A importância do dissenso interno às ciências: o caso do rastreamento mamográfico do câncer de mama

The importance of internal dissent in the sciences: the case of mammography screening for breast cancer

Charles Dalcanale Tesser Sobre o autor

Resumo

O dissenso interno às ciências é importante para mudanças e correções de rumo no desenvolvimento sociotécnico do cuidado à saúde-doença. Este trabalho discute a recomendação do rastreamento do câncer de mama como um caso de dissenso interno à biomedicina e à saúde pública, o qual merece aplicação de prevenção quaternária (P4), ou seja, a ação de proteger pessoas de danos iatrogênicos e da medicalização desnecessária. A partir de uma revisão crítica-narrativa dos principais aspectos envolvidos na polêmica científica sobre esse rastreamento, argumentamos que há evidências crescentes tornando no mínimo duvidoso - senão negativo - o seu balanço benefícios-danos, devido à dimensão dos maiores danos (sobrediagnósticos e sobretratamentos) e à redução dos benefícios estimados até sua nulidade. Tal dissenso tem sido ofuscado por recomendações oficiais, informes tendenciosos, interesses econômicos e corporativos, crenças ilusórias, expectativas fictícias e pelo paradoxo da popularidade. Argumentamos que a P4 nesse caso significa suspender ou inverter a recomendação positiva da mamografia periódica. Isso constitui um grande desafio institucional, social e político no contexto atual de preventivismo e de apelos morais/emocionais associados. Este tema é um exemplo da necessidade de exploração do dissenso interno às ciências, como via de melhoria crítica de práticas biomédicas preventivas disseminadas e redução de iniquidades em saúde.

Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Prevenção Quaternária; Prevenção de Doenças; Ecologia de saberes

Abstract

Internal dissent within the sciences is important for changes and course corrections in the sociotechnical development of health-disease care. This work discusses the recommendation of breast cancer screening as a case of internal dissent in biomedicine, which deserves the application of quaternary prevention (P4): action to protect people from iatrogenic damage and overmedicalization. Based on a critical narrative review of the main aspects involved in the scientific controversy over this screening, we argue that there is growing evidence making its benefit-harm balance at least doubtful, if not negative, due to the dimension of the greatest damage (overdiagnosis and overtreatment) and the reduction of the estimated benefits, until its nullity. Such dissent has been clouded by official recommendations, biased reports, economic and corporate interests, illusory beliefs, fictitious expectations, and the popularity paradox. We argue that P4 in this case means suspending or reversing the positive recommendation for periodic mammography. This means a great institutional, social and political challenge, in the current context of preventivism and moral/emotional appeal associated. This theme is an example of the need to explore the internal dissent in the sciences as a means of critically improving disseminated preventive biomedical practices and reducing inequalities in health.

Keywords:
Primary Health Care; Quaternary Prevention; Disease Prevention; Ecology of Knowledge

Introdução

A construção da ecologia de saberes (Santos; Meneses, 2010SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. (Orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.) no cuidado à saúde-doença geralmente é pensada envolvendo a abordagem não colonialista de saberes/práticas não biomédicos, agrupados na etiqueta “medicinas tradicionais, complementares e integrativas (MTCI)” (OMS, 2013OMS - Organización Mundial de la Salud. Estrategia de la OMS sobre medicina tradicional: 2014-2023, Genebra: OMS, 2013. Disponível em: Disponível em: https://apps.who.int/iris/handle/10665/95008 Acesso: 7 Abr 2023.
https://apps.who.int/iris/handle/10665/9...
). A relação da biomedicina com as MTCI tem sido de apropriação e violência colonizadoras (Guimarães et al., 2020GUIMARÃES, M. B.; NUNES, J. A.; VELLOSO, M.; BEZERRA, A.; SOUSA, I. M. C. As práticas integrativas e complementares no campo da saúde: para uma descolonização dos saberes e práticas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 1-21, 2020.DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902020190297
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), mas uma descolonização dos saberes/práticas em saúde implica também em descolonizar as ciências, valorizando a pluralidade de métodos e valores e os dissensos no seu interior, por vezes, pouco visíveis.

Certos saberes científicos permanecem limitados e suprimidos no seu desenvolvimento epistêmico-técnico, bem como no seu desdobramento social, por não se adequarem às estratégias de pesquisas e saberes/práticas hegemônicos (Lacey, 2014LACEY, H. Tecnociência comercialmente orientada ou investigação multiestratégica. Scientiae Studia, v. 12, n. 4, p. 669-95, 2014. https://doi.org/10.1590/S1678-31662014000500003
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
). Isso é comum no campo dos problemas sociais, sanitários e ecológicos, originados na aplicação disseminada de tecnologias derivadas de saberes científicos dominantes. Um exemplo são as pesquisas agroecológicas, as quais revalorizam os saberes/práticas agrícolas tradicionais (Lacey, 2015LACEY, H. A agroecologia: uma ilustração da fecundidade da pesquisa multiestratégica. Estudos Avançados, São Paulo, v. 29, n. 83, p. 175-181, 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/s0103-40142015000100008
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
) e também desenvolvem a ciência. Porém, essas pesquisas são marginalizadas pela agricultura industrializada convencional e pelo agronegócio, fortes forças científicas, econômicas e políticas (Mendonça, 2015MENDONÇA, M. L. O Papel da agricultura nas relações internacionais e a construção do conceito de agronegócio”, Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 37, n. 2, p. 375-402, 2015. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/s0102-85292015000200002
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.159...
). A exploração do dissenso interno às ciências é importante para facilitar mudanças nos rumos do desenvolvimento científico e sua aplicação em redes sociotécnicas (Latour, 1994LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, 1994. (Coleção Trans).). Trata-se de garimpar análises críticas de saberes/práticas hegemônicos, visando corrigir/evitar suas consequências danosas.

A prevenção quaternária (P4) é uma prática e um conceito desenvolvido por médicos da atenção primária à saúde (APS) para proteger seus usuários de danos iatrogênicos e da medicalização desnecessária. Ela foi definida como uma ação para identificar o paciente em risco de sobremedicalização, além de protegê-lo de uma nova invasão médica e sugerir intervenções eticamente aceitáveis (Bentzen, 2003BENTZEN, N.. Wonca International Classification Committee (WONCA). Wonca international dictionary for general/family practice. Copenhagen: WONCA, 2003. Disponível em: Disponível em: http://www.ph3c.org/PH3C/docs/27/000092/0000052.pdf Acesso em: 8 Abr 2023
http://www.ph3c.org/PH3C/docs/27/000092/...
).

Doutra parte, o rastreamento (realização de testes diagnósticos em pessoas assintomáticas) com mamografia para a prevenção do câncer de mama se tornou um dissenso científico acirrado, envolvendo a pequenez dos seus benefícios e o reconhecimento de maior magnitude, gravidade e irreversibilidade dos seus danos iatrogênicos. Tal dissenso é pouco discutido no Brasil pela saúde pública e pelos médicos (da APS, ginecologistas, mastologistas, oncologistas) com a sociedade e as usuárias, e menos ainda pelas mídias.

Nosso objetivo é discutir a aplicação da P4 ao rastreamento mamográfico. Metodologicamente, oferecemos uma revisão crítica da literatura selecionada intencionalmente para dar visibilidade e articular a P4 com a polêmica científica sobre a recomendação desse rastreamento. Ambos são pouco conhecidos e analisados pela comunidade sanitária e das ciências sociais em saúde brasileira.

O texto se inicia apresentando sinteticamente a P4, abordando os problemas do rastreamento mamográfico. Em seguida, é sintetizado um esboço de compreensão da persistência da sua recomendação positiva às mulheres, vigente em quase todos os países ocidentais de alta renda. Segue com a sugestão de um resultado da aplicação da P4 ao tema e, finalmente, com a indicação de desafios para a sua concretização.

Devido à vasta literatura científica reafirmando avaliações positivas desse rastreamento e ao disseminado estado de opinião douta e leiga sobre seu alto valor, focamos a discussão na linha provavelmente minoritária sobre o tema, a fim de fortalecer a argumentação. Não se trata, portanto, de uma revisão abrangente da literatura relacionada, mas uma revisão crítica especificamente voltada para um problema: a existência da polêmica na avaliação e recomendação desse rastreamento, crescente há duas décadas (Schneider, 2018SCHNEIDER J. Mammographic screening: the beginning of the end? (Editorial). Revista de Senología y Patología Mamaria, Amsterdam, v. 31, n. 1, p. 1-3, 2018. DOI: https://doi.org/10.1016/j.senol.2018.03.001 0214-1582
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
). Aceitamos a significativa relevância/volume de estudos divergentes dos aqui abordados, mas ficará claro ao longo do texto que uma revisão geral ou sistemática é desnecessária para nosso objetivo.

Prevenção quaternária: conter o intervencionismo biomédico e reduzir seus danos

O antigo lema hipocrático primum no nocere sempre foi remetido à intimidade dos profissionais (Smith, 2005SMITH, C. M. Origin and uses of primum non nocere - Above all, do no harm! The Journal of Clinical Pharmacology, Hoboken, v. 45, n. 4, p. 371-377, 2005. DOI: http://dx.doi.org/10.1177/0091270004273680
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.117...
). A P4 tem a originalidade de conclamar profissionais e gestores, individual e coletivamente, a uma maior qualificação da atividade clínico-sanitária, que é um risco para a saúde (Makary, 2016MAKARY, M.; DANIEL, M. Medical error - the third leading cause of death in the US. BMJ, London, v. 353, p. i2139, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1136/bmj.i2139
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.113...
).

A P4 é importante na prevenção (Tesser, 2017TESSER, C. D. Por que é importante a prevenção quaternária na prevenção? Revista de Saúde Pública , São Paulo, v. 51, n. 116, 2017. DOI: https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017051000041
https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
). Armstrong (1995ARMSTRONG, D. The rise of surveillance medicine. Sociology of Health and Illness, Hoboken v. 17, n. 3, p. 393-404, 1995. DOI: https://doi.org/10.1111/1467-9566.ep10933329
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
) destacou o deslocamento do foco da biomedicina do corpo e das doenças para o futuro, além do monitoramento e controle dos fatores de risco, tornando-se uma “medicina de vigilância”. Com isso, tem-se expandido o número de indivíduos saudáveis convertidos em doentes crônicos, usuários de cuidados preventivos, o que está associado com interesses econômicos (Norman et al., 2017NORMAN, A. H.; HUNTER, D. J.; RUSSELL, A. J. Linking high-risk preventive strategy to biomedical-industry market: implications for public health, Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 26, n. 3, p. 638-650, 2017. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-12902017172682
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
; Hofmann, 2018aHOFMANN, B. Looking for trouble? Diagnostics expanding disease and producing patients, Journal of Evaluation in Clinical Practice, Hoboken, v. 24, n. 5, p. 978-982, 2018a.DOI: http://dx.doi.org/10.1111/jep.12941
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.111...
).

Enquanto os benefícios das ações preventivas se limitarão a um grupo pequeno de pessoas no futuro, via cálculos probabilísticos, os danos são uma potencialidade no presente, com consequências vitalícias não raras (Raffle et al., 2007RAFFLE, A. E.; MACKIE, A.; GRAY, M. Screening: evidence and practice, 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2007.). A virada preventiva da medicina fez com que lideranças internacionais da APS tenham questionado a proeminência das práticas preventivas, as quais passaram da saúde pública e das políticas sociais para a clínica, os rastreamentos e os riscos individuais (Heath, 2005HEATH, I. Who needs health care - the well or the sick? BMJ , London, v. 330, n. 7497, p. 54-6, 2005. DOI: https://doi.org/10.1136/bmj.330.7497.954
https://doi.org/https://doi.org/10.1136/...
; Gervas et al., 2008GERVAS, J.; STARFIELD, B.; HEATH, I. Is clinical prevention better than cure? The Lancet, London, v. 372, n. 9654, p. 1997-1999, 2008. DOI: https://doi.org/10.1016/s0140-6736(08)61843-7
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
; Starfield et al., 2008STARFIELD, B.; HYDE, J.; GERVAS, J.; HEATH, I. The concept of prevention: a good idea gone astray? Journal of Epidemiology & Community Health, London, v. 62, n. 7, p. 580-583, 2008. DOI: http://dx.doi.org/10.1136/jech.2007.071027
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.113...
).

Dois conceitos associados à P4 se destacam para nosso objetivo: sobrediagnóstico e “disease mongering”. O primeiro é definido como o diagnóstico corretamente realizado de uma doença que, no entanto, não se manifestaria na vida da pessoa (Welch et al., 2011aWELCH, H. G.; SCHWARTZ L. M.; WOLOSIN S. Overdiagnosed: making people sick in the pursuit of health. Boston: Beacon Press; 2011a.). O sobrediagnóstico decorrente dos rastreamentos - sobretudo de cânceres - é um achado empírico epidemiológico (Welch; Fisher, 2017WELCH, H. G.; FISHER, E. S. Income and cancer overdiagnosis - when too much care is harmful. New England Journal Of Medicine, Waltham, v. 376, n. 23, p. 2208-2209, 2017. DOI: https://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMp1615069
https://doi.org/https://www.nejm.org/doi...
).

Observa-se, retrospectivamente, uma maior incidência da doença nos grupos rastreados, sem uma proporcional redução da morbimortalidade nesses grupos. Essa redução deveria ocorrer se as doenças identificadas em fase assintomática pelo rastreamento fossem se manifestar. A explicação é que parte dessas doenças diagnosticadas pelos rastreamentos não apareceriam ou desapareceriam (Welch et al., 2011aWELCH, H. G.; SCHWARTZ L. M.; WOLOSIN S. Overdiagnosed: making people sick in the pursuit of health. Boston: Beacon Press; 2011a.). Não é possível identificar individualmente as pessoas sobrediagnosticadas, portanto, todas recebem tratamento, chamado sobretratamento (Tesser; D’Ávila, 2016TESSER, C.D.; D’ÁVILA, T.L.C. Por que reconsiderar a indicação do rastreamento do câncer de mama? Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 32, p. e00095914, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00095914
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).

Os sobrediagnósticos ocorrem também com o desenvolvimento de maior resolução e sensibilidade das tecnologias diagnósticas e o seu maior uso nas investigações clínicas dos adoecidos (Hofmann, 2018aHOFMANN, B. Looking for trouble? Diagnostics expanding disease and producing patients, Journal of Evaluation in Clinical Practice, Hoboken, v. 24, n. 5, p. 978-982, 2018a.DOI: http://dx.doi.org/10.1111/jep.12941
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.111...
). Outra fonte de sobrediagnósticos são mudanças nos critérios diagnósticos das doenças e de situações de alto risco, que ampliam o espectro do patológico (Tesser, 2017TESSER, C. D. Por que é importante a prevenção quaternária na prevenção? Revista de Saúde Pública , São Paulo, v. 51, n. 116, 2017. DOI: https://doi.org/10.11606/S1518-8787.2017051000041
https://doi.org/https://doi.org/10.11606...
).

A observação de grandes proporções de sobrediagnósticos em cânceres como os de próstata, mama e tireoide, por exemplo, tornou o sobrediagnóstico uma realidade problemática para a saúde pública (Bulliard; Chiolero, 2015BULLIARD, J.; CHIOLERO, A. Screening and overdiagnosis: public health implications. Public Health Reviews, London, v. 36, n. 1, p. 1-1, 2015.; Moynihan et al., 2012) e para a APS (Kale; Korenstein, 2018KALE, M. S; KORENSTEIN, D. Overdiagnosis in primary care: framing the problem and finding solutions”, BMJ, London, v. 361, p. k2820, 2018. DOI: https://doi.org/10.1136/bmj.k2820
https://doi.org/https://doi.org/10.1136/...
; Singh et al., 2018SINGH, H. et al. Overdiagnosis: causes and consequences in primary health care. Canadian Family Physician , Ontario, v. 64, n. 9, p. 649-659, 2018.; Adami, et al., 2019ADAMI, H.; BRETTHAUER, M.; IOANNIDIS, J. P. A.; KALAGER, M.; VALDIMARSDOTTIR, U. Time to abandon early detection cancer screening, European Journal of Clinical Investigation, Ann Arbor, v. 49, n. 3, p. 13062, 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1111/eci.13062
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.111...
; Treadwell e McCartney, 2016TREADWELL, J.; MCCARTNEY, M. Overdiagnosis and overtreatment: generalists - it’s time for a grassroots revolution. British Journal of General Practice, London, v. 66, n. 644, p. 116-117, 2016. DOI: https://doi.org/10.3399/bjgp16X683881
https://doi.org/https://doi.org/10.3399/...
; Dickinson et al., 2018DICKINSON, J. A; PIMLOTT, N.; GRAD, R.; et al. Screening: when things go wrong. Canadian Family Physician, Ontario, v. 64, n. 7, p. 502-508, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6042667/ . Acesso em: 5 jul. 2024.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
). Os sobrediagnósticos geram desvio de atenção dos profissionais e de recursos dos doentes para pessoas sadias, parte das quais não se beneficiam das intervenções e são prejudicadas, com desperdícios e iniquidades, sob nobres intenções de agir preventivamente (Heath, 2013HEATH, I. Overdiagnosis: when good intentions meet vested interests. BMJ , London, v. 347, n. 252, p. 6361-6361, 2013. DOI: http://dx.doi.org/10.1136/bmj.f6361
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.113...
).

Há fatores extracientíficos e interesses escusos dirigindo o desenvolvimento tecnológico e do saber médico em direções intervencionistas, o que se tornou declarado no conceito de ‘disease mongering’ (tráfico ou comércio de doenças), que denuncia essa manipulação sob várias formas: criação de doenças ou pseudodoenças para posterior venda de tecnologias diagnósticas e terapêuticas; redução dos pontos de corte diagnóstico ou de estratificações de risco (para hipertensão, diabetes, osteopenia etc.), englobando grandes parcelas populacionais como doentes; incorporação de situações de alto risco (assintomáticas) em patologias (Tesser; Norman, 2016TESSER, C. D.; NORMAN, A. H. Differentiating clinical care from disease prevention: a prerequisite for practicing quaternary prevention. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 32, n. 10, p. e00012316, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00012316
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
); manejo progressivamente agressivo e medicamentoso de fatores de risco como se fossem doenças; conversão de eventos banais em sintomas a serem tratados; manuseio de estatísticas e definições de doenças para que sejam detectadas em grandes contingentes de pessoas etc. (Heath, 2006HEATH, I. Combating disease mongering: daunting but nonetheless essential. Plos Medicine, San Francisco, v. 3. n. 4, p. 146, 2006. DOI: http://dx.doi.org/10.1371/journal.pmed.0030146
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.137...
; Miguelote, Camargo Jr., 2010MIGUELOTE, V. R. S.; CAMARGO JR, K. R. Indústria do conhecimento: uma poderosa engrenagem. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 1, p. 190-196, 2010.).

Em 2006 ocorreu o primeiro congresso internacional sobre “disease mongering” (Moynihan; Henry, 2006MOYNIHAN, R.; HENRY, D. The Fight against Disease Mongering: generating knowledge for action. Plos Medicine, London, v. 30, n. 4, p. e191, 2006. DOI: https://doi.org/10.1371/journal.pmed.0030191
https://doi.org/https://doi.org/10.1371/...
), reforçando denúncias anteriores das manipulações da indústria farmacêutica (Moynihan et al., 2002MOYNIHAN, R. Selling sickness: the pharmaceutical industry and disease mongering * commentary, BMJ , London, v. 324, n. 7342, p. 886-891, 2002. DOI: https://doi.org/10.1136%2Fbmj.324.7342.886
https://doi.org/https://doi.org/10.1136%...
). O problema da influência dos conflitos de interesse e dos interesses econômicos na produção do saber médico não é resolvido declarando-os. Eles são uma força poderosa a prejudicar o desenvolvimento científico e a prática clínica (Robertson et al., 2012ROBERTSON, C.; ROSE, S.; KESSELHEIM, A. S. Effect of financial relationships on the behaviors of health care professionals: a review of the evidence. Journal of Law, Medicine & Ethics, Cambridge, v. 40, n. 3, p. 452-466, 2012. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1748-720x.2012.00678.x
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
), que precisa ser contida.

A P4 significa uma resistência ao domínio do mercado sobre a prática médica e seu saber, mas o seu discurso é ainda genérico, pouco difundido e precisa ser desdobrado em maior aplicação institucional e clínica, o que está em lento desenvolvimento (Depallens et al., 2020DEPALLENS, M. A.; GUIMARÃES, J. M. M.; ALMEIDA FILHO, N. Prevenção quaternária: um conceito relevante para a saúde pública? Análise de conteúdo bibliométrica e descritiva. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 7, p. e00231819, 2020.). Conceitos inovadores, embora pouco praticados, vem sendo desenvolvidos para proteção, evitação e desmonte do excesso de intervenções, tais como: desdiagnóstico (Marshal, 2019MARSHALL, M. De-diagnosing disease. BMJ , London, v. 365, p. l2044, 2019. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.l2044
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.113...
; Lea; Hofmann, 2021), desprescrição (Sawan et al., 2020SAWAN, M.; REEVE, E.; TURNER, J.; TODD, A.; STEINMAN, M. A.; PETROVIC, M.; GNJIDIC, D. A systems approach to identifying the challenges of implementing deprescribing in older adults across different health-care settings and countries: a narrative review. Expert Review of Clinical Pharmacology, Abingdon, v. 13, n. 3, p. 233-245, p.2020. DOI: http://dx.doi.org/10.1080/17512433.2020.1730812
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.108...
; Gómez-Santana et al., 2015GÓMEZ-SANTANA, M. C. G.; GAVLIÁN-MORAL, E.; VILLAFAINA-BARROSO, A.; GRACIA, L. J. Prescrição prudente e desprescrição de fármacos como ferramentas para a prevenção quaternária. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 10, n. 35, p. 1-8, 2015. DOI: https://doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1021
https://doi.org/https://doi.org/10.5712/...
), revisão de diagnóstico (Moynihan et al., 2019MOYNIHAN, R.; BRODERSEN, J.; HEATH, I.; JOHANSSON, M.; KUEHLEIN, T.; MINUÉ-LORENZO, S.; PETURSSON, H.; PIZZANELLI, M.; REVENTLOW, S.; SIGURDSSON, J. Reforming disease definitions: a new primary care led, people-centred approach”. BMJ Evidence-Based Medicine, London, v. 24, n. 5, p. 170-173, 2019. DOI: https://doi.org/10.1136/bmjebm-2018-111148
https://doi.org/https://doi.org/10.1136/...
), desimplementação (Wolf et al., 2021WOLF, E. R.; KRIST, A. H.; SCHROEDER, A. R. Deimplementation in pediatrics: past, present, and future. JAMA Pediatrics, [s. l.], v. 175, n. 3, p. 230-32, 2021. DOI: https://doi.org/10.1001/jamapediatrics.2020.4681
https://doi.org/https://doi.org/10.1001/...
), desativação (Williams et al., 2017WILLIAMS, I.; HARLOCK, J.; ROBERT, G.; MANNION, R.; BREARLEY S.; HALL, K. Decommissioning health care: identifying best practice through primary and secondary research - a prospective mixed-methods study. Health Services and Delivery Research, [s. l.], v. 5, n. 2, 2017. DOI: https://doi.org/10.3310/hsdr05220
https://doi.org/https://doi.org/10.3310/...
). Para dar concretude e exemplificar essa temática, abordamos o caso do rastreamento mamográfico.

Os problemas do rastreamento mamográfico do câncer de mama

Questionado desde 1995 (Wright; Muller, 1995WRIGHT, C. J.; MUELLER, C. B. Screening mammography and public health policy: the need for perspective. The Lancet, London , v. 346, p. 29-32, 1995. DOI: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(95)92655-0
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
), o rastreamento mamográfico prometia reduzir significativamente a mortalidade por câncer de mama. Nas últimas décadas, ensaios clínicos e estudos observacionais nas populações rastreadas indicaram progressivamente menor impacto estimado: pequena ou nula redução na mortalidade específica por câncer de mama, sem redução da mortalidade geral ou por todos os cânceres nas mulheres (Gøtzsche et al., 2013GØTZSCHE, P. C.; JØRGENSEN, K. J.; ZAHL, P. Screening for breast cancer with mammography. Cochrane Database of Systematic Reviews, London, v. 6, n. CD001877, 2013. DOI: https://doi.org/10.1002/14651858.cd001877.pub5
https://doi.org/https://doi.org/10.1002/...
); marginal e desproporcional redução de incidência das formas avançadas desse câncer, com grande ampliação da incidência de formas iniciais; além de ampliação de mastectomias totais nas mulheres. Vários estudos observacionais mostram ausência de redução de mortalidade específica atribuível ao rastreamento (Autier, 2018AUTIER, P.; BONIOL, M. Mammography screening: a major issue in medicine. European Journal of Cancer, Amsterdam, v. 90, p. 34-62, 2018. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ejca.2017.11.002
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
). A significativa redução da mortalidade por esse câncer ao longo do tempo deveu-se à melhoria no tratamento, que quanto mais avança e se aperfeiçoa mais reduz o marginal benefício do rastreamento (Welch; Passow, 2014WELCH, H. G.; PASSOW, H. J. Quantifying the Benefits and Harms of Screening Mammography. JAMA Internal Medicine , [s. l.], v. 174, n. 3, p. 448, 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.1001/jamainternmed.2013.13635
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.100...
; Christiansen et al., 2022CHRISTIANSEN, S. R; AUTIER, P.; STØVRING, H. Change in effectiveness of mammography screening with decreasing breast cancer mortality: a population-based study, European Journal of Public Health, Oxford, v. 32, n. 4, p. 630-635, 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.1093/eurpub/ckac047
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.109...
).

Danos significativos foram registrados, mensuráveis e imensuráveis (Harris et al., 2014HARRIS, R. P; SHERIDAN, S. L; LEWIS, C. L; BARCLAY, C.; VU, M. B.; KISTLER, C. E.; GOLIN, C. E.; DEFRANK, J. T.; BREWER, N. T. The harms of screening, JAMA Internal Medicine, [s. l.] v. 174, n. 2, p. 281, 2014. DOI: http://dx.doi.org/10.1001/jamainternmed.2013.12745
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.100...
): falsos positivos abundantes - a grande maioria dos rastreamentos positivos (Raffle et al., 2007RAFFLE, A. E.; MACKIE, A.; GRAY, M. Screening: evidence and practice, 2. ed. Oxford: Oxford University Press, 2007.); dor derivada da realização dos exames; ansiedade e danos psicossociais derivados dos falsos-positivos; cascatas de intervenção; e o maior dos danos: os sobrediagnósticos.

Se o rastreamento reduz a mortalidade por esse câncer em 15% e o sobrediagnóstico é de 30%, para cada morte evitada, 10 mulheres serão sobrediagnosticadas (Gøtzsche et al., 2013GØTZSCHE, P. C.; JØRGENSEN, K. J.; ZAHL, P. Screening for breast cancer with mammography. Cochrane Database of Systematic Reviews, London, v. 6, n. CD001877, 2013. DOI: https://doi.org/10.1002/14651858.cd001877.pub5
https://doi.org/https://doi.org/10.1002/...
). Outros estudos, considerando 20% de redução da mortalidade atribuível ao rastreamento, estimam haver três sobrediagnosticadas para cada morte reduzida, como informam os folhetos governamentais de orientação às mulheres do Brasil, Inglaterra e Canadá (Tesser 2023TESSER, C. D. O paradoxo da popularidade no rastreamento mamográfico e a prevenção quaternária. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 18, n. 45, p. 3487, 2023.). Uma revisão recente estimou em 1:4 essa proporção (Canelo-Aybar et al., 2021CANELO-AYBAR, C.; FERREIRA, D. S.; BALLESTEROS, M.; POSSO, M.; MONTERO, N.; SOLÀ, I.; SAZ-PARKINSON, Z.; LERDA, D.; ROSSI, P. G; DUFFY, S. W. Benefits and harms of breast cancer mammography screening for women at average risk of breast cancer: a systematic review for the european commission initiative on breast cancer. Journal of Medical Screening, Thousand Oaks, v. 28, n. 4, p. 389-404, 2021. DOI: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0969141321993866
https://doi.org/https://journals.sagepub...
), ou seja, um diagnóstico via rastreamento tem 80% de chance de ser prejudicial (sobrediagnóstico) e 20% de beneficiar. Kim e Lannin (2022KIM, L.S.; LANNIN, D.R. Breast cancer screening: is there room for de-escalation? Current Breast Cancer Reports, New York, v. 14, n. 4, p. 153-161, 2022. DOI: DOI: https://doi.org/10.1007/s12609-022-00465-z.
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
) estimaram essa relação em 1:5 - chance de 17% de beneficiar e 83% de prejudicar.

Gøtzsche et al. (2013GØTZSCHE, P. C.; JØRGENSEN, K. J.; ZAHL, P. Screening for breast cancer with mammography. Cochrane Database of Systematic Reviews, London, v. 6, n. CD001877, 2013. DOI: https://doi.org/10.1002/14651858.cd001877.pub5
https://doi.org/https://doi.org/10.1002/...
) mencionaram outro dano: há um excesso de mortalidade de 27% por doenças cardíacas e de 78% por câncer de pulmão associados à radioterapia usada em grande parte dos tratamentos de câncer de mama, o que é importante quando mulheres são sobrediagnosticadas. Isso levou Baum (2013BAUM, M. Harms from breast cancer screening outweigh benefits if death caused by treatment is included. BMJ, London, v. 346, n .231, p. 385-385, 2013. DOI: https://doi.org/10.1136/bmj.f385
https://doi.org/https://doi.org/10.1136/...
) a estimar que aproximadamente uma a três mortes adicionais podem ser esperadas por outras causas para cada morte evitada pelo rastreamento, o que torna negativo o balanço benefícios-danos em relação estritamente às mortes.

Note-se que essas estimativas vêm de ensaios clínicos, que superestimaram a redução da mortalidade, devido a problemas metodológicos (Gøtzsche et al., 2013GØTZSCHE, P. C.; JØRGENSEN, K. J.; ZAHL, P. Screening for breast cancer with mammography. Cochrane Database of Systematic Reviews, London, v. 6, n. CD001877, 2013. DOI: https://doi.org/10.1002/14651858.cd001877.pub5
https://doi.org/https://doi.org/10.1002/...
; Autier, 2018AUTIER, P.; BONIOL, M. Mammography screening: a major issue in medicine. European Journal of Cancer, Amsterdam, v. 90, p. 34-62, 2018. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ejca.2017.11.002
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
), cuja discussão não cabe neste espaço. Embora os ensaios clínicos sejam considerados o padrão-ouro metodológico para pesquisa sobre eficácia de intervenções em saúde, como há quatro décadas esse rastreamento se disseminou em vários países, os seus resultados nas populações não podem ser desconsiderados; eles são importantes, pois é ali que deve ocorrer o efeito benéfico. O resultado na realidade das populações interessa mais que as boas intenções preventivistas, a teoria ou os experimentos (ensaios clínicos). Estudos observacionais comparando a redução da mortalidade específica por câncer em regiões com datas de início do rastreamento distintas, com taxa de adesão diferentes e entre populações rastreadas e não rastreadas indicam uma redução atribuível ao rastreamento nula (Autier, 2018AUTIER, P.; BONIOL, M. Mammography screening: a major issue in medicine. European Journal of Cancer, Amsterdam, v. 90, p. 34-62, 2018. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ejca.2017.11.002
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
); enquanto outros apontam reduções marginais (Tesser, 2023TESSER, C. D. O paradoxo da popularidade no rastreamento mamográfico e a prevenção quaternária. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 18, n. 45, p. 3487, 2023.).

Para complicar, novas tecnologias de rastreamento têm sido propostas com base em melhorias apenas nas taxas de detecção. Como são acrescentadas às atuais, a sua maior sensibilidade produz novos sobrediagnósticos (Jatoi; Pinsky, 2021) para além dos já atualmente produzidos (Welch, 2019WELCH G. Breast Cancer Screening Using MRI. [Internet]. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n--VfNKEQ6g Acesso em: 08 Abr 2023.
https://www.youtube.com/watch?v=n--VfNKE...
).

O rastreamento mamográfico gera ainda uma ‘vulnerabilidade patogênica’: dano decorrente de ação visando melhorar uma situação que exacerba vulnerabilidades existentes ou cria novas, nas quais a agência de indivíduos é limitada ou prejudicada. Os rastreamentos mamográficos visam minimizar padecimentos derivados da vulnerabilidade ao câncer, mas criam vulnerabilidade patogênica ao sobrediagnóstico, prejudicando a agência das mulheres pelas fortes pressões para rastrear; pelas controvérsias que, se acessadas, dificultam uma decisão informada; pelas barreiras várias para decisão informada; tornando-a uma opção eticamente inaceitável (Rogers, 2018ROGERS, W. A. Analysing the ethics of breast cancer overdiagnosis: a pathogenic vulnerability. Medicine, Health Care and Philosophy, New York, v. 22. n. 1, p. 129-140, 2018. DOI: https://doi.org/10.1007/s11019-018-9852-z
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
). As sobrediagnosticadas se sentiam bem e sua confiança é abalada pelo diagnóstico, com consequências duradouras (Walker; Rogers, 2017WALKER, M. J.; ROGERS, W. A. Diagnosis, narrative identity, and asymptomatic disease. Theoretical Medicine and Bioethics, New York, v. 38, n. 4, p. 307-321, 2017. https://doi.org/10.1007/s11017-017-9412-1
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
).

Pesquisadores afirmam que os sobrediagnósticos, associados aos outros danos, frente aos pequenos ou nulos benefícios, sugerem revisão ou uma moratória desse rastreamento (Schneider, 2018SCHNEIDER J. Mammographic screening: the beginning of the end? (Editorial). Revista de Senología y Patología Mamaria, Amsterdam, v. 31, n. 1, p. 1-3, 2018. DOI: https://doi.org/10.1016/j.senol.2018.03.001 0214-1582
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
; Heath, 2009HEATH, I. It is not wrong to say no. BMJ, London, v. 338, n. 231, p. 2529-2529, 2009. DOI: http://dx.doi.org/10.1136/bmj.b2529
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.113...
; Rogers, 2018ROGERS, W. A. Analysing the ethics of breast cancer overdiagnosis: a pathogenic vulnerability. Medicine, Health Care and Philosophy, New York, v. 22. n. 1, p. 129-140, 2018. DOI: https://doi.org/10.1007/s11019-018-9852-z
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
; Rogers et al., 2019ROGERS, W. A.; ENTWISTLE, V. A.; CARTER, S. M. Risk, overdiagnosis and ethical justifications. Health Care Analysis, New York, v. 27, n. 4, p. 231-248, 2019. DOI: https://doi.org/10.1007/s10728-019-00369-7
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
; Adami et al., 2019ADAMI, H.; BRETTHAUER, M.; IOANNIDIS, J. P. A.; KALAGER, M.; VALDIMARSDOTTIR, U. Time to abandon early detection cancer screening, European Journal of Clinical Investigation, Ann Arbor, v. 49, n. 3, p. 13062, 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.1111/eci.13062
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.111...
) ou ao menos parar de oferecê-lo às mulheres (Dickinson et al., 2018DICKINSON, J. A; PIMLOTT, N.; GRAD, R.; et al. Screening: when things go wrong. Canadian Family Physician, Ontario, v. 64, n. 7, p. 502-508, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6042667/ . Acesso em: 5 jul. 2024.
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/article...
). Todavia, as instituições médicas e de saúde pública nacionais mantém a recomendação positiva para mulheres, na maioria após os 50 anos, realçando a necessidade de informação sobre danos e benefícios, incluindo o Brasil (Migowski et al., 2018MIGOWSKI, A. et al. Diretrizes para detecção precoce do câncer de mama no Brasil. II - Novas recomendações nacionais, principais evidências e controvérsias. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 34, n. 6, p. e00074817, 2018. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00074817
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), com exceção da Suíça (Biller-Andorno; Jüni, 2014BILLER, N. A.; JUNI, P. Abolishing mammography screening programs? a view from the Swiss Medical Board. New England Journal Of Medicine, Thousand Oaks, v. 370, n. 21. p. 1965-1967, 2014. DOI: https://doi.org/10.1056/NEJMp1401875
https://doi.org/https://doi.org/10.1056/...
).

Compreendendo a manutenção da recomendação positiva

Como entender a persistência da recomendação positiva após mais de uma década de dissenso? Para além da ampla literatura científica defendendo a recomendação, há fatores complexos: o paradoxo da popularidade, a manipulação da linguagem explorando valores morais, os conflitos de interesse (sobretudo econômicos) e o pano de fundo do preventivismo disseminado nas sociedades pela saúde pública e a biomedicina.

Armstrong (1995ARMSTRONG, D. The rise of surveillance medicine. Sociology of Health and Illness, Hoboken v. 17, n. 3, p. 393-404, 1995. DOI: https://doi.org/10.1111/1467-9566.ep10933329
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
) identificou a transição para uma ‘medicina de vigilância’, caracterizada pelo monitoramento de populações normais, obscurecimento das distinções entre saúde e doença e foco nos ‘fatores de risco’. Os rastreamentos são coerentes com tal vigilância, e a participação neles pode ser vivida como uma obrigação moral e social (Armstrong, 2019ARMSTRONG, N. Navigating the uncertainties of screening: the contribution of social theory. Social Theory & Health, London, v. 17, n. 2, p. 158-171, 2019. DOI: https://doi.org/10.1057/s41285-018-0067-4
https://doi.org/https://doi.org/10.1057/...
).

Para Carter (2021CARTER, S. M. Why does cancer screening persist despite the potential to harm? Science, Technology and Society, Thousand Oaks, v. 26, n. 1, p. 24-40, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.1177/0971721820960252
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.117...
), essa persistência deriva também de uma ressonância cultural, na qual os futuros imaginários têm grande importância; são abertos e incertos e as decisões se dão em profunda incerteza. Sob a incerteza, precisamos de algo para guiar a ação e ‘expectativas fictícias’ fornecem essa orientação. Tais expectativas ficam entre o fato e a imaginação, podem ser compartilhadas e coordenar a ação, são sérias - não são inventadas - e enfatizam exageros comumente envolvidos em expectativas ficcionais: enfatizam os potenciais benefícios e obscurecem os danos, vindo com a legitimidade da biomedicina e da saúde pública; além de que os processos de formação de diretrizes e arranjos financeiros tecnológicos envolvidos são importantes fatores estruturais pró-rastreamento (Collyer et al., 2016).

O paradoxo da popularidade (Welch et al., 2011aWELCH, H. G.; SCHWARTZ L. M.; WOLOSIN S. Overdiagnosed: making people sick in the pursuit of health. Boston: Beacon Press; 2011a.) se refere ao fato de que as mulheres mais prejudicadas pelo rastreamento (sobrediagnosticadas) se sentem beneficiadas. Como não se consegue identificar individualmente quem foi sobrediagnosticada (Welch et al., 2011aWELCH, H. G.; SCHWARTZ L. M.; WOLOSIN S. Overdiagnosed: making people sick in the pursuit of health. Boston: Beacon Press; 2011a.), todas as sobretratadas sentem-se salvas, embora tenham sido mutiladas cirurgicamente e prejudicadas com quimio/radioterapia desnecessárias. Há um círculo vicioso: quanto mais rastreamentos, mais sobrediagnósticos haverá e mais o rastreamento parecerá erroneamente salvar vidas, dada a cura e ótima evolução das sobrediagnosticadas (Brodersen et al., 2018BRODERSEN, J.; KRAMER, B. S.; MACDONALD, H.; SCHWARTZ, L. M.; WOLOSHIN, S. Focusing on overdiagnosis as a driver of too much medicine, BMJ , London, v. 3494, 2018. DOI: https://doi.org/10.1136/bmj.k34
https://doi.org/https://doi.org/10.1136/...
), tornando-se mais popular. Além disso, o entorno institucional e sociocultural só fornece feedback positivo para profissionais e pacientes que rastreiam (Ransohoff et al., 2002RANSOHOFF, D. F.; COLLINS, M. M.; FOWLER, F. J. Why is prostate cancer screening so common when the evidence is so uncertain? A system without negative feedback, The American Journal of Medicine, Amsterdam, v. 113, n. 8, p. 663-667, 2002. DOI: https://doi.org/10.1016/s0002-9343(02)01235-4
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
).

Tal paradoxo afeta também provavelmente os profissionais que tratam dessas mulheres. O aumento na incidência de câncer de mama pós-rastreamento (aproximadamente 30% em outros países) faz parecer que ele ficou mais comum, mas o grosso disso é artificialmente produzido pelo rastreamento via sobrediagnósticos (Welch et al., 2016WELCH, H. G.; PROROK, P. C.; O’MALLEY, A. J.; KRAMER, B. S. Breast-cancer tumor size, overdiagnosis, and mammography screening effectiveness”. New England Journal Of Medicine , Waltham, v. 375, p. 1438-47, 2016. DOI: http://dx.doi.org/10.1056/NEJMoa1600249
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.105...
). Pode haver a percepção nos profissionais de que os prognósticos melhoraram após os rastreamentos, mas isso derivou mais de melhorias no tratamento e da inclusão no cuidado clínico de casos rastreados que não adoeceriam (sobrediagnosticados), diluindo nesse conjunto inflado os casos avançados/graves e aumentando o número de mulheres de ótimo prognóstico tratadas, que absorvem grande parte do tempo e do cuidado clínico e cirúrgico. Os casos avançados são assim percebidos como mais raros, porque diluídos nos cânceres iniciais rastreados. A diluição mencionada torna o cuidado profissional mais confortável e recompensador de atender, mais leve emocionalmente, satisfatório e resolutivo, ao curar maiores proporções de pacientes devido ao ótimo prognóstico das sobrediagnosticadas (Tesser, 2023TESSER, C. D. O paradoxo da popularidade no rastreamento mamográfico e a prevenção quaternária. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Rio de Janeiro, v. 18, n. 45, p. 3487, 2023.). A experiência clínica ensina e influencia fortemente os profissionais. Por serem os sobrediagnósticos imperceptíveis para pacientes e médicos - Carter (2021CARTER, S. M. Why does cancer screening persist despite the potential to harm? Science, Technology and Society, Thousand Oaks, v. 26, n. 1, p. 24-40, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.1177/0971721820960252
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.117...
) chama isso de inacessibilidade epistêmica - não é possível contabilizá-los no saber dessa experiência, que é enganoso e mostra sempre muito mais benefícios que danos.

O aumento da clientela oncológica amplia os ganhos econômicos no setor privado. Os produtores dos insumos e biotecnologias para diagnose e tratamento, bem como as especialidades profissionais que os usam (Keen; Massat, 2017KEEN C.; MASSAT, M. B. RSNA 2017 Technology: Innovation in abundance. Applied Radiology, Scotch Plains, v. 47, n. 1, p. 20-29, 2018. Disponível em: Disponível em: https://go.gale.com/ps/i.do?id=GALE%7CA529565706&sid=googleScholar&v=2.1&it=r&linkaccess=abs&issn=01609963&p=AONE&sw=w&userGroupName=anon%7Eb99fc298 Acesso: 7 abr. 2023.
https://go.gale.com/ps/i.do?id=GALE%7CA5...
) têm evidentes interesses econômicos na manutenção da recomendação positiva. O maior ganho financeiro não existe para os profissionais do SUS, em que há geração de iniquidades sistêmicas, pois são desviados recursos das sensivelmente doentes para as sobrediagnosticadas, com gastos adicionais e acentuação da lei dos cuidados inversos no tratamento desse câncer: as mais necessitadas de cuidados clínicos são as que menos têm acesso, tanto mais quanto mais os serviços estiverem sob a ação das forças do mercado (Hart, 1971HART, J. T. The inverse care law. The Lancet, London, v. 297, n. 7696, p. 405-412, 1971. DOI: http://dx.doi.org/10.1016/s0140-6736(71)92410-x
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.101...
). Entretanto, nos serviços públicos existe o mesmo ganho emocional para os profissionais.

Uma inversão da recomendação poderia gerar sofrimento em mulheres diagnosticadas por rastreamento, ao se conscientizarem de que a maior chance é que tenham sido prejudicadas - sobrediagnosticadas -, e isso poderá significar novas demandas por cuidado e compensação. Por exemplo, Welch (2011b)WELCH, H. G.; Frankel, B. A. Likelihood that a woman with screen-detected breast câncer has had her “life saved” by that screening”. Archives of Internal Medicine, [s. l.], v. 171, n. 22, p. 2043, 2011b. DOI: https://doi.org/10.1001/archinternmed.2011.476
https://doi.org/https://doi.org/10.1001/...
estimou que, supondo uma redução da mortalidade específica de 5% a 25% pelo rastreamento, a probabilidade de uma mulher ter evitado sua morte por causa do rastreamento vai de 3% a 17%, respectivamente, o que significa muitas prejudicadas.

Por fim, na manutenção da recomendação positiva provavelmente há o medo de acusações de ‘abandonar’ as mulheres à própria sorte, em caso de inversão da recomendação (Brown; Barra, 2023BROWN, R. C.H.; BARRA, M. Taxonomy of non-honesty in public health communication, Public Health Ethics, Oxford, v. 16, n. 1, p. 86-101, 2023. DOI: https://doi.org/10.1093/phe/phad003
https://doi.org/https://doi.org/10.1093/...
), dada a crença disseminada de que o rastreamento salva-vidas, equivocada, segundo Prasad et al. (2016PRASAD, V.; LENZER, J.; NEWMAN, D. H. Why cancer screening has never been shown to ‘save lives’- and what we can do about it. BMJ, London, v. 356, p. h6080, 2016. DOI: https://doi.org/10.1136/bmj.h6080
https://doi.org/https://doi.org/10.1136/...
). Tais acusações apareceram na Suíça em 2014, quando o Swiss Medical Board recomendou contra a mamografia periódica (Biller-Andorno; Jüni, 2014BILLER, N. A.; JUNI, P. Abolishing mammography screening programs? a view from the Swiss Medical Board. New England Journal Of Medicine, Thousand Oaks, v. 370, n. 21. p. 1965-1967, 2014. DOI: https://doi.org/10.1056/NEJMp1401875
https://doi.org/https://doi.org/10.1056/...
).

Aplicando a prevenção quaternária ao rastreamento mamográfico

Os gestores e profissionais de saúde podem se confrontar com acusações de que mantiveram recomendações positivas para o rastreamento mamográfico, sem divulgar o seu duvidoso ou desfavorável balanço benefícios-danos. A maioria das mulheres acreditam que “se protegem” significativamente ao rastrear. Enquanto algumas poucas desconhecidas usufruem de algum benefício, que provavelmente não significa sua vida salva, outras em bem maior número são prejudicadas gravemente sem perceber (Baum, 2015BAUM, M. ‘Catch it early, save a life and save a breast’: this misleading mantra of mammography. Journal of The Royal Society of Medicine, v.108, n.9, p.338-339, 2015. DOI: https://doi.org/10.1177/0141076815603563
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
), marcadas na sua identidade para toda a vida (Walker; Rogers, 2017WALKER, M. J.; ROGERS, W. A. Diagnosis, narrative identity, and asymptomatic disease. Theoretical Medicine and Bioethics, New York, v. 38, n. 4, p. 307-321, 2017. https://doi.org/10.1007/s11017-017-9412-1
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
).

O que está em jogo é manter ou não a recomendação positiva. É importante salientar que a decisão sobre a manutenção ou suspensão da recomendação não necessita de uma conclusão ou consenso sobre a grandeza precisa dos benefícios e dos danos. Os aspectos éticos envolvidos nos rastreamentos exigem grande valorização da não-maleficência, o que é consensual na teoria (Cochrane; Holland, 1971COCHRANE A. L.; HOLLAND. W. W. Validation of screening procedures. British Medical Bulletin, Oxford, v. 27. n. 1, p. 3-8, 1971. DOI: https://doi.org/10.1093/oxfordjournals.bmb.a070810.
https://doi.org/https://doi.org/10.1093/...
; Marshal, 1996MARSHALL KG. Prevention. How much harm? How much benefit? 4. The ethics of informed consent for preventive screening programs. Canadian Medical Association Journal, Ontario, v. 155, n. 4, p. 377-83, 1996.; Segura-Benedicto, 2006SEGURA-BENEDICTO, A. Inducción sanitaria de los cribados: impacto y consecuencias. aspectos éticos. Gaceta Sanitaria, Madrid, v. 20, p. 88-95, 2006. DOI: http://dx.doi.org/10.1157/13086031
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.115...
; Weingarten; Matalon, 2010WEINGARTEN, M.; MATALON, A. The ethics of basing community prevention in general practice. Journal of Medical Ethics , London, v. 36, n. 3, p. 138-141, 2010. http://dx.doi.org/10.1136/jme.2009.032284
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.113...
; Rogers et al., 2019ROGERS, W. A.; ENTWISTLE, V. A.; CARTER, S. M. Risk, overdiagnosis and ethical justifications. Health Care Analysis, New York, v. 27, n. 4, p. 231-248, 2019. DOI: https://doi.org/10.1007/s10728-019-00369-7
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
; Elton, 2021ELTON, L. Non-maleficence and the ethics of consent to cancer screening. Journal of Medical Ethics, London, v. 47, p. 510-513, 2021. DOI: http://dx.doi.org/10.1136/medethics-2020-106135
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.113...
), mas pouco aplicado na prática. Somente com benefícios significativos e poucos danos se pode recomendar um rastreamento (Tesser; D’Ávila, 2016TESSER, C.D.; D’ÁVILA, T.L.C. Por que reconsiderar a indicação do rastreamento do câncer de mama? Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 32, p. e00095914, 2016. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00095914
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
; Tesser; Norman, 2019TESSER, C. D.; NORMAN, A. H. Geoffrey Rose e o princípio da precaução: para construir a prevenção quaternária na prevenção. Interface - Comunicação, Saúde, Educação , São Paulo, v. 23, p. e180435, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.180435
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).

A existência indiscutível da polêmica científica sobre o balanço benefícios-danos no rastreamento mamográfico é suficiente para a sua não recomendação; devido, também, ao princípio da precaução (Tesser; Norman, 2019TESSER, C. D.; NORMAN, A. H. Geoffrey Rose e o princípio da precaução: para construir a prevenção quaternária na prevenção. Interface - Comunicação, Saúde, Educação , São Paulo, v. 23, p. e180435, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.180435
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), aplicável em situações de dúvida científica sobre danos extensos e graves, como o sobrediagnóstico nesse rastreamento (Tesser et al., 2019TESSER, C. D.; NORMAN, A. H.; GÉRVAS, J. Applying the precautionary principle to breast cancer screening: implications to public health. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35. n. 7, p. e00048319, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00048319
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
). Segundo esse princípio, em casos de incerteza sobre relevantes e extensos danos derivados de uma intervenção, os seus proponentes é que devem provar que a intervenção (rastreamento mamográfico) é segura (poucos/leves danos) e significativamente eficaz. A presença da dúvida no balanço benefícios-danos exige o reconhecimento de que não é justificável eticamente a manutenção de sua recomendação positiva (Tesser et al., 2019TESSER, C. D.; NORMAN, A. H.; GÉRVAS, J. Applying the precautionary principle to breast cancer screening: implications to public health. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 35. n. 7, p. e00048319, 2019. DOI: https://doi.org/10.1590/0102-311X00048319
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).

A aplicação da P4 nesse caso parece simples: pedindo ‘desculpas’ pela quase ilusória ou enganosa mensagem de que a mamografia periódica salva vidas (Baum, 2013BAUM, M. Harms from breast cancer screening outweigh benefits if death caused by treatment is included. BMJ, London, v. 346, n .231, p. 385-385, 2013. DOI: https://doi.org/10.1136/bmj.f385
https://doi.org/https://doi.org/10.1136/...
), alimentada pelas campanhas e folhetos de sistemas de saúde, instituições médicas e ONGs, os gestores dos sistemas de saúde e os profissionais poderiam dizer que não é recomendado fazer mamografia sem suspeitas clínicas ou alto risco de câncer. Pois, a partir das evidências sobre os resultados desse rastreamento, há muitos danos envolvidos e pequenos ou nulos benefícios, motivo pelo qual a notícia é boa: esse exame dolorido pode ser abandonado como rotina de prevenção.

Ações redutoras dos riscos desse câncer (como amamentar bastante os filhos) e do risco cardiovascular, bem como ações de promoção da saúde das mulheres devem ser estimuladas: políticas de proteção da violência, pobreza, machismo etc. (Rogers, 2019ROGERS, W. A.; ENTWISTLE, V. A.; CARTER, S. M. Risk, overdiagnosis and ethical justifications. Health Care Analysis, New York, v. 27, n. 4, p. 231-248, 2019. DOI: https://doi.org/10.1007/s10728-019-00369-7
https://doi.org/https://doi.org/10.1007/...
). Adicionalmente, suspender a recomendação reduziria a iniquidade alocativa, o desperdício de recursos nos sobrediagnósticos/sobretratamentos.

Desafios

Mudar a recomendação é complexo: há ampla desinformação dentro e fora da medicina. A maioria dos profissionais informa mais sobre benefícios e menos sobre danos (Hoffmann et al., 2010HOFFMAN, R. M.; LEWIS, C. L.; PIGNONE, M. P.; COUPER, M. P.; BARRY, M. J.; ELMORE, J. G. et al. Decision-making rocesses for breast, colorectal, and prostate câncer screening: the DECISIONS survey. Medical Decision Making, Thousand Oaks, v. 30, n. 5(Suppl), p. 53S-64S, 2010. DOI: https://doi.org/10.1177/0272989x10378701
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
; Monzon et al., 2022MONZON, A. Z.; FRANCO-LÓPEZ, Á.; CULEBRAS, J. M. Benefits and harms of screening: overdiagnosis and anticipatory medicine : a secondary publication. Tumor Discovery, [s. l.], v. 1 n. 2, p. 228, 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.36922/td.v1i2.228
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.369...
). Muitas campanhas e informativos de saúde pública também informam insuficientemente (Spagnoli, 2018SPAGNOLI, L.; NAVARO, M.; FERRARA, P.; PRETE, V. D.; ATTENA, F. Online information about risks and benefits of screening mammography in 10 European countries. Medicine, Amsterdam, v. 97, n. 22, p. e10957, 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.1097/md.0000000000010957
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.109...
; Hersch et al., 2016HERSCH, J.; JANSEN, J.; MCCAFFERY, K. Informed and shared decision making in breast screening. Breast Cancer Screening. In: HOUSSAMI N.; MIGLIORETTI D. (Eds.). Breast Cancer Screening - an examination of scientific evidence. London: Academic Press, 2016. p. 403-420. http://dx.doi.org/10.1016/b978-0-12-802209-2.00016-4
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.101...
). Geralmente, os profissionais da APS não têm capacidade para apoiar a escolha informada sobre o rastreamento (Forbes et al., 2014FORBES, L. J. L.; RAMIREZ, A. EXPERT GROUP ON INFORMATION ABOUT BREAST SCREENING. Offering informed choice about breast screening. Journal of Medical Screening , Thousand Oaks, v. 21, p. 194-200, 2014. DOI: https://doi.org/10.1177/0969141314555350
https://doi.org/https://doi.org/10.1177/...
). Não surpreende que mulheres e médicos - sem alfabetização estatística mínima para compreender a situação (Baldi; Utts, 2015BALDI, B.; UTTS, J. What your future doctor should know about statistics: must-include topics for introductory undergraduate biostatistics. The American Statistician, Abingdon, v. 69, n. 3, p. 231-240, 2015. DOI: https://doi.org/10.1080/00031305.2015.1048903
https://doi.org/https://doi.org/10.1080/...
) - tenham expectativas que superestimam os benefícios e subestimam os danos (Hoffmann; Del Mar, 2017HOFFMANN, T. C.; MAR, C. D. Clinicians’ expectations of the benefits and harms of treatments, screening, and tests”, Jama Internal Medicine, [s. l.], v. 177, n. 3, p. 407, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1001/jamainternmed.2016.8254
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.100...
).

Além do destaque unilateral para os benefícios, a linguagem e a forma de apresentação usadas pelas campanhas, profissionais, cartazes e folhetos informativos induzem reações morais e emocionais mais fortes do que avaliações utilitaristas e racionais. Há exploração da bem documentada e comum aceitação da troca de poucos benefícios valiosos (apresentados como “salvar vidas” ou “evitar mortes” - altamente valorizados) por muitos danos menores (falsos positivos e sobrediagnósticos) (Carter, 2017CARTER, S.M. Overdiagnosis, ethics, and trolley problems: why factors other than outcomes matter - an essay by Stacy Carter. BMJ Open, London, v. 358, p. 3872, 2017. DOI: http://dx.doi.org/10.1136/bmj.j3872
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.113...
). Isso dificulta uma decisão utilitarista, reforçando a vulnerabilidade patogênica aos sobrediagnósticos. Tudo se passa como se vidas fossem salvas e falsos-positivos e sobrediagnósticos fossem menores. Porém, os falsos-positivos podem gerar prolongada ansiedade (Bolejko et al., 2015BOLEJKO, A.; HAGELL, P.; WANN-HANSSON, C.; ZACKRISSON, S. Prevalence, long-term development, and predictors of psychosocial consequences of false-positive mammography among women attending population-based screening. Cancer Epidemiology, Biomarkers & Prevention, Philadelphia, v. 24, n. 9, p. 1388-1397, 2015. DOI: https://doi.org/10.1158/1055-9965.EPI-15-0060
https://doi.org/https://doi.org/10.1158/...
; Brodersen; Siersma, 2015), sobretudo nas que precisam novas imagens de vigilância ou biópsia para chegar a um diagnóstico benigno (Loving et al., 2021LOVING, V. A.; AMINOLOLAMA-SHAKERI, S.; LEUNG, J. W. T. Anxiety and its association with screening mammography. Journal of Breast Imaging, Oxford, v. 3, n. 3, p. 266-272, 2021. DOI: https://doi.org/10.1093/jbi/wbab024
https://doi.org/https://doi.org/10.1093/...
). Os sobrediagnósticos estão mais para ‘gravíssimos’ do que para ‘menores’, mesmo não sendo perceptíveis por profissionais e pacientes. Já as “vidas salvas”, ou não são percebidas nas estatísticas populacionais (Jørgensen et al., 2010JØRGENSEN, K. J.; ZAHL, P.; GØTZSCHE, P. C. Breast cancer mortality in organised mammography screening in Denmark: comparative study. BMJ , London, v, 340, p. c1241, 2010. DOI: https://doi.org/10.1136/bmj.c1241
https://doi.org/https://doi.org/10.1136/...
; Zahl et al., 2019ZAHL, P; KALAGER, M.; SUHRKE, P.; NORD, EK. Quality of life effects of screening mammography in Norway. International Journal of Cancer , Hoboken, v. 146, n. 8, p. 2104-2112, 2019. DOI: https://doi.org/10.1002/ijc.32539
https://doi.org/https://doi.org/10.1002/...
), ou, quando são, a redução é mínima e se refere apenas à mortalidade por esse câncer, não à mortalidade geral nem por todos os cânceres (Jatoi; Pinsky, 2021).

É importante reconhecer a gravidade do dissenso científico em que o rastreamento mamográfico está envolvido: ele é intenso e persistente. Hofman (2018)HOFMANN, B. Looking for trouble? Diagnostics expanding disease and producing patients, Journal of Evaluation in Clinical Practice, Hoboken, v. 24, n. 5, p. 978-982, 2018a.DOI: http://dx.doi.org/10.1111/jep.12941
https://doi.org/http://dx.doi.org/10.111...
classificou essa área de pesquisa científica como ‘polarizada’. Pesquisadores perseveram em interpretações antagônicas produzindo dados e conclusões discordantes, sem chegar a um consenso. Um exemplo é a grande variação na estimativa da proporção de sobrediagnósticos nos estudos - de 0 a 50% (Bulliard et al., 2021BULLIARD, J.; BEAU, A.; NJOR, S.; WU, W. Y; PROCOPIO, P.; NICKSON, C.; LYNGE, E. Breast cancer screening and overdiagnosis. International Journal of Cancer, Hoboken, v. 149, n. 4, p.846-853, 2021. DOI: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1002/ijc.33602
https://doi.org/https://onlinelibrary.wi...
). Outros exemplos vêm de artigos que negam os problemas, defendem o rastreamento e afirmam haver ‘notícias negativas’ mal fundamentadas, como em Schattner (2020SCHATTNER, E. Correcting a decade of negative news about mammography. Clinical Imaging, Amsterdam, v. 60, n. 2, p. 265-270, 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.clinimag.2019.03.011
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
), cujo título é “Corrigindo uma década de notícias negativas sobre mamografia”.

No Brasil, outro complicante é a possibilidade de judicialização irracional. Havia a Lei 11.664, de 29/04/2008, que garantia às mulheres a realização de mamografias periódicas após os 40 anos, contrária às diretrizes nacionais. Agora, sem qualquer razoabilidade técnica e ética, expondo mais as mulheres aos danos, a Lei 14.335, de 10/05/2022 estendeu esse direito para desde a puberdade. Essa lei, a falta de discussão pública sobre danos e benefícios e a propaganda pró-benefícios, como no ‘outubro rosa’ (Assis et al., 2020ASSIS, M., SANTOS, R.O.M.; MIGOWSKI A. Detecção precoce do câncer de mama na mídia brasileira no Outubro Rosa. Physis: Revista de Saúde Coletiva, São Paulo, v. 30, n. 1, e300119. DOI: https://doi.org/10.1590/S0103-73312020300119
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), aumentam o desafio de suspender a recomendação positiva.

A recente ampliação do negacionismo no Brasil certamente aumentou a dificuldade de explorar publicamente dissensos científicos. Isso foi intensificado pela atuação do governo federal na pandemia (Giovanella et al., 2020GIOVANELLA, L. et al. Negacionismo, desdém e mortes: notas sobre a atuação criminosa do governo federal brasileiro no enfrentamento da Covid-19. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 126, p. 895-901, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/0103-1104202012623
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
) e multiplicado pelas influências e manipulações nas subjetividades individuais e coletivas via redes sociais digitais e seus algoritmos (Corrêa; Macías, 2021CORRÊA, F. S. M.; MACÍAS, S. A. O Governo das condutas e a constituição da subjetividade: um estudo da sociedade de controle de tipo algorítmica. Revista de Filosofia Moderna e Contemporânea, Brasília, DF, v. 8, n. 3, p. 137-153, 2021. DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v8i3.34460
https://doi.org/https://doi.org/10.26512...
). A falta de discussão na Saúde Coletiva desse rastreamento também aumenta essa dificuldade, devido à pouca investigação e experimentação acadêmicas de estratégias informativas e comunicativas a respeito.

A dificuldade é acirrada ainda pela posição de defesa pura do rastreamento de associações médicas especializadas brasileiras: “mulheres […] devem fazer mamografia de rotina a partir dos 40 anos, uma vez ao ano, segundo a Sociedade Brasileira de Mastologia (SBM), a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e o Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (CBR)” (SBM, 2023SBM - SOCIEDADE BRASILEIRA DE MASTOLOGIA [internet]. Mamografia: entidades e ministério divergem sobre idade mínima para exame de rotina; veja como funciona. Disponível em: Disponível em: https://www.sbmastologia.com.br/mamografia-entidades-e-ministerio-divergem-sobre-idade-minima-para-exame-de-rotina-veja-como-funciona/ Acesso: 12 Out 2023.
https://www.sbmastologia.com.br/mamograf...
). Não se menciona danos, decisão informada ou evidências.

A formação médica é uma frente possível e estratégica para a melhoria da formação crítica e ética dos profissionais (Depallens et al., 2022). Todavia, a pouca penetração da P4 na educação médica brasileira, na prevenção do câncer de mama, geralmente monopolizada pelos ginecologistas, dificulta a exploração dessa estratégia, tornando-a um desafio.

Considerações finais

A P4 no rastreamento mamográfico, dado o dissenso científico existente sobre o seu balanço benefícios-danos e a aplicação do princípio da precaução ao problema, deveria gerar a suspensão da sua recomendação positiva, o que demanda produzir visibilidade para esse tema e sua discussão - para que, pelo mínimo, decisões mais autônomas e informadas possam ser tomadas pelas mulheres. Porém, a força do moralismo e da manipulação emocional, do preventivismo, das expectativas fictícias, do paradoxo da popularidade, dos interesses econômicos e corporativos e da propaganda viciosa têm invisibilizado esse tema na sociedade. Mesmo dentro da Saúde Coletiva ele é raramente abordado, apesar de seu grande impacto e relevância sanitária.

Explorar os dissensos internos à biomedicina e à saúde pública é necessário, especialmente na prevenção em assintomáticos, seara de grandes lucros, sobremedicalização e danos iatrogênicos. A partir da investigação e discussão científica e pública desses dissensos e dos princípios éticos inerentes à medicina e à saúde pública, poder-se-ia agregar clínicos, especialmente da APS, gestores, pesquisadores e entidades da Saúde Coletiva e movimentos sociais comprometidos com a equidade e a solidariedade para avolumar força política e colocar limites aos interesses mercadológicos/corporativos, reduzindo danos e sobremedicalização derivados desse rastreamento.

Referências bibliográficas

  • Financiamento

    Bolsa de produtividade em pesquisa do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento (CNPq) (proc. 313822/2021-2).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Jun 2023
  • Revisado
    15 Out 2023
  • Aceito
    18 Nov 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
E-mail: saudesoc@usp.br