Resumo
Este estudo analisa as barreiras para a implementação da educação interprofissional de cursos de graduação em saúde do estado do Rio de Janeiro participantes do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde). Foi conduzido um estudo de caso exploratório e qualitativo, com 32 participantes do PET-Saúde, que busca promover mudanças curriculares nos cursos da saúde. Dados foram coletados em 2020 mediante entrevistas individuais e submetidos à análise temática. Foram identificadas barreiras sociopolíticas, institucionais e relacionais. As sociopolíticas incluem o sucateamento do sistema público de saúde e a violência nos territórios de atuação das equipes de atenção primária, enquanto as institucionais incluem a rigidez curricular, a rotatividade dos gestores universitários e a incipiência dos processos de avaliação das experiências inovadoras de ensino. Na dimensão relacional, o elemento central é a força dos silos profissionais e das relações de hierarquia e poder entre os diferentes profissionais de saúde. A superação dessas barreiras implica a mobilização de políticas públicas intersetoriais, maior integração entre os sistemas profissionais, de saúde e de educação, e o reconhecimento de que a educação interprofissional é uma rota potencial para melhorar a saúde da população, reduzir os custos da assistência e garantir satisfação e segurança aos profissionais.
Palavras-chave:
Educação Interprofissional; Práticas Interdisciplinares; Relações Interprofissionais; Serviços de Integração Docente-Assistencial
A formação de profissionais de saúde e a educação interprofissional
Reformas inovadoras nos sistemas de educação dos profissionais de saúde vêm sendo experimentadas desde o início do século XX, quando do lançamento do relatório Flexner. Apesar dos progressos alcançados, as reformas não têm sido capazes de acompanhar e responder equitativamente aos inúmeros desafios, passados e atuais, que se apresentam ao campo da saúde. Isso se deve, em grande parte, por causa dos currículos obsoletos e fragmentados que produzem graduados mal preparados para enfrentar às reais necessidades de saúde da população (Frenk et al., 2010FRENK, J. et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet, London, v. 376, n. 9756, p. 1923-1958, 2010.).
No século XXI encontramos uma agenda não superada de doenças infecciosas e carenciais que se soma a novos riscos infecciosos, ambientais, sociais e comportamentais, em um momento de transições demográficas e epidemiológicas aceleradas que apontam para um incremento prospectivo das condições crônicas não transmissíveis, degenerativas e de saúde mental (Barrett; Charles; Temte, 2015BARRETT, B.; CHARLES, J. W; TEMTE, J. L. Climate change, human health, and epidemiological transition. Preventive Medicine, New York, n. 70, p. 69-75, 2015. ; Frenk et al., 2010FRENK, J. et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet, London, v. 376, n. 9756, p. 1923-1958, 2010.). Essa situação de saúde não poderá ser adequadamente respondida por práticas de saúde episódicas e uniprofissionais, que privilegiam a resolução de problemas agudos (WHO, 2010WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Geneva, 2010.).
Os novos e dinâmicos padrões dos processos saúde-doença exigem um novo perfil profissional e uma força de trabalho em saúde (FTS) mais integrada, imprimindo, portanto, redesenhos dos processos de formação em saúde que visem melhorar a interdependência e o desempenho dos trabalhadores, das práticas e dos sistemas de saúde (Frenk et al., 2010FRENK, J. et al. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet, London, v. 376, n. 9756, p. 1923-1958, 2010.; WHO, 2010WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Geneva, 2010.). A proposta que vem sendo globalmente fomentada é a educação interprofissional (EIP), abordagem educacional capaz de mobilizar mudanças das práticas e dos modelos tecnoassistenciais em direção à colaboração profissional e ao cuidado integral centrado no paciente e em suas necessidades (Reeves, 2016REEVES, S. Why we need interprofessional education to improve the delivery of safe and effective care. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 20, n. 56, p. 185-196, 2016. ; WHO, 2010WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Geneva, 2010.). A EIP, em sua concepção, sustenta a proposta de um modelo de formação que valorize e oportunize momentos de aprendizado conjunto e interativo entre estudantes de duas ou mais profissões de saúde, para que aprendam entre si, com e sobre os outros, e desenvolvam atitudes, conhecimentos e habilidades para o trabalho colaborativo (Reeves , 2013REEVES, S. et al. Interprofessional education: effects on professional practice and healthcare outcomes (update). Cochrane Database Systematic Reviews, Oxford, n. 3, p. 1-43, 2013. WHO, 2010WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Geneva, 2010.).
Nas últimas três décadas, a EIP foi reconhecida pelas políticas de saúde e adotada por diferentes países, cujas experiências, ainda que isoladas, demonstram melhoria dos resultados e da segurança dos pacientes, aumento da produtividade, da confiança dos trabalhadores e do acesso à assistência de saúde (Reeves et al., 2013REEVES, S. et al. Interprofessional education: effects on professional practice and healthcare outcomes (update). Cochrane Database Systematic Reviews, Oxford, n. 3, p. 1-43, 2013. ; WHO, 2010WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Framework for action on interprofessional education & collaborative practice. Geneva, 2010.). No contexto brasileiro, ao considerar que os modelos hegemônicos de formação e de assistência à saúde não oferecem subsídios para a operacionalização das diretrizes adotadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a EIP ganha força por seu potencial para inverter a lógica da educação verticalizada e tradicionalmente estabelecida, e por oportunizar avanços para a consolidação dos processos de trabalho baseados em equipes interprofissionais (Peduzzi, 2016PEDUZZI, M. The SUS is interprofessional. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 20, n. 56, p. 199-201, 2016.).
Resultado de uma ampla reforma do setor de saúde, que fora impulsionada pela sociedade civil em uma conjuntura de luta pela redemocratização do País na década de 1980, o SUS ancora-se no princípio de que a saúde é direito de todos e dever do Estado. O sistema é orientado pela Atenção Primária à Saúde (APS), grande responsável por ampliar o acesso e a assistência à saúde da população e fomentar políticas de reorientação das práticas e da formação profissional em saúde (Machado; Silva, 2019MACHADO, C. V.; SILVA, G. A. Political struggles for a universal health system in Brazil: successes and limits in the reduction of inequalities. Globalization and Health, Berlin, v. 15, n. 77, p. 1-12, 2019.).
Ao longo dos mais de 30 anos do SUS, o Brasil adotou inúmeras estratégias indutoras com investimentos técnicos, políticos e financeiros para a qualificação e gestão da FTS. Foram instaurados políticas e programas voltados para a formação e a educação permanente, e para a desprecarização, regulação, humanização e negociação do trabalho. Contudo, ainda há desafios a serem superados. Evidências indicam, entre outros problemas, oferta de cursos de graduação e pós-graduação em saúde distante das necessidades nacionais, com estrutura curricular centrada em disciplinas fragmentadas, e que pouco prepara os alunos para o desenvolvimento de ações interprofissionais e focalizadas na comunidade (Magnago et al., 2019MAGNAGO, C. et al. PET-Health/GraduaSUS in the perspective of service and teaching actors: contributions, limits, and suggestions. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 43, n. spe1, p. 24-39, 2019.). Na dimensão da gestão do trabalho, verifica-se número insuficiente de médicos de família; dificuldades para atrair e fixar profissionais em áreas rurais; e baixa participação do Estado na regulação das profissões de saúde, cujas resultantes são a fragilidade das leis que regem o exercício das profissões e o embate corporativo por disputas de campos de atuação (Aith, 2019AITH, F. M. A. Public interest in the Brazilian health professions regulation. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 27, p. 1-3, 2019.).
Por todos esses aspectos e a reboque das discussões e experiências positivas e da convocação de organismos internacionais, a EIP é a abordagem educacional que formalmente vem sendo introduzida no Brasil. Compreende-se que há correspondência entre os elementos conceituais da EIP com as bases fundantes do SUS que, entre outros pontos, pressupõe o trabalho baseado em equipe; a integração entre as instituições de ensino, os serviços de saúde e a comunidade; e a transformação das práticas de saúde a partir de processos de educação permanente que tem como pano de fundo o cotidiano do trabalho em saúde (Peduzzi, 2016PEDUZZI, M. The SUS is interprofessional. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 20, n. 56, p. 199-201, 2016.).
Iniciativas brasileiras pautadas na EIP já vêm sendo implantadas; no entanto, são propostas que não alteram o modelo fragmentado dos currículos da saúde, posto que são acanhadas, pontuais e de frágil suporte teórico, institucional e político (Freire Filho; Forster, 2020FREIRE FILHO, J. R.; FORSTER, A. C. Sustaining Interprofessional Collaboration in Brazil. In: FORMAN, D.; JONES, M.; THISTLETHWAITE, J. (Ed.). Sustainability and Interprofessional Collaboration: Ensuring Leadership Resilience in Collaborative Health Care. London: Palgrave Macmillan, 2020. p. 235-250.; Peduzzi, 2016PEDUZZI, M. The SUS is interprofessional. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 20, n. 56, p. 199-201, 2016.). Por outro lado, políticas de abrangência nacional já começam a apresentar a interprofissionalidade como um eixo prioritário para a mudança na formação em saúde, a exemplo do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), criado mediante parceria interinstitucional entre o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério da Saúde (MS).
Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde)
Lançado em 200822O PET-Saúde foi instituído pela Portaria Interministerial nº 1.802, de 26 de agosto de 2008., o PET-Saúde tem como objetivo fomentar grupos de aprendizagem tutorial em áreas estratégicas para o SUS, assumindo como fio condutor a integração ensino-serviço-comunidade e como pressuposto a educação pelo trabalho. Trata-se de uma política pública fortalecedora à consolidação do SUS, que visa induzir as instituições de ensino superior a desenvolver atividades que envolvam o ensino, a pesquisa, a extensão universitária e a participação social. Os grupos tutoriais são conformados por tutores acadêmicos (docentes), preceptores (profissionais do serviço) e estudantes de graduação em saúde e funcionam como instrumento viabilizador de estágios e vivências nos serviços públicos de saúde. Bolsas de auxílio são concedidas a partir de um processo seletivo que envolve a submissão de um projeto de intervenção, desenhado conjuntamente pelas instituições de ensino e pelos serviços nos quais os grupos desenvolverão as atividades por um período de dois anos. A participação voluntária é permitida e incentivada (França et al., 2018FRANÇA, T. et al. PET-Health/GraduaSUS: retrospective, differentials ans panorama of project distribution. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. spe2, p. 286-301, 2018. ).
O primeiro edital do PET-Saúde teve por foco o fortalecimento da Estratégia Saúde da Família (ESF), sendo posteriormente estendido para outras áreas de interesse da saúde pública brasileira: vigilância em saúde, saúde mental, e redes de atenção à saúde. Nesse movimento, avanços foram perceptíveis; contudo, constatou-se que a condução do programa enfrentava diversas dificuldades relacionadas principalmente à incompatibilidade dos currículos e dos projetos políticos pedagógicos com as necessidades dos serviços de saúde (Magnago et al., 2019MAGNAGO, C. et al. PET-Health/GraduaSUS in the perspective of service and teaching actors: contributions, limits, and suggestions. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 43, n. spe1, p. 24-39, 2019.; França et al., 2018FRANÇA, T. et al. PET-Health/GraduaSUS: retrospective, differentials ans panorama of project distribution. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. spe2, p. 286-301, 2018. ).
Em 2015, sob o título temático PET-Saúde/GraduaSUS, o programa teve o seu foco direcionado para a mudança curricular das graduações da saúde, assumindo como pressupostos norteadores das mudanças a interdisciplinaridade, a interprofissionalidade e a integralidade da assistência à saúde. Contudo, um dos critérios de admissibilidade dos projetos de intervenção foi a conformação de grupos tutoriais uniprofissionais, o que limitou o desenvolvimento de atividades interprofissionais. Apesar disso, resultados de uma avaliação nacional indicaram que essa edição do programa foi considerada a mais inovadora e mais potente na promoção de mudanças curriculares (Magnago et al., 2019MAGNAGO, C. et al. PET-Health/GraduaSUS in the perspective of service and teaching actors: contributions, limits, and suggestions. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 43, n. spe1, p. 24-39, 2019.).
Com base nas evidências desse estudo de avaliação (Magnago et al., 2019MAGNAGO, C. et al. PET-Health/GraduaSUS in the perspective of service and teaching actors: contributions, limits, and suggestions. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 43, n. spe1, p. 24-39, 2019.), em 2018 foi lançada uma nova edição do programa, batizada de PET-Saúde/Interprofissionalidade, que adotou como objetivo promover mudanças curriculares nos cursos da saúde a partir dos elementos teóricos e metodológicos da EIP e das práticas colaborativas. Para essa edição, os grupos tutoriais deveriam envolver obrigatoriamente, no mínimo, três cursos de graduação de profissões diferentes. Os projetos deveriam propor o desenvolvimento de ações na APS para a qualificação dos profissionais e obtenção de respostas mais efetivas na melhoria da atenção à saúde, bem como estimular o desenvolvimento de competências colaborativas.
Para essa edição foram aprovados 120 projetos de instituições de ensino públicas (72,5%) e privadas sem fins lucrativos (27,5%), distribuídos em 25 estados brasileiros. Foram conformados 548 grupos tutoriais de aprendizagem interprofissionais envolvendo 7.302 integrantes, sendo 4.013 estudantes, 2.092 docentes, e 1.197 preceptores.
Objetivo
Considerando o fim da vigência da edição PET-Saúde/Interprofissionalidade e tendo em vista seu caráter inédito e de potencial contribuição para a transformação do ensino brasileiro, este estudo objetivou conhecer e analisar as barreiras para a implementação da EIP de cursos de graduação em saúde do estado do Rio de Janeiro participantes do PET-Saúde.
Métodos
Conduziu-se um estudo de caso exploratório e qualitativo no estado do Rio de Janeiro. Trata-se do terceiro menor estado brasileiro, mas o terceiro mais populoso, com 17,4 milhões de habitantes. Detém o segundo maior produto interno bruto nacional, o quarto mais elevado Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e é um dos estados que mais concentra vagas em cursos de graduação e de pós-graduação em saúde, o que o torna interessante cenário de estudo.
Para a pesquisa, realizou-se uma seleção de cinco dos 10 projetos de intervenção do estado do Rio de Janeiro aprovados pelo Ministério da Saúde, que envolveu 10 instituições de ensino e 510 integrantes (253 estudantes, 161 preceptores, 86 tutores e 10 coordenadores de projeto), sendo essa a população de interesse do estudo. Para a determinação da amostra, foram considerados os 304 integrantes dos grupos tutoriais dos cinco campus universitários que também participaram da edição anterior do programa (PET-Saúde/GraduaSUS). Esse critério foi adotado por se entender que essas instituições tiveram um período maior para a produção de mudanças curriculares na perspectiva da EIP e para a percepção dos desafios persistentes.
O recrutamento dos participantes da pesquisa foi iniciado por meio de convite de participação aos cinco coordenadores do projeto, a quem foi solicitado estender o convite aos demais integrantes do programa. A intencionalidade era entrevistar, pelo menos, dois estudantes de cursos diferentes, um preceptor e um tutor por programa. Manifestaram desejo em participar os cinco coordenadores, 11 estudantes, nove preceptores e sete tutores, totalizando 32 sujeitos.
A maior parte dos coordenadores, tutores e preceptores se formou em enfermagem (n=8) ou medicina (n=4), atua profissionalmente há mais de 10 anos (n=16), tem o título de doutor (n=10) e já participou de outras edições do PET-Saúde (n=13). Os estudantes incluídos eram de 3º, 4º e 5º anos de cursos de graduação em enfermagem, medicina, nutrição, psicologia e serviço social.
Os dados foram coletados por meio de entrevistas individuais, norteadas por um roteiro não estruturado com questões relacionadas à condução das atividades no âmbito do PET-Saúde, na perspectiva da introdução dos elementos teórico-metodológicos da EIP, abordando-se os temas: integração ensino-serviço-comunidade, competências para o trabalho em equipe, mudanças curriculares, potencialidades e barreiras para o desenvolvimento de atividades interprofissionais nos serviços de saúde e comunidade, e benefícios das atividades para a comunidade local. Esse instrumento foi desenvolvido pelas autoras e testado previamente com uma pequena amostra. Após a validação interna do instrumento, prosseguiu-se com a coleta de dados entre maio e setembro de 2020, que foi realizada pela primeira autora do artigo, enfermeira, mestre em saúde pública, professora e pesquisadora com experiência na condução de pesquisas qualitativas, e que já atuou como coordenadora de projetos no âmbito do PET-Saúde.
As entrevistas duraram em média 54 minutos, foram gravadas com a anuência dos participantes, imediatamente transcritas na íntegra e submetidas à análise temática, executando-se as seguintes etapas: familiarização com os dados, na qual se tentou obter o sentido do todo por meio da leitura repetida das transcrições; codificação e agrupamento das citações similares; e definição de temas para os agrupamentos de citações (Braun; Clarke, 2006BRAUN, V.; CLARKE, V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, Abingdon, v. 3, n. 2, p. 77-101, 2006.).
Registra-se que a saturação teórica, constatada por meio da identificação de ausência de elementos novos em cada agrupamento de códigos, foi alcançada para coordenadores, preceptores, tutores e estudantes, ratificando a suficiência do número amostral (n=32). Dadas a magnitude da pesquisa e a alta densidade dos dados, neste artigo serão apresentados apenas os resultados alusivos ao tema barreiras para a implementação da EIP, analisados e discutidos com base no referencial teórico-metodológico da abordagem interprofissional.
O projeto da pesquisa foi submetido e aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa (Parecer nº 3.899.608) e seu desenvolvimento respeitou todos os aspectos éticos previstos pela legislação brasileira. Este artigo foi produzido a partir de uma tese de doutorado33SOUZA, R. B. PET-Saúde/Interprofissionalidade: uma análise sobre o estado do Rio de Janeiro. 2021. 183 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021., que já resultou em outras publicações44SOUZA, R. B.; MAGNAGO, C.; FRANÇA, T. Movimentos de adaptação das atividades do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde no contexto da pandemia de covid-19. Research, Society and Development, v. 10, n. 6, e46210616029, 2021. / SOUZA, R. B.; FRANÇA, T.; MAGNAGO, C. PET-Saúde/Interprofissionalidade e o desenvolvimento de mudanças curriculares e práticas colaborativas. Saúde em Debate, v. 46, spe6, p. 55-69, 2022..
Resultados
Os resultados deste estudo indicam um conjunto de elementos considerados barreiras para a implementação da EIP no Brasil, aqui sintetizadas em três dimensões: sociopolítica, institucional e relacional.
Dimensão sociopolítica
Essa dimensão abrange fatores sistêmicos, sobre os quais as instituições de ensino detêm escassa ou nenhuma possibilidade de interferir; constituem-se, portanto, externalidades institucionais de ordem macropolítica. Nesse âmbito foram citados: o sucateamento do sistema de saúde, cujos resultados prejudiciais ao ensino interprofissional é a infraestrutura precária ou mesmo o fechamento de unidades de saúde e a rotatividade de profissionais; a violência nos territórios de atuação profissional, que prejudicam o desenvolvimento de atividades nos cenários do SUS; e a limitação do PET-Saúde que não consegue incluir um número maior de estudantes, docentes e profissionais (Quadro 1).
Extratos de depoimentos representativos das barreiras sociopolíticas à implementação da educação interprofissional. Brasil, 2020
Dimensão institucional
Essa dimensão inclui os atributos definidores da estrutura, da filosofia e dos processos administrativos e logísticos das instituições de ensino que influenciam a incorporação da EIP. Sob esse aspecto, a barreira mais mencionada foi o engessamento das grades curriculares, que impossibilita momentos de encontros entre os diferentes estudantes de saúde, condição precípua da abordagem interprofissional. Outros pontos de destaque foram: a rotatividade dos gestores universitários, uma vez que a mudança de gestão nem sempre permite a continuidade dos acordos estabelecidos em direção ao reordenamento dos processos formativos, além da incipiência dos mecanismos de avaliação, que não oportunizam comprovar os benefícios das estratégias de indução e implementação da EIP, estimulando novas experiências (Quadro 2).
Extratos de depoimentos representativos das barreiras institucionais à implementação da educação interprofissional. Brasil, 2020
Dimensão relacional
Essa dimensão compreende os fatores micropolíticos, de ordem individual e interpessoal no cotidiano dos espaços de formação e do trabalho em saúde; envolvem, nesse sentido, os encontros e a produção de relações. Foram as barreiras mais mencionadas pelos sujeitos deste estudo, segundo os quais a força dos silos profissionais e das relações de hierarquia e poder afetam os processos de comunicação entre as diferentes categorias profissionais e entre os atores do ensino e do serviço (Quadro 3).
Extratos de depoimentos representativos das barreiras relacionais à implementação da educação interprofissional. Brasil, 2020
Discussão
Analisar as barreiras para a implementação da EIP implica discutir um conjunto de elementos de macro, meso e microníveis que favorecem ou não o sucesso dessa abordagem. Estudos prévios indicam que o nível macro está relacionado ao apoio político e institucional por parte do governo e da alta administração das partes interessadas (saúde, educação e sistema profissional) (Lawlis; Anson; Greenfield, 2014LAWLIS, T. R.; ANSON, J.; GREENFIELD, D. Barriers and enablers that influence sustainable interprofessional education: a literature review. Journal of Interprofessional Care , Abingdon, v. 28, n. 4, p. 305-310, 2014.; Oandasan; Reeves, 2005OANDASAN, I.; REEVES, S. Key elements of interprofessional education. Part 2: Factors, processes and outcomes. Journal of Interprofessional Care , Abingdon, v. 19, n. Suppl 1, p. 39-48, 2005. ; San Martín-Rodriguez et al., 2005SAN MARTÍN-RODRIGUEZ, L. et al. The determinants of successful collaboration: a review of theoretical and empirical studies. Journal of Interprofessional Care , Abingdon, v. 19, n. Suppl. 1, p. 132-147, 2005.). Logo, reflete uma dimensão sociopolítica que pressupõe a formulação de políticas integradas e alinhadas à abordagem interprofissional.
No caso do Brasil, temos um sistema de educação fortemente arraigado nas premissas flexnerianas, mas que desde a criação do SUS vem sendo paulatinamente transformado por meio de políticas nacionais que articulam educação e saúde. Muitas delas, inclusive, em sintonia com os pressupostos da interprofissionalidade, mas ainda são limitadas a um pequeno público, como é o caso do PET-Saúde.
Esse achado sustenta as contribuições de outros estudos nacionais, cujos registros estabelecem que se faz mister a instituição do PET-Saúde como política permanente mais robusta, permissiva à inclusão de um maior número de atores e com edições estendidas (Freitas et al., 2013FREITAS, P. H. et al. Repercussions of the program for education through work for health (PET-Health) in the training of students from the health area. Escola Anna Nery, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 496-504, 2013. ; Magnago et al., 2019MAGNAGO, C. et al. PET-Health/GraduaSUS in the perspective of service and teaching actors: contributions, limits, and suggestions. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 43, n. spe1, p. 24-39, 2019.). Há o desejo de que os currículos sejam cada vez mais repensados para além de quem participa do PET-Saúde, para que caso esse programa se encerre ou mantenha-se limitado, a proposta e as mudanças conquistadas sejam sustentáveis institucionalmente. Mais recentemente, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) emitiu uma normativa que estabelece a EIP como um dos princípios a serem incorporados por todos os cursos de graduação da saúde (Brasil, 2018BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 569, de 8 de dezembro de 2017. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2018.). Acredita-se que essa diretriz possa desencadear novas experiências de introdução da EIP nos currículos da saúde.
Sob outra perpectiva, temos uma rede de serviços capilarizada no território nacional, incluindo áreas de conflito armado onde a atenção à saúde é prestada principalmente pelas equipes da APS, locus privilegiado de inserção dos estudantes da área da saúde. Esse contexto fragiliza a formação profissional, pois impõe limites à inserção de estudantes nos diferentes cenários do SUS, ao mesmo tempo que põe em risco a segurança deles, de profissionais, docentes e usuários. Em que pese a deterioração na qualidade dos registros oficiais, no período 2009-2019 foram registrados mais de 620 mil homícidios no Brasil. O estado do Rio de Janeiro, cenário deste estudo, concentrou 8,7% desse total, com uma taxa média anual de 32,5 homícidos por 100 mil habitantes (Cerqueira et al., 2021CERQUEIRA, D. et al. Atlas da violência 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021. ).
Especialistas afirmam que o número de crimes interpessoais e passionais aumentará nos próximos anos, em função da política permissiva em relação às armas de fogo e à munição patrocinada pelo Governo Federal a partir de 2019, na gestão de Jair Messias Bolsonaro (Cerqueira et al.., 2021CERQUEIRA, D. et al. Atlas da violência 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021. ). Para o campo da saúde, se, por um lado, a violência vem sendo reconhecida como uma demanda para a oferta assistencial, por outro, desponta como uma limitação à prestação dos serviços básicos. Por se tratar de um fenômeno difuso e complexo, a violência tem desdobramentos no campo social, econômico, político e da saúde, que precisam ser discutidos intersetorialmente para que se possa pactuar uma intervenção qualificada sobre tal situação (Santos et al.2020SANTOS, R. S. et al. Nuances between Safer Access and armed conflict in the context of primary healthcare in Rio de Janeiro, Brazil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 10, p. 1-11, 2020.).
Ainda no que se refere aos serviços de saúde, a infraestrutura precária e a rotatividade de profissionais também foram pontuadas como barreiras importantes à introdução dos estudantes na realidade do SUS, conforme já evidenciado anteriormente (Argentino; Domingues; Oliveira, 2020ARGENTINO, S.; DOMINGUES, R. J. S.; OLIVEIRA, N. P. Medicine student perception of infrastructure and materials available for primary care education. Interdisciplinary Journal of Health Education, Belém, v. 5, n. 2, p. 73-80, 2020. ). Esses elementos são históricos e têm relação direta com o subfinanciamento do SUS e com a ausência de políticas públicas de gestão do trabalho em saúde. Todo esse cenário tende a se agravar pelo progressivo enfraquecimento das políticas sociais, que foram alvos de descontinuidade pelo Governo Federal na gestão anterior. A mudança política para o populismo de extrema direita, acompanhada por políticas de austeridade fiscal, testou a democracia brasileira e ameaçou os direitos básicos previstos constitucionalmente, incluindo a saúde (Castro et al., 2019CASTRO, M. et al. Brazil’s unified health system: the first 30 years and prospects for the future. Lancet, London, v. 394, n. 10195, p. 345-356, 2019. ).
Ainda na perspectiva da macropolítica, o sistema de regulação profissional brasileiro promove uma perspectiva que está em oposição direta à colaboração, pois é caracterizado pela conquista da autonomia e autogoverno das profissões com seus direitos exclusivos de prática. Os conselhos profissionais - autarquias federais reconhecidas e autorizadas pelo Estado para as quais foi delegado o poder de fiscalizar e disciplinar o exercício profissional - detêm competências normativo-regulatórias que os permitem definir as atividades que podem ser exercidas por seus profissionais. Muitas vezes, essas normativas geram disputas jurisdicionais sobre atos particulares ou exclusivos que reafirmam a lógica do tribalismo profissional (Magnago; Pierantoni, 2021MAGNAGO, C.; PIERANTONI, C. R. Situational analysis and reflections on the introduction of advanced practice nurses in Brazilian primary healthcare. Humans Resource for Health, Berlin, v. 19, n. 90, p. 1-13, 2021. ).
Neste estudo, os desafios institucionais impostos pelos processos administrativos e logísticos das instituições de ensino foram conjugados na dimensão institucional. Foram mencionadas a rigidez das grades curriculares, a rotatividade dos gestores e a incipiência dos métodos de avaliação das experiências. Essas barreiras de mesonível são denominadas por Pirrie et al. (1998PIRRIE, A. et al. AMEE Guide No. 12: Multiprofessional education Part 2. Promoting cohesive practice in health care. Medical Teacher, Abingdon, v. 20, n. 5, p. 409-416, 1998. ) como “‘inibidores internos”’, cuja potência pode inibir a participação dos atores, já que estes terão que devotar maior energia e tempo para superar as adversidades logísticas. Como reflexo, a instituição pode encontrar problemas de continuidade das propostas que tendem a não perserverar. Nessa ótica, o empoderamento e o comprometimento dos gestores acadêmicos e dos docentes para a condução de iniciativas que promovam a EIP são imprescindíveis.
Estudos de diferentes países vêm apontando outros problemas relacionados ao ambiente acadêmico, como o processo de formação baseado no uso de metodologias obsoletas e tradicionais; falta de incentivo aos docentes; e variação nas necessidades de aprendizagem e níveis de conhecimento entre alunos de diferentes profissões (Ahmady; Mirmoghtadaie; Rasouli, 2020AHMADY, S.; MIRMOGHTADAIE, Z.; RASOULI, D. Challenges to the Implementation of Interprofessional Education in Health Profession Education in Iran. Advances in Medical Education and Practice, Bethesda, v. 1, p. 227-236, 2020. ; Katoue et al., 2021KATOUE, M. G. et al. Interprofessional education and collaborative practice in Kuwait: attitudes and barriers from faculty. Journal of Interprofessional Care , Abingdon, v. 35, n. 2, p. 208-216, 2021.). Esses elementos também se apresentam para a realidade brasileira, mas por terem sido alvo de intervenções recentes podem não ter agido como barreiras para os atores do PET-Saúde.
Desde 2017, o Brasil vem desenvolvendo um conjunto de ações para a implementação da EIP, como a formação de preceptores, docentes e gestores de cursos de graduação em saúde e o desenvolvimento de eventos e de um laboratório de inovação para divulgar experiências em curso neste e em outros países (Freire Filho; Forster, 2020FREIRE FILHO, J. R.; FORSTER, A. C. Sustaining Interprofessional Collaboration in Brazil. In: FORMAN, D.; JONES, M.; THISTLETHWAITE, J. (Ed.). Sustainability and Interprofessional Collaboration: Ensuring Leadership Resilience in Collaborative Health Care. London: Palgrave Macmillan, 2020. p. 235-250.). Além disso, os tutores e preceptores do PET-Saúde/Interprofissionalidade também passaram por um processo de formação e receberam relativo apoio técnico do Ministério da Saúde para o desenvolvimento dos projetos de intervenção interprofissionais, durante a gestão de Michel Temer.
Finalmente, o micronível da realidade envolve as relações interpessoais no cotidiano da formação e do trabalho em saúde, e as atitudes e posturas de abertura ou de resistência à colaboração interprofissional (Lawlis; Anson; Greenfield, 2014LAWLIS, T. R.; ANSON, J.; GREENFIELD, D. Barriers and enablers that influence sustainable interprofessional education: a literature review. Journal of Interprofessional Care , Abingdon, v. 28, n. 4, p. 305-310, 2014.; Oandasan; Reeves, 2005OANDASAN, I.; REEVES, S. Key elements of interprofessional education. Part 2: Factors, processes and outcomes. Journal of Interprofessional Care , Abingdon, v. 19, n. Suppl 1, p. 39-48, 2005. ; San Martín-Rodriguez et al., 2005SAN MARTÍN-RODRIGUEZ, L. et al. The determinants of successful collaboration: a review of theoretical and empirical studies. Journal of Interprofessional Care , Abingdon, v. 19, n. Suppl. 1, p. 132-147, 2005.). Refletem, nesse sentido, as barreiras de ordem relacional apontadas neste estudo. Nessa dimensão, a eleição dos silos profissionais enquanto barreiras evidencia a necessidade de superação do modelo de formação exclusivamente uniprofissional, que ainda perdura apesar das inúmeras políticas indutoras de reorientação do ensino, como o próprio PET-Saúde.
Essas diferentes políticas fortaleceram a integração ensino-serviço-comunidade, potencializaram a adoção de estratégias metodológicas mais ativas e catalizaram mudanças curriculares, que incorporaram relevantes transformações na dinâmica educacional dos profissionais de saúde. É sabido, no entanto, que ainda há resistência para o rompimento do modelo hegemônico de formação, que legitima e é legitimado pelos modelos tecnoassistenciais pautados na fragmentação do trabalho. Nessa ótica, os profissionais continuam sendo formados separadamente para, no futuro, trabalharem juntos, incoerência que traz importantes implicações para a qualidade da atenção oferecida no âmbito do SUS (Barr, 1998BARR, H. Competent to collaborate: towards a competency-based model for interprofessional education. Journal of Interprofessional Care, Abingdon, v. 12, n. 2, p. 181-187, 1998. ).
Reeves (2016REEVES, S. Why we need interprofessional education to improve the delivery of safe and effective care. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 20, n. 56, p. 185-196, 2016. ) nos convoca insistentemente a compreender que juntar alunos ou profissionais de diferentes categorias profissionais em um mesmo espaço não significa a materialização da interprofissionalidade. É preciso que os processos de ensino promovam a adoção de novas posturas e relações profissionais e sejam orientados para o desenvolvimento de competências, bem como a integração de conhecimentos e atitudes que capacitem os estudantes, futuros profissionais, a atuarem colaborativamente (Barr, 1998BARR, H. Competent to collaborate: towards a competency-based model for interprofessional education. Journal of Interprofessional Care, Abingdon, v. 12, n. 2, p. 181-187, 1998. ). Isso porque o histórico processo de formação apoia a constituição de identidades profissionais rígidas que sustentam relações de poder hierárquicas, obscurecendo a potência das parcerias colaborativas entre as diferentes áreas. E mesmo quando algumas mudanças são feitas para apoiar o desenvolvimento de causas interprofissionais, os silos profissionais triunfarão, a menos que as posturas individuais e as barreiras estruturais sejam abordadas (Meleis, 2016MELEIS, A. I. Interprofessional Education: A Summary of Reports and Barriers to Recommendations. Journal of Nursing Scholarship, Hoboken, v. 48, n. 1, p. 106-112, 2016. ).
Outra questão fundamental é que os estudantes de programas uniprofissionais passam muito tempo aprendendo sua própria linguagem e nutrindo a sua própria prática em suas comunidade profissionais; e os esforços para conservar e resguardar sua “tribo” agenciam o elitismo e o isolamento (Pecukonis, 2014PECUKONIS, E. Interprofessional education: a theoretical orientation incorporating profession-centrism and social identity theory. The Journal of Law, Medicine & Ethics, Cambridge, v. 42, n. Suppl. 2, p. 60-64, 2014. ). Esse mecanismo potencializa as dificuldades comunicativas e os conflitos interpessoais deflagrados no interior das instituições de ensino e dos serviços, tal como referido pelos atores deste estudo. Essas variadas formas de disputas pelo poder, nem sempre explícitas, interferem nos processos de articulação das atividades dos diferentes profissionais, embaraçando a distinção entre as formas legítimas de disputa e os conflitos disparados por vaidades ou interesses pessoais. É com base nessas reflexões que a EIP apregoa como imprescindível a promoção de competências comunicativas e de resolução de conflitos, que afiançem o diálogo, a corresponsabilização e a cogestão do cuidado (Hepp et al., 2015HEPP, S. L. et al. Using an interprofessional competency framework to examine collaborative practice. Journal of Interprofessional Care , Abingdon, v. 29, n. 2, p. 131-137, 2015.).
Considerando o exposto, para colocar efetivamente a EIP em prática no Brasil, alguns importantes desafios precisam ser superados nos níveis macro, meso e micro, abarcando fatores de ordem sociopolítica, estrutural, organizacional e relacional. Inclui-se, nesse escopo, investimento na melhoria das unidades de saúde enquanto espaços de ensino-aprendizagem interprofissional; oferta de apoio financeiro e técnico às instituições de ensino; e pactuação de acordos e compromissos entre os diferentes atores imbricados nos processos de formação (Peduzzi, 2016PEDUZZI, M. The SUS is interprofessional. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 20, n. 56, p. 199-201, 2016.; Reeves, 2016REEVES, S. Why we need interprofessional education to improve the delivery of safe and effective care. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 20, n. 56, p. 185-196, 2016. ). Há, ainda, que se disponibilizar e usar metodologias de ensino-aprendizagem coerentes com a abordagem interprofissional e mecanismos avaliativos que devem ser considerados pilares para o reconhecimento e efetividade da EIP (Reeves, 2016REEVES, S. Why we need interprofessional education to improve the delivery of safe and effective care. Interface: Comunicação, Saúde, Educação , Botucatu, v. 20, n. 56, p. 185-196, 2016. ).
Implica, também, tomar a EIP e as práticas colaborativas como estratégias potenciais para se atingir o denominado quádruplo objetivo, que consiste em uma abordagem multidimensional que visa, simultaneamente, melhorar a saúde da população, aprimorar a qualidade do cuidado ao paciente, reduzir os custos da assistência e garantir maior satisfação e segurança para os profissionais de saúde (Bodenheimer; Sinsky, 2014BODENHEIMER, T.; SINSKY, C. From triple to quadruple aim: care of the patient requires care of the provider. Annals of Family Medicine, Leawood, v. 12, n. 6, p. 573-576, 2014. ). O entendimento de que a EIP opera na interface entre os sistemas de educação e saúde e que os princípios e diretrizes do SUS patrocinam o desenvolvimento das práticas colaborativas são elementos que sustentam o valor para sua implementação no Brasil (Hepp et al., 2015HEPP, S. L. et al. Using an interprofessional competency framework to examine collaborative practice. Journal of Interprofessional Care , Abingdon, v. 29, n. 2, p. 131-137, 2015.). Isso considerado, justifica-se intensificar a sua utilização, conhecer mais sobre sua proposta e priorizar investimentos em experiências interprofissionais.
Interessa ressaltar que, de um lado, os achados deste estudo se assemelham aos resultados demonstrados por pesquisas que exploram a realidade de outros países (cf. Katoue et al., 2021KATOUE, M. G. et al. Interprofessional education and collaborative practice in Kuwait: attitudes and barriers from faculty. Journal of Interprofessional Care , Abingdon, v. 35, n. 2, p. 208-216, 2021.; Yamamoto et al., 2021YAMAMOTO, T. et al. Exploring Barriers and Benefits of Implementing Interprofessional Education at Higher Health Professions Education Institutions in Japan. Journal of Allied Health, Thorofare, v. 50, n. 2, p. 97-103, 2021.). Falta de financiamento e de suporte político, currículos diferenciados e rígidos e a cultura do individualismo e da especialização são pontos convergentes. Por outro lado, esta pesquisa apresenta elementos que parecem ser característicos da realidade brasileira, como a precariedade dos serviços de saúde agravada pelo direcionamento político do governo federal anterior e a violência que impacta diretamente o cotidiano dos profissionais, usuários, docentes e estudantes da saúde.
Por seu caráter exploratório e qualitativo, este estudo abre possibilidades para o desenvolvimento de inúmeras outras pesquisas que tentem superar as limitações deste. Uma delas, representada aqui pelas entrevistas, é que estas dependem da interpretação do pesquisador com base nas declarações fornecidas. As inferências produzidas sobre os depoimentos podem ter sofrido influência das percepções do próprio investigador, o que se tentou coibir mediante diálogo com achados de outras pesquisas.
O fato de os coordenadores dos projetos terem atuado como interlocutores iniciais entre os pesquisadores e demais participantes, convidando estes últimos a integrar a pesquisa, também pode ter atuado como um gerador de viés, haja vista que os coordenadores podem ter convidado um grupo específico de atores, que podem ter se debruçado mais sobre os pontos positivos de sua experiência.
Outras limitações incluem o cenário do estudo, restrito a um único estado brasileiro; e o número amostral, correspondente a 32 sujeitos ligados a apenas cinco instituições de ensino. De tal modo, os resultados podem não refletir a realidade dos atores de outras instituições e podem não ser extensivos ao território nacional. Contudo, sinalizam oportunas evidências para avançar com a implementação da EIP no País, a partir da superação das barreiras identificadas.
Considerações finais
Os resultados deste estudo indicam que os desafios para a implementação da EIP no Brasil são de ordem relacional, institucional e sociopolítica. Entre as barreiras, incluem-se os impasses de natureza interpessoal entre estudantes e profissionais de saúde, resultantes das relações de hierarquia e poder historicamente constituídas, além das fragilidades das instituições de ensino que se refletem na organização curricular e nos processos de formação. A superação dessas barreiras implica maior integração entre o ensino e o serviço, considerados eixos centrais das políticas de educação do SUS. Por estarem implicados na realidade que se espera mudar, são corresponsáveis pelos atos configurantes de mudança.
Também foram identificados fatores sistêmicos sobre os quais as instituições de ensino têm pouca governabilidade, a exemplo da violência nos territórios de atuação profissional que, de maneira inédita, foi apontada como barreira relevante para o contexto brasileiro. Para a sua superação são necessários investimentos de ordem intersetorial, com a imprescindível mobilização de políticas de segurança pública atreladas com as de educação e de saúde.
Espera-se que as reflexões apresentadas possam contribuir para a ampliação do olhar sobre o PET-Saúde e a abordagem interprofissional, sendo relevante empreender processos avaliativos abrangentes e permanentes que apoiem os direcionamentos necessários e assegurem ao programa e à EIP um espaço de reconhecimento.
As evidências apresentadas podem subsidiar a implementação de estratégias que busquem superar as barreiras para a implementação da EIP, estratégia político-pedagógica que prepara os profissionais de saúde para o trabalho colaborativo e para o cuidado centrado no paciente. Nesse sentido, a EIP pode contribuir para a oferta de cuidados mais efetivos e seguros, aumento da produtividade e do acesso à saúde, maior satisfação profissional e diminuição dos custos com a assistência.
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- 1Este artigo recebeu financiamento do Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), por meio da Fundação de Amparo ao Ensino, Pesquisa e Assistência (Faepa) do Hospital das Clínicas da FMRP-USP.
- 2O PET-Saúde foi instituído pela Portaria Interministerial nº 1.802, de 26 de agosto de 2008.
- 3SOUZA, R. B. PET-Saúde/Interprofissionalidade: uma análise sobre o estado do Rio de Janeiro. 2021. 183 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2021.
- 4SOUZA, R. B.; MAGNAGO, C.; FRANÇA, T. Movimentos de adaptação das atividades do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde no contexto da pandemia de covid-19. Research, Society and Development, v. 10, n. 6, e46210616029, 2021. / SOUZA, R. B.; FRANÇA, T.; MAGNAGO, C. PET-Saúde/Interprofissionalidade e o desenvolvimento de mudanças curriculares e práticas colaborativas. Saúde em Debate, v. 46, spe6, p. 55-69, 2022.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
19 Jan 2024 - Data do Fascículo
2023
Histórico
- Recebido
31 Mar 2023 - Revisado
14 Jun 2023 - Aceito
16 Jun 2023