Resumo
A graduação em saúde coletiva (GSC) é recente no país e tem buscado construir sua identidade. Gênero e sexualidade interferem nas condições de saúde, devendo ser contemplados na formação dos(as) sanitaristas. Assim, buscou-se analisar neste estudo a inserção das questões de gênero e sexualidade no currículo da GSC no Brasil. Por meio da análise de conteúdo das fichas de disciplina de quase todos os cursos, observou-se que: as principais categorias de objetivos e conteúdo programático apontaram o tratamento das temáticas de forma interseccional; as metodologias de ensino e avaliação privilegiaram a participação do(a) aluno(a), sua autonomia e reflexividade; e nas referências, destacam-se os estudos em saúde da mulher. Conclui-se que, apesar do espaço já conquistado, é necessário ampliar o debate, principalmente em relação à sexualidade humana e à saúde do homem, temas que têm ficado à margem do currículo.
Palavras-chave:
Gênero; Sexualidade; Saúde Coletiva; Currículo
Abstract
The graduation in collective health (GCH) is recent in the country and has sought to build its identity. Gender and sexuality interfere with health conditions and should be considered in the training of health workers. Thus, we sought to analyze in this study the inclusion of gender and sexuality issues in the GSC curriculum in Brazil. By analyzing the content of the course sheets of almost all courses, it was observed that: the main categories of objectives and programmatic content pointed to the treatment of the themes in an intersectional way; the teaching and assessment methodologies favored student participation, autonomy, and reflexivity; and in the references, studies on women’s health stand out. It is concluded that despite the space already conquered, it is necessary to broaden this debate, mainly regarding human sexuality and the health of men, which have remained on the margins of the curriculum.
Keywords:
Gender; Sexuality; Collective Health; Curriculum
Introdução
A graduação em saúde coletiva foi criada com o intuito de suprir a demanda por profissionais qualificados para atuarem na: análise, monitoramento e avaliação de situações de saúde; no desenvolvimento e execução de políticas públicas; na gestão dos sistemas de saúde público e privado; na realização de ações intersetoriais de educação e também na promoção e vigilância em saúde; e no desenvolvimento científico e tecnológico da área de saúde coletiva, com responsabilidade social e compromisso com a dignidade humana (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Texto referência para a audiência pública sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Saúde Coletiva. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação, 2017.). Essa demanda se dá devido ao crescimento do setor de saúde no Brasil nas últimas décadas, além de pela expansão da assistência médica do setor privado em todas as regiões do país (Ruela, 2013RUELA, H. C. G. A formação de sanitaristas e os cursos de graduação em saúde coletiva no Brasil. 2013. 134 f. Dissertação (Mestrado em Educação Profissional em Saúde) - Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2013. Disponível em: <Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/8602 > Acesso em: 26 jan. 2024.
https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict... ). Atualmente, existem 19 cursos de graduação em saúde coletiva (CGSC) no país.
Em 2017, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Saúde Coletiva, que orientam na elaboração, organização, implementação e desenvolvimento do Projeto Pedagógico de Curso no âmbito dos sistemas de ensino superior brasileiros. As DCN determinam que o CGSC deve estar alinhado com todo o processo de saúde-doença (cuidando do indivíduo e da comunidade), bem como com a realidade epidemiológica, socioeconômica, cultural e profissional, proporcionando a integralidade das ações de atenção à saúde, educação em saúde e gestão em saúde, áreas em que a formação é estruturada. Segundo as DCN dos CGSC, a formação requer conhecimentos sobre os determinantes sociais de saúde “[…] que considerem os fatores sociais, econômicos, políticos, culturais, psicológicos e comportamentais, ambientais, do processo saúde-doença” (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Texto referência para a audiência pública sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Saúde Coletiva. Brasília, DF: Conselho Nacional de Educação, 2017., p. 8).
Contudo, a generalidade dessa demanda deixa em aberto aspectos fundamentais do processo saúde-doença, como o gênero e a orientação sexual11Compreende-se orientação sexual como a atração e/ou desejo sexual que uma pessoa sente ou não por outras. Essa atração pode ser para pessoas do sexo oposto, para do mesmo sexo ou para ambos. Como exemplos de orientação sexual, temos: heterossexual, homossexual, bissexual, assexual, entre outras (Cardoso, 2008). do indivíduo, não sendo encontrado ao longo de todo o documento especificidades sobre as questões de gênero e sexualidade. A partir desse silenciamento, a inserção dessas temáticas fica a critério da instituição de ensino, a qualidade da formação integral fica ameaçada e a atenção à população LGBT comprometida.
A reflexão teórica promovida pelos estudos de gênero e sexualidade é vasta e tem se complexificado ao longo dos anos. Assim, essas concepções vieram sofrendo transformações que acompanharam as mudanças sociais e políticas. Inicialmente, gênero era compreendido como sinônimo de “mulheres”, em um momento histórico no qual elas deram início a luta por espaço e direitos na sociedade. Falar de gênero era falar das desigualdades que as mulheres sofriam e do caráter cultural das diferenciações entre homens e mulheres, entre ideias sobre feminilidade e masculinidade.
Em um momento posterior, a palavra gênero começou a ser usada para diferenciar natureza de cultura, sendo o sexo vinculado às diferenças anatômicas, a hormônios e à biologia; enquanto gênero à diferenciação social, relacionado à cultura, psicologia, sociologia e incluindo todo o aprendizado vivido desde o nascimento. O produto do trabalho da cultura sobre a biologia era a pessoa ser marcada por gênero, fosse um homem ou uma mulher. Essa relação entre sexo e gênero passa a ser pensada a partir do que Rubin (1975RUBIN, G. The traffic in women: Notes on the political economy of sex. In: REITER, R. (Ed.). Toward an Anthropology of Women. New York: Monthly Review, 1975. p. 157-210., p. 159) chamou de “sistema sexo/gênero”, ou seja, como “[…] um conjunto de medidas mediante o qual a sociedade transforma a sexualidade biológica em produto da atividade humana”. O gênero passa, então, a ser uma categoria analítica para pensar a vida em sociedade.
Entre as várias abordagens utilizadas nos estudos sobre o tema, o discurso construcionista redefiniu o gênero e a identidade sexual - separando-a das práticas sexuais - e analisou a história da homossexualidade e da origem da dominação masculina. O modelo radical de construção social do gênero e da sexualidade considera que “até o desejo sexual é concebido pela cultura e pela história, a partir das energias e capacidades do corpo; não existiria, portanto, “impulso” ou “pulsão sexual”, não se assumiria que funcionamentos ou sensações fisiológicas sejam intrínsecos, nem talvez necessário” (Paiva, 2008PAIVA, V. A psicologia redescobrirá a sexualidade? Psicologia em Estudo, Maringá, v. 13, n. 4, p. 641-651, 2008. DOI: 10.1590/s1413-73722008000400002
https://doi.org/10.1590/s1413-7372200800... , p. 645).
Ampliando esse debate, perspectivas interseccionais influenciadas por autoras do feminismo negro e latino-americano mostraram como distinções de gênero se entrelaçam com distinções raciais, de nacionalidade, sexualidade, classe social e idade. Portanto, trata-se de sempre ir para além de uma visão determinista e biológica da discussão, reconhecendo sua dimensão social e histórica (Piscitelli, 2009PISCITELLI, A. Gênero: a história de um conceito. In: BUARQUE A. H.; SZWAKO, J. (Org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. p. 116-148.; Weeks, 2000WEEKS, J. O corpo e a sexualidade. In: LOURO, G. L. (Org.). O corpo educado: pedagogias das sexualidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 35-83).
Sintetizando a trajetória do conceito de gênero, vemos que um termo que se difundiu por se referir às diferenças e desigualdades que afetam as mulheres adquiriu outros sentidos. Continua referindo-se a diferenças e desigualdades e, portanto, tendo um caráter político. Entretanto, nas suas reformulações, o conceito de gênero reflete não apenas nas distinções entre homens e mulheres, entre masculino e feminino, mas em como as construções de masculinidade e feminilidade são criadas na articulação com outras diferenças, como de raça, classe social, nacionalidade e idade; e como essas noções se misturam no corpo de todas as pessoas, inclusive aquelas que não se categorizam como apenas homens ou mulheres, como travestis e transgêneros (Piscitelli, 2009PISCITELLI, A. Gênero: a história de um conceito. In: BUARQUE A. H.; SZWAKO, J. (Org.). Diferenças, igualdade. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009. p. 116-148.).
Considerando o foco desse estudo no campo do gênero e da sexualidade na saúde, é importante considerar que sendo gênero um determinante social dela, as suas diferenciações e desigualdades a afetam diretamente, bem como o seu cuidado e o acesso aos seus serviços (Sharma; Pinto; Kumagai, 2018SHARMA, M.; PINTO, A. D.; KUMAGAI, A. K. Teaching the Social Determinants of Health: A Path to Equity or a Road to Nowhere?. Academic medicine, Washington, DC, v. 93, n. 1, p. 25-30, 2018. DOI: 10.1097/ACM.0000000000001689
https://doi.org/10.1097/ACM.000000000000... ). Estereótipos culturais impostos, como a agressividade masculina e fragilidade feminina, impactam de forma negativa na saúde de homens e mulheres (Costa-Júnior; Couto; Maia, 2016COSTA-JUNIOR, F. M.; COUTO, M. T.; MAIA, A. C. B. Gênero e cuidados em saúde: Concepções de profissionais que atuam no contexto ambulatorial e hospitalar. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 97-117, 2016. DOI: 10.1590/1984-6487.sess.2016.23.04.a
https://doi.org/10.1590/1984-6487.sess.2... ; Schraiber; Gomes; Couto, 2005SCHRAIBER, L. B.; GOMES, R.; COUTO, M. T. Homens e saúde na pauta da Saúde Coletiva. Ciências & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 7-17, 2005. DOI: 10.1590/S1413-81232005000100002
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200500... ). As questões de sexualidade e orientação sexual também influenciam os cuidados e os acessos à saúde. Historicamente, a população LGBT sofre agressões e discriminações de vários tipos e por diferentes autores, públicos e privados, levando a maiores taxas de incapacidade, limitações físicas e pior estado de saúde geral (Gomes et al., 2018GOMES, S. M. et al. O SUS fora do armário: concepções de gestores municipais de saúde sobre a população LGBT. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 27, n. 4, p. 1120-1133, 2018. DOI: 10.1590/s0104-12902018180393
https://doi.org/10.1590/s0104-1290201818... ; Paulino; Rasera; Teixeira, 2019PAULINO, D. B.; RASERA, E. F.; TEIXEIRA, F. B. Discursos sobre o cuidado em saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais (LGBT) entre médicas(os) da Estratégia Saúde da Família. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 23, e180279, 2019. DOI: 10.1590/interface.180279
https://doi.org/10.1590/interface.180279... ). Os estudos mostram que quando o(a) paciente revela orientação não-heterossexual, os(as) profissionais de saúde frequentemente apresentam reações homofóbicas, incluindo constrangimento, condescendência e hostilidade (Suen; Chan, 2020SUEN, Y. T.; CHAN, R. C. H. A nationwide cross-sectional study of 15,611 lesbian, gay and bisexual people in China: disclosure of sexual orientation and experiences of negative treatment in health care. International Journal for Equity in Health, Berlin, v. 19, n. 1, 2020. DOI: 10.1186/s12939-020-1151-7
https://doi.org/10.1186/s12939-020-1151-... ).
Diante dessa situação, o debate sobre as desigualdades de gênero e sexualidade no contexto da saúde vem ganhando espaço no campo das políticas públicas, tanto nas políticas de saúde criadas como nas Conferências Nacionais de Saúde. Em relação às políticas nacionais, temos: a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Brasil, 2004bBRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília, DF, 2004b.); a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (Brasil, 2008aBRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde do homem: princípios e diretrizes. Brasília, DF, 2008a.); e a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Brasil, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Brasília, DF, 2013.). Em relação às Conferências Nacionais da Saúde, podemos citar a 12° e 13° Conferências, que trouxeram grandes avanços em relação às discussões de sexualidade e gênero no âmbito da saúde, como a inclusão da orientação sexual e da identidade de gênero na análise da determinação social da saúde (Brasil, 2004bBRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: princípios e diretrizes. Brasília, DF, 2004b.; Brasil, 2008bBRASIL. Ministério da Saúde. 13ª Conferência Nacional de Saúde: Saúde e Qualidade de vida: políticas de estado e desenvolvimento. Relatório Final. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde , 2008b.).
Os profissionais da saúde necessitam ter uma formação baseada na compreensão das necessidades sociais desse âmbito, levando em consideração todas as particularidades do indivíduo e incluindo as questões de gênero e sexualidade. Vários(as) autores(as) têm buscado compreender como se dá essa temática nas formações em saúde (Lima et al., 2021LIMA, A. C. S. et al. Gênero e sexualidade na formação de enfermeiros no ensino superior público brasileiro: estudo documental. Revista de Enfermagem do Centro-Oeste Mineiro, Divinópolis, v. 11, e3877, 2021. DOI: 10.19175/recom.v11i0.3877
https://doi.org/10.19175/recom.v11i0.387... ; Yang, 2020YANG, H. C. What Should Be Taught and What Is Taught: Integrating Gender into Medical and Health Professions Education for Medical and Nursing Students. International journal of environmental research and public health, Basel, v. 17, n. 18, 2020. DOI: 10.3390/ijerph17186555.
https://doi.org/10.3390/ijerph17186555.... ; Moretti-pires et al., 2019MORETTI-PIRES, R. O. et al. Preconceito contra Diversidade Sexual e de Gênero entre Estudantes de Medicina de 1º ao 8º Semestre de um Curso da Região Sul do Brasil. Revista Brasileira de Educação Médica, v. 43, n. 1 suppl 1, p. 557-567, 2019. DOI: 10.1590/1981-5271v43suplemento1-20190076
https://doi.org/10.1590/1981-5271v43supl... ; Cooper; Chacko; Christner, 2018COOPER, M. B.; CHACKO, M.; CHRISTNER, J. Incorporating LGBT Health in an Undergraduate Medical Education Curriculum Through the Construct of Social Determinants of Health. MedEdPORTAL, v. 14, p. 10781, 2018. DOI: 10.15766/mep_2374-8265.10781
https://doi.org/10.15766/mep_2374-8265.1... ; Mizael; Gomes; Marola, 2019MIZAEL, T. M.; GOMES, A. R.; MAROLA, P. P. Conhecimentos de Estudantes de Psicologia sobre Normas de Atuação com Indivíduos LGBTs. Psicologia: Ciência e Profissão, Brasília, DF, v. 39, e182761, 2019. DOI: 10.1590/1982-3703003182761
https://doi.org/10.1590/1982-37030031827... ; Ferreira et al., 2020FERREIRA, V. C. et al. Saúde da Mulher, Gênero, Políticas Públicas e Educação Médica: Agravos no Contexto de Pandemia. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, DF, v. 44, n. Suppl 01, e147, 2020. DOI: 10.1590/1981-5271v44.supl.1-20200402
https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.sup... ; Morris et al., 2019MORRIS, M. et al. Training to reduce LGBTQ-related bias among medical, nursing, and dental students and providers: a systematic review. BMC medical education, Berlin, v. 19, n. 1, p. 325, 2019. DOI: 10.1186/s12909-019-1727-3
https://doi.org/10.1186/s12909-019-1727-... ), e esses estudos têm alertado sobre a escassez de debates, o desconhecimento dos(as) estudantes sobre esses temas, o pouco espaço no currículo e a falta de incentivo do próprio corpo docente.
Em relação aos estudos sobre gênero e sexualidade nos cursos de saúde coletiva, pouco se encontra na literatura. Silva, Paulino e Raimondi (2020SILVA, J. M. N.; PAULINO, D. B.; RAIMONDI, G. A. Gênero e Sexualidade na Graduação em Saúde Coletiva do Brasil. Ciências & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, n. 6, p. 2335-2346, 2020. DOI: 10.1590/1413-81232020256.25822018
https://doi.org/10.1590/1413-81232020256... ) analisam os projetos pedagógicos destes no Brasil e mostram a tímida presença de disciplinas de gênero e sexualidade. Brandão e Alzuguir (2019BRANDÃO, E. R.; ALZUGUIR, F. V. A importância do ensino sobre gênero na graduação em n: uma interseção necessária. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 28, n. 2, p. 67-79, 2019. DOI:10.1590/s0104-1290201919024
https://doi.org/10.1590/s0104-1290201919... ) mostram como a inclusão dos conteúdos relativos às questões de gênero em um curso de graduação em saúde coletiva tem gerado ampliação do interesse e da capacidade de reflexão crítica sobre o cotidiano das práticas de saúde entre alunos(as). Faz-se necessário, ao longo da formação do sanitarista, o debate sobre sexualidade e gênero, especialmente em uma perspectiva que examine as diferentes categorias sociais, culturais e biológicas na produção de desigualdades em saúde, assim como as principais políticas que auxiliam na redução dessas iniquidades.
Considerando o ensino superior, a universidade é um lugar de socialização e de formação cidadã e profissional, devendo ser um local acolhedor para aqueles que possuem gênero e orientação sexual não normativos. É necessária a construção de uma pedagogia que valorize as diversidades, e também de um currículo que busque não normatizar os sujeitos a partir de padrões heteronormativos e que atenda aos que se encontram nas fronteiras (Alves; Silva, 2016ALVES, R. C. D. P.; SILVA, E. L. S. Universidade, gênero e sexualidade: experiências curriculares e formativas de estudantes não heterossexuais na UFRB. Revista Gênero, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 83-89, 2016. DOI: 10.22409/rg.v17i1.861
https://doi.org/10.22409/rg.v17i1.861... ).
Sendo assim, considerando sua relevância social e ético-política, bem como a escassez de estudos sobre essa temática, o objetivo desta pesquisa é analisar a inserção das questões de gênero e sexualidade no currículo dos cursos de graduação em saúde coletiva do Brasil. Buscou-se identificar e caracterizar a oferta de disciplinas relacionadas às temáticas de gênero e sexualidade, além de analisar os objetivos, o conteúdo programático, a metodologia, a avaliação e a bibliografia básica das disciplinas que contenham tais temáticas.
Metodologia
A metodologia adotada nesta pesquisa se fundamenta nos pressupostos da pesquisa qualitativa, com a utilização da Pesquisa Documental, a partir do levantamento e análise de fichas de disciplinas dos cursos de graduação em saúde coletiva no Brasil. Essa ficha proporciona compreender detalhadamente como se dá o ensino de determinada disciplina a partir dos seus elementos e, por ser um documento rico em informações, é uma importante fonte de dados para pesquisas e estudos que buscam analisar disciplinas (Spudeit, 2014SPUDEIT, D. Elaboração do plano de ensino e do plano de aula. Rio de Janeiro: Unirio, 2014.).
Inicialmente, a coleta se deu por meio de uma busca sistemática pelos sites das instituições de ensino que ofertam os cursos de saúde coletiva, a fim de conseguir as fichas, no período de 2019/2020. Para os cursos que não tinham esses documentos disponíveis em seus sites, eles foram solicitados por meio de troca de e-mails e telefonemas com as instituições. Foram recolhidos os projetos pedagógicos e as fichas de disciplinas de 17 cursos de graduação em saúde coletiva do Brasil. Dois CGSC não se dispuseram a enviar os documentos, apesar de deverem ter caráter público. As fichas de disciplinas e os projetos pedagógicos coletados datavam de 2009, 2010 e 2012.
Os 17 CGSC participantes da pesquisa oferecem 876 disciplinas. Para o processo de análise das fichas, inicialmente realizou-se uma leitura dos títulos de todas as disciplinas ofertadas. Considerando o caráter social e histórico do gênero e da sexualidade, após a leitura, foram excluídas aquelas da área de exatas e de caráter biológico e epidemiológico. Nessa primeira etapa, foram excluídas 817 disciplinas.
As fichas das 59 disciplinas restantes foram lidas de forma completa, incluindo as ementas, os objetivos gerais e específicos, e os conteúdos programáticos, visando identificar se debatiam ou não gênero e sexualidade. Nessa segunda etapa, encontrou-se 16 disciplinas que contemplavam o tema de gênero e sexualidade. As demais foram excluídas por tratarem de determinantes sociais da saúde, dos movimentos sociais, das políticas de saúde pública no Brasil e outros assuntos que poderiam incluir o debate de gênero e sexualidade, mas em que estes não foram contemplados.
As disciplinas encontradas que contemplam aspectos de sexualidade e gênero estão distribuídas em 12 cursos de graduação, o que corresponde a 70% dos cursos da amostra desta pesquisa (Quadro 1).
Descrição das disciplinas ofertadas pelos CGSC com temáticas de gênero e sexualidade, o tipo de oferta, carga horária e semestre ofertado
A análise de conteúdo foi o método utilizado neste estudo, e consiste em um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção das mensagens (Bardin, 2011BARDIN, L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edição 70, 2011.). Os elementos Objetivos, Conteúdo programático, Metodologia, Avaliação e Bibliografia básica das fichas foram analisados separadamente, e foram criadas categorias de acordo com os temas encontrados.
Resultados e discussão
Das disciplinas que contemplam aspectos de sexualidade e gênero, ao analisarmos a carga horária e a quantidade de disciplinas ofertadas ao longo da graduação em comparação com aquelas direcionadas para o debate de gênero/sexualidade, podemos ver que elas têm um espaço muito pequeno no processo de formação. O curso com maior carga horária de disciplinas dessas temáticas soma 6,1% do total de horas. Entretanto, a existência delas já é um grande passo se refletirmos que em sete CGSD (30% dos cursos) não foram identificadas fichas de disciplinas com tais temáticas. Em relação às nomenclaturas, apresentam títulos variados: oito delas são disciplinas mais especificas da temática, levando os descritores gênero e/ou sexualidade no próprio título, e as outras oito contemplam esse debate correlacionado a outros assuntos, e os descritores não aparecem em seus títulos. Além disso, as disciplinas têm formas de ofertas diferentes, sendo onze obrigatórias, quatro optativas e uma eletiva. Como mostra o quadro, a oferta acontece, em sua maioria, nos primeiros períodos do curso. Tipicamente, as disciplinas iniciais de uma graduação trazem pouca relação com a prática profissional, deixando em aberto o debate sobre o quanto elas preparam os(as) alunos(as) para atuarem no cotidiano profissional.
Analisando os objetivos, conteúdos programáticos e referências básicas das fichas de disciplinas
Analisando os elementos Objetivos, Conteúdos programáticos e Referências básicas, encontraram-se nas fichas, respectivamente: 84, 159 e 158. A formulação de alguns desses itens, por vezes, contemplava vários temas, que então foram fragmentados e classificados em diferentes categorias. Considerando as inerentes interrelações pedagógicas entre Objetivos, Conteúdos programáticos e Referências básicas, foram criadas categorias comuns intituladas: “Gênero”, “Sexualidade”, “Desigualdades e determinantes sociais de saúde”, “Políticas públicas”, “Atenção em saúde”, e “Outros” (Quadro 2 e Quadro 3).
Considerando os objetivos da pesquisa, a análise do Quadro 3 aponta que a somatória da frequência das categorias Gênero e Sexualidade, em comparação com as categorias restantes, apresenta uma diferença relativamente pequena, visto que: em Objetivos, as categorias Gênero e Sexualidade aparecem em conjunto 52 vezes, enquanto os objetivos das outras categorias somam 45 objetivos; em Conteúdo Programático, Gênero e Sexualidade aparecem 84 vezes, enquanto as outras categorias aparecem 90 vezes; e, em Referências, Gênero e Sexualidade aparecem 75 vezes, enquanto as outras categorias aparecem 88 vezes. Contudo, de forma isolada, Gênero se destacou como a categoria predominante em todos os elementos da ficha, o que aponta para uma compreensão que reconhece sua influência no processo saúde-doença (Villela, 2019VILLELA, W. V. Relações de gênero, processo saúde-doença e uma concepção de integralidade. Boletim do Instituto de Saúde, São Paulo, n. 48, p. 26-30, 2019. ). Os assuntos sobre Sexualidade aparecem, comparativamente, com menor frequência.
Na análise dos Conteúdos Programáticos, é necessário apontar que as disciplinas não apresentam detalhes de como os assuntos são abordados ao longo das aulas, ou seja, pelo conteúdo das fichas não é possível compreender como são feitas as conceituações de gênero e sexualidade. Contudo, é possível identificar algumas temáticas. A análise dos tópicos referentes a gênero mostrou que as disciplinas privilegiam o debate sobre a mulher, que aparece 14 vezes, envolvendo temas como: saúde da mulher, feminismo, violência contra a mulher, políticas públicas, racismo, etnia, reprodução, entre outros. Essa variedade de temas possibilita debates acerca da mulher, envolvendo questões sociais, de saúde, culturais e políticas.
Ao mesmo tempo, as questões de masculinidade aparecem apenas três vezes, com as temáticas saúde do homem, políticas de saúde e masculinidade. Diferente de quando o assunto é mulher, a gama de temas envolvendo o homem é muito menor, o que demonstra um olhar pouco plural e uma tímida perspectiva relacional de gênero. Parece haver pouca preocupação com as questões sociais, de cuidado e de prevenção, e que pouco se tem a dizer e aprender sobre as masculinidades.
É nítido que existe um desequilíbrio em decorrência do qual a saúde do homem fica às margens do ensino. Esse pode ser um reflexo dos sistemas de saúde, uma vez que a da mulher ganha muito mais espaço no cuidado do Sistema Único de Saúde (SUS) que o homem, e as campanhas de saúde e a própria política de saúde da mulher tem maior mobilização e visibilidade do que a política de saúde do homem (Botton; Cúnico; Strey, 2017BOTTON, A.; CÚNICO, S. D.; STREY, M. N. Diferenças de gênero no acesso aos serviços de saúde: problematizações necessárias. Mudanças - Psicologia da Saúde, São Bernardo do Campo, v. 25, n. 1, p. 67-72, 2017. DOI:10.15603/2176-1019/mud.v25n1p67-72
https://doi.org/10.15603/2176-1019/mud.v... ), permitindo que reflitamos o quanto ainda vigoram perspectivas de controle sobre o corpo feminino.
De forma semelhante, a análise dos tópicos referentes à sexualidade aponta uma variedade de temas, como abordagens psicanalíticas, antropológicas, sociológicas e históricas da sexualidade, dos direitos reprodutivos, dos direitos sexuais, da contracepção, do aborto, entre outros. Além disso, observa-se que apenas 10 entre os 30 tópicos consideram aspectos da diversidade sexual, sendo necessário refletir sobre a heteronormatividade que permeia esse currículo (Araujo; Cruz; Dantas, 2018ARAUJO, D. B.; CRUZ, I. S.; DANTAS, M. C. C. Gênero e sexualidade na escola. Salvador: UFBA, 2018.).
A presença de conteúdos sobre sexualidade ajuda o(a) aluno(a) a lidar melhor com a sua própria, o(a) conscientiza a vivê-la de forma saudável, a reconhecer e respeitar a diversidade sexual das pessoas, o que produzirá efeitos na população quando estiver atuando. Um dos assuntos contemplados nessa categoria é a saúde das Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros. Debates sobre a população LGBT aparecem pouco ao longo das fichas, apenas três vezes. Se pouco se fala dos homossexuais e transgêneros nas disciplinas, deduz-se um ensino centrado na sexualidade heteronormativa e na binaridade de gênero.
As questões LGBT também devem ganhar espaço, uma vez que a literatura traz que esse público se beneficia menos dos serviços preventivos de saúde, como exames de câncer, exame de papanicolau, mamografia, dentre outros, devido ao medo da estigmatização (Ayhan; Bilgin; Uluman, 2020AYHAN, C.; BILGIN, H.; ULUMAN, OT. A Systematic Review of the Discrimination Against Sexual and Gender Minority in Health Care Settings. International Journal of Health Services, Thousand Oaks, v. 50, n. 1, p. 44-61, 2020. DOI: 10.1177/0020731419885093
https://doi.org/10.1177/0020731419885093... ).
Se há características distintas entre homens e mulheres se tratando do gênero e da sexualidade, elas resultam de uma combinação de fenômenos processados nos corpos como efeito da socialização de gênero. Essas combinações resultam em impactos na saúde (Heilborn, 2003HEILBORN, M. L. Articulando Gênero, Sexo e Sexualidade: diferenças na saúde. In: GOLDENBERG, P.; MARSIGLIA, R. M. G.; GOMES, M. H. A. (Org.). O Clássico e o Novo: tendências, objetos e abordagens em ciências sociais e saúde. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003. p. 197-208.), merecendo espaço semelhante no currículo, bem como uma articulação teórico-metodológica mais densa e interseccional.
Além da análise dos Objetivos e Conteúdos programáticos, buscaram-se identificar o gênero dos docentes e/ou responsáveis pelas disciplinas. Somente metade das disciplinas tinham essa informação e, destas oito , cinco são do gênero feminino e cinco do masculino. Esse resultado aponta que professores e professoras têm se dedicado à temática.
Em uma análise complementar e específica de cada elemento da ficha, observou-se que os Objetivos visam aprendizagem diferentes, sendo 48 teóricos (ex.: compreender, conceituar, reconhecer) e 36 práticos (ex.: exemplificar, realizar), distribuídos em seis disciplinas com mais objetivos teóricos, quatro disciplinas com mais objetivos práticos e três com um equilíbrio entre eles, o que indica que a aprendizagem das disciplinas com a temática de gênero e sexualidade têm, em geral, quantidade maior de objetivos teóricos do que práticos.
Nas Referências básicas, a análise das datas de publicação das 158 presentes nas disciplinas analisadas mostrou que a maior parte (72 referências) foi publicada entre os anos 2000 e 2009. Em relação aos(às) autores(as) das obras, há uma variedade imensa, sendo que os mais referidos são: Schraiber, Lilia Blima (aparece seis vezes) e Ayres, José Ricardo de Carvalho Mesquita (aparece cinco vezes) em obras que tratam de temas de saúde coletiva; e Scott, Joan, Foucault, Michel, Carrara, Sérgio e Diniz, Carmen Simone Grilo são referidos três vezes nos títulos sobre gênero e sexualidade.
Analisando as metodologias e a avaliação das fichas de disciplinas
Por meio da análise das 36 metodologias de ensino encontradas nas fichas de disciplinas, criaram-se oito categorias com as encontradas: “Debate”, “Outras Metodologias Ativas”, “Aula dialogada”, “Aula expositiva”, “Seminário”, “Leitura de texto”, “Recursos audiovisuais” e “Resumo” (Quadro 4).
Através da análise da frequência de utilização de cada metodologia, observa-se que a maior parte daquelas adotadas pelas disciplinas fomentam o diálogo professor(a)-aluno(a). As metodologias que privilegiam a participação do(a) professor(a), como “Aula expositiva” e “Aula dialogada”, são referidas nove vezes; as que estimulam a troca mútua e os relacionamentos em que ambas as partes (professor e aluno) expõem sua opinião, como “Debate”, “Seminário” e “Outras metodologias ativas”, são referidas 17 vezes; e as metodologias centradas no aluno(a), nas quais ele aprende sozinho e isolado, como “Leitura de texto” e “Resumo”, são referidas em conjunto seis vezes. Isso mostra que as disciplinas optam, majoritariamente, por métodos nos quais o(a) aluno(a) consiga se expressar e participar ativamente do processo. Contudo, é importante lembrar que a ficha de disciplina apenas traz a variedade de metodologias a serem utilizadas, sem estabelecer a frequência do uso de cada uma delas.
A análise das metodologias mostrou que as disciplinas privilegiam metodologias que estimulam a participação do(a) aluno(a) e oferecem variedade delas para o processo de aprendizagem. Lopes (1991LOPES, A. O. Aula expositiva: superando o tradicional. In: VEIGA, I. P. A. (Org.). Técnicas de ensino: Por que não?. Campinas: Papirus, 1991. p. 35-48.) aponta que um(a) professor(a) criativo(a), de espírito transformador, está sempre buscando inovar sua prática e um dos caminhos para isso é desenvolver atividades dinâmicas em sala de aula, buscando variar as atividades metodológicas e inovar as técnicas já utilizadas. É importante que as disciplinas com a temática de gênero e sexualidade ofereçam metodologias diversificadas e com abertura para que o(a) aluno(a) possa participar ativamente, pois sendo temas ainda considerados por muitos profissionais como sensíveis e polêmicos, faz-se necessário que as metodologias estejam mais voltadas ao debate, à discussão, e a abrir espaço para ouvir os(as) alunos(as) e suas experiências e dúvidas.
Em relação ao elemento Avaliação, foram encontrados 38 tópicos, os quais foram categorizados em: “Participação em sala de aula”, “Trabalho”, “Prova”, “Seminário”, “Resumo” e “Atividade prática” (Quadro 5).
As fichas de disciplinas de gênero e sexualidade tendem a se desviar da avaliação tradicional centrada em provas e testes. Visto que “Prova” aparece sete vezes como método avaliativo; “Participação em sala”, que avalia o interesse do(a) aluno(a) e seu empenho nas discussões e atividades, aparece 11 vezes; e as demais atividades como “Trabalho”, “Seminário”, “Resumo” e “Atividade prática”, em que o(a) aluno(a) tem autonomia para produzir de acordo com seus conhecimentos prévios e criatividade, em conjunto aparecem 20 vezes. Em relação à pontuação e peso destinado a cada método avaliativo, nem todas as fichas disponibilizam essa informação. Analisando as seis que traziam essa informação na ficha, foi observado que “Seminário”, “Trabalho” e “Participação em sala” têm maior peso da nota e prova um peso menor, com exceção de apenas uma disciplina, em que a “Prova” é a maior parte da nota.
Com esta análise, conclui-se que as avaliações propostas nas fichas das disciplinas de gênero e sexualidade acontecem principalmente por “Participação em sala”, “Trabalho” e “Seminário”. Se tratando do peso dado a cada avaliação, participação e trabalhos recebem maior pontuação do que provas escritas. É importante lembrar que, mais do que o instrumento, importam também o tipo de conhecimento que está à prova, a motivação que está sendo passada do(a) professor(a) aos(às) alunos(as), o incentivo para buscar o conhecimento e a função de propiciar a autocompreensão, tanto do(a) educando(a) quando do(a) educador(a) (Depresbiteris; Tavares, 2017DEPRESBITERIS, L.; TAVARES, M. R. Diversificar é preciso…: instrumentos e técnicas de avaliação de aprendizagem. Rio de Janeiro: Senac, 2017.).
Considerações finais
Este estudo objetivou analisar a inserção das questões de gênero e sexualidade no currículo dos cursos de graduação em saúde coletiva brasileiros. Observou-se que disciplinas direcionadas para o debate de gênero/sexualidade têm um espaço muito pequeno no processo de formação. Elas trazem com maior frequência discussões sobre as questões de gênero do que de sexualidade. Gênero aparece com uma variedade maior de assuntos, e predominam temas voltados à saúde da mulher, como contracepção, aborto e violência contra a mulher. A saúde dos homens e seus aspectos aparecem com menor frequência. A sexualidade, quando contemplada, aparece com menor variedade de assuntos, sendo eles: sexo, orientação sexual e DSTs, ou seja, assume uma perspectiva mais biológica, relacionada ao ato sexual e à transmissão de doenças, do que uma compreensão sociocultural mais ampla.
O desenvolvimento da pesquisa a partir de fichas de disciplinas encontrou alguns limites. Várias fichas enviadas pelas instituições vieram incompletas, tais como: fichas sem objetivos ou com objetivos referentes à metodologia de ensino; fichas com conteúdos muito sucintos ou muito genéricos; fichas sem metodologias de ensino; fichas sem informações quanto às avaliações ou seus pesos; e fichas sem referências complementares, sem informações de autores ou datas de publicação. A falta dessas informações dificultou a análise pretendida. Assim, ressalta-se a necessidade dos cursos as elaborarem melhor e considerarem todos os elementos do processo de ensino, a fim de proporcionar uma melhor compreensão da aprendizagem. Outro desafio foi referente à desatualização das fichas, sendo que no período da coleta de dados várias datavam de 2009/2010/2012, o que mostra a necessidade de revisão e atualização das Propostas Pedagógicas Curriculares (PPCs) e das fichas de disciplinas.
Além disso, dado o caráter documental do estudo, não se tem informações sobre o currículo oculto (o que realmente acontece em sala de aula) e sobre os conteúdos e discussões que o sanitarista apreende e que não são descritos no currículo oficial. Assim, sugere-se para próximos estudos: acompanhar as disciplinas de gênero e sexualidade no dia a dia dos cursos, de modo a compreender como o currículo se traduz no cotidiano universitário; investigar a formação dos(as) docentes ministrantes dessas disciplinas de gênero e/ou sexualidade; e compreender a percepção dos(as) alunos(as) sobre as disciplinas de gênero e sexualidade.
A realização dessa pesquisa mostra a necessidade de investigar o campo de gênero e sexualidade nos cursos de graduação em saúde coletiva no Brasil, visando uma melhor formação dos sanitaristas. Espera-se que os CGSC possam efetivamente incorporar esse debate, a fim de exercer seu compromisso de construção de um SUS democrático e justo.
Agradecimentos
Agradecimentos aos editores e pareceristas da Revista Saúde e Sociedade pelo cuidadoso trabalho e aos professores Flávia do Bonsucesso Teixeira e Rafael de Tilio pelas contribuições durante a banca de defesa do mestrado que originou o presente relato.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
11 Mar 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
13 Jan 2022 - Revisado
03 Out 2022 - Revisado
13 Jan 2023 - Aceito
08 Dez 2023