho interprofissional. Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. Suppl 1, 2020.
- PINTO, L. F. Primary Care Asssement Tool: diferenças regionais a partir da Pesquisa Nacional de Saúde do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 26, n. 9, p. 3965-3979, 2021.
- THISTLETHWAITE, J. E. et al. Competencies and frameworks in interprofessional education: a comparative analysis. Academic Medicine, Philadelphia, v. 89, n. 6, p. 869-875, 2014.
- VAN DONGEN, J. J. J. et al. Successful participation of patients in interprofessional team meetings: a qualitative study. Health Expectations, Oxford, n. 20, v. 4, pp. 724-33, 2017.
- YIN, R. K. Estudo de caso: planejamento e métodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2014.
- ZARIFIAN, P. Competência: Definição, implicações e dificuldades. In: ZARIFIAN, P. Objetivo competência: por uma nova lógica. São Paulo: Atlas, 2001. p. 66-87.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
19 Jan 2024 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
16 Mar 2023 - Revisado
16 Mar 2023 - Aceito
22 Mar 2023