Resumo
Desde 2016, o Brasil tem registrado queda nas taxas de cobertura das principais vacinas. São múltiplos os fatores que podem ter influência sobre esse cenário, incluindo o acesso aos imunizantes e a hesitação das pessoas em se vacinar. Durante a pandemia de covid-19, a circulação de informações sobre o tema aumentou de forma considerável. Nesse contexto, realizamos um estudo de matérias sobre vacinas exibidas no Fantástico, da TV Globo, e no Domingo Espetacular, da Record TV, entre março de 2020 e agosto de 2021, a fim de investigar como os programas - ambos dominicais e de infotainment, porém com linhas editoriais e públicos-alvo distintos - apresentaram e deram visibilidade à temática. O corpus de análise reuniu 110 matérias, totalizando 10 horas e 43 minutos, que foram submetidas à análise de conteúdo. De modo geral, as revistas eletrônicas televisivas estimularam a população a confiar nas vacinas, mas exageros e imprecisões foram vistos no programa da Record TV.
Palavras-chave:
Vacinas; Televisão; Infotainment; Covid-19
Abstract
Brazil has been recording a decrease in the coverage rates of primary vaccines since 2016. Several factors can influence this scenario, including access to immunizers and people’s hesitation to take vaccines. The exchange of information about the topic increased considerably during the COVID-19 pandemic. In this study, we carried out an analysis of stories about vaccines shown on Fantástico, TV Globo, and on Domingo Espetacular, Record TV, from March 2020 to August 2021, aiming to investigate how both TV shows - both broadcast on Sundays and focused on infotainment, but with different editorial lines and audiences - presented the theme and provided visibility to it. The corpus analysis gathered 110 stories, a total of 10 hours and 43 minutes, submitted to content analysis. In general, the TV shows stimulated the population to trust the vaccines, but exaggerations and imprecisions were observed on the show on Record TV.
Keywords:
Vaccine; TV; Infotainment; COVID-19
Introdução
O Brasil, mesmo com um histórico bem-sucedido no âmbito da vacinação, tem registrado, desde 2016, um decréscimo das coberturas vacinais e a ameaça do retorno de doenças outrora erradicadas (Milani; Busato, 2021MILANI, L. R. N.; BUSATO, I. M. S. Causas e consequências da redução da cobertura vacinal no Brasil. Revista de Saúde Pública do Paraná, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 157-171, 2021. DOI: 10.32811/25954482-2021v4n2p157
https://doi.org/10.32811/25954482-2021v4... ) - embora em 2022 tenha sido observado um pequeno aumento na cobertura vacinal, atingindo 67,9% da população versus os 61,5% de 2021 (SI-PNI, 2023SISTEMA DE INFORMAÇÃO DO PROGRAMA NACIONAL DE IMUNIZAÇÕES (SI-PNI/CGPNI/DEIDT/SVS/MS). Disponível em: Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/dhdat.exe?bd_pni/cpnibr.def . Acesso em: 31 ago. 2023.
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/dhdat.e... ). Essa tendência de queda da cobertura vacinal está associada a fatores variados, incluindo falta de acesso a imunizantes, desinformação científica, despreocupação com doenças de baixa ocorrência e hesitação vacinal - conceito que se relaciona ao atraso ou à recusa da vacinação mesmo quando as vacinas estão disponíveis (Milani; Busato, 2021MILANI, L. R. N.; BUSATO, I. M. S. Causas e consequências da redução da cobertura vacinal no Brasil. Revista de Saúde Pública do Paraná, Curitiba, v. 4, n. 2, p. 157-171, 2021. DOI: 10.32811/25954482-2021v4n2p157
https://doi.org/10.32811/25954482-2021v4... ). A tomada de decisão de se vacinar é complexa e envolve fatores socioculturais, políticos e pessoais (Succi, 2018SUCCI, R. C. de M. Vaccine refusal - what we need to know. Jornal de Pediatria, Rio de Janeiro, v. 94, n. 6, p. 574-581, 2018. DOI: 10.1016/j.jped.2018.01.008
https://doi.org/10.1016/j.jped.2018.01.0... ).
Neste cenário, pesquisadores discutem o papel central da comunicação sobre a temática da vacinação, uma vez que a aceitação das vacinas resulta de um processo decisório influenciado por várias razões, entre elas o acesso às informações e às desinformações veiculadas nas mídias (Succi, 2018SUCCI, R. C. de M. Vaccine refusal - what we need to know. Jornal de Pediatria, Rio de Janeiro, v. 94, n. 6, p. 574-581, 2018. DOI: 10.1016/j.jped.2018.01.008
https://doi.org/10.1016/j.jped.2018.01.0... ). No entanto, ressaltamos que não se trata apenas de ter ou não informações adequadas, ainda que estas possam interferir na decisão de se vacinar (Goldstein; MacDonald; Guirguis, 2015GOLDSTEIN, S.; MACDONALD, N. E.; GUIRGUIS, S. Health communication and vaccine hesitancy. Vaccine, Guildford, v. 33, n. 34, p. 4212-4214, 2015. DOI: 10.1016/j.vaccine.2015.04.042
https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2015.0... ; Succi, 2018SUCCI, R. C. de M. Vaccine refusal - what we need to know. Jornal de Pediatria, Rio de Janeiro, v. 94, n. 6, p. 574-581, 2018. DOI: 10.1016/j.jped.2018.01.008
https://doi.org/10.1016/j.jped.2018.01.0... ).
Com a pandemia de covid-19, a situação das baixas coberturas vacinais se agravou. Ao mesmo tempo, registrou-se um aumento significativo na circulação de informações sobre a doença, algumas confiáveis e outras não, em um contexto denominado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de infodemia - termo que se refere a “um grande aumento no volume de informações associadas a um assunto específico, que podem se multiplicar exponencialmente em pouco tempo devido a um evento específico, como a pandemia atual” (Opas, 2020OPAS - ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a COVID-19. Washington, DC, 2020. Disponível em: Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/52054 . Acesso em: 8 set. 2022.
https://iris.paho.org/handle/10665.2/520... ). Assim, a propagação de desinformação científica passou a ser associada à piora da crise sanitária, uma vez que atrapalha o acesso a informações fidedignas e pode afetar o processo de tomada de decisões em saúde (Opas, 2020OPAS - ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE. Entenda a infodemia e a desinformação na luta contra a COVID-19. Washington, DC, 2020. Disponível em: Disponível em: https://iris.paho.org/handle/10665.2/52054 . Acesso em: 8 set. 2022.
https://iris.paho.org/handle/10665.2/520... ; Machado; Gitahy, 2022MACHADO, D.; GITAHY, L. Verbete: Desinformação (Combate à). In: SWAKO, J.; RATTON, J. L. (Org.). Dicionário dos negacionismos no Brasil. Editora Cepe, 2022.).
Este é um ponto importante, pois, com o avanço da pandemia, a desinformação sobre métodos de prevenção contra a covid-19, entre eles a vacinação, predominou em notícias falsas (Galhardi et al., 2022GALHARDI, C. P. et al. Fake news e hesitação vacinal no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 5, p. 1849-1858, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232023282.17842022
https://doi.org/10.1590/1413-81232023282... ). Ainda que a decisão de se vacinar seja multifatorial (Succi, 2018SUCCI, R. C. de M. Vaccine refusal - what we need to know. Jornal de Pediatria, Rio de Janeiro, v. 94, n. 6, p. 574-581, 2018. DOI: 10.1016/j.jped.2018.01.008
https://doi.org/10.1016/j.jped.2018.01.0... ), pesquisas sugerem que a exposição excessiva a conteúdos enganosos sobre vacinas pode impactar negativamente na adesão às campanhas de vacinação (Machado; Gitahy, 2022MACHADO, D.; GITAHY, L. Verbete: Desinformação (Combate à). In: SWAKO, J.; RATTON, J. L. (Org.). Dicionário dos negacionismos no Brasil. Editora Cepe, 2022.; Galhardi et al., 2022GALHARDI, C. P. et al. Fake news e hesitação vacinal no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 5, p. 1849-1858, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232023282.17842022
https://doi.org/10.1590/1413-81232023282... ). Por outro lado, o uso de organizações jornalísticas como fonte de informações sobre o coronavírus é associado a uma diminuição da crença na desinformação sobre vacinas (Reuters Institute, 2021REUTERS INSTITUTE. Digital News Report 2021. Reuters Institute for the Study of Journalism, Edition 2021. Disponível em: Disponível em: https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/sites/default/files/2021-06/Digital_News_Report_2021_FINAL.pdf . Acesso em: 24 set. 2021.
https://reutersinstitute.politics.ox.ac.... ). A incerteza fomentada pela pandemia fez com que a população buscasse por informações confiáveis e, no Brasil, o público expressou mais confiança nas notícias divulgadas na televisão e nos jornais, em contraste com as publicadas nas mídias sociais (Reuters Institute, 2021REUTERS INSTITUTE. Digital News Report 2021. Reuters Institute for the Study of Journalism, Edition 2021. Disponível em: Disponível em: https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/sites/default/files/2021-06/Digital_News_Report_2021_FINAL.pdf . Acesso em: 24 set. 2021.
https://reutersinstitute.politics.ox.ac.... ). Apesar de sua relevância, a análise da ciência na TV, de forma geral, e especificamente sobre vacinas, é preterida quando comparada a análises dessas temáticas em outros meios de comunicação (Catalan-Matamoros; Santamaria-Ochoa; Peñafiel-Saiz, 2019CATALAN-MATAMOROS, D.; SANTAMARIA-OCHOA, C.-D.; PEÑAFIEL-SAIZ, C. Message analyses about vaccines in the print press, television and radio: characteristics and gaps in previous research. Journal of Communication in Healthcare, Abingdon, v. 12, n. 2, p. 86-101, 2019. DOI: 10.1080/17538068.2019.1614377
https://doi.org/10.1080/17538068.2019.16... ). Considerando, ainda, que a televisão ocupou lugar estratégico na busca por notícias no primeiro ano da pandemia no Brasil (Kantar Ibope Media, 2021KANTAR IBOPE MEDIA. Inside Video. A (Re)Descoberta. São Paulo: Kantar Ibope Media, 2021. p. 1-45. Disponível em: Disponível em: https://www.kantaribopemedia.com/wp-content/uploads/2021/03/Inside-Video_A-Redescoberta.pdf . Acesso em: 16 set. 2022.
https://www.kantaribopemedia.com/wp-cont... ; Massarani et al., 2022MASSARANI, L. et al. Confiança na ciência no Brasil em tempos de pandemia. Resumo Executivo. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC; Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.inct-cpct.ufpa.br/index/2022/12/12/disponivel-o-resumo-executivo-da-survey-confianca-na-ciencia-no-brasil-em-tempos-de-pandemia-realizada-pelo-inct-cpct/ >. Acesso em: 26 dez. 2022.
https://www.inct-cpct.ufpa.br/index/2022... ), nosso objetivo neste estudo exploratório é analisar as matérias exibidas sobre vacinas em duas revistas eletrônicas televisivas - o Fantástico, da TV Globo, e o Domingo Espetacular, da Record TV, de modo a responder a seguinte questão de pesquisa: Como o Fantástico e o Domingo Espetacular apresentam e dão visibilidade à temática da vacinação durante a pandemia de covid-19?
Vacinas e vacinação na mídia
Dada a sua relevância para a saúde pública, a cobertura midiática sobre vacinas tem sido alvo de diversos pesquisadores nas duas últimas décadas. Considera-se que a mídia tradicional22Por mídia tradicional, consideramos televisão, rádio e mídia impressa. ocupa papel relevante na propagação de informações precisas e contextualizadas sobre vacinação, e que as narrativas construídas e divulgadas a respeito das vacinas podem colaborar para o enfrentamento da hesitação vacinal (Goldstein; MacDonald; Guirguis, 2015GOLDSTEIN, S.; MACDONALD, N. E.; GUIRGUIS, S. Health communication and vaccine hesitancy. Vaccine, Guildford, v. 33, n. 34, p. 4212-4214, 2015. DOI: 10.1016/j.vaccine.2015.04.042
https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2015.0... ), além de desempenhar papel educativo no campo da saúde pública (Catalan-Matamoros; Peñafiel-Saiz, 2020CATALAN-MATAMOROS, D.; PEÑAFIEL-SAIZ, C. Exploring the relationship between newspaper coverage of vaccines and childhood vaccination rates in Spain. Human Vaccines & Immunotherapeutics, Austin, v. 16, n. 5, p. 1055-1061, 2020. DOI: 10.1080/21645515.2019.1708163
https://doi.org/10.1080/21645515.2019.17... ). Piltch-Loeb e colaboradores (2021)PILTCH-LOEB, R. et al. Examining the effect of information channel on covid-19 vaccine acceptance. PLOS ONE, São Francisco, v. 16, n. 5, p. e0251095, 2021. DOI: 10.1371/journal.pone.0251095
https://doi.org/10.1371/journal.pone.025... apontam uma tendência de que indivíduos que recebem informações sobre vacinas pelos meios de comunicação tradicionais, especialmente pela televisão, são mais propensos a aceitar a vacinação em comparação aos que se informam pelas mídias sociais.
Já Langbecker e Catalan-Matamoros (2021LANGBECKER, A.; CATALAN-MATAMOROS, D. Na era das descrenças e incertezas: a cobertura jornalística sobre as vacinas nos jornais portugueses. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 3, p. e200929, 2021. DOI: 10.1590/S0104-12902021200929
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ), ao examinar o posicionamento relativo à imunização das notícias sobre vacinas publicadas por dois jornais portugueses entre 2012 e 2017, verificaram que ambos adotaram um tom positivo e neutro em relação ao tema. No Brasil, ao investigar a cobertura jornalística sobre a vacinação feita pela Folha de S. Paulo entre 2018 e 2019, Massarani e colaboradores (2021MASSARANI, L. et al. Infodemia, desinformação e vacinas: a circulação de conteúdos em redes sociais antes e depois da covid-19. Liinc em revista, Brasília, DF, v. 17, n. 1, p. e5689, 2021. DOI: 10.18617/liinc.v17i1.5689
https://doi.org/10.18617/liinc.v17i1.568... ) explicitam como as notícias sobre o tema são importantes para aproximá-lo do cotidiano da população e para promover os benefícios das vacinas. Com a emergência da covid-19, destacamos a pesquisa sobre a cobertura da Folha de S. Paulo ao longo de 2020, que abordou, em específico, o enfrentamento da desinformação sobre as vacinas contra covid-19, cujos principais resultados apontam o uso predominante do enquadramento narrativo bioético e jurídico, com menções à obrigatoriedade da vacinação, e o segundo enquadramento mais explorado foi o de políticas públicas e de estratégia política, relacionado, principalmente, aos adversários políticos do então presidente Bolsonaro e à vacina Coronavac, rotulada como vacina chinesa ou vacina comunista (Massarani et al., 2021MASSARANI, L. et al. Narrativas sobre vacinação em tempos de fake news: uma análise de conteúdo em redes sociais. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 30, n. 2, p. e200317, 2021. DOI: 10.1590/S0104-12902021200317
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ).
Um estudo exploratório de notícias publicadas sobre as vacinas contra a covid-19 em três jornais - The New York Times (EUA), The Guardian (Reino Unido) e Folha de S. Paulo (Brasil) -, entre janeiro e outubro de 2020, indica que cada um valorizou as vacinas desenvolvidas por laboratórios de seus países ou em parceria com instituições de pesquisa nacionais e que o Brasil abordou o tema de modo mais politizado, enquanto EUA e Reino Unido se valeram de uma abordagem técnico-científica (Massarani; Neves, 2021MASSARANI, L.; NEVES, L. F. F. Communicating the ‘race’ for the covid-19 vaccine: an exploratory study in newspapers in the United States, the United Kingdom and Brazil. Frontiers, Lausanne, v. 6, 2021. DOI: 10.3389/fcomm.2021.643895
https://doi.org/10.3389/fcomm.2021.64389... ). Já o estudo comparado entre os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, no intuito de contrastar a cobertura referente às vacinas entre janeiro de 2019 e dezembro de 2020, verificou que a inserção do tema aumentou consideravelmente em 2020, ano em que a doença mais citada foi a covid-19 (Neves; Massarani, 2022NEVES, L. F. F.; MASSARANI, L. A vacina em dois jornais brasileiros antes e durante a covid-19. MATRIZes, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 191-216, 2022. DOI: 10.11606/issn.1982-8160.v16i2p191-216
https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.... ).
Neste ponto, julgamos importante fazer a ressalva de que as características observadas no estudo da cobertura sobre vacinas vão ao encontro daquelas usualmente identificadas na cobertura de ciência que, tradicionalmente, é centrada nos resultados das pesquisas, mostrados muitas vezes de modo isolado e sem contextualização (Massarani; Moreira, 2021MASSARANI, L.; MOREIRA, I. de C. Divulgação científica no Brasil: algumas reflexões sobre a história e desafios atuais. In: MASSARANI, L.; MOREIRA, I. (Ed.). Pesquisa em divulgação científica: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content/uploads/2021/04/Livro-VPEIC_pesquisa_divulgacao_cientifica_final.pdf . Acesso em: 26 mai 2023.
https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content... ). De maneira geral, predomina uma visão mistificada sobre a atividade científica, com valorização do brilhantismo de determinados cientistas, em sua maioria homens brancos, e que é conferido destaque para aplicações imediatas da ciência, ao mesmo tempo em que se ignoram suas limitações e incertezas (Massarani; Moreira, 2021MASSARANI, L.; MOREIRA, I. de C. Divulgação científica no Brasil: algumas reflexões sobre a história e desafios atuais. In: MASSARANI, L.; MOREIRA, I. (Ed.). Pesquisa em divulgação científica: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content/uploads/2021/04/Livro-VPEIC_pesquisa_divulgacao_cientifica_final.pdf . Acesso em: 26 mai 2023.
https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content... ). O presente estudo irá retomar estes e outros aspectos da cobertura da mídia tradicional sobre vacinas.
Metodologia
O objetivo desta pesquisa de caráter exploratório é analisar em uma perspectiva comparativa a cobertura sobre vacinas do Fantástico, da TV Globo, e do Domingo Espetacular, da Record TV, entre março de 2020 e agosto de 2021. Optamos por esse período porque contempla marcos relevantes relacionados à situação sanitária, incluindo o momento em que a covid-19 começou a se alastrar no Brasil e as diversas etapas de consolidação da campanha de vacinação contra o vírus, incluindo testes científicos com seres humanos, aprovações de agências reguladoras e os primeiros meses de vacinação.
Já a escolha dos programas, exibidos por emissoras concorrentes no horário nobre dos domingos, se deu por dois motivos principais: mesmo que ambos sejam caracterizados como revistas eletrônicas televisivas, apresentam públicos-alvo e linhas editoriais distintas. Fazemos a ressalva de que o então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, ocupava posição antagônica ao Grupo Globo de Comunicação, enquanto o Grupo Record era apontado como um dos elos do governo com os evangélicos (Guerreiro; Almeida, 2021GUERREIRO, C.; ALMEIDA, R. de. Negacionismo religioso: Bolsonaro e lideranças evangélicas na pandemia covid-19. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 41, n. 2, p. 49-74, 2021. DOI: 10.1590/0100-85872021v41n2cap02
https://doi.org/10.1590/0100-85872021v41... ). Além disso, o projeto editorial da Record TV foi visto como mais alinhado à administração do governo federal no período inicial da pandemia de covid-19, em que ganharam espaço as posições negacionistas das autoridades brasileiras com relação ao novo coronavírus (Galhardi et al., 2022GALHARDI, C. P. et al. Fake news e hesitação vacinal no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 5, p. 1849-1858, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232023282.17842022
https://doi.org/10.1590/1413-81232023282... ).
A composição do corpus de análise se deu por meio de consulta on-line aos acervos dos programas. No caso do Fantástico, optamos pela pesquisa no GloboPlay. A TV Globo não disponibiliza o conteúdo do programa no YouTube, o que inviabilizou a investigação nesta plataforma. Já com relação ao Domingo Espetacular, utilizamos o site do programa, seu canal oficial no YouTube e o perfil da Record TV no Facebook, tendo em vista que o PlayPlus dispõe apenas da íntegra do programa, o que torna a busca por palavras-chaves na plataforma pouco eficiente.
Portanto, para a seleção das matérias, acessamos cada uma das edições de ambos os programas no período e nas mídias supracitadas e buscamos nos títulos, assim como nas descrições das matérias, a presença da palavra vacina e/ou de suas correlatas (vacinação, imunização, vacinal, vacinar, imunizar, antivacina, vacinado(a), imunizado(a)), bem como dos nomes comerciais das vacinas anticovid (Butanvac, Comirnaty, Coronavac, Covaxin, Covishield, Janssen Vaccine, Spikevax, Sputnik V), de modo a obter o maior número possível de matérias veiculadas sobre o tema. Assim, o corpus resultou em 110 matérias - 83 delas exibidas no Fantástico e outras 27 veiculadas no Domingo Espetacular - com um total de 10 horas e 43 minutos.
As matérias selecionadas foram submetidas à análise de conteúdo com abordagem essencialmente quantitativa, mas com algumas categorias que permitiram um aprofundamento qualitativo (Bardin, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.). Essa opção metodológica possibilita a coleta e a análise de informações referentes ao corpus por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo e se organiza em torno de três partes - pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação (Bardin, 2016BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2016.). Na pré-análise, formulamos os objetivos da pesquisa, delimitamos o universo de estudo e constituímos o corpus. Também foi nessa fase que definimos cada matéria como unidade de codificação.
A partir de então, para categorizar e classificar as matérias, recorremos ao protocolo analítico proposto por Massarani e Ramalho (2012MASSARANI, Luisa; RAMALHO, Marina (orgs.). Monitoramento e capacitação em jornalismo científico: a experiência de uma rede ibero-americana. Rio de Janeiro: Museu da Vida / Casa de Oswaldo Cruz /Fiocruz; Ciespal, 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.museudavida.fiocruz.br/images/Publicacoes_Educacao/PDFs/monitoramentoecapacitacaoemjornalismocientifico.pdf . Acesso em: 16 fev. 2023.
http://www.museudavida.fiocruz.br/images... ). O protocolo foi inicialmente desenvolvido para analisar notícias científicas em telejornais, mas tem sido adaptado para outros gêneros televisivos e impressos e em contextos de pandemia (Massarani; Leal et al., 2021MASSARANI, Luisa; LEAL, Tatiane; WALTZ, Igor; MODESTO, Michelle; BROTAS, Antonio. A vacina em pauta: a produção de sentidos na cobertura da Folha de S. Paulo. CONTRACAMPO (UFF), v. 40, p. 1, 2021. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.22409/contracampo.v40i1.47457 Acesso em: 16 fev. 2023.
https://doi.org/10.22409/contracampo.v40... ; Massarani; Waltz et al., 2021MASSARANI, Luisa; LEAL, Tatiane; WALTZ, Igor; MODESTO, Michelle; BROTAS, Antonio. A vacina em pauta: a produção de sentidos na cobertura da Folha de S. Paulo. CONTRACAMPO (UFF), v. 40, p. 1, 2021. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.22409/contracampo.v40i1.47457 Acesso em: 16 fev. 2023.
https://doi.org/10.22409/contracampo.v40... ). Por se tratar de um estudo restrito à cobertura sobre vacinas, propusemos adaptações ao instrumento. Assim, as categorias propostas buscaram mapear as características gerais da cobertura, o tratamento dado à vacina, o enquadramento narrativo mais explorado, o tratamento geral dado à matéria, os atores sociais (fontes e vozes) utilizados nas matérias e, por fim, a localização dos estudos científicos e/ou das campanhas de vacinação noticiadas. A versão esquemática do protocolo está apresentada no Quadro 1. Para armazenar os dados coletados, utilizamos uma planilha do programa Excel.
Fazemos a ressalva de que consideramos para os estudos de enquadramento (framing) midiático, contemplados na terceira dimensão do protocolo analítico, o proposto por Gamson e Modigliani (1989GAMSON, W. A.; MODIGLIANI, A. Media discourse and public opinion on nuclear power: a constructionist approach. American Journal of Sociology, Chicago, v. 95, n. 1, p. 1-37, 1989. DOI: 10.1086/229213
https://doi.org/10.1086/229213... ), que veem os frames como as ideias centrais da narrativa construída pela mídia. Os enquadramentos narrativos adotados em uma cobertura midiática podem colaborar para a construção de sentidos sobre o tema em questão (Gamson; Modigliani, 1989GAMSON, W. A.; MODIGLIANI, A. Media discourse and public opinion on nuclear power: a constructionist approach. American Journal of Sociology, Chicago, v. 95, n. 1, p. 1-37, 1989. DOI: 10.1086/229213
https://doi.org/10.1086/229213... ). A escolha dos quadros utilizados nesta pesquisa se deu com base no protocolo desenvolvido por Massarani e Ramalho (2012MASSARANI, Luisa; RAMALHO, Marina (orgs.). Monitoramento e capacitação em jornalismo científico: a experiência de uma rede ibero-americana. Rio de Janeiro: Museu da Vida / Casa de Oswaldo Cruz /Fiocruz; Ciespal, 2012. Disponível em: Disponível em: http://www.museudavida.fiocruz.br/images/Publicacoes_Educacao/PDFs/monitoramentoecapacitacaoemjornalismocientifico.pdf . Acesso em: 16 fev. 2023.
http://www.museudavida.fiocruz.br/images... ) e na adaptação utilizada para análise da cobertura, focalizada no combate à desinformação sobre a vacina contra a covid-19 (Massarani; Leal et al., 2021MASSARANI, Luisa; LEAL, Tatiane; WALTZ, Igor; MODESTO, Michelle; BROTAS, Antonio. A vacina em pauta: a produção de sentidos na cobertura da Folha de S. Paulo. CONTRACAMPO (UFF), v. 40, p. 1, 2021. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.22409/contracampo.v40i1.47457 Acesso em: 16 fev. 2023.
https://doi.org/10.22409/contracampo.v40... ). No Quadro 2 detalhamos os 10 frames considerados para este estudo. Em consonância ao proposto pela ferramenta original, a codificadora registrou a presença de até três frames por matéria.
Resultados e discussão
A seguir, apresentamos e discutimos os principais resultados relacionados à cobertura sobre vacinas dos programas Fantástico e Domingo Espetacular nos primeiros 18 meses da pandemia de covid-19, de março de 2020 a agosto de 2021.
Visibilidade para as vacinas
No período de análise, ambos os programas deram visibilidade ao binômio vacinas e vacinação. Contudo, o dominical da TV Globo dedicou três vezes mais tempo ao tema (7 horas, 56 minutos e 47 segundos) do que seu concorrente da Record TV (2 horas, 46 minutos e 49 segundos), mesmo contando com edições um pouco mais curtas (cerca de 50 minutos a menos por domingo). Vimos como a cobertura ganhou volume conforme as pesquisas em torno das novas vacinas progrediram. O clímax da narrativa se deu com a aprovação de uso emergencial das fórmulas contra a covid-19 e o subsequente início da vacinação no país. Os programas deram mais atenção à temática da vacinação no ano de 2021 (de janeiro a agosto, n= 86), em comparação a 2020 (de março a dezembro, n= 24), como também observado por Massarani e Neves (2021MASSARANI, L.; NEVES, L. F. F. Communicating the ‘race’ for the covid-19 vaccine: an exploratory study in newspapers in the United States, the United Kingdom and Brazil. Frontiers, Lausanne, v. 6, 2021. DOI: 10.3389/fcomm.2021.643895
https://doi.org/10.3389/fcomm.2021.64389... ).
De modo geral, ambos exibiram detalhes do processo científico de desenvolvimento dos imunizantes, ainda que o Domingo Espetacular nem sempre tenha contribuído para nutrir expectativas realistas no público, como visto na inconsistência dos prazos divulgados para o desenvolvimento e a liberação de uso das vacinas anticovid - lembramos que o público precisava de acesso a informações o mais contextualizadas possível para a tomada de decisão em saúde. A descontextualização é uma crítica à cobertura de temas científicos (Massarani; Moreira, 2021MASSARANI, L.; MOREIRA, I. de C. Divulgação científica no Brasil: algumas reflexões sobre a história e desafios atuais. In: MASSARANI, L.; MOREIRA, I. (Ed.). Pesquisa em divulgação científica: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content/uploads/2021/04/Livro-VPEIC_pesquisa_divulgacao_cientifica_final.pdf . Acesso em: 26 mai 2023.
https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content... ) e, mais especificamente, à cobertura referente à vacinação. Além disso, a falta de contextualização pode contribuir para a desinformação (Machado; Gitahy, 2022MACHADO, D.; GITAHY, L. Verbete: Desinformação (Combate à). In: SWAKO, J.; RATTON, J. L. (Org.). Dicionário dos negacionismos no Brasil. Editora Cepe, 2022.).
Uma dose de esperança
No que concerne ao tratamento dado à vacina, os dois programas se concentraram na cobertura das vacinas contra a covid-19, mencionadas em todas as matérias investigadas, e não deram destaque para as vacinas contra outras doenças imunopreveníveis, mesmo com a expressiva queda nos índices de cobertura vacinal - o que está em concordância com um estudo que sugere que a mídia concede mais atenção às doenças imunopreveníveis durante surtos do que em outros períodos (Langbecker; Catalan-Matamoros, 2021LANGBECKER, A.; CATALAN-MATAMOROS, D. Na era das descrenças e incertezas: a cobertura jornalística sobre as vacinas nos jornais portugueses. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 3, p. e200929, 2021. DOI: 10.1590/S0104-12902021200929
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ). No que diz respeito à identificação das vacinas pelo nome de comercialização e/ou fabricante, identificamos que as fórmulas prevalentes foram Oxford, AstraZeneca e Fiocruz, citadas em 47 das 110 matérias analisadas, e a Coronavac, citada em 44 matérias, destaque que já havia aparecido em outro estudo sobre o período pandêmico (Massarani et al., 2021MASSARANI, L. et al. Narrativas sobre vacinação em tempos de fake news: uma análise de conteúdo em redes sociais. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 30, n. 2, p. e200317, 2021. DOI: 10.1590/S0104-12902021200317
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ).
Em relação ao posicionamento sobre a imunização, nossos resultados indicam os programas como promotores de informações pró-vacinação, dada a prevalência de matérias cujo posicionamento foi considerado explicitamente favorável às vacinas - no Fantástico foram 56 das 83 matérias e no Domingo Espetacular 18 das 27 matérias. As demais foram codificadas como posicionamento neutro. O incentivo à vacinação se deu por meio da disseminação de mensagens informativas que valorizam, principalmente, os aspectos relacionados à prevenção e proteção geradas pelas vacinas e ao impacto positivo do processo, conforme observado em outros estudos sobre cobertura da vacinação (Massarani; Waltz et al., 2021MASSARANI, Luisa; LEAL, Tatiane; WALTZ, Igor; MODESTO, Michelle; BROTAS, Antonio. A vacina em pauta: a produção de sentidos na cobertura da Folha de S. Paulo. CONTRACAMPO (UFF), v. 40, p. 1, 2021. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.22409/contracampo.v40i1.47457 Acesso em: 16 fev. 2023.
https://doi.org/10.22409/contracampo.v40... ; Langbecker; Catalan-Matamoros, 2021LANGBECKER, A.; CATALAN-MATAMOROS, D. Na era das descrenças e incertezas: a cobertura jornalística sobre as vacinas nos jornais portugueses. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 3, p. e200929, 2021. DOI: 10.1590/S0104-12902021200929
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ; Catalan-Matamoros; Peñafiel-Saiz, 2020CATALAN-MATAMOROS, D.; PEÑAFIEL-SAIZ, C. Exploring the relationship between newspaper coverage of vaccines and childhood vaccination rates in Spain. Human Vaccines & Immunotherapeutics, Austin, v. 16, n. 5, p. 1055-1061, 2020. DOI: 10.1080/21645515.2019.1708163
https://doi.org/10.1080/21645515.2019.17... ).
Ademais, não podemos ignorar que o posicionamento do Fantástico e do Domingo Espetacular a favor da vacinação ocorreu em um momento crítico para o país, marcado por declarações desencontradas do governo federal e do então presidente Jair Bolsonaro sobre o tema. Assim, havia lacunas de informação relacionadas a diversos aspectos da vacinação - como intervalos entre as doses, intercambialidade vacinal e eventos adversos - resultantes da falta de ações coordenadas de comunicação por parte do governo (Maciel et.al. 2022MACIEL, E. et al. A campanha de vacinação contra o SARS-CoV-2 no Brasil e a invisibilidade das evidências científicas. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 27, n. 03, p. 951-956, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232022273.21822021
https://doi.org/10.1590/1413-81232022273... ). Em survey do INCT-CPCT, 46,7% dos entrevistados concordam que “O governo federal deu informações falsas sobre a vacina da covid-19” (Massarani et al., 2022MASSARANI, L. et al. Confiança na ciência no Brasil em tempos de pandemia. Resumo Executivo. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC; Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.inct-cpct.ufpa.br/index/2022/12/12/disponivel-o-resumo-executivo-da-survey-confianca-na-ciencia-no-brasil-em-tempos-de-pandemia-realizada-pelo-inct-cpct/ >. Acesso em: 26 dez. 2022.
https://www.inct-cpct.ufpa.br/index/2022... ). Neste cenário, o papel informativo da mídia tradicional foi reforçado e os programas brasileiros tiveram atestada a sua contribuição para a promoção dos benefícios da vacinação.
A divulgação dos benefícios das vacinas é fundamental nas ações de comunicação sobre o tema. Se por um lado os benefícios das vacinas foram enfatizados, por outro seus danos e/ou riscos foram pouco abordados. Verificamos que a menção aos danos e/ou riscos associados às vacinas ocorreu em seis matérias do Fantástico e em uma matéria do Domingo Espetacular, com ênfase nas vacinas das fórmulas Oxford, AstraZeneca e Fiocruz. Essas sete matérias também mencionaram os benefícios da vacinação, principalmente por meio da informação de que estes superam os potenciais riscos.
A baixa prevalência da abordagem de danos e/ou riscos das vacinas pode ser uma lacuna de informação importante, principalmente quando os eventos supostamente atribuíveis à vacinação estão no foco do conteúdo de desinformação vacinal, como ocorreu no período estudado. Pesquisadores apontam que esse é um aspecto da cobertura sobre vacinação cujo equilíbrio é difícil de encontrar, uma vez que é preciso divulgar as reações adversas, mas não é indicado que estas sejam superestimadas (Machingaidze; Wiysonge, 2021MACHINGAIDZE, S.; WIYSONGE, C. S. Understanding covid-19 vaccine hesitancy. Nature Medicine, Nova York, v. 27, p. 1338-1339, 2021. DOI: 10.1038/s41591-021-01459-7
https://doi.org/10.1038/s41591-021-01459... ). No entanto, munir o público com conhecimento sobre o tema pode colaborar para deixá-lo menos vulnerável à desinformação, principalmente quando consideramos que o receio com relação aos efeitos colaterais é um dos motivos apontados para a hesitação vacinal (Machingaidze; Wiysonge, 2021MACHINGAIDZE, S.; WIYSONGE, C. S. Understanding covid-19 vaccine hesitancy. Nature Medicine, Nova York, v. 27, p. 1338-1339, 2021. DOI: 10.1038/s41591-021-01459-7
https://doi.org/10.1038/s41591-021-01459... ).
Em relação à menção de controvérsias e/ou incertezas, fossem elas no âmbito científico ou não, identificamos apenas 11 inserções no Fantástico e cinco no Domingo Espetacular, todas relacionadas ao campo científico. Os resultados encontrados estão em consonância com estudos anteriores, como o de Massarani; Waltz et al. (2021MASSARANI, Luisa; LEAL, Tatiane; WALTZ, Igor; MODESTO, Michelle; BROTAS, Antonio. A vacina em pauta: a produção de sentidos na cobertura da Folha de S. Paulo. CONTRACAMPO (UFF), v. 40, p. 1, 2021. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.22409/contracampo.v40i1.47457 Acesso em: 16 fev. 2023.
https://doi.org/10.22409/contracampo.v40... ). Entre os temas controversos das matérias analisadas, predominou o (pouco) tempo de desenvolvimento das vacinas contra a covid-19 - um dos assuntos presentes no conteúdo de desinformação que circulou no período de análise. Nesse sentido, consideramos positiva a abordagem deste aspecto pelos programas, a fim de reforçar para o público a segurança e a eficácia das vacinas (Massarani; Waltz et al., 2021MASSARANI, Luisa; LEAL, Tatiane; WALTZ, Igor; MODESTO, Michelle; BROTAS, Antonio. A vacina em pauta: a produção de sentidos na cobertura da Folha de S. Paulo. CONTRACAMPO (UFF), v. 40, p. 1, 2021. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.22409/contracampo.v40i1.47457 Acesso em: 16 fev. 2023.
https://doi.org/10.22409/contracampo.v40... ).
Ambos os programas se valeram da estratégia de adjetivação ao fazer menção às vacinas. O recurso foi utilizado em 19 das 83 matérias analisadas do dominical da TV Globo e em nove das 27 matérias investigadas do programa da Record TV. As expressões mais utilizadas nas matérias analisadas evocam emoções positivas, principalmente a esperança, como vemos no Fantástico em “porta de esperança que se abre para todos nós” e no Domingo Espetacular em “injeção de ânimo e de esperança”. Também se destacam as menções às vacinas como responsáveis pela vitória contra o vírus, como vemos no Fantástico em “[vacina] salvadora” e no Domingo Espetacular em “arma eficaz para neutralizar o coronavírus”.
Outro ponto observado é que o Fantástico associa a ciência à adjetivação das vacinas, como em “a vitória da ciência” e “um verdadeiro marco e em tempo recorde na ciência”; tal associação não foi vista no Domingo Espetacular. Considera-se que promover o apelo a emoções como a esperança e a alegria pode ser um componente relevante nos esforços de comunicação pró-vacinação (Chou; Budenz, 2020CHOU, W.-Y.S.; BUDENZ, A. Considering emotion in covid-19 vaccine communication: addressing vaccine hesitancy and fostering vaccine confidence. Health communication, Hillsdale, v. 35, n. 14, p. 1718-1722, 2020. DOI: 10.1080/10410236.2020.1838096
https://doi.org/10.1080/10410236.2020.18... ). Por outro lado, argumentamos que o discurso hiperbólico pode ser problemático quando exagera aspectos positivos e/ou benéficos relacionados à ciência e superestima descobertas científicas, o que pode gerar expectativas irreais no público.
Além do recurso de adjetivação, também observamos que houve atribuição de nacionalidade às vacinas, com ênfase à procedência chinesa, principalmente pelo Domingo Espetacular, em uma escolha editorial que pode sugerir alinhamento ao discurso do governo Bolsonaro (Guerreiro; Almeida, 2021GUERREIRO, C.; ALMEIDA, R. de. Negacionismo religioso: Bolsonaro e lideranças evangélicas na pandemia covid-19. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 41, n. 2, p. 49-74, 2021. DOI: 10.1590/0100-85872021v41n2cap02
https://doi.org/10.1590/0100-85872021v41... ; Galhardi et al., 2022GALHARDI, C. P. et al. Fake news e hesitação vacinal no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 5, p. 1849-1858, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232023282.17842022
https://doi.org/10.1590/1413-81232023282... ). No contexto brasileiro, a Coronavac foi alvo de desinformação tanto por ter sido desenvolvida na China, sendo negativamente rotulada como vacina chinesa, como por ter sido associada a João Doria, opositor político do então presidente Bolsonaro (Massarani et al., 2021MASSARANI, L. et al. Narrativas sobre vacinação em tempos de fake news: uma análise de conteúdo em redes sociais. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 30, n. 2, p. e200317, 2021. DOI: 10.1590/S0104-12902021200317
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ; Galhardi et al., 2022GALHARDI, C. P. et al. Fake news e hesitação vacinal no contexto da pandemia da covid-19 no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 27, n. 5, p. 1849-1858, 2022. DOI: 10.1590/1413-81232023282.17842022
https://doi.org/10.1590/1413-81232023282... ). Neste cenário, pesquisadores apontam a importância de os meios de comunicação não difundirem estigmas relacionados a aspectos étnico-raciais (Massarani; Neves, 2021MASSARANI, L.; NEVES, L. F. F. Communicating the ‘race’ for the covid-19 vaccine: an exploratory study in newspapers in the United States, the United Kingdom and Brazil. Frontiers, Lausanne, v. 6, 2021. DOI: 10.3389/fcomm.2021.643895
https://doi.org/10.3389/fcomm.2021.64389... ).
Lado a lado, estratégias políticas e novas pesquisas
O estudo dos enquadramentos narrativos das matérias do nosso corpus revelou a complexidade da cobertura sobre o tema no período em questão, tendo em vista que a multiplicidade de frames explorados tanto pelo Fantástico como pelo Domingo Espetacular sinaliza como as matérias sobre vacinas e vacinação não estiveram restritas ao âmbito científico. Vimos como positiva essa diversidade de enquadramentos, uma vez que a ciência é multifacetada e atravessada por questões sociais, culturais e políticas. No Gráfico 1 é possível visualizar a distribuição das matérias entre os frames considerados. Conforme mencionado na seção de metodologia, a codificadora deveria apontar até três enquadramentos. Assim, o total de enquadramentos identificados (217) é maior do que o número de matérias analisadas (110).
Matérias sobre vacinas do Fantástico e do Domingo Espetacular por tipo de enquadramento narrativo no período de março de 2020 a agosto de 2021
Entre as matérias do Fantástico, o enquadramento mais explorado foi o de estratégia política e políticas públicas (56 matérias, ou seja, 67,5% do total de 83 matérias analisadas), enquanto no Domingo Espetacular o frame mais usado foi o de nova pesquisa e/ou novo desenvolvimento tecnológico (17 matérias, 63% do total de 27 matérias analisadas). A seguir, comentaremos com mais detalhes as diferenças observadas na cobertura dos programas a partir da análise dos dois enfoques narrativos mais utilizados por ambos.
O Fantástico realizou uma cobertura crítica à gestão da pandemia feita pelo governo federal, com posicionamento a favor das vacinas e da vacinação em massa da população e espaço para recomendações de saúde com base em evidências científicas e em instruções de organizações internacionais - achados consonantes aos apontados por Becker (2021BECKER, B. Reconfigurações do Jornalismo Audiovisual: um estudo da cobertura do Fantástico sobre a pandemia da covid-19. Lumina, Juiz de Fora, v. 15, n. 3, p. 6-22, 2021. DOI: 10.34019/1981-4070.2021.v15.35300
https://doi.org/10.34019/1981-4070.2021.... ). Além disso, se considerarmos os números absolutos, o programa da TV Globo exibiu quase cinco vezes mais matérias com este enquadramento (n= 56) do que o dominical da Record TV (n= 12).
Apesar do enfoque de estratégia política também ter sido identificado na cobertura do Domingo Espetacular (12 matérias), isso se deu apenas a partir de dezembro de 2020 e devido, principalmente, à visibilidade concedida à distribuição das vacinas, às discussões sobre os públicos prioritários na campanha de vacinação e aos erros durante a aplicação das vacinas no país, como vemos em “Saúde inclui veterinários em grupo prioritário de vacinação e decisão gera polêmica”33Disponível em: https://youtu.be/aXMci_JAMY8. Acesso em: 26 mai 2023. (edição de 24.1.2021) e “Domingo Espetacular investiga denúncias de erros na aplicação da vacina contra a covid-19”.44Disponível em: https://fb.watch/s_oEjGA4vg/. Acesso em: 26 mai 2023. (edição de 21.2.2021)
Além disso, não observamos nas matérias do Domingo Espetacular analisadas a repercussão de questões relativas à CPI da Pandemia, nem problematizações sobre o tempo decorrido para a aquisição das vacinas por parte do governo federal, o que sugere que a politização da cobertura do programa não se deve apenas às matérias que exploraram o enfoque de estratégia política e políticas públicas, mas também ao apagamento de narrativas críticas às ações do governo Bolsonaro na gestão da pandemia de covid-19. A adoção do frame de estratégias políticas e políticas públicas por ambos os programas proporcionou visibilidade a instituições ligadas à saúde, como o Instituto Butantan e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Com olhar mais aprofundado, percebemos que não houve nas matérias analisadas menção explícita à atuação do SUS no enfrentamento da covid-19, ainda que as ações de vacinação desenvolvidas no âmbito do sistema público de saúde tenham aparecido nas coberturas, assim como as instituições a ele vinculadas, o que se alinha ao apontado por Lerner, Cardoso e Clébicar (2021LERNER, K.; CARDOSO, J. M.; CLÉBICAR, T. Covid-19 nas mídias: medo e confiança em tempos de pandemia. In: MATTA, G. C.; REGO, S.; SOUTO, E. P.; SEGATA, J. (Org.). Os impactos sociais da covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid 19; Editora Fiocruz, 2021. DOI: 10.7476/9786557080320
https://doi.org/10.7476/9786557080320... ). Ademais, consideramos que uma cobertura que evidenciasse a associação do SUS à política de vacinação desenvolvida no país poderia ter colaborado, em alguma medida, para promover a confiança no sistema público de saúde, aspecto este que pode, inclusive, influenciar no comportamento dos indivíduos hesitantes em se vacinar (Martin; Stanton; Johnson, 2023MARTIN, K. J.; STANTON, A. L.; JOHNSON, K. L. Current health care experiences, medical trust, and covid-19 vaccination intention and uptake in black and white americans. Health Psychology, Hillsdale, v. 42, n. 8, p. 541-550, 2023. DOI: 10.1037/hea0001240
https://doi.org/10.1037/hea0001240... ).
Com relação ao uso do enfoque narrativo de nova pesquisa e/ou novo desenvolvimento tecnológico, observamos que ambos os programas ofereceram uma apresentação essencialmente otimista referente ao tema da vacinação, com ênfase nas pesquisas científicas em busca da vacina contra a covid-19. Contudo, essa característica apareceu de modo mais acentuado no Domingo Espetacular, inclusive, em alguns momentos, aliada ao exagero e à imprecisão das informações. Uma abordagem otimista, com ênfase nas promessas da ciência, é presença recorrente nas análises feitas sobre a cobertura científica antes da pandemia de covid-19 (Massarani; Moreira, 2021MASSARANI, L.; MOREIRA, I. de C. Divulgação científica no Brasil: algumas reflexões sobre a história e desafios atuais. In: MASSARANI, L.; MOREIRA, I. (Ed.). Pesquisa em divulgação científica: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content/uploads/2021/04/Livro-VPEIC_pesquisa_divulgacao_cientifica_final.pdf . Acesso em: 26 mai 2023.
https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content... ).
Associada ao otimismo, outra questão que percebemos no Domingo Espetacular ao explorar o enfoque nova pesquisa e/ou novo desenvolvimento tecnológico foi a ênfase na veiculação de notícias com teor positivo, como expresso em “Coronavírus: veja as boas notícias que trazem esperança nesse momento”55Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_x1p7n4dqR4. Acesso em: 26 mai 2023.(edição de 22.3.2020). A matéria foi ao ar cinco dias após o anúncio da primeira morte por covid-19 no Brasil e dois dias após a declaração de transmissão comunitária do vírus. É oportuno lembrar que, neste período, a imprensa, de um modo generalizado, foi apontada pelo presidente da República como responsável por uma cobertura pessimista.
Em pronunciamento oficial de Jair Bolsonaro, em 24 de março de 2020, o mandatário chegou a afirmar que os meios de comunicação espalharam a sensação de pavor. A valorização de aspectos negativos na cobertura noticiosa não é uma crítica recente ao jornalismo de maneira geral. Consideramos que, no caso da Record TV, neste período, esta opção editorial por boas notícias pode estar alinhada às relações de proximidade da emissora com o governo federal (Guerreiro; Almeida, 2021GUERREIRO, C.; ALMEIDA, R. de. Negacionismo religioso: Bolsonaro e lideranças evangélicas na pandemia covid-19. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 41, n. 2, p. 49-74, 2021. DOI: 10.1590/0100-85872021v41n2cap02
https://doi.org/10.1590/0100-85872021v41... ). Por fim, destacamos que, ao explorar o enfoque nova pesquisa e/ou novo desenvolvimento tecnológico, o Domingo Espetacular exibiu matérias cujos títulos enfatizavam previsões não fundamentadas sobre a vacina anticovid. Conforme já mencionamos, a divulgação de prazos inconsistentes na cobertura científica está associada ao otimismo exagerado.
No mesmo período, ao explorar o enfoque nova pesquisa e/ou novo desenvolvimento tecnológico, o Fantástico também focou na busca pelas vacinas, mas com uma apresentação mais realista das pesquisas científicas e com mais detalhamento sobre o processo em questão, quando comparado ao Domingo Espetacular. Tal posicionamento pode ser exemplificado pela primeira matéria do dominical da TV Globo sobre o tema: “Cientistas testam remédio do Ebola contra o novo coronavírus”66Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/8364366/?s=0s. Acesso em: 26 mai 2023. (edição de 1.3.2020). Mesmo otimista, a matéria do Fantástico apresentou mais nuances quanto aos processos científicos, o que pode contribuir para a percepção da população sobre a complexidade do fazer científico - questão fundamental nas discussões contemporâneas sobre comunicação pública da ciência e divulgação científica (Massarani; Moreira, 2021MASSARANI, L.; MOREIRA, I. de C. Divulgação científica no Brasil: algumas reflexões sobre a história e desafios atuais. In: MASSARANI, L.; MOREIRA, I. (Ed.). Pesquisa em divulgação científica: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content/uploads/2021/04/Livro-VPEIC_pesquisa_divulgacao_cientifica_final.pdf . Acesso em: 26 mai 2023.
https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content... ).
Fontes e vozes
A investigação das fontes e vozes protagonistas nas matérias exibidas no Fantástico e no Domingo Espetacular nos ajuda a compreender como foi construída a narrativa sobre a vacinação no período estudado, pois identificamos os atores sociais legitimados por ambos os programas como enunciadores do tema em questão. Optamos por manter a distinção entre fontes e vozes, de modo a identificar as fontes utilizadas para construção da matéria e contrastá-las com as vozes, isto é, os atores explicitamente entrevistados (aqueles que aparecem falando no vídeo). Ressaltamos que todas as vozes foram também consideradas como fontes.
Em relação às fontes de informação, identificamos que nos dois programas predominaram instituições e/ou representantes do Poder Executivo (Fantástico, n= 46; Domingo Espetacular, n= 16) e cientistas e/ou institutos de pesquisa (Fantástico, n= 0; Domingo Espetacular, n= 17) - o que reflete a dinâmica da cobertura no período estudado, em que questões científicas e políticas estiveram lado a lado nos holofotes, conforme vimos na investigação dos principais enquadramentos explorados. Lembramos que em estudo sobre a cobertura da epidemia de gripe H1N1 no Fantástico, Medeiros e Massarani (2011) identificaram representantes de governo como as fontes de informação mais frequentes, o que vai ao encontro dos nossos resultados. A tendência de conceder mais importância às fontes oficiais também foi apontada por Langbecker e Catalan-Matamoros (2021LANGBECKER, A.; CATALAN-MATAMOROS, D. Na era das descrenças e incertezas: a cobertura jornalística sobre as vacinas nos jornais portugueses. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 3, p. e200929, 2021. DOI: 10.1590/S0104-12902021200929
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ). Entretanto, foi notório o pouco espaço concedido ao então presidente Jair Bolsonaro como fonte (Fantástico, n= 4; Domingo Espetacular, n= 0), citado menos vezes do que o então governador de São Paulo, João Doria (Fantástico, n= 5; Domingo Espetacular, n= 3).
De maneira geral, o programa da TV Globo apresentou um conjunto mais plural de fontes do que seu concorrente da Record TV, o que pode sugerir mais qualidade na informação divulgada aos telespectadores, na medida em que a pluralidade de fontes permite que mais perspectivas sejam apresentadas ao público. Com relação ao Poder Executivo, o Ministério da Saúde foi a principal fonte de informação (Fantástico, n= 20; Domingo Espetacular, n= 5). Já em relação às instituições científicas, as fontes prevalentes foram o Instituto Butantan (Fantástico, n= 16; Domingo Espetacular, n= 8) e a Fiocruz (Fantástico, n= 5; Domingo Espetacular, n=3), que tiveram papel fundamental na produção das vacinas contra covid-19 no país. Ambas as instituições também foram protagonistas na cobertura do jornal Folha de S. Paulo, de janeiro a outubro de 2020, como apontado por Massarani e Neves (2021MASSARANI, L.; NEVES, L. F. F. Communicating the ‘race’ for the covid-19 vaccine: an exploratory study in newspapers in the United States, the United Kingdom and Brazil. Frontiers, Lausanne, v. 6, 2021. DOI: 10.3389/fcomm.2021.643895
https://doi.org/10.3389/fcomm.2021.64389... ). Survey do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) revela que o Instituto Butantan e a Fiocruz estão entre as instituições científicas mais citadas pelos brasileiros (Massarani et al., 2022MASSARANI, L. et al. Confiança na ciência no Brasil em tempos de pandemia. Resumo Executivo. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC; Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia, 2022. Disponível em: <Disponível em: https://www.inct-cpct.ufpa.br/index/2022/12/12/disponivel-o-resumo-executivo-da-survey-confianca-na-ciencia-no-brasil-em-tempos-de-pandemia-realizada-pelo-inct-cpct/ >. Acesso em: 26 dez. 2022.
https://www.inct-cpct.ufpa.br/index/2022... ).
Observamos que o cientista mais explorado como fonte de informação nos dois programas foi Dimas Covas, diretor do Instituto Butantan, que esteve à frente das declarações sobre a Coronavac e, posteriormente, sobre a Butanvac. No Fantástico, também houve destaque para a epidemiologista Carla Domingues, ex-coordenadora do PNI; a microbiologista Natalia Pasternak, que empreendeu esforços de divulgação científica com o Instituto Questão de Ciência; o infectologista Ésper Kallas, professor e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP); e a pneumologista Margareth Dalcolmo, pesquisadora da Fiocruz. Já no Domingo Espetacular, ganharam destaque Natalia Pasternak e o diretor de pesquisa do Butantan, Ricardo Palacios, que liderou os estudos de fase 3 em Serrana, SP.
O uso das fontes especializadas traz mais credibilidade ao conteúdo divulgado sobre a vacinação e pode influenciar de modo positivo a percepção do público sobre as vacinas e seus benefícios, como demarcam Langbecker e Catalan-Matamoros (2021LANGBECKER, A.; CATALAN-MATAMOROS, D. Na era das descrenças e incertezas: a cobertura jornalística sobre as vacinas nos jornais portugueses. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 30, n. 3, p. e200929, 2021. DOI: 10.1590/S0104-12902021200929
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202120... ) e Lerner, Cardoso e Clébicar (2021LERNER, K.; CARDOSO, J. M.; CLÉBICAR, T. Covid-19 nas mídias: medo e confiança em tempos de pandemia. In: MATTA, G. C.; REGO, S.; SOUTO, E. P.; SEGATA, J. (Org.). Os impactos sociais da covid-19 no Brasil: populações vulnerabilizadas e respostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório Covid 19; Editora Fiocruz, 2021. DOI: 10.7476/9786557080320
https://doi.org/10.7476/9786557080320... ). Apesar das semelhanças entre os programas no que diz respeito às instituições de pesquisa mais utilizadas como fontes, ressaltamos que também foram observadas diferenças, como a já citada maior pluralidade de fontes por parte do Fantástico e a participação de personalidades controversas na cobertura do Domingo Espetacular, como Anthony Wong77“Infectologista responde dúvidas sobre vacina contra a covid-19 - DE Responde” (edição de 6.9.2020), disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RVfrnrbZde0. Acesso em: 26 mai 2023. - médico que ficou conhecido na pandemia por declarações negacionistas e morreu de covid-19 no hospital da Prevent Senior.
No que diz respeito às vozes, os cientistas foram os principais entrevistados nos dois programas, seguidos por cidadãos, enquanto os representantes do Poder Executivo aparecem em terceiro lugar. Ambos os programas entrevistaram mais vezes cientistas homens em comparação às cientistas mulheres, porém, no Domingo Espetacular, o desequilíbrio de gênero foi maior. O corpo de cientistas entrevistados não condiz com o contexto científico brasileiro, uma vez que o país registra a mesma proporção de mulheres e homens cientistas, de acordo com dados do censo realizado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, 2016CNPq - CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO. Censo atual, Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil Lattes, Brasília, DF, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://lattes.cnpq.br/web/dgp/censo-atual/ >. Acesso em: 16 fev. 2023.
http://lattes.cnpq.br/web/dgp/censo-atua... ). Nossos resultados são consonantes a estudos anteriores sobre a cobertura de temas científicos nos meios de comunicação brasileiros (Massarani; Moreira, 2021MASSARANI, L.; MOREIRA, I. de C. Divulgação científica no Brasil: algumas reflexões sobre a história e desafios atuais. In: MASSARANI, L.; MOREIRA, I. (Ed.). Pesquisa em divulgação científica: textos escolhidos. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content/uploads/2021/04/Livro-VPEIC_pesquisa_divulgacao_cientifica_final.pdf . Acesso em: 26 mai 2023.
https://www.inct-cpct.ufpa.br/wp-content... ).
Considerações finais
Em 2020, a crise sanitária provocada pela covid-19 levou a uma corrida sem precedentes pela produção de uma vacina segura e eficaz. Neste contexto, investigamos como duas revistas eletrônicas televisivas com linhas editoriais e públicos-alvo distintos exibidas no horário nobre dos domingos - o Fantástico (TV Globo) e o Domingo Espetacular (Record TV) - apresentaram e deram visibilidade à temática da vacinação nos primeiros 18 meses pandêmicos, de março de 2020 a agosto de 2021.
A partir de nossa análise, observamos como o Fantástico e o Domingo Espetacular desempenharam um papel relevante na promoção de informações referentes à vacinação para o público brasileiro, com menção explícita aos benefícios da vacinação, em um período em que houve lacunas de informação referentes ao tema por parte do governo federal. De modo geral, ambos os programas estimularam a população a confiar nas vacinas, contudo exageros e imprecisões foram vistos nas matérias do Domingo Espetacular.
Esta pesquisa exploratória, junto a outros estudos similares, contribui para a construção do conhecimento científico sobre como se deu a cobertura referente ao binômio vacinas e vacinação na televisão brasileira durante o início da pandemia de covid-19. Contudo, não ignoramos que análises de programas televisivos, mais especificamente, análises referentes à cobertura de temas específicos- como foram as nossas - não devem ser generalizadas. Por fim, reiteramos que, em um contexto em que a vacinação é colocada em xeque, não podemos ignorar a força da mídia televisiva no Brasil.
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- 1Este estudo foi realizado no escopo do Instituto Nacional de Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia, que conta com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq, 465658/2014-8) e Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ, E-26/200.89972018). O estudo também se insere no projeto apoiado pelo Edital Proep-COC-CNPq 2012, Edital Universal Chamada CNPq/MCTI Nº 10/2023 - Faixa B - Grupos Consolidados, 401881/2023-7) e pela chamada Projeto em cooperação com comprovada articulação internacional (CNPq, 441083/2023-4), liderados por Luisa Massarani. As autoras Silva e Massarani agradecem ao CNPq respectivamente pela Bolsa de Produtividade 2 e 1B. Massarani também agradece à Faperj pela bolsa Cientista do Nosso Estado.
- 2Por mídia tradicional, consideramos televisão, rádio e mídia impressa.
- 3Disponível em: https://youtu.be/aXMci_JAMY8. Acesso em: 26 mai 2023.
- 4Disponível em: https://fb.watch/s_oEjGA4vg/. Acesso em: 26 mai 2023.
- 5Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_x1p7n4dqR4. Acesso em: 26 mai 2023.
- 6Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/8364366/?s=0s. Acesso em: 26 mai 2023.
- 7“Infectologista responde dúvidas sobre vacina contra a covid-19 - DE Responde” (edição de 6.9.2020), disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RVfrnrbZde0. Acesso em: 26 mai 2023.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
22 Jul 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
31 Ago 2023 - Revisado
31 Ago 2023 - Aceito
25 Set 2023