Resumo
Os estudos sociais sobre drogas e as pesquisas sobre a medicalização da vida permitem a concepção do uso de drogas como um dispositivo teórico-metodológico, a partir do qual se analisam transformações sociais, políticas e culturais. A pesquisa na qual este trabalho se enquadra visa problematizar o uso de drogas psicoativas por meio de uma análise interpretativa de significados e experiências de fontes primárias. Para isso, foi adotada uma metodologia qualitativa, que incluiu a realização de nove entrevistas com médicos que prescrevem psicofármacos e trabalham no campo da saúde na cidade de Mar del Plata. As conclusões incluem que, nas decisões tomadas nos tratamentos com drogas psicotrópicas, prevalece um critério centrado na viabilidade e na acessibilidade; os significados do uso de psicofármacos estão relacionados à regulação das atividades da vida diária; e há sociabilidades específicas em torno da medicação a partir da transmissão de recomendações e conhecimentos.
Palavras-chave:
Saúde Mental; Psicotrópicos; Medicalização
Abstract
Social studies on drugs and research on the medicalization of life allow us to conceive the use of drugs as a theoretical-methodological device, from which to analyze social, political, and cultural transformations. The research that frames this work aims to problematize the use of psychotropic drugs with an interpretive analysis of meanings and experiences from primary sources. For this end, a qualitative methodology was adopted, which included conducting nine interviews with physicians who prescribe psychoactive drugs and who work in the field of health in the city of Mar del Plata. The conclusions include that, in the decisions made in treatments with psychoactive drugs, a criterion focused on viability and accessibility prevails; the meanings around the use of psychoactive drugs is related to the regulation of daily life activities; and there are specific sociability around medication based on the transmission of recommendations and knowledge.
Keywords:
Mental Health; Psychotropics; Medicalization
Introdução
A promulgação da Lei Nacional de Saúde Mental n. 26.657 na Argentina em 2010 trouxe um conjunto de transformações políticas, jurídicas e socioculturais para o campo da saúde mental, resultando na demanda por uma mudança de paradigma no seu atendimento: a passagem de um hospital modelo assistencial centrado em um modelo assistencial comunitário e a busca de propostas e dispositivos que substituam o asilo-manicomial. Simultaneamente, com tensões, havia uma hierarquização dos tratamentos ambulatoriais com base na prescrição de psicofármacos. Nesse quadro, consolidam-se os estudos sociais em saúde mental que proliferam diferentes linhas de pesquisa, por meio de diferentes aportes conceituais.
A Argentina é um dos países com maior consumo global de drogas psicotrópicas (Dirección General de Políticas Sociales en Adicciones, 2010DIRECCIÓN GENERAL DE POLÍTICAS SOCIALES EN ADICCIONES. Consumo de psicofármacos y género en la Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Buenos Aires: Ministerio de Desarrollo Social, 2010.). Um estudo da Sedronar (2017SEDRONAR - SECERETARÍA DE PROGRAMACIÓN PARA LA PREVENCIÓN DE LA DROGADICCIÓN Y LUCHA CONTRA EL NARCOTRÁFICO. Estudio nacional en población de 12 a 65 años sobre consumo de sustancias psicoactivas. Argentina, 2017. Buenos Aires, 2017.) revelou que 15% da população argentina entre 12 e 65 anos já usou tranquilizantes ou ansiolíticos alguma vez na vida, e que o consumo aumenta gradualmente com a idade, sendo o grupo etário mais elevado o de maior consumo. Em quase metade dos casos de consumo com receita, a prescrição foi feita por um clínico geral. Por outro lado, 1,3% da população já utilizou estimulantes ou antidepressivos alguma vez na vida, sendo a prescrição médica desse grupo de psicofármacos majoritariamente realizada por psiquiatras (Sedronar, 2017SEDRONAR - SECERETARÍA DE PROGRAMACIÓN PARA LA PREVENCIÓN DE LA DROGADICCIÓN Y LUCHA CONTRA EL NARCOTRÁFICO. Estudio nacional en población de 12 a 65 años sobre consumo de sustancias psicoactivas. Argentina, 2017. Buenos Aires, 2017.). Um relatório sobre o mercado de medicamentos argentino, realizado durante o período de emergência sanitária causado pela pandemia da covid-19, mostra que em 2020 a venda dos medicamentos que atuam no sistema nervoso central teve um crescimento médio de 6,5% em relação a 2019. Entre os quinze medicamentos mais vendidos no país, estão dois psicotrópicos do tipo benzodiazepínicos, vendidos sob prescrição médica (Cofa, 2021COFA - CONFEDERACIÓN FARMACÉUTICA ARGENTINA. Evolución de las dispensas de psicofármacos Enero - Julio 2021. Observatorio de Salud, Medicamentos y Sociedad (SMS) - COFA, Buenos Aires, 3 set. 2021. Disponível em: <Disponível em: http://observatorio.cofa.org.ar/index.php/2021/09/03/evolucion-de-las-dispensas-de-psicofarmacos-enero-julio-2021-comparativo-con-igual-periodo-de-2020/ >. Acesso em: 20 dez. 2023.
http://observatorio.cofa.org.ar/index.ph... ).
Este trabalho é escrito no âmbito de uma pesquisa mais ampla, que visa problematizar o uso de drogas psicotrópicas por meio de uma análise interpretativa de significados e experiências de fontes primárias, baseando-se em diferentes objetivos: reconstruir as temporalidades, trajetórias e operações que sustentam o tratamento da saúde mental e seus efeitos na vida diária; bem como descrever as formas de sociabilidade, atores sociais e dispositivos envolvidos no uso de drogas psicotrópicas. Para isso, foi adotada uma metodologia qualitativa que incluiu a realização de nove entrevistas com médicos que prescrevem psicofármacos e trabalham no campo da saúde na cidade argentina de Mar del Plata. Ao longo deste artigo, são apresentados alguns antecedentes que orientaram a formulação do problema de pesquisa, e é desenvolvida uma descrição dos pontos mais recorrentes e ressonantes da análise, levando em consideração quais ideias cercam as drogas psicoativas que são prescritas, os significados em torno de quem as prescreve e dos usos que os usuários as dão.
Antecedentes e coordenadas teóricas
Com base nos estudos sociais sobre medicamentos prescritos (Sismondo, 2004SISMONDO, S. Pharmaceutical maneuvers. Social Studies of Science, London, v. 34, n. 2, p. 149-159, 2004. DOI: 10.1177/0306312704042575
https://doi.org/10.1177/0306312704042575... ) e nas pesquisas sobre medicalização e biomedicalização (Clarke et al., 2010CLARKE, A. et al. (Ed.). Biomedicalization: technoscience, health and illness in the U.S. Durham: Duke University Press, 2010.), entende-se as drogas como um texto cultural e local de políticas identitárias, porque seu uso modifica química e biologicamente o corpo, e também as expectativas e a categorização de experiências e relações sociais. As drogas vêm com significados anexos sobre quem as toma e quem as prescreve. Desse ponto de vista, os produtos farmacêuticos podem ser uma mediação para o estudo das redes de relações sociais, porque em torno do medicamento encontram-se diversos “nós”: médicos, pacientes, fabricantes e comerciantes, que concedem diferentes usos, significados e interesses (Greene; Sismondo, 2015GREENE, J. A.; SISMONDO, S. A prehistory of pharmaceutical studies. In: GREENE, J. A.; SISMONDO, S. The pharmaceutical studies reader. New Jersey: Wiley-Blackwell, 2015.).
Além de serem fonte de debate em seu desenvolvimento, teste e comercialização, as drogas também suscitam disputas em seu próprio significado e consumo (Williams et al., 2008WILLIAMS, S. J.; GABE, J.; DAVIS, P. The sociology of pharmaceuticals: progress and prospects. Sociology of Health and Illness, Boston, v. 30, n. 6, p. 813-24, 2008. DOI: 10.1111/j.1467-9566.2008.01123.x
https://doi.org/10.1111/j.1467-9566.2008... ). Percebeu-se que as drogas estão ligadas à identidade e, portanto, à forma como o usuário vê a si mesmo e o contexto em que está inserido. As ideias e atitudes em relação à medicação mudam de acordo com os motivos do consumo, as características dos usuários, seu impacto nas relações sociais e os pontos de vista sobre a etiologia de sua condição (Gabe et al., 2015GABE, J. et al. Pharmaceuticals and society: power, promises and prospects. Social science & medicine, Oxford, v. 131, p. 193-198, 2015. DOI: 10.1016/j.socscimed.2015.02.031
https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2015... ). Médicos e pacientes veem os medicamentos como instrumentos que eliminariam o sofrimento caso encontrassem a combinação certa (Martin, 2006MARTIN, E. The pharmaceutical person. BioSocieties, Cambridge, v. 1, n. 3, p. 273-287, 2006. DOI: 10.1017/S1745855206003012.
https://doi.org/10.1017/S174585520600301... ).
A antropologia tem desenvolvido contribuições significativas em relação aos estudos sociais das drogas. A etnografia baseada em medicamentos parte de seus significados, sentidos e usos (Van der Geest, 2018VAN DER GEEST, S. Pharmaceuticals. In: CALLAN, H. (Ed.). The international encyclopedia of anthropology. New Jersey: Wiley-Blackwell , 2018.), e, atualmente, está presente em diferentes investigações, pois os medicamentos fazem parte das relações contemporâneas e atravessam múltiplas dimensões vinculadas às transformações políticas e culturais com diferentes enfoques de análise, como as sociabilidades, o corpo e as instituições (Castro; Engel; Azize, 2023CASTRO, R.; ENGEL, C.; AZIZE, R. L. Apresentação do Dossiê: “Antropologias a partir dos medicamentos: coproduções, políticas e agenciamentos contemporâneos.” Ilha , Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 7-20, 2023. DOI: 10.5007/2175-8034.2023.e92046
https://doi.org/10.5007/2175-8034.2023.e... ). Uma descrição etnográfica da medicina farmacêutica americana explica que as drogas podem adquirir personalidades próprias por estarem associadas a traços de personalidade específicos, que forjam um “eu farmacológico” (Jenkins, 2011JENKINS, J. H. Psychopharmaceutical self and imaginary in the social field of psychiatric treatment. In: JENKINS, J. H. Pharmaceutical self: the global shaping of experience in an age of psychopharmacology. Santa Fe: School for Advanced Research Press, 2011. p. 17-40.). A partir dessa abordagem disciplinar, têm-se realizado estudos específicos em saúde mental orientados para a análise, por exemplo, da polifarmácia dos sintomas e suas consequências (Ecks, 2021ECKS, S. Depression, deprivation, and dysbiosis: polyiatrogenesis in multiple chronic illnesses. Culture, Medicine and Psychiatry, Dordrecht, v. 45, n. 4, p. 507-524, 2021. DOI: 10.1007/s11013-020-09699-x
https://doi.org/10.1007/s11013-020-09699... ). Essa pesquisa, focada no Reino Unido, descobriu que problemas de saúde mental coexistem regularmente com multimorbidades somáticas e sociais. Muitas vezes, devido à multimorbidade, é reproduzido o que o autor chama de poli-iatrogênese, ou seja, danos médicos causados por múltiplos tratamentos administrados simultaneamente. Esse conceito associado à iatrogenia é explicado com base na polifarmácia, nos efeitos colaterais adversos dos diversos medicamentos fornecidos e nos danos causados por tratamentos inadequados.
Na antropologia médica latino-americana, encontram-se algumas pesquisas atuais que refletem sobre diferentes drogas, como uma etnografia sobre as práticas de uso de antidepressivos e ansiolíticos (Macedo; Machado, 2023MACEDO, F. S.; MACHADO, P. S. Posografia: experimentando uma pesquisa a conta-gotas. Ilha , Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 218-236, 2023. DOI: 10.5007/2175-8034.2023.e85642
https://doi.org/10.5007/2175-8034.2023.e... ) que enfoca os processos entre sua prescrição e sua ingestão do ponto de vista das pessoas que os utilizam. Por sua vez, partindo da premissa de que o uso de substâncias nem sempre está associado ao alívio do sofrimento, mas à melhora de certas capacidades ou habilidades, um artigo de Bruno Pereira de Castro (2023CASTRO, B. P. de. A fluidez do aprimoramento cognitivo farmacológico e a co-produção de modos de subjetividade na contemporaneidade: uma pesquisa antropológica a partir dos nootrópicos. Ilha, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 159-177, 2023. DOI: 10.5007/2175-8034.2023.e85685
https://doi.org/10.5007/2175-8034.2023.e... ) enfoca o uso de substâncias para melhora cognitiva e como ele é divulgado na ambientes digitais. O autor toma o termo nootrópico, que é usado para nomear um amplo conjunto de drogas associadas à otimização das habilidades cognitivas.
As expectativas colocadas sobre as drogas psicoativas podem ser estrategicamente difusas, para adquirir especificidade de acordo com os contextos locais. O uso de determinados psicofármacos, como ansiolíticos e antidepressivos, está vinculado ao uso de diagnósticos e também às condições socioeconômicas de vida da população de determinado local. Como exemplo desse tipo de articulação, há um estudo sobre a comercialização de antidepressivos no contexto da crise de 2001 na Argentina (Lakoff et al., 2003LAKOFF, A. Las ansiedades de la globalización: venta de antidepresivos y crisis económica en la Argentina. Cuadernos de Antropología Social, Buenos Aires, n. 18, p. 35-66, 2003. DOI: 10.34096/cas.i18.4582
https://doi.org/10.34096/cas.i18.4582... ). Nele, explica-se que o uso de psicotrópicos não se baseou no conhecimento médico sobre ansiedade ou depressão, mas em argumentos sustentados por uma etiologia baseada na vulnerabilidade social. Nesse caso, os psicofármacos foram utilizados para restaurar o funcionamento vital em situações socioeconômicas desfavoráveis e normalizar as vicissitudes da vida social. Consequentemente, espera-se que as drogas tenham efeitos não apenas nos desequilíbrios químicos, mas nas relações familiares e na situação socioeconômica. Isso explica o aumento das prescrições de antidepressivos proporcionalmente maior do que o número de diagnósticos de depressão. Uma investigação mais recente, realizada no Uruguai, abordou a evolução do uso de benzodiazepínicos e sua relação com o diagnóstico de ansiedade (Bielli et al., 2019BIELLI, A. et al. Ansiedade e vida cotidiana como alvos farmacológicos no Uruguai 2013-2015. Psicologia e Sociedade, Recife, v. 31, e176766, 2019. DOI: 10.1590/1807-0310/2019v31176766
https://doi.org/10.1590/1807-0310/2019v3... ), observando que as noções e justificativas dos profissionais de saúde que prescrevem ansiolíticos são parcialmente baseadas em conhecimento, mas também têm base nas condições de vida. Como pode ser visto, a medicalização da vida (Conrad, 1982CONRAD, P. Sobre la medicalización: de la anormalidad y el control social. In: INGLEBY, D. (Ed.). Psiquiatria critica: la politica de la salud mental. Barcelona: Editorial Crítica, 1982. p. 130-154.) adquire características próprias na saúde mental. Nesse sentido, reconstruir os contextos, usos e significados em torno das drogas psicoativas pode ser um exercício auspicioso.
Metodologia
Este estudo segue as diretrizes da pesquisa qualitativa (Gialdino, 2006GIALDINO, I. V. de (Coord.). Estrategias de investigación cualitativa. Barcelona: Gedisa, 2006.), adotando um desenho flexível (Valles, 1999VALLES, M. S. Técnicas cualitativas de investigacion social. Reflexión metodológica y práctica profesional. Madrid: Síntesis, 1999.) e realizando uma estratégia de campo combinada em relação à obtenção de dados empíricos. A metodologia inclui a realização de entrevistas semiestruturadas (Marradi et al., 2007MARRADI, A.; ARCHENTI, N.; PIOVANI, J. Metodologia de las ciencias sociales. Buenos Aires: Emecé, 2007.). As unidades de análise são compostas por prescritores (profissionais de saúde que trabalham na cidade de Mar del Plata e que estão autorizados a prescrever medicamentos psicotrópicos), farmacêuticos que trabalham na cidade de Mar del Plata e usuários de medicamentos psiquiátricos prescritos.
Foram entrevistados nove médicos(as): quatro especialistas em medicina geral e familiar, quatro especialistas em psiquiatria e uma participante com as duas especialidades. Em todos os casos, os profissionais tinham mais de cinco anos de exercício profissional, sendo que em três casos chegaram a 30 anos de atividade laboral. Cinco dos participantes atuam na esfera pública e privada, e quatro o fazem exclusivamente na esfera pública. Os espaços de trabalho recorrentes são serviços do primeiro nível de atenção de ordem municipal: unidades básicas de saúde e dispositivos territoriais comunitários. Os que referiram exercer a sua profissão de forma particular o fazem em consultório particular - em dois casos em clínica psiquiátrica e em um caso foi mencionada atividade laboral em Centro Dia.
As entrevistas foram coordenadas por telefone, graças a contatos estabelecidos em investigações anteriores. Seis entrevistas foram realizadas presencialmente: três delas no local de trabalho do convocado, e três em um café. Por sua vez, três entrevistados preferiram realizar a reunião virtualmente, por videochamada. A duração das entrevistas foi de aproximadamente 50 minutos cada. Elas foram gravadas com a autorização dos participantes e transcritas em processador de texto para análise posterior.
A respeito do desenho dos instrumentos, tomou-se como guia pesquisas anteriores sobre os processos de produção de subjetividade em saúde mental (Bru, 2016BRU, G. Subjetividad, biopolítica y cuerpo: reflexiones acerca de las prácticas de atención en el campo salud mental. Revista Latinoamericana de Estudios Sobre Cuerpos, Emociones y Sociedad, Córdoba, v. 8, n. 21, p. 37-51, 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/2732/273246916004.pdf >. Acesso em: 20 dez. 2023.
https://www.redalyc.org/pdf/2732/2732469... ). As entrevistas adotaram a modalidade semiestruturada e foram baseadas em uma série de itens de informação flexível. Os pontos temáticos incluíram: práticas em torno de drogas psicoativas (indicação, recepção, prescrição, gerenciamento, administração, renovação, iniciação, esquema de retirada, requisitos de farmácia); fontes de informação (pares, conferências, publicidade); efeitos das drogas psicoativas (na vida diária, nas emoções, nas habilidades, na sexualidade, reações adversas, habituação); socialização em torno das drogas psicoativas, atores sociais e dispositivos envolvidos (relação com pares, redes de apoio, familiares, profissionais); tomada de decisão ao longo do tratamento (cumprimento das prescrições, resistências, interrupções); e ideias sobre o uso de psicofármacos (tendo em conta o sexo, a idade e a situação socioeconómica). Além disso, cabe esclarecer que, para resguardar a identidade dos participantes da pesquisa, os nomes utilizados nos fragmentos das entrevistas são pseudônimos, seguidos da especialidade médica.
O plano de trabalho e os instrumentos metodológicos utilizados na pesquisa foram avaliados e aprovados, em 13 dez. 2021, pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Programa Temático Interdisciplinar em Bioética, dependente do Comitê Central de Ética em Pesquisa do Ministério da Saúde da Província de Buenos Aires. Após exaustiva assessoria bioética, suas recomendações foram adotadas no desenvolvimento da pesquisa.
Resultados
1- O que é prescrito: temporalidades, trajetórias e operações. “A questão é o tempo”
Uma das primeiras impressões obtidas pela análise realizada é que o uso e a prescrição de psicotrópicos não estão diretamente associados à aplicação de diagnósticos psiquiátricos. Principalmente nas entrevistas com médicos generalistas que atuam na atenção primária à saúde, constatou-se que a prescrição de psicofármacos tem como finalidade principal “parar o agudo”, sendo que o principal problema reiterado nas entrevistas é a demora no acesso à consulta psiquiátrica.
Há médicos que estão nas trincheiras, que vão parar o que vier em agudos. Uma pessoa que chega e está tendo quatro, cinco ataques de pânico, entre os quais é encaminhado para o psiquiatra… ele faz? Por isso, o que geralmente fazem é medicar com benzodiazepínicos e às vezes com antidepressivos. […] A questão é a hora de chegar no psiquiatra, màs vezes (Gabriela, psiquiatra).
Para aqueles pacientes que necessitam de atendimento nessa especialidade, são prescritos medicamentos psicotrópicos para aliviar o desconforto até a finalização da consulta psiquiátrica solicitada. Muitas vezes, como substitutos da psicoterapia, ou um recurso para aliviar os sintomas enquanto aguardam a vez da consulta psiquiátrica. “Ficar preso na gestão dos recursos” é o sentimento que descreve essa situação em termos de saúde mental, pois o uso de psicotrópicos se impõe como algo externo e a prescrição faz parte da engrenagem do cuidado em saúde. A prevalência de problemas de saúde mental é alta, e uma das alternativas para amenizar a demanda de atendimentos é a indicação de psicofármacos.
A gente sabe mais o que ele vai conseguir, como vai conseguir e se vai conseguir continuar conseguindo, do que o que você está informando ao paciente. […] A gente caiu mais em como é o sistema, a gente fica mais preso que não tem isso, que não tem o outro, que você quase não quer estudar isso como uma coisa para melhorar, como se alguma coisa ficou na complexidade e nos entraves no próprio sistema e na obtenção de recursos, e você fica mais nisso (María, generalista).
Ao longo da análise das entrevistas, foi evidenciada uma preocupação com a naturalização do uso de psicofármacos. Embora sejam dispensados de receita arquivada, há dúvidas quanto ao controle do cumprimento dos protocolos para sua comercialização nas farmácias. Enquanto alguns médicos referem ao fato de se manter um controle rigoroso, outros realçam que não existem mecanismos para controlar que uma receita seja utilizada várias vezes para comprar o mesmo medicamento. Por seu lado, também destacam a necessidade de introduzir técnicas de sistematização de informações sobre receitas e mecanismos de controle mais assertivos. A esse respeito, um relatório da província de Buenos Aires fornece dados interessantes sobre o uso de psicotrópicos durante a pandemia da covid-19: 14% dos entrevistados que afirmam ter aumentado o consumo de drogas psicotrópicas acessam a medicação por meio de familiares, amigos e/ou conhecidos, sem receita ou indicação médica (Observatorio de adicciones y consumos problemáticos, 2020OBSERVATORIO DE ADICCIONES Y CONSUMOS PROBLEMÁTICOS de la Defensoria del Pueblo bonaerense. Consumo de alcohol, tabaco y estupefacientes durante la emergencia sanitaria por el Covid-19. Buenos Aires, 2020. Disponível em: <Disponível em: https://www.defensorba.org.ar/pdfs//informes-tecnicos-upload-2019/consumo-de-alcohol-informe-final.pdf >. Acesso em: 21 dez. 2023.
https://www.defensorba.org.ar/pdfs//info... ), o que coloca em questão a discussão dos significados em torno do que a Organização Mundial da Saúde (OMS) chama de uso racional de psicofármacos (WHO, 1985WHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Uso racional de los medicamentos: informe de la Conferencia de Expertos, Nairobi, 25-29 de noviembre de 1985. Ginebra, 1987.).
2- Benzodiazepínicos. “Clonazepam é a rainha das drogas psicoativas”
A acessibilidade é um fator determinante na escolha do tratamento. Nesse sentido, o psicotrópico preferido nessas entrevistas é o tipo de benzodiazepínico ao qual os prescritores atribuem uma série de características. De um lado, a naturalização de seu uso generalizado - segundo uma série de estudos (DNOAD, 2013DNOAD - DIRECCIÓN NACIONAL DEL OBSERVATORIO ARGENTINO DE DROGAS. Una mirada específica sobre el consumo de psicofármacos en Argentina. Buenos Aires: SEDRONAR - Seceretaría de Programación para la Prevención de la Drogadicción y Lucha Contra el Narcotráfico, 2013.), os tranquilizantes ou ansiolíticos do tipo benzodiazepínico são os medicamentos mais conhecidos e utilizados, seu uso é banalizado e aparecem como drogas versáteis. Nas entrevistas, reitera-se que sua prescrição é recorrente porque os benzodiazepínicos têm efeitos universais “não tão fortes” e caracterizam-se por alto perfil de segurança (Carlos, generalista). Isso significa que a sua prescrição pelas diferentes especialidades médicas é uma questão periódica.
A mais comum: Clonazepam é a rainha dos psicoativos, já é usado há anos porque tem uma ação que além de antidepressiva é ansiolítica, que é o que eu acho que faz com que seja tão prescrito […] O bromazepam, que são os remédios que eu conheço, eu não prescrevo nada que seja novo porque eu não conheço e bom, se você quiser outros tipos de remédios você tem que ir ao psiquiatra, para ver se as pessoas fazem o esforço e faz consulta com psiquiatra particular, porque não é fácil o acesso ao público (Luz, generalista).
Outra das características de destaque dos benzodiazepínicos é o seu preço. Geralmente são acessíveis, o que garante o cumprimento do tratamento nos casos em que a situação socioeconômica dos usuários é determinante. Conforme explicado por um entrevistado, apesar do surgimento de novos medicamentos, costuma-se avaliar o custo benefício na hora de escolher um medicamento (Nicolás, psiquiatra).
Com os benzodiazepínicos, há uma questão muito particular, que é que as classes mais populares consomem aqueles que o Estado garante, e quando você faz uma consulta particular, através do serviço social, as pessoas vêm até você tomando antidepressivos… Eu falo: “ah, isso é novo porque eu não conheço ele” (Carlos, generalista).
Um médico entrevistado (Nicolás, psiquiatra) comentou que atualmente existem novas drogas psicoativas e que, em sua prática, o leque de prescrições é amplo, apelando para o uso tradicional e racional de medicamentos psiquiátricos. Ele destacou que a psiquiatria vem tentando proibir o uso de benzodiazepínicos há algum tempo, razão pela qual os psiquiatras prescrevem menos esse tipo de medicamento. Por outro lado, os clínicos gerais continuam fazendo isso, devido à dinâmica de sua prática.
Ansiolíticos do tipo benzodiazepínico: Rivotrol, Alplax, todas essas coisas, desde que comecei a exercer a profissão estão tentando bani-los na prática clínica. Assim, os psiquiatras estão prescrevendo cada vez menos. Agora, clínicos e generalistas prescrevem o mesmo, por isso as proporções estatísticas são produzidas, porque os psiquiatras procuram não prescrever tanto esses ansiolíticos (Gastón, psiquiatra).
Uma investigação das controvérsias científicas sobre os benzodiazepínicos relata que há divergências entre médicos generalistas e psiquiatras devido às críticas destes últimos às práticas de prescrição dos primeiros (Bielli et al., 2017BIELLI, A. et al. La controversia científico-técnica sobre las benzodiacepinas en profesionales de la salud pública de Uruguay. Physis, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 933-958, 2017. DOI: 10.1590/S0103-73312017000400005
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201700... ). Os benzodiazepínicos continuam gerando controvérsias, que giram em torno da tensão vício-dependência, da banalização do uso e consumo excessivos, da responsabilidade do clínico geral por seu uso prolongado e da pressão dos pacientes para obtê-los. Além disso, os pacientes são caracterizados por uma série de comportamentos inadequados que desafiam a autoridade médica e, inevitavelmente, levam a um manejo inadequado da medicação. Em nossa entrevista, houve preocupação com a leveza com que os benzodiazepínicos foram inseridos e circulados “como parte da paisagem” (Carlos, generalista). São como a aspirina da saúde mental (Gabriela, psiquiatra): facilmente obtidos entre familiares e amigos.
Eles também estão facilmente disponíveis hoje. Não só porque um amigo farmacêutico pode te fornecer, mas porque o seu vizinho, assim como antes te ofereceu aspirina ou ibuprofeno, agora te fala: “isso está acontecendo com você, clonazepam ou alprazolam”, até opções (Gabriela, psiquiatra).
Sobre essa leveza atribuída aos benzodiazepínicos, encontrou-se precedentes, como uma investigação qualitativa sobre o uso do clonazepam realizada por Zorzanelli e De Marca (2018ZORZANELLI, R.;De Marca, R. O caso do uso crônico de clonazepam no Rio de Janeiro pela voz dos usuários. Psicologia, Conocimiento y Sociedad, Montevideo, v. 8, n. 2, p. 194-213, 2018. DOI: 10.26864/PCS.v8.n2.10
https://doi.org/10.26864/PCS.v8.n2.10... ), que recuperaram as experiências dos usuários e analisaram as trajetórias e as estratégias utilizadas para administrar sua dosagem, bem como as expectativas e os significados construídos em sua relação com o benzodiazepínico. A pesquisa apresenta como o clonazepam atua em diferentes dimensões: como protetor para evitar crises ou recaídas - como os episódios que ocasionam o uso desse medicamento -como objeto de consumo ou distintivo de distinção social, apesar de já não vivenciarem os efeitos benéficos. Entre os resultados dessa investigação, observa-se que, uma vez iniciado o uso do clonazepam, a percepção dos usuários sobre sua capacidade de viver sem esse medicamento foi alterada, e que apesar de serem usuários crônicos, não se percebem como dependentes da substância (Zorzanelli; De Marca, 2018ZORZANELLI, R.;De Marca, R. O caso do uso crônico de clonazepam no Rio de Janeiro pela voz dos usuários. Psicologia, Conocimiento y Sociedad, Montevideo, v. 8, n. 2, p. 194-213, 2018. DOI: 10.26864/PCS.v8.n2.10
https://doi.org/10.26864/PCS.v8.n2.10... ).
Os entrevistados deste estudo relatam que não têm acompanhado muitas finalizações de tratamento. Silvia (psiquiatra e generalista) indica a tolerância e a dependência como os principais obstáculos para a interrupção do uso de benzodiazepínicos, e relata que seus pacientes continuam tomando medicamentos psiquiátricos sem acompanhamento profissional ou que descontinuam o uso de psicofármacos fora do tratamento.
Os “benzos” não podem ser cortados de uma vez, dão uma grande repercussão orgânica. Passaram a querer cortar o consumo de benzodiazepínicos, que geralmente é substituído por alguma outra droga e começa a diminuir gradativamente. Pelo menos ainda não tenho nenhum que tenha conseguido abandonar totalmente os benzodiazepínicos […]: “ei, por que você está tomando isso?”, “porque um psiquiatra me deu há cinco anos”, “mas é isso, eles deram para você por seis meses” (Silvia, psiquiatra e generalista).
Um estudo realizado no Brasil (Friestino et al., 2020FRIESTINO, J. K. O. et al. El perfil de usuarios de benzodiazepinas en servicios de atención primaria de la salud de la ciudad de Chapecó, Santa Catarina, Brasil. Salud Colectiva, Buenos Aires, v. 16, p. e2495, 2020. DOI: 10.18294/sc.2020.2495
https://doi.org/10.18294/sc.2020.2495... ) sobre a frequência e as características dos usuários de benzodiazepínicos em serviços de atenção primária à saúde destaca a prescrição mal controlada dessa classe de ansiolítico pelos profissionais que atuam na atenção primária e um desperdício indiscriminado do medicamento. Entre os principais motivos do excesso de prescrições e do uso prolongado de benzodiazepínicos, estão: a falta de tempo dos profissionais para cada paciente; a baixa propriedade de conhecimento em questões de saúde mental; a fragmentação do cuidado; a sobrecarga com outros assuntos considerados prioritários; o pouco investimento em treinamentos específicos; e a subestimação por parte dos prescritores de cuidados primários do número de pacientes em uso de benzodiazepínicos ou da gravidade desse uso. Em relação a esse aspecto, um estudo antropológico britânico (Ecks, 2021ECKS, S. Depression, deprivation, and dysbiosis: polyiatrogenesis in multiple chronic illnesses. Culture, Medicine and Psychiatry, Dordrecht, v. 45, n. 4, p. 507-524, 2021. DOI: 10.1007/s11013-020-09699-x
https://doi.org/10.1007/s11013-020-09699... ) observa que o sofrimento mental é, por vezes, integrado à multimorbidade. Esta pesquisa indica que o atendimento fragmentado e as limitações de tempo e de recursos dificultam a abordagem integral dos problemas de saúde e que, quando um paciente é encaminhado da atenção primária para a terciária, a fragmentação aumenta.
Formas de sociabilidade, atores sociais e dispositivos envolvidos. “Ele tem uma gestão bastante tradicional da sua medicação”
As tecnologias biomédicas visam não apenas regular e controlar o que os corpos podem fazer, mas também transforma-los, produzir repertórios e regular a sociabilidade. Por esse motivo, Clarke et al. (2010CLARKE, A. et al. (Ed.). Biomedicalization: technoscience, health and illness in the U.S. Durham: Duke University Press, 2010.) usam o termo “identidades tecnocientíficas” para nomear as identidades construídas por meio da aplicação da ciência e da tecnologia aos corpos. Nesse sentido, constatou-se, por exemplo, que existem certas ideias associadas às drogas psicotrópicas que podem ser determinantes para se pensar em como essas tecnologias produzem subjetividades e identidades. No trabalho de campo, constatou-se que, nas tomadas de decisão em torno da prescrição e do uso de psicofármacos, algumas ideias sobre os usuários que recorrem a eles são reiteradas: eles atendem esperando receber uma receita (Silvia, psiquiatra e generalista), eles vêm ao consultório médico para pedir o psicofármaco (Gastón, psiquiatra). Além disso, os entrevistados referem-se ao fato de seus pacientes geralmente conhecerem o medicamento com antecedência e terem informações sobre eles antes da prescrição.
Antes de fazer a especialidade, francamente, tinha medo de receitar muitos psicofármacos. […] Os psiquiatras têm mais alcance, então eles podem perceber a psicopatologia mais rapidamente. Mas realmente às vezes penso com que rapidez prescrevemos. Um pouco por isso que eu estava contando antes sobre a pressão às vezes do paciente: “Fui ao psiquiatra e ele não me passou nada” (Silvia, psiquiatra e generalista).
Um estudo sobre as representações sociais do consumo de medicamentos psicotrópicos na Argentina (Observatorio Argentino de Drogas, 2007OBSERVATORIO ARGENTINO DE DROGAS. El consumo indebido de medicamentos psicotrópicos en la vida cotidiana. Un estudio exploratorio sobre representaciones sociales y patrones de uso. Buenos Aires: SEDRONAR, 2007.) analisa como os usuários de drogas psicoativas apresentam diferentes graus de negociação e participação na tomada de decisões terapêuticas. Quem é informado acerca da medicação participa ativamente do tratamento e tem uma história de conhecimento moldada por sua trajetória médica. Além disso, embora os psicotrópicos devam ser vendidos apenas sob prescrição, muitas das histórias deste relatório mostram que os usuários adquirem o medicamento por meio de uma conexão direta com a farmácia. Aparece também a figura do amigo ou familiar que fornece periodicamente o medicamento, compartilhando e socializando o que seu especialista lhe prescreveu de forma particular. Nesta linha, verificou-se que os entrevistados expressam que seus pacientes compartilham informações e medicamentos psiquiátricos com seus familiares e amigos próximos e, assim, circulam informações sobre drogas psicotrópicas. Eles afirmam quais os medicamentos específicos recomendados e informam como tomá-los.
Além disso, a administração do uso de psicofármacos está associada à percepção das necessidades dos usuários. Existe uma ideia comum de que os doentes decidem como regular a dose da medicação: se observam maximização dos sintomas, tendem a aumentar a medicação; se percebem que o conjunto de sintomas associado ao seu desconforto é reduzido, tendem a diminuir a quantidade, ou mesmo suspender a dose. A graduação e continuidade do uso de psicofármacos é regulada de acordo com as necessidades percebidas. Observa-se que, em algumas ocasiões, a medicação é retirada sem acompanhamento, o que posteriormente, como afirmado, se traduz em recaídas. Uma das entrevistadas (Silvia, psiquiatra e generalista). utilizou o termo “autarquia” para se referir ao fato de seus pacientes definirem a quantidade de medicamento a ser tomada diariamente de acordo com suas necessidades. Em vários relatos, o termo “artesanal” é utilizado para se referir ao gerenciamento da graduação de medicamentos por seus pacientes.
Às vezes, o que eu sei que alguns pacientes fazem é graduar, principalmente nessas áreas que não tem dinheiro nem acesso, eles graduam. Às vezes pegam menos do que tem que pegar, esticam, digamos assim. O paciente tem um manejo bastante tradicional de sua medicação com o psicofármaco, pelo que me disseram (Luz, generalista).
As explicações sobre o uso de psicofármacos são baseadas em argumentos ligados à neuroquímica e à farmacodinâmica; entretanto, entende-se que, ao haver prescrição de tais medicamentos, o objetivo do médico é aliviar o desconforto do usuário, para que ele possa dar conta das atividades cotidianas relacionadas aos cuidados, às responsabilidades laborais e à situação socioeconômica. Por meio de uma intervenção química, é acessada uma nova vivência das vicissitudes mais complexas que marcam o cotidiano. Os padrões de consumo de psicofármacos prescritos vão desde o consumo diário, com momentos rotineiros em que se toma a medicação, até ao consumo pontual em situações pontuais tidas como problemáticas (Dirección General de Políticas Sociales en Adicciones, 2010DIRECCIÓN GENERAL DE POLÍTICAS SOCIALES EN ADICCIONES. Consumo de psicofármacos y género en la Ciudad Autónoma de Buenos Aires. Buenos Aires: Ministerio de Desarrollo Social, 2010.). Como explica Rose (2012ROSE, N. Políticas de la vida: biomedicina, poder y subjetividad en el siglo XXI. La Plata: UNIPE - Editorial Universitaria, 2012.), o objetivo do uso de psicofármacos não é exatamente curar, mas modificar a forma como os incidentes cotidianos são vivenciados e interpretados. Nos psicofármacos, são encontradas normas, valores e julgamentos específicos, modos de vida particulares e propósitos diversos, que vão desde normalizar o comportamento do paciente até fazê-lo funcionar e restaurar sua capacidade para a vida diária. Dessa forma, o uso de psicotrópicos não está tanto relacionado ao tratamento de doenças, e sim para normalizar, funcionalizar e reduzir o desconforto do usuário, otimizar ou maximizar sua capacidade.
Observou-se que é esperado que os usuários sejam capazes de gerenciar o uso de seus medicamentos. Esse fenômeno é compreensível no quadro das novas formas de cidadania dadas nas intervenções de saúde contemporâneas, caracterizadas por uma indefinição dos limites entre tratamento, recuperação, melhoria e empoderamento dos utentes na autoavaliação dos desconfortos (Rose, 2012ROSE, N. Políticas de la vida: biomedicina, poder y subjetividad en el siglo XXI. La Plata: UNIPE - Editorial Universitaria, 2012.). Além disso, o material da entrevista mostra que, no ato de prescrever psicofármacos, ocorrem diferentes sensações nos prescritores. Referem, por exemplo, a “raiva” quando os utentes solicitam receitas, “indignação” porque faz parte da sua prática habitual prescrever psicotrópicos, a “culpa” por serem obrigados a receitar psicotrópicos. Por sua vez, outros participantes articulam seu relato sobre o uso racional de medicamentos, esclarecendo que quanto mais se conhece a psicofarmacologia, mais precisos são os tratamentos abordados. Silvia (psiquiatra e generalista) expressou que é uma “questão de fé”, porque para prescrever é preciso acreditar nos psicofármacos, e para acreditar é preciso conhecê-los. Para dirimir dúvidas sobre que tipo de psicotrópico prescrever, os entrevistados relatam que consultam e compartilham informações. Nesse quadro em que a prescrição de psicotrópicos por diferentes especialidades “faz parte da paisagem”, a consulta informal entre pares (psiquiatras-generalistas-clínicas) é frequente e espontânea.
Embora os esquemas de suspensão sejam protocolados, um dos entrevistados (Gastón, psiquiatra) afirmou que nem todos os prescritores têm acesso à literatura que fornece informações atualizadas sobre esses procedimentos. Um ponto comum em todos os relatos é a necessidade de treinamento em prescrição de medicamentos para as especialidades que os prescrevem. Seu uso massivo, o aumento das prescrições de psicotrópicos, a falta de pessoal especializado em saúde mental nos serviços de atenção primária à saúde e a demanda específica de usuários que recorrem ao sistema de saúde por motivos de saúde mental (predominantemente por sintomas associados à ansiedade e à depressão) demonstram a necessidade de estabelecer mecanismos de comunicação e fortalecer a capacitação sobre esses aspectos, que se apresentam como preocupações nos relatos dos profissionais.
Avançar no trabalho de campo e realizar entrevistas com usuários de psicofármacos prescritos mostrará tensões e complexidades nesses processos de medicalização, que não ocorrem em uma única direção, não são necessariamente repressores e nos quais provavelmente encontraremos múltiplos propósitos. Trabalhar com esses testemunhos permitirá o acolhimento das formas e tonalidades que o lugar ativo adquire pelos consumidores, pelas diferentes identidades tecnocientíficas e cidadãs no quadro de uma sociedade cada vez mais farmacológica e desigual.
Considerações finais
O objetivo deste artigo foi fazer uma primeira aproximação descritiva das categorias analíticas mais relevantes do trabalho de campo em andamento. Procurou-se abordar o assunto do aspecto mais geral até o mais particular da investigação. Em primeiro lugar, constatou-se que nas decisões tomadas nos tratamentos com psicofármacos prevalecem o possível e o acessível. Ou seja, são prescritos os psicofármacos que poderão ser administrados pelo usuário, com um critério centrado na viabilidade e acessibilidade do medicamento. Nem sempre são prescritos os psicotrópicos mais adequados para cada caso, e sim os mais econômicos. Nesse quadro, os benzodiazepínicos são recorrentes ao longo da análise. Como afirmaram os entrevistados, apesar dos efeitos adversos e da dependência que podem produzir, continuam a ser os mais prescritos. Por sua vez, o uso de psicofármacos é um substituto da psicoterapia e/ou um recurso que permite aliviar o desconforto e tolerar os atrasos existentes no acesso ao atendimento psiquiátrico.
Embora este estudo não pretenda aprofundar as diferenças entre as especialidades médicas, é marcante observar como a dimensão disciplinar afeta a experiência da prescrição de psicofármacos. Isso pode ser identificado nas entrevistas, por exemplo, na forma como os médicos descrevem o ato de prescrever psicofármacos. Nesse ponto, eles descreveram diferentes sensações: os especialistas em psiquiatria argumentaram que utilizam como guia os protocolos de uso racional de medicamentos e enfatizaram o treinamento constante, pois quanto mais se conhece a psicofarmacologia, mais precisos são os tratamentos. Eles também destacaram que essa especialidade vem tentando proibir ou reduzir a prescrição de certos ansiolíticos. Por sua vez, os entrevistados da medicina geral e familiar vivenciam outras preocupações em relação ao ato de prescrever psicofármacos, ligados ao seu uso massivo, ao aumento das prescrições de psicofármacos e à falta de pessoal especializado em saúde mental em diferentes serviços de saúde. Entretanto, um aspecto comum e recorrente em todo o material das entrevistas é a necessidade de treinamento em psicotrópicos para as especialidades que os prescrevem e o estabelecimento de mecanismos de controle e comunicação sobre a prescrição de psicofármacos.
Em segundo lugar, com atenção a quem prescreve e a quem é prescrito, foram encontradas ideias sobre os consumidores de psicofármacos: o que esperam da consulta, que atributos atribuem ao medicamento, as decisões que tomam sobre os psicofármacos que consomem e a descontinuação de seu uso. A análise mostra que, além do compartilhamento de suas necessidades com os profissionais, há também sociabilidades específicas em torno das drogas psicoativas: o acolhimento da medicação e a transmissão de informações e recomendações são questões recorrentes na análise. Em vários relatos, o termo “artesanal” foi utilizado para se referir ao gerenciamento da graduação de medicamentos por seus pacientes. O uso de psicofármacos não parece estar associado ao tratamento de diagnósticos ou cura de doenças, mas ao apaziguamento de sintomas e/ou modificação da forma como as vicissitudes do cotidiano são vividas e interpretadas. Esse distanciamento entre a droga e a doença propicia o entendimento de usos de drogas por períodos que se estendem, com usuários que fazem uma apropriação artesanal do medicamento com finalidades múltiplas, indo de normalizar e restaurar a capacidade para a vida cotidiana até a habilidade de aprimoramento. Ressalta-se, ainda, que os profissionais entrevistados afirmam ter vivenciado pouquíssimas vezes a finalização do tratamento psicofarmacológico. Foram relatadas diversas sensações no ato de prescrever, com um aspecto comum na preocupação com a naturalização e banalização do uso de psicofármacos, principalmente a leveza atribuída aos benzodiazepínicos, que os entrevistados observam no acolhimento generalizado na relação entre usuários, bem como na que exercem em seus ambientes.
Os resultados parciais desta pesquisa possibilitam o exercício de delineação e identificação de algumas intersecções e cruzamentos nos processos de medicalização e farmacologização em saúde mental. Acredita-se que avançar na análise das experiências dos usuários que fazem uso de psicofármacos prescritos permitirá problematizar o atual processo de medicalização e as diversas apropriações que fazem deles. A análise das entrevistas também mostra que os profissionais participantes percebem uma escassa existência de espaços de formação para médicos que prescrevem psicotrópicos recorrentemente. Infere-se esse aspecto como uma manifestação da demanda pela inclusão de uma política de saúde mental que visibilize o uso de medicamentos psiquiátricos como questão prevalente na atenção à saúde. Identificar as peculiaridades locais dos processos de medicalização, por meio da análise do uso de psicofármacos, contribui para o desenvolvimento de políticas de saúde mental mais assertivas no que diz respeito ao cuidado de pessoas em sofrimento psíquico.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
04 Mar 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
03 Maio 2023 - Revisado
03 Maio 2023 - Aceito
13 Jun 2023