Resumo
A covid-19 jogou luz sobre o impacto negativo da propriedade intelectual na saúde e deu nova relevância à Ação Direta de Inconstitucionalidade 5529/DF, que, acatada pelo Supremo Tribunal Federal em 2021, culminou na extinção da extensão automática de patentes no Brasil. Este estudo busca analisar o efeito do julgamento histórico da ADI 5529/DF sobre pedidos de patente e as patentes de interesse das Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDP). Trata-se de um estudo com base em uma pesquisa documental de análise do andamento, até 31 de dezembro de 2020, de 90 pedidos de patente relacionados a 15 medicamentos objetos de PDP. Nos sites do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, do Ministério da Saúde, da Anvisa e da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, foram pesquisadas variáveis para comparar o cenário patentário dos medicamentos com o das PDP. De 88 pedidos válidos, 28 patentes foram concedidas, das quais dezessete foram estendidas para mais de vinte anos (média de 24 anos e nove meses). A decisão do STF resultou em mais de 68 anos de monopólio perdidos, potencialmente desanuviando alternativas para a produção de genéricos no país. Neste momento de retomada das PDP, estratégias para a superação de barreiras patentárias deveriam ser incorporadas à política.
Palavras-chave:
Acesso a Medicamentos Essenciais e Tecnologias em Saúde; Propriedade Intelectual de Produtos e Processos Farmacêuticos; Complexo Econômico-Industrial da Saúde; Política de Saúde
Introdução
A corrida mundial por vacinas, medicamentos, respiradores e outras tecnologias essenciais para o enfrentamento da pandemia de covid-19 (Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.) vem jogando luz àquilo que ativistas da saúde têm denunciado há décadas: o monopólio sobre as tecnologias em saúde tem gerado uma crise global de acesso a elas, configurando-se como uma barreira à efetivação do direito à saúde (Chaves; Vieira; Reis, 2008CHAVES, G. C.; VIEIRA, M. F.; REIS, R. Acesso a medicamentos e propriedade intelectual no Brasil: reflexões e estratégias da sociedade civil. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, n. 8, p. 170-198, 2008.; Coelho et al., 2021COELHO, T. L. et al. A propriedade intelectual na judicialização da assistência farmacêutica: uma demanda estrutural em defesa do Sistema Único de Saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 1-14, 2021.).
A velocidade recorde do desenvolvimento de imunizantes contra a covid-19 trouxe esperanças a toda a humanidade, mas a desigualdade em sua distribuição foi espantosa (Falcão; Lopes, 2021FALCÃO, M.; LOPES, L. Patentes e transferência de tecnologia: duas faces da mesma moeda bloqueando vacinas contra a covid-19. Outra Saúde, São Paulo, 4 jun. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasaude/patentes-e-transferencia-de-tecnologia-duas-faces-da-mesma-moeda-bloqueando-vacinas-contra-a-covid-19/ >. Acesso em: 1 jun. 21.
https://outraspalavras.net/outrasaude/pa... ; Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.). Em setembro de 2021, 80% das 5,5 bilhões de doses que haviam sido administradas concentravam-se em países de renda alta e média-alta (WHO, 2021WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Director-General’s opening remarks at the media briefing on COVID-19. Geneva, 8 set. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---8-september-2021 >. Acesso em: 01 nov. 21.
https://www.who.int/director-general/spe... ). A lógica se repetiu com outras tecnologias: o rendesivir foi lançado para os governos de países ricos por 2.340,00 dólares por tratamento. Apesar do alto preço, em junho de 2020, os Estados Unidos compraram todo o estoque do medicamento para os três meses seguintes, mostrando que vivemos um apartheid biomédico (Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.).
A propriedade intelectual (PI) confere monopólio sobre tecnologias em saúde e, consequentemente, a prerrogativa para que as decisões sobre a produção, a venda e mesmo a precificação destas fiquem nas mãos de poucos (Falcão; Lopes, 2021FALCÃO, M.; LOPES, L. Patentes e transferência de tecnologia: duas faces da mesma moeda bloqueando vacinas contra a covid-19. Outra Saúde, São Paulo, 4 jun. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasaude/patentes-e-transferencia-de-tecnologia-duas-faces-da-mesma-moeda-bloqueando-vacinas-contra-a-covid-19/ >. Acesso em: 1 jun. 21.
https://outraspalavras.net/outrasaude/pa... ; Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.). Diante da limitada capacidade financeira dos países, o preço cada vez mais alto das tecnologias em saúde já vinha ameaçando o acesso a elas e a sustentabilidade dos sistemas de saúde mesmo antes da pandemia (Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.; Coelho et al., 2021COELHO, T. L. et al. A propriedade intelectual na judicialização da assistência farmacêutica: uma demanda estrutural em defesa do Sistema Único de Saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 1-14, 2021.), quando o problema se intensificou. Diversos países do sul global ficaram dependentes de doações e empréstimos financeiros para imunizar suas populações. Ao mesmo tempo, nove pessoas se tornaram bilionárias em 2021 a partir do lucro com as vacinas contra a covid-19, intensificando questionamentos sobre os ganhos abusivos das corporações farmacêuticas (Oxfam Brasil, 2021OXFAM BRASIL. Vacinas contra a covid-19 criaram 9 novos bilionários. São Paulo, 20 maio 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticias/vacinas-contra-a-covid-19-criaram-9-novos-bilionarios/ >. Acesso em: 01 jun. 21.
https://www.oxfam.org.br/noticias/vacina... ).
No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) há muito sofre o forte impacto do alto preço das tecnologias em saúde (Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.; Coelho et al., 2021COELHO, T. L. et al. A propriedade intelectual na judicialização da assistência farmacêutica: uma demanda estrutural em defesa do Sistema Único de Saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 1-14, 2021.). O gasto com a Assistência Farmacêutica aumentou 75% de 2010 a 2019 - em contraste com o aumento de 40% do orçamento geral do Ministério da Saúde (MS). Em 2019, R$1,2 bilhão foi gasto para a importação de apenas duas vacinas (Junqueira, 2020bJUNQUEIRA, D. Compra de vacinas triplica em 10 anos e pressiona teto de gastos pós-pandemia. Repórter Brasil , São Paulo, 30 ago. 2020b. Disponível em: Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2020/08/compra-de-vacinas-triplica-em-10-anos-e-pressiona-teto-de-gastos-pos-pandemia/ . Acesso em: 01 set. 2021.
https://reporterbrasil.org.br/2020/08/co... ). Já em 2021 e 2022, mais de R$ 26 bilhões foram gastos na aquisição de vacinas contra a covid-19 (Brasil, 2023). Importa destacar que esse aumento do gasto em saúde aconteceu em um momento de desfinanciamento do SUS, o que agravou os desafios enfrentados pela política de saúde brasileira (Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.).
Apenas 10 países concentram quase 90% das patentes em saúde do mundo, sendo as grandes empresas do complexo produtivo da saúde majoritariamente originárias de países do Norte Global. Em consequência, dependemos fortemente de importações para suprir as necessidades do SUS, o que ameaça sua sustentabilidade (Gadelha; Temporão, 2018GADELHA, C. A. G.; TEMPORÃO, J. G. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1891-1902, 2018.). Diante da escassez artificial global de imunizantes contra a covid-19, cabe apontar que foram as duas vacinas produzidas em parceria com dois Laboratórios Farmacêuticos Oficiais (LFO), o Instituto Butantan e o Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), que nos possibilitaram o amplo acesso à imunização (Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.; Falcão; Lopes, 2021FALCÃO, M.; LOPES, L. Patentes e transferência de tecnologia: duas faces da mesma moeda bloqueando vacinas contra a covid-19. Outra Saúde, São Paulo, 4 jun. 2021. Disponível em: <Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasaude/patentes-e-transferencia-de-tecnologia-duas-faces-da-mesma-moeda-bloqueando-vacinas-contra-a-covid-19/ >. Acesso em: 1 jun. 21.
https://outraspalavras.net/outrasaude/pa... ). Isso tornou evidente a indispensabilidade de políticas estatais de produção local de tecnologias em saúde para a efetiva garantia de soberania sanitária (Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.).
Tal necessidade já havia sido reconhecida anteriormente no Brasil. Para redução dessa dependência tecnológica externa, as Parcerias para Desenvolvimento Produtivo (PDP) foram concebidas, em 2008, como o principal instrumento estratégico para o fortalecimento do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis) brasileiro. Coordenadas pelo MS, o objetivo central das PDP seria firmar parcerias entre LFO e laboratórios privados, nacionais e/ou internacionais, para produção local e transferência de tecnologias estratégicas para o SUS. O principal incentivo às parcerias, que podem vigorar por até 10 anos, seria a garantia de compra do medicamento pelo SUS por um período definido:
O modelo básico das PDP envolve a utilização das compras, realizadas centralizadamente pelo MS, de produtos (normalmente de alto custo e maior complexidade tecnológica), que eram adquiridos no mercado (com grande participação de importações), para estimular a produção local. (Gadelha; Temporão, 2018GADELHA, C. A. G.; TEMPORÃO, J. G. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1891-1902, 2018., p. 1897)
O início da operacionalização das PDP se deu em 2009 (Gadelha; Temporão, 2018GADELHA, C. A. G.; TEMPORÃO, J. G. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1891-1902, 2018.), e estima-se que mais de R$7 bilhões tenham sido economizados nos cofres públicos de 2011 a 2018, por meio da compra de medicamentos via PDP. Contudo, especialmente a partir de 2019, a política foi sendo enfraquecida, com a suspensão e extinção de parcerias firmadas e redução de investimentos e compras dos medicamentos produzidos. Segundo Junqueira (2020aJUNQUEIRA, D. Coronavírus expõe fragilidade das farmacêuticas, que receberam menor investimento da década sob Bolsonaro. Repórter Brasil , São Paulo, 20 abr. 2020a. Disponível em: Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2020/04/coronavirus-expoe-fragilidade-das-farmaceuticas-que-receberam-menor-investimento-da-decada-sob-bolsonaro/ . Acesso em: 16 jun. 2023.
https://reporterbrasil.org.br/2020/04/co... ), em 2019 houve uma queda de quase 52% do valor gasto pelo MS em compras de medicamentos de PDP em comparação a 2018.
Além da falta de interesse governamental, a própria PI pode constituir barreira às compras públicas dos medicamentos frutos de PDP (Campos, 2019CAMPOS, P. A. M. Infração patentária no âmbito das parcerias para o desenvolvimento produtivo de medicamentos. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso [Graduação em Direito] - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.). O caso do medicamento mais usado no Brasil para tratamento de HIV/Aids é ilustrativo: em 2020, uma patente sobre o dolutegravir (DTG) foi concedida e suas empresas detentoras passaram a atuar judicialmente para impedir a compra, pelo SUS, do genérico da PDP firmada entre o Laboratório Farmacêutico do Estado de Pernambuco Governador Miguel Arraes (Lafepe) e a empresa brasileira Blanver Farmoquímica e Farmacêutica S.A. (Fonseca et al., 2023FONSECA et al. Patentes: o intrincado caso do dolutegravir. Outra Saúde, São Paulo, 2023. Disponível em: <Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasaude/patentes-o-intrincado-caso-do-dolutegravir/ >. Acesso em: 27 jan. 2023.
https://outraspalavras.net/outrasaude/pa... ). Com o risco de desabastecimento do medicamento, usado por mais de 460 brasileiros, o Conselho Nacional de Saúde recomendou o licenciamento compulsório da patente do dolutegravir ao MS (Brasil, 2022BRASIL. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação nº 029, de 20 de outubro de 2022. Brasília, DF: Conselho Nacional de Saúde, 2022. Disponível em: Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/2681-recomendacao-n-029-de-20-de-outubro-de-2022 . Acesso em: 27 jan. 2023.
https://conselho.saude.gov.br/recomendac... ).
O licenciamento compulsório é uma das flexibilidades introduzidas no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (o Acordo TRIPS), para proteção da saúde e do interesse públicos dos países diante da PI. O debate sobre seu uso foi intensificado no contexto da pandemia, quando diversos países buscavam alternativas para enfrentar a escassez de tecnologias essenciais em saúde. No Brasil, a Lei nº 9.279/1996 - Lei de Propriedade Industrial (LPI) - já previa o mecanismo, cujo uso em emergências sanitárias foi facilitado pela Lei nº 14.200/2021, aprovada por expressiva maioria do Congresso Nacional (Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.).
O destaque inédito dado ao debate global e nacional sobre os efeitos negativos da PI na pandemia também refletiu na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5529/DF, iniciada em 2016 e julgada em 2021. O Supremo Tribunal Federal (STF) acatou a inconstitucionalidade do parágrafo único do artigo 40 da LPI, que criava um mecanismo de extensão automática do período de vigência das patentes no Brasil. A extensão, para além dos 20 anos adotados pelo Acordo TRIPS, gerava grandes prejuízos ao SUS na aquisição de medicamentos, em decorrência do atraso da entrada de genéricos no mercado (Brasil, 2021bBRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 5529/DF. Relator: Ministro Dias Toffoli. Brasília, DF, 2021b. Disponível em: <Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1273342619/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-5529-df >. Acesso em: 01 nov. 2021.
https://stf.jusbrasil.com.br/jurispruden... ; GTPI, 2021GTPI - Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual. STF define medicamentos mais acessíveis à população e grande economia para o SUS. Rio de Janeiro, 13 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://deolhonaspatentes.org/stf-define-medicamentos-mais-acessiveis-a-populacao-e-grande-economia-para-o-sus/ . Acesso em: 13 maio 21.
https://deolhonaspatentes.org/stf-define... ).
Essa decisão do STF impactou imediatamente 3.435 patentes farmacêuticas (GTPI, 2021GTPI - Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual. STF define medicamentos mais acessíveis à população e grande economia para o SUS. Rio de Janeiro, 13 maio 2021. Disponível em: Disponível em: https://deolhonaspatentes.org/stf-define-medicamentos-mais-acessiveis-a-populacao-e-grande-economia-para-o-sus/ . Acesso em: 13 maio 21.
https://deolhonaspatentes.org/stf-define... ), incluindo a do dolutegravir, que teve seu tempo de vigência reduzido em quatro anos. A extinção do mecanismo também pode ter reduzido barreiras patentárias para a aquisição de outros medicamentos via PDP e até para o avanço de fases previstas. A preocupação do MS com essas barreiras ficou evidenciada no ofício nº 1313/2017/SCTIE/MS, enviado em 2017 ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). Por meio do documento, o MS analisa o cenário patentário de 15 medicamentos objetos de PDP e solicita exame prioritário para pedidos de patente a eles relacionados, a fim de evitar a extensão do monopólio (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Ofício nº 1313/2017/SCTIE/MS. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017.).
Com o objetivo de contribuir para o debate sobre o impacto negativo da PI na produção local e no acesso a tecnologias em saúde no Brasil, este estudo busca analisar o efeito do julgamento histórico da ADI 5529/DF sobre: 1) os pedidos de patente e as patentes levantados no ofício nº 1313/2017/SCTIE/MS; e 2) as PDP com potencial de serem por eles afetadas.
Metodologia
Trata-se de um estudo de caso com base em pesquisa documental que buscou analisar, até 31 de dezembro de 2020, o andamento de 90 pedidos de patente relacionados a 15 medicamentos de interesse de PDP, elencados no ofício nº 1313/2017/SCTIE/MS, recebido em 20 de junho de 2017 pelo INPI. Foram analisados todos os pedidos de patente levantados na nota técnica nº 383/2016/DECIIS/SCTIE/MS, integrante do ofício, que buscou apresentar o cenário patentário para cada um dos medicamentos. A Tabela 1 elenca os 15 medicamentos e os 90 pedidos de patente estudados. Os princípios ativos e as classes terapêuticas dos medicamentos são apresentados conforme os respectivos registros sanitários.
Para análise do andamento processual e do impacto da extinção do parágrafo único do artigo 40 da LPI sobre os pedidos de patente, realizou-se uma busca para cada um deles no site do INPI e verificou-se as seguintes variáveis de interesse: data do depósito; depositante; status do pedido em 31 de dezembro de 2020; e validade, em anos, da carta patente. Durante a investigação, decidiu-se também avaliar as seguintes possibilidades: se foi apresentado parecer da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e se houve ação judicial relacionada ao processo. Em caso de patentes concedidas, calculou-se o tempo adicionado ao período de 20 anos de monopólio em função do parágrafo único do artigo 40 da LPI.
Ressalta-se que a nota técnica nº 383/2016/DECIIS/SCTIE/MS foi embasada em estudo anterior da Associação Brasileira das Indústrias de Medicamentos Genéricos e Biossimilares, que teve por objetivo levantar as possíveis barreiras patentárias à produção de genéricos via PDP. Contudo, devido à conhecida dificuldade de se identificar os pedidos de patente relacionados a uma tecnologia específica, essa lista pode não ser suficiente para entender o cenário patentário dos medicamentos, o que confere uma limitação importante ao estudo. A fim de auxiliar na análise do cenário, verificou-se, então, a existência de concorrência na comercialização dos medicamentos na lista de preços máximos para compras públicas da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED), atualizada em 10 de dezembro de 2019.
Para analisar o impacto decorrente do parágrafo único do artigo 40 da LPI nas PDP, verificou-se no site do MS as seguintes variáveis de interesse em relação às PDP vigentes, suspensas ou extintas em 21 de setembro de 2020 - última atualização em 2020 -, cujo produto era um dos medicamentos estudados: instituição pública; entidade privada detentora ou desenvolvedora da tecnologia do produto; entidade privada fornecedora do insumo farmacêutico ativo (no caso de produtos sintéticos); fase de execução da PDP; ano de submissão do Termo de Compromisso; porcentagem da demanda do medicamento atendida. Verificou-se, para cada um dos medicamentos, a existência de registro sanitário no site da Anvisa.
Comparou-se, então, a situação patentária dos medicamentos com a situação das PDP. Com o apoio de informações contidas na nota técnica nº 383/2016/DECIIS/SCTIE/MS e na literatura, discutiu-se, por fim, o impacto do julgamento da ADI 5529/DF em relação às PDP estudadas.
Resultados
Dos 90 pedidos de patente elencados na nota técnica, dois (PI 101446-3 e PI 102162-5, referentes ao medicamento adalimumabe) não foram encontrados.
Em 31 de dezembro de 2020, dos 88 pedidos de patente válidos, 36 haviam sido indeferidos, 17 arquivados (majoritariamente por falta de pagamento de taxas por parte do demandante), quatro aguardavam recurso contra o indeferimento pelo INPI e três haviam sido retirados pelo demandante. Dos 88 pedidos, 28 patentes haviam sido concedidas. Dessas, 15 haviam sido extintas, sendo quatro patentes mailbox e sete patentes pipeline - não passíveis de extensão pelo parágrafo único do artigo 40 da LPI. Outras duas patentes estavam “sub judice”, com solicitação judicial de nulidade, e uma havia sido anulada judicialmente. Os autores dessas três contestações judiciais foram produtores nacionais de genéricos.
Dos 88 pedidos de patente, 48 receberam parecer conferido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - mecanismo chamado anuência prévia, previsto, até 27 de agosto de 2021, na LPI (Brasil, 1996BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Brasília, DF: Presidência da República, 1996. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9279.htm >. Acesso em: 01 nov. 21.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei... ): “Art. 229-C. A concessão de patentes para produtos e processos farmacêuticos dependerá da prévia anuência da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). (Incluído pela Lei nº 10.196, de 2001)”. Importa ressaltar que, em 2017, ocorreu uma mudança em relação ao mecanismo, quando decidiu-se que a Anvisa deveria versar apenas sobre o risco sanitário do pedido de patente, e não mais sobre critérios de patenteabilidade. A partir de então, o parecer da Agência sobre esse atributo passou a ser encarado como um subsídio ao exame realizado pelo INPI, sendo destituído de poder para indeferir o pedido de patente (Brasil, 2021aBRASIL. Instituto Nacional da Propriedade Industrial. INPI divulga procedimentos após extinção da anuência prévia de patentes farmacêuticas. Brasília, DF, 31 ago. 2021a. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias/inpi-divulga-procedimentos-apos-extincao-da-anuencia-previa-de-patentes-farmaceuticas >. Acesso em: 10 nov. 21.
https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de... ). Dos 48 pedidos que receberam pareceres da Anvisa, 18 foram não anuídos (ou seja, tiveram parecer contrário à concessão da patente) antes da mudança de 2017, mas 14 pareceres foram revertidos por decisões judiciais e um pela entrada de novos documentos no processo. Após 2017, a Anvisa anuiu 22 pedidos em relação ao não risco sanitário, apresentando subsídio ao exame de patenteabilidade pelo INPI com parecer contrário à concessão da patente em dezoito casos. Em 27 de agosto de 21, a Lei nº 14.195/2021 estabeleceu o fim da anuência prévia da Anvisa e extinguiu o fluxo de patentes entre a Agência e o INPI (Brasil, 2021aBRASIL. Instituto Nacional da Propriedade Industrial. INPI divulga procedimentos após extinção da anuência prévia de patentes farmacêuticas. Brasília, DF, 31 ago. 2021a. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias/inpi-divulga-procedimentos-apos-extincao-da-anuencia-previa-de-patentes-farmaceuticas >. Acesso em: 10 nov. 21.
https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de... ). Dos 88 pedidos, 24 tiveram ações judiciais decorrentes, 15 delas contra o parecer da Anvisa.
Ao final do estudo, das 17 patentes regulares concedidas (descontadas as mailbox e pipeline), 13 (76,5%) tiveram período de monopólio estendido em função do parágrafo único do artigo 40 da LPI. O período médio de monopólio estipulado para essas 17 patentes no momento de sua concessão foi de 24 anos e 9 meses. A Tabela 2 apresenta detalhes das patentes estudadas, incluindo os anos de monopólio perdidos em decorrência do julgamento da ADI 5529/DF.
Em relação às PDP, verificou-se que 11 dos 15 medicamentos estudados eram objeto de 13 PDP vigentes e nove suspensas em setembro de 2020. Dessas 22 PDP, 13 estavam na fase II de desenvolvimento, cinco na fase III e quatro na fase IV, a mais avançada. As 22 PDP envolviam nove LFO e 15 parceiros privados (nove nacionais e seis internacionais). Os anos de submissão do Termo de Compromisso das PDP variaram, tendo o primeiro sido submetido em 2009, o último em 2018 e a maioria em 2017. Os outros quatro medicamentos estavam relacionados a cinco PDP extintas em 2014, 2015, 2017 e 2018. Dos 15 medicamentos, cinco tinham apenas um vendedor na lista da CMED: acetato de glatirâmer, adalimumabe, bevacizumabe, raltegravir potássico e sirolimo.
A Tabela 3 detalha os principais achados em relação à comparação da situação das PDP vigentes e suspensas em 2020 com a situação dos pedidos de patente, após o julgamento da ADI 5529/DF.
Discussão
Os resultados deste estudo apontam para um importante impacto decorrente da extinção do parágrafo único do artigo 40 da LPI nas patentes estudadas. Antes do julgamento da ADI 5529/DF pelo STF, finalizado em 12 de maio de 2021, a média de duração das 17 patentes regulares investigadas neste estudo foi de 24 anos e 9 meses, tendo uma delas chegado a quase 32 anos de vigência. Após a decisão judicial pela inconstitucionalidade do mecanismo, as patentes vigentes tiveram, no total, mais de 68 anos de monopólio perdidos. Como pode ser visto na Tabela 2, quatro patentes relacionadas aos medicamentos bevacizumabe, cloridrato de sevelâmer e clozapina foram imediatamente extintas após o julgamento.
A extensão automática de patentes instituída por meio do parágrafo único do artigo 40 da LPI foi introduzida na legislação brasileira como um mecanismo TRIPS-plus - ou seja, que vai além do padrão de proteção exigido pelo Acordo TRIPS (Paranhos; Mercadante; Hasenclever, 2020PARANHOS, J.; MERCADANTE, E.; HASENCLEVER, L. O custo da extensão da vigência de patentes de medicamentos para o Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 36, n. 11, p. 1-13, 2020.). O mecanismo em questão garantia automaticamente 10 anos de monopólio aos detentores de patentes a partir da data de concessão - e não 20 anos a partir do depósito do pedido, como adotado internacionalmente. Assim, se um pedido levasse 13 anos para ser examinado e a patente fosse concedida, ela ganharia mais 10 anos de vigência, somando 23 anos de monopólio para seu detentor. Jannuzzi e Vasconcellos (2017JANNUZZI, A. H. L.; VASCONCELLOS, A. G. Quanto custa o atraso na concessão de patentes de medicamentos para a saúde no Brasil? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 33, n. 8, p. 1-6, 2017.) destacaram que essa extensão deveria ser excepcional, mas tornou-se corriqueira, tendo ocorrido em praticamente 100% das patentes concedidas para medicamentos depois de 1992 - majoritariamente depositadas por empresas estrangeiras. Neste estudo, mesmo após a solicitação de exame prioritário pelo MS, 76,5% das patentes regulares concedidas tiveram o tempo de monopólio estendido.
A princípio, a extensão da validade de uma patente pode parecer uma compensação justa, devido ao longo tempo de exame dos pedidos, em média, 13 anos para o setor farmacêutico. Contudo, a LPI garante que, uma vez concedida a patente, seu detentor pode ser indenizado se a tecnologia tiver sido explorada por terceiros durante o período de exame do pedido (artigo 44). Apesar de não haver monopólio legal até a decisão final sobre o pedido, há monopólio de fato , uma vez que a não conclusão do exame de um pedido de patente gera incerteza jurídica para que um terceiro explore a tecnologia que pode vir a ser - ou não - patenteada. Assim, não há prejuízo para o depositante em razão do longo tempo de análise devido ao acúmulo de pedidos (backlog) (Brasil, 2021bBRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI nº 5529/DF. Relator: Ministro Dias Toffoli. Brasília, DF, 2021b. Disponível em: <Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1273342619/acao-direta-de-inconstitucionalidade-adi-5529-df >. Acesso em: 01 nov. 2021.
https://stf.jusbrasil.com.br/jurispruden... ; Coelho et al., 2021COELHO, T. L. et al. A propriedade intelectual na judicialização da assistência farmacêutica: uma demanda estrutural em defesa do Sistema Único de Saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 1-14, 2021.; Jannuzzi; Vasconcellos, 2017JANNUZZI, A. H. L.; VASCONCELLOS, A. G. Quanto custa o atraso na concessão de patentes de medicamentos para a saúde no Brasil? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 33, n. 8, p. 1-6, 2017.).
Uma prática comum das corporações farmacêuticas, e que acaba contribuindo para o backlog, é o evergreening - em uma referência a patentes “sempre verdes”. Trata-se de uma estratégia de extensão do monopólio por meio do depósito de vários pedidos de patente relacionados ao mesmo medicamento. Um primeiro pedido de patente, que protege o princípio ativo, é comumente seguido por vários outros pedidos “secundários”, que podem incluir “reivindicações como formulações, combinações, dosagens, polimorfos, pró-fármacos, método de tratamento e uso (incluindo segundo uso médico)” (Chaves et al., 2018CHAVES, G. C. et al. Medicamentos em situação de exclusividade financiados pelo Ministério da Saúde: análise da situação patentária e das compras públicas. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, 2018.).
Em um estudo que analisou 447 pedidos de patente relacionados a 20 antirretrovirais, 25% dos pedidos foram abandonados, e esse dado foi utilizado como um indicativo “da baixa importância da patente e de sua utilização para gerar incerteza e bloquear a concorrência” (Chaves et al., 2018CHAVES, G. C. et al. Medicamentos em situação de exclusividade financiados pelo Ministério da Saúde: análise da situação patentária e das compras públicas. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, 2018.). Neste estudo, mais de 22% dos pedidos levantados na Nota Técnica nº 383/2016/DECIIS/SCTIE/MS foram arquivados ou retirados por falta de interesse do depositante. Ainda assim, a lista de pedidos de patente estudada foi insuficiente para conhecer o cenário patentário dos medicamentos. Em nota técnica do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), consta, por exemplo, que o INPI identificou aproximadamente 170 pedidos de patente referentes apenas ao princípio ativo ritonavir (Brasil, 2019BRASIL. Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Nota Técnica nº 1/2019/CGAA1/SGA1/SG/CADE. Brasília, DF: CADE, 2019.). Soma-se a isso a dificuldade de se relacionar um pedido de patente a uma tecnologia específica. Em matéria sobre o alto preço do trastuzumabe, por exemplo, Junqueira (2019JUNQUEIRA, D. Investigação sobre setor farmacêutico revela rombo de R$ 170 mi, e pacientes com câncer ficam sem tratamento. Repórter Brasil, São Paulo, 15 ago. 2019. Disponível em: Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2019/08/investigacao-sobre-setor-farmaceutico-revela-rombo-de-r-170-mi-e-pacientes-com-cancer-ficam-sem-tratamento/ . Acesso em: 28 jun. 2023.
https://reporterbrasil.org.br/2019/08/in... ) aponta que nem o INPI soube dizer qual patente principal protegia o medicamento.
Esse cenário complexo gera insegurança jurídica quanto à possibilidade de produção de genéricos dos medicamentos. Em diversos casos, essa insegurança é agravada por questionamentos judiciais da extinção de patentes ou do indeferimento de pedidos. Na Tabela 2, a extinção da patente mailbox do acetato de glatirâmer, depositada em 1995, ainda estava sendo questionada na justiça. Nesse sentido, importa comentar outra importante decisão judicial recente, influenciada pelo julgamento da ADI 5529/DF: o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) definiu que as patentes mailbox não são passíveis de extensão (STJ…, 2022STJ: Prazo de patente mailbox é de 20 anos a partir do pedido ao INPI. Migalhas Quentes, Ribeirão Preto, 30 abr. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/364993/stj-prazo-de- patente-mailbox-e-de-20-anos-a-partir-do-pedido-ao-inpi . Acesso em: 24 jun. 23.
https://www.migalhas.com.br/quentes/3649... ). Se o fossem, as patentes PI 9507758-8, PI 9707379-2 e PI 9715219-6 da Tabela 2 ainda estariam vigentes. Elas também seriam, consequentemente, impactadas e extintas pela ADI 5529/DF.
Patentes mailbox são aquelas que foram depositadas no período de transição entre a entrada em vigência do acordo TRIPS e a entrada em vigência das legislações nacionais a ele adaptadas. No Brasil, por exemplo, patentes biotecnológicas não eram protegidas. Assim, o mailbox consistiu em um mecanismo que possibilitou o depósito de pedidos de patente de biotecnologia entre 1º de janeiro de 1995 e 14 de maio de 1997, para que fossem examinados após o período de transição entre as legislações (Paranhos; Mercadante; Hasenclever, 2020PARANHOS, J.; MERCADANTE, E.; HASENCLEVER, L. O custo da extensão da vigência de patentes de medicamentos para o Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 36, n. 11, p. 1-13, 2020.).
Já as patentes pipeline são, assim como a extensão automática de patentes, um mecanismo TRIPS-plus introduzido na legislação brasileira. Sem passar por exame técnico, patentes concedidas fora do Brasil antes da LPI foram automaticamente concedidas no país. Coelho et al. (2021COELHO, T. L. et al. A propriedade intelectual na judicialização da assistência farmacêutica: uma demanda estrutural em defesa do Sistema Único de Saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 1, p. 1-14, 2021., p. 4) apontam que o mecanismo “garantiu proteção a produtos que já estavam em domínio público, contrariando o princípio da novidade - preceito fundamental no âmbito da PI - e resultando em 1.201 pedidos de patentes, a maior parte para proteção de fármacos”. Assim como a extensão de patentes, o mecanismo pipeline tem sua constitucionalidade questionada desde 2009 por meio da ADI 4234/DF, que ainda não foi julgada. Neste estudo, foram identificadas sete patentes pipeline em meio às 28 concedidas.
A indústria farmacêutica multinacional foi a principal interessada na adaptação precoce da LPI ao TRIPS e na introdução desses mecanismos TRIPS-plus, que dificultaram não só a manutenção e a ampliação da política de acesso universal a medicamentos (Chaves; Vieira; Reis, 2008CHAVES, G. C.; VIEIRA, M. F.; REIS, R. Acesso a medicamentos e propriedade intelectual no Brasil: reflexões e estratégias da sociedade civil. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, n. 8, p. 170-198, 2008.), mas também interromperam “de forma prematura o processo de produção local de medicamentos” (Paranhos; Mercadante; Hasenclever, 2020PARANHOS, J.; MERCADANTE, E.; HASENCLEVER, L. O custo da extensão da vigência de patentes de medicamentos para o Sistema Único de Saúde. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 36, n. 11, p. 1-13, 2020., p. 2). Nesse sentido, importa registrar que a ADI 5529/DF sofreu grande resistência por parte das corporações farmacêuticas multinacionais, que têm tentado, judicialmente e caso a caso, reverter a extinção da extensão de suas patentes (Formenti, 2022FORMENTI, L. Mesmo com decisão do STF, liminares garantem extensão de patentes. Estúdio Jota, São Paulo, 10 maio 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/saude/mesmo-com-decisao-do-stf-liminares-garantem-extensao-de-patentes-10052022 >. Acesso em: 18 jun. 22.
https://www.jota.info/tributos-e-empresa... ).
Mas as disputas de interesse referentes à negociação do TRIPS resultaram na introdução de flexibilidades no acordo para a proteção, especialmente da saúde e do interesse públicos (Chaves; Vieira; Reis, 2008CHAVES, G. C.; VIEIRA, M. F.; REIS, R. Acesso a medicamentos e propriedade intelectual no Brasil: reflexões e estratégias da sociedade civil. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, n. 8, p. 170-198, 2008.). Apesar de nem todas elas terem sido incorporadas à LPI, percebemos, neste estudo, a importância do uso de algumas delas no Brasil.
Uma flexibilidade bastante usada nos casos estudados é a oposição a patentes, que consiste na possibilidade de terceiros opinarem sobre o exame do pedido antes (subsídio ao exame) ou depois da concessão da patente (nulidade administrativa) (Correa, 2021CORREA, C. M. Interpreting the Flexibilities Under the TRIPS Agreement. In: CORREA, C. M; HILTY, R. M. (Ed.). Access to Medicines and Vaccines: Implementing Flexibilities Under Intellectual Property Law. Berlim: Springer, 2021. p. 1-30.). Na Tabela 3, percebemos que várias empresas de genéricos submeteram subsídios ao exame do INPI, assim como a Anvisa fez em diversas ocasiões.
Em relação à participação desta agência no exame de patentes no Brasil, por meio do mecanismo chamado “anuência prévia”, é importante registrar que também era garantido pelas flexibilidades do TRIPS. Chaves, Vieira e Reis (2008CHAVES, G. C.; VIEIRA, M. F.; REIS, R. Acesso a medicamentos e propriedade intelectual no Brasil: reflexões e estratégias da sociedade civil. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, n. 8, p. 170-198, 2008., p. 178) apontam que a incorporação na LPI da flexibilidade de atuação do setor saúde na concessão de patentes resultou do entendimento do legislador brasileiro de que “matéria de tal importância mereceria o exame mais cuidadoso e tecnicamente competente possível que o Estado brasileiro pudesse dispor”. Os resultados deste estudo também apontam para a importância da participação da Anvisa no exame de patentes: dos 88 pedidos, 48 receberam comentários da Anvisa.
Os resultados indicam, ainda, o descontentamento dos depositantes das patentes com a barreira adicional que a Anvisa representava aos monopólios patentários: dos 18 pedidos não anuídos antes de 2017, 14 decisões foram revertidas por ordem judicial. A frequente reversão judicial dos pedidos não anuídos pela Anvisa pode ter contribuído para a extinção do mecanismo por meio da Lei nº 14.195/2021, que levou-a a devolver 1.284 pedidos de patente ao INPI (Brasil, 2021). Trata-se, então, da perda de uma importante flexibilidade do TRIPS para a proteção da saúde pública brasileira.
A exceção bolar é outra flexibilidade bastante importante para este estudo de caso. Ela permite que os conhecimentos protegidos por uma patente sejam explorados por terceiros, desde que não haja comercialização. Isso possibilita, por exemplo, que genéricos sejam registrados antes de uma patente expirar, permitindo que, no dia posterior à extinção da patente, versões genéricas já possam ser vendidas (Correa, 2021CORREA, C. M. Interpreting the Flexibilities Under the TRIPS Agreement. In: CORREA, C. M; HILTY, R. M. (Ed.). Access to Medicines and Vaccines: Implementing Flexibilities Under Intellectual Property Law. Berlim: Springer, 2021. p. 1-30.). Devido à exceção bolar, as PDP em fase I e II, anteriores à comercialização, não podem caracterizar infrações patentárias (Brasil, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Ofício nº 1313/2017/SCTIE/MS. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2017.). Apesar disso, no âmbito das PDP estudadas, a Abbvie notificou extrajudicialmente os envolvidos nas PDP do adalimumabe quando elas foram anunciadas.
Campos (2019CAMPOS, P. A. M. Infração patentária no âmbito das parcerias para o desenvolvimento produtivo de medicamentos. 2019. Trabalho de Conclusão de Curso [Graduação em Direito] - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2019., p. 90) indica que “a infração ocorre apenas no momento em que se inicia a produção e o fornecimento do medicamento” e que, “nas fases III e IV, as PDP têm a possibilidade de cometer infrações patentárias”. Para resolver essa questão, uma licença voluntária pode ser negociada. Esse tipo de acordo consiste na autorização do titular para que sua patente seja explorada por um terceiro. Trata-se do caso da PDP do sulfato de atazanavir estudada. O termo de compromisso da parceria foi firmado em 2011, mas a patente mailbox que aparentemente protegia o produto foi extinta apenas em 2017. A licença voluntária permitiu, assim, que uma versão genérica fosse produzida e comercializada pela PDP.
Contudo, Chaves et al. (2018CHAVES, G. C. et al. Medicamentos em situação de exclusividade financiados pelo Ministério da Saúde: análise da situação patentária e das compras públicas. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública, 2018.) advertem que licenças voluntárias podem não ser a melhor estratégia para garantir reduções significativas dos preços dos genéricos. Ademais, Oliveira Júnior et al. (2016OLIVEIRA JÚNIOR, H. A. et al. Produção local de medicamentos e captura corporativa: análise do caso brasileiro. Rio de Janeiro: Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, 2016., p. 46) apontaram que, devido ao compromisso de compra firmado em uma PDP, licenças voluntárias podem ser usadas pelos titulares das patentes como estratégia para estender o monopólio por meio da PDP:
Em 2017, ano em que seria concluída a PDP, é quando vence a patente vigente do atazanavir […]. Com a prorrogação da PDP, por causa dos atrasos no cronograma inicial, a situação de monopólio, que poderia ter fim com a expiração da patente, será mantida enquanto ainda estiver em andamento a parceria. (Oliveira Júnior et al., 2016OLIVEIRA JÚNIOR, H. A. et al. Produção local de medicamentos e captura corporativa: análise do caso brasileiro. Rio de Janeiro: Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, 2016., p. 46)
Na Tabela 3 percebemos que há outras duas PDP firmadas com os produtores dos medicamentos referência para os princípios ativos infliximabe e pramipexol, levantando suspeita sobre a extensão de seus monopólios.
Oliveira Júnior et al. (2018) advertem, ainda, que patentes secundárias podem ser concedidas durante a vigência das PDP e que, caso elas não estejam incluídas em uma licença voluntária, a compra dos genéricos via PDP pode ser bloqueada.
A Tabela 3 aponta que grande parte das PDP são firmadas sem a presença do titular das patentes primárias de um medicamento. Uma alternativa para superar barreiras patentárias sem depender da autorização do titular da patente é o licenciamento compulsório. Essa flexibilidade do TRIPS consiste na autorização para que terceiros possam “fabricar, usar, vender ou importar um produto sob proteção patentária” (Chaves; Vieira; Reis, 2008CHAVES, G. C.; VIEIRA, M. F.; REIS, R. Acesso a medicamentos e propriedade intelectual no Brasil: reflexões e estratégias da sociedade civil. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, n. 8, p. 170-198, 2008., p. 177). O termo “quebra de patente” tem sido popularmente utilizado para se referir a esse mecanismo. Ativistas do movimento de acesso a medicamento têm, contudo, tentado substituir o termo popular por “quebra de monopólio”, uma vez que a patente continua reconhecida e seu titular continua recebendo royalties (Bermudez, 2022BERMUDEZ, J. Solidariedade ou apartheid? Lições aprendidas na pandemia. São Paulo: Escola Nacional de Formação e Qualificação Profissional dos Farmacêuticos, 2022.).
Em que pese sua incorporação ao TRIPS e à LPI, o licenciamento compulsório foi utilizado apenas uma vez no Brasil, em 2007. Após diversas tentativas de reduzir o preço do efavirenz - medicamento protegido por uma patente pipeline -, o governo brasileiro emitiu uma licença compulsória, passando a importar genéricos da Índia a um terço do preço oferecido pela Merck, até que Farmanguinhos pudesse produzir o medicamento no Brasil (Chaves; Vieira; Reis, 2008CHAVES, G. C.; VIEIRA, M. F.; REIS, R. Acesso a medicamentos e propriedade intelectual no Brasil: reflexões e estratégias da sociedade civil. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, n. 8, p. 170-198, 2008.).
É interessante registrar que o licenciamento compulsório do efavirenz é considerado por Gadelha e Temporão (2018GADELHA, C. A. G.; TEMPORÃO, J. G. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1891-1902, 2018., p. 1897) como uma primeira experiência do modelo de PDP: “de fato, essa foi, de modo não intencional, uma experiência piloto da política desenvolvida, tendo à frente o estabelecimento de uma articulação da Fiocruz com produtores nacionais de fármacos no País, capazes de reproduzir e transferir a tecnologia do produto”. Apesar disso, o mecanismo não voltou a ser usado nem para enfrentar barreiras patentárias à compra via PDP de genéricos já disponíveis, como no caso do dolutegravir.
No caso das PDP investigadas neste estudo, a análise da Tabela 3, somada à verificação da existência de comercialização dos medicamentos por mais de um produtor na lista da CMED, parece indicar que para a maioria das PDP vigentes e suspensas em 2020 não havia barreira patentária significativa para a produção ou compra dos genéricos. Mas diversas patentes secundárias que poderiam dificultar processos de produção dos medicamentos tiveram o tempo de vigência reduzido pela ADI 5529/DF.
Já o monopólio de venda verificado na lista da CMED para os medicamentos acetato de glatirâmer, adalimumabe e bevacizumabe, somado ao cenário de insegurança jurídica em relação à PI apresentado na Tabela 3, levanta suspeita sobre a existência de barreiras patentárias para o avanço das parcerias em fase II. No caso do pramipexol, a insegurança jurídica poderia ocorrer devido ao questionamento judicial da extinção de uma patente mailbox de produto. Nesse sentido, a decisão do STJ de 2022 sobre a vigência de 20 anos das patentes mailbox, influenciada pela ADI 5529/DF, resolveria, em tese, o problema. Além disso, o processo de análise de um pedido de patente secundário não havia sido finalizado; o subsídio ao exame apresentado pela Cristália pode indicar tratar-se de reivindicações com potencial de dificultar a produção de genéricos. Não foram encontrados indícios de compras públicas de genéricos do medicamento após 2021.
Da mesma forma, o caso do adalimumabe também parece ter sido indiretamente impactado pela ADI 5529/DF. Duas patentes mailbox de produto tinham, originalmente, vigência prevista até 2019 e 2020. A decisão do STJ de 2022 também resolveria a insegurança jurídica. De fato, em agosto de 2022, Bio-Manguinhos passou a vender um biossimilar do produto para o SUS (Lisboa, 2022LISBOA, V. Bio-Manguinhos fornece remédio usado por 60 mil pacientes do SUS. Agência Brasil, Brasília, DF, 9 ago. 2022. Disponível em: Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-08/bio-manguinhos-vai-fornecer-remedio-usado-por-60-mil-pacientes-do-sus . Acesso em: 28 jun. 23.
https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/n... ).
Já a proteção do medicamento bevacizumabe pode ter sido diretamente impactada pelo julgamento da ADI 5529/DF, já que duas patentes, aparentemente de produto, foram imediatamente extintas. Contudo, todas as PDP referentes ao medicamento estavam suspensas em 2020 e não foram encontrados indícios de reativação dessas ou de compras públicas de genéricos do medicamento após 2021.
Um estudo mais aprofundado de cada um desses três casos pode contribuir para uma melhor elaboração sobre as possíveis barreiras patentárias ao avanço das parcerias. Além disso, a verificação da concessão de patentes e do monopólio de comercialização dos medicamentos raltegravir e sirolimo, somada à extinção das parcerias firmadas para sua produção, pode apontar dois outros casos interessantes para serem investigados em relação a possíveis impactos da PI na política de PDP.
Considerações finais
A extinção do parágrafo único do artigo 40 da LPI resultou em uma importante redução do tempo de vigência das patentes estudadas. A decisão de 2022 do STJ sobre a vigência das patentes mailbox, influenciada pelo julgamento da ADI 5529/DF, também contribuiu para a diminuição da insegurança jurídica em matéria de PI.
Contudo, a prática de evergreening, bem como a dificuldade de se relacionar os pedidos de patente a tecnologias específicas, impede uma clara conclusão a respeito dos reais impactos da ADI 5529/DF nas PDP investigadas. A construção e a divulgação, pelo MS, do cenário patentário dos medicamentos objetos de PDP facilitaria esse tipo de análise e contribuiria para uma maior transparência da política (Oliveira Júnior et al., 2016OLIVEIRA JÚNIOR, H. A. et al. Produção local de medicamentos e captura corporativa: análise do caso brasileiro. Rio de Janeiro: Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual, 2016.).
A extinção ou a redução da vigência de várias patentes secundárias relacionadas a medicamentos objetos de PDP potencialmente abre alternativas para melhores processos de produção e formulações. Já a diminuição da insegurança jurídica em relação à proteção patentária do adalimumabe pode ter contribuído para o avanço da PDP com a Fiocruz, que passou a fornecer o medicamento ao SUS em agosto de 2022. Além desse, os casos dos medicamentos acetato de glatirâmer, bevacizumabe, raltegravir potássico e sirolimo nos pareceram interessantes para serem investigados de modo mais aprofundado.
Neste momento de relançamento do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde e de retomada da política das PDP, é essencial que haja um esforço para sua articulação com os mecanismos para a proteção da saúde pública diante da PI. Destacamos, nesse sentido, a importância de reversão da extinção da anuência prévia da Anvisa e do uso do licenciamento compulsório.
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
11 Mar 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
30 Jun 2023 - Aceito
19 Set 2023