Violência sexual contra mulheres e os processos de trabalho em unidades de saúde especializadas: avanços, desafios e resistências feministas

Sexual offenses against women and work processes in specialized health services: achievements, challenges and feminist resistance

Cristiane Magalhães de Melo Ana Clara Rocha Franco Marcela Quaresma Soares Ana Pereira dos Santos Paula Dias Bevilacqua Sobre os autores

Resumo

Neste artigo, buscou-se refletir sobre a atenção ofertada às mulheres em situação de violência sexual (VS) em duas unidades de saúde especializadas (UE) do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir da análise qualitativa de entrevistas com profissionais dessas UE e de observações participantes realizadas entre novembro/2021 e agosto/2022, notaram-se problemas como: dificuldades em abordar o tema da VS e do aborto; despreparo para acolher mulheres em situação de VS; e fragilidades na atuação em rede. Como avanços, destacam-se: a compreensão da VS como problema social e de saúde por profissionais das equipes multidisciplinares, que se configuram como referências positivas para organização do trabalho em torno da VS nas UE; a disponibilidade de insumos necessários; e a percepção da melhoria na humanização da atenção à VS, desde a implementação da coleta de vestígios no SUS. É evidente que, para além das questões técnicas, o atendimento à VS é permeado por questões socioculturais e de gênero que atravessam os processos de trabalho, afetando a organização e a forma como o cuidado será ofertado. Enfatiza-se a importância da resistência feminista dos profissionais das equipes multidisciplinares para realização do trabalho e a urgência da formação de profissionais sensíveis para tratar das violências de gênero.

Palavras-chave:
Violência contra a Mulher; Violência Sexual; Serviços de Saúde; Serviços de Saúde da Mulher; Perspectiva de Gênero

Abstract

This study aimed to reflect on the health care offered to women in situations of sexual violence (SV) in two specialized units (SU) in the Brazilian Unified Health System (SUS). Based on a qualitative analysis of interviews with professionals from these SUand participant observations, carried out from November/2021 to August/2022, this study observed problems such as difficulties in approaching subjects of SV and abortion; unpreparedness to welcome women in situations of SV, and network weaknesses. As advances, this research found that multidisciplinary team professionals understand of SV as a social and health problem, workers who serve as positive references for organizing work around SV in SU; the availability of the necessary supplies; and the perception of improvement in the humanization of SV care since the implementation of trace collection at SUS. In addition to technical issues, health care is evidently permeated by sociocultural and gender issues that affect work processes, affecting organizations and the way care is provided. The importance of feminist resistance by professionals in multidisciplinary teams is emphasized due to the urgent need to train sensitive professionals to deal with gender-based violence.

Keywords:
Violence Against Women; Sex Offenses; Health Services; Women’s Health Services; Gender Perspective

Introdução

Há 20 anos, foi publicada a primeira Norma Técnica de prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes (Brasil, 1999BRASIL. Ministério da Saúde. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. 3. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 1999.). Fruto das reivindicações feministas, das organizações de mulheres e dos especialistas, a edição dessa norma, assim como outros documentos produzidos na década de 2000, representou um importante passo no sentido de conferir visibilidade às violências de gênero e à luta pelo direito à assistência à saúde de mulheres em situação de violência sexual (VS) no Brasil (Bandeira, 2014BANDEIRA, L. M. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 29, n. 2, 2014.; Lima; Deslandes, 2014LIMA, C. A. de; DESLANDES, S. F. Violência sexual contra mulheres no Brasil: conquistas e desafios do setor saúde na década de 2000. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 23, n. 3, p. 787-800, 2014.).

Visando responder a um problema grave e persistente, os documentos produzidos, além de assumir a violência como problema de saúde pública, explicitaram a compreensão de que se trata de um fenômeno complexo e estruturado em relações desiguais de gênero, cujo enfrentamento exige ações articuladas em redes intersetoriais.

O setor saúde tem papel fundamental na rede, devendo assegurar acesso oportuno: ao atendimento multidisciplinar e humanizado de urgência; ao acompanhamento longitudinal dos casos; à realização de interrupção da gestação decorrente de estupro; e, mais recentemente, à colaboração com a segurança pública, no registro de informações e na coleta de vestígios que possam contribuir na investigação do crime de estupro. Essa última ação objetiva conferir agilidade e humanização dos processos médicos/legais, evitando a revitimização. Para tanto, foram editadas leis, normas e portarias sobre o funcionamento do serviço especializado de atenção às pessoas em situação de VS (SAVS) pelo Sistema Único de Saúde (SUS) (Brasil, 2013BRASIL. Presidência da República. Lei n. 12.845, de 1 de agosto de 2013. Dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral de pessoas em situação de violência sexual.Brasília, DF: Diário Oficial da União, 2013., 2015aBRASIL. Ministério da Saúde. Norma técnica: atenção humanizada às pessoas em situação de violência sexual com registro de informações e coleta de vestígios. Brasília, DF: Ministério da Saúde , 2015a., 2015bBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria interministerial n. 288, de 25 de março de 2015. Estabelece orientações para a organização e integração do atendimento às vítimas de violência sexual pelos profissionais de segurança pública e pelos profissionais de saúde do Sistema Único de Saúde (SUS) quanto à humanização do atendimento e ao registro de informações e coleta de vestígios. Brasília, DF: Diário Oficial da União , 2015b.).

Ressalta-se que, apesar da importância do setor saúde na atenção aos casos de VS e mesmo após o marco legal/operacional, persistem problemas relacionados à implementação do SAVS, como: o incipiente número de unidades do SUS cadastradas para atendimento aos casos; a existência de vazios assistenciais; e o baixo percentual de procedimentos preconizados na atenção à VS realizados (Melo; Soares; Bevilacqua, 2022MELO, C. M. de; SOARES, M. Q.; BEVILACQUA, P. D. Violência sexual: avaliação dos casos e da atenção às mulheres em unidades de saúde especializadas e não especializadas. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 27, p. 3715-3728, 2022.). Além disso, pouco se sabe sobre o cotidiano da prestação do SAVS às mulheres, que poderia contribuir para identificação de problemas e possibilidades para superação.

Considerando o exposto, as perguntas que motivaram o presente estudo foram: quais são as condições atuais de produção do cuidado em saúde às mulheres em situação de VS em unidades de saúde que prestam SAVS? Quais desafios foram superados e quais ainda persistem?

Ancoradas no debate feminista e tendo como premissa que a construção sociocultural de gênero atravessa a organização dos serviços de saúde, objetivou-se compreender os processos de trabalho instituídos em unidades de saúde do SUS em que o SAVS foi implementado e está em funcionamento, analisando as experiências dos profissionais que atuam nesses serviços e refletindo sobre os aspectos implicados no atendimento às mulheres.

Para as reflexões propostas, partimos da compreensão dos processos de trabalho como a dimensão relacional das práticas cotidianas nos serviços de saúde. Isso abrange tanto os aspectos estruturais e condições imediatas para a produção do cuidado (meios e instrumentos) como também as subjetividades dos(as) agentes e sujeitos envolvidos. Nessa perspectiva, entendemos que os processos de trabalho se organizam dinamicamente, a partir dos encontros entre profissionais, usuárias(os) e instituições (Peduzzi; Schraiber, 2008PEDUZZI, M.; SCHRAIBER, L. Processo de Trabalho em Saúde. In: PEREIRA, I. B.; LIMA, J. C. F. Dicionário da Educação Profissional em Saúde. 2. ed. Rio de Janeiro: EPSJV, 2008. p. 320-328. ).

Metodologia

O estudo, de caráter exploratório, utilizou como técnicas para construção de dados qualitativos, a entrevista semiestruturada e a observação participante (Deslandes; Gomes; Minayo, 2016DESLANDES, S. F.; GOMES, R.; MINAYO, M. C. de S. Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2016.).

Como campo de estudo, elegeram-se duas unidades de saúde do SUS especializadas (UE) na prestação do SAVS às mulheres localizadas em um município de grande porte em Minas Gerais (MG), sendo denominadas como UE1 e UE2. As unidades hospitalares eleitas ofertam o SAVS em três modalidades: (1) atendimento de urgência, 24h por dia/sete dias na semana, no pronto atendimento da UE; (2) acompanhamento ambulatorial, por equipe multidisciplinar, das mulheres em situação de VS, em ambulatório na própria UE; e (3) interrupção legal da gestação decorrente de estupro. As UE1 e UE2 foram escolhidas devido ao seu protagonismo na implementação desses serviços em Minas Gerais.

Foram convidadas(os) a participar da pesquisa, na condição de entrevistada(o), as(os) gestoras(es), as(os) coordenadoras(es) das equipes multidisciplinares dos ambulatórios de VS e todas(os) as(os) profissionais das equipes multidisciplinares, responsáveis pelo acompanhamento ambulatorial das mulheres em situação de VS das duas UE. Todas(os) foram contatadas e aceitaram participar, com apenas uma recusa na UE2.

Adicionalmente, integraram a pesquisa médicas(os) residentes e ginecologistas que atuam no atendimento de urgência e no abortamento legal e que, no momento da pesquisa, realizavam atendimento ambulatorial junto às equipes multidisciplinares. Devido à dinâmica do serviço de urgência, somente foi possível entrevistar um profissional que atuava exclusivamente nesse setor.

Produção de dados

Realizaram-se, no total, 18 entrevistas individuais semiestruturadas, sendo duas com gestoras(es) das UE; duas com coordenadoras(es) das equipes multidisciplinares (uma enfermeira e uma médica), seis com médicas(os) residentes e também com as(os) seguintes profissionais da equipe multidisciplinar: médica(o) (2); psicóloga(o) (2); assistente social (2) e auxiliar administrativa(o) (2). A maioria das(os) entrevistadas(os) era mulher (83%) e, excluindo as(os) médicas(os) residentes, o tempo médio de atuação no SAVS era de quatro anos, variando de um até sete anos. Para proteger a identidade das(os) participantes, a cada entrevistada(o) foi atribuído um código representado pela letra “E” e um número (E1, E2,… E18).

As entrevistas foram realizadas entre novembro/2021 e agosto/2022, nas UE, em horário previamente acordado, prezando pelo respeito às dinâmicas de trabalho, à privacidade e ao conforto da(o) entrevistada(o). Foram conduzidas pelas pesquisadoras e seguiram um roteiro com perguntas abertas, que possibilitaram à(ao) entrevistada(o), a partir de suas experiências, discorrer sobre: a organização do trabalho em torno do cuidado à VS na UE; a existência e uso de fluxos e protocolos; a relação com outras instituições na condução dos casos de VS; as percepções sobre o serviço prestado na UE; e os desafios e avanços do atendimento à VS.

No mesmo período se realizaram observações participantes, objetivando complementar as informações das entrevistas e conhecer a estrutura das UE. As observações foram realizadas pelas pesquisadoras nos mesmos dias em que conduziram as entrevistas, enquanto aguardavam no pronto atendimento (urgência), na sala de espera do ambulatório ou durante pequenas reuniões entre integrantes da equipe multidisciplinar. Nesses momentos, além de participar de conversas informais com profissionais, foi possível realizar perguntas e observações que ajudaram a compreender o cotidiano do SAVS e os processos de trabalho instituídos nas UE pesquisadas. Em respeito ao sigilo e a fim de preservar a privacidade das mulheres, não foram realizadas observações durante as consultas.

Análise de dados

As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas pelo método da análise de conteúdo temática (Braun; Clarke, 2006BRAUN, V.; CLARKE, V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, [s. l.], v. 3, n. 2, p. 77-101, 2006.). Os dados das observações, registrados em diário de campo, auxiliaram na compreensão do contexto das UE e na análise das entrevistas, cujo processo envolveu seis etapas: (1) leitura exaustiva do material produzido e busca por significados e padrões; (2) produção de códigos iniciais; (3) análise dos códigos e das possíveis combinações para identificação de temas; (4) revisão dos temas a partir de critérios de homogeneidade interna e heterogeneidade externa; (5) análise de cada tema, com inclusão de subtemas a partir da hierarquia de significados; e (6) produção do relatório de resultados e análise final.

Aspectos éticos

Este estudo compõe a pesquisa “Atendimento às mulheres em situação de violência sexual e coleta de vestígios: pesquisa avaliativa em unidades de referência do setor saúde”, aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa das instituições coparticipantes e do Instituto René Rachou/Fiocruz-Minas (Parecer nº 4.476.736).

Resultados

Caracterização das UE e organização do SAVS

As UE pesquisadas são do nível hospitalar, sendo uma maternidade (UE1) e um hospital geral com maternidade (UE2) que, dentre os serviços de saúde ofertados à população, atuam na prestação de três modalidades de SAVS, conforme informado na metodologia e no Quadro 1. Esses serviços são realizados em locais e por diferentes profissionais ou equipes nas dependências das UE, atuando de modo articulado e formando um continuum do atendimento às mulheres, que se inicia na urgência e continua no ambulatório onde, por sua vez, pode-se acionar o plantão obstétrico para realização da interrupção da gestação.

Quadro 1
Características dos serviços ofertados às mulheres em situação de VS nas UE analisadas

Verifica-se que há disponibilidade de medicamentos e demais recursos necessários ao atendimento, como antirretrovirais, anticoncepção de emergência, vacinas e kit para coleta de vestígios, esse último disponibilizado pela Polícia Civil de MG.

Em ambas UE, o atendimento de urgência e a interrupção da gestação são realizados por profissionais do corpo clínico e por médicas(os) residentes plantonistas. Tratam-se, assim, de equipes rotativas (Quadro 1).

Uma diferença importante observada entre as UE se relaciona à equipe multidisciplinar de acompanhamento ambulatorial dos casos de VS. Na UE1, tanto as(os) profissionais quanto a coordenadora da equipe possuem vínculos estáveis de trabalho (concurso público) e mais experiência. Na UE2, os vínculos de trabalho são frágeis, constituídos por contratos de curta duração (um a dois anos), o que implica alta rotatividade e maior dificuldade de conformação e organização do trabalho.

A violência sexual e as dimensões do atendimento às mulheres

Foi possível observar que a VS e o atendimento às mulheres não são compreendidos da mesma maneira por todas(os) profissionais das UE, havendo diferenças sobretudo entre os(as) profissionais das equipes multidisciplinares e os(as) residentes que atuam no atendimento de urgência. As narrativas apresentam duas dimensões do atendimento à VS: a sociocultural e a técnica/burocrática.

A dimensão sociocultural foi observada, notadamente, entre membros mais experientes das equipes multidisciplinares. Essas(es) profissionais percebem que há resistências, tanto por parte da população em geral quanto das(os) profissionais de saúde e de segurança pública, em falar sobre o tema da VS. As(os) mesmas(os) entrevistadas(os) explicam que tal resistência tem relação com preconceitos, crenças religiosas e julgamentos de ordem moral sobre o papel social das mulheres, culminando em dificuldades ou recusa em acolher as que buscam apoio em decorrência da VS.

Então a dificuldade que nós temos hoje é essa, de como a sociedade vê a mulher e como a sociedade vê a questão do estupro (E3).

Então acho que isso é o maior desafio de todos, essa resistência que existe por parte da população, da equipe, da polícia em abordar essa paciente, em acolher, em tratar ela dentro das necessidades que ela tem (E14).

As entrevistas com profissionais da urgência reforçaram as fragilidades na compreensão dos aspectos socioculturais da VS e a importância do trabalho realizado pelo setor saúde para além do aspecto individual, curativo e medicamentoso, sobressaindo a dimensão técnico/burocrática do atendimento. Segundo elas(es), o atendimento à VS é demorado, burocrático e emocionalmente difícil. A despeito disso, registram que se trata de um atendimento muito importante para “ajudar” as mulheres, que chegam muito abaladas na UE.

As(os) entrevistadas(os) indicaram que há desconhecimento sobre a existência da UE e sobre a importância do atendimento na saúde pela população e por profissionais da rede intersetorial. Apresentaram, também, que muitas mulheres não buscam atendimento e nem registram ocorrência da VS na polícia por medo de serem desacreditadas, julgadas, culpabilizadas, perseguidas e/ou ameaçadas; ou pelo desejo de proteger o agressor que, muitas vezes, é um conhecido ou um familiar. Assim, consideram um desafio a mulher autorizar a coleta de vestígios, pois associam o procedimento à denúncia do crime à polícia, fato que gera medo de terem que lidar com os desdobramentos da judicialização da violência.

O estigma foi apresentado como algo que marca tanto as mulheres que sofreram VS quanto as equipes de saúde responsáveis pelo SAVS.

[…] o serviço [refere-se ao SAVS] tem muito preconceito do próprio profissional da saúde, né? quando nós começamos a montar o serviço aqui era um preconceito danado, porque as pessoas entendem que ao montar um serviço de atenção à mulher em violência, eu tô montando uma clínica de aborto, eu tô montando um serviço de aborto e o que a gente vê é o contrário. (E3)

A equipe médica tem resistência muito grande pra VS e pra equipe de VS. A minha impressão é que quando ando pelo hospital eu estupro ou eu aborto, só de olhar. […] As pessoas não querem nem saber o que eu tenho pra falar. (E1)

As(os) entrevistadas(os) da UE1 relataram que profissionais do corpo clínico, que não atuam diretamente no atendimento à VS, identificam a equipe multidisciplinar como “equipe do aborto”, como se o trabalho se restringisse ao encaminhamento de pedidos para realização de interrupção de gestação.

A interrupção legal da gestação

A interrupção da gestação apareceu como o principal desafio do atendimento à VS. Devido à importância que o tema apresentou na pesquisa, optamos por apresentá-lo de forma completa em um texto específico, ainda não publicado. Assim, neste manuscrito, recortamos alguns pontos para compreender como o abortamento legal se relaciona ao atendimento das mulheres em situação de VS nas UE estudadas.

Embora ambas UE sejam referência para abortamento legal, as(os) entrevistadas(os) informaram não ser incomum a recusa de realização do procedimento por médicos do corpo clínico, sob alegação de objeção de consciência, por questões morais, religiosas e por receio de responder criminalmente. Assim, como estratégia para garantir o direito das mulheres ao abortamento, profissionais das equipes multidisciplinares se valiam de plantões específicos em que seja possível realizar o procedimento, priorizando os agendamentos para tais plantões.

Contudo, as(os) entrevistadas(os) da UE1 consideram que, à medida em que o trabalho da equipe multidisciplinar foi se consolidando, aumentou a confiança do corpo clínico nessa equipe e no trabalho por ela desenvolvido e, atualmente, a alegação de objeção de consciência é menos frequente.

Processos de trabalho: da formação da equipe aos vínculos construídos com as mulheres em situação de VS

Dificuldades para seleção, organização e manutenção das equipes multidisciplinares foram informadas nas duas UE, que destacaram a importância de compor essas com profissionais de perfis específicos. Esse perfil inclui habilidades como escuta isenta de julgamentos, respeito às mulheres, compreensão sociocultural da violência e postura humanizada de trabalho.

As(os) profissionais relatam a sensibilidade de se trabalhar com o tema da violência e o quanto é “difícil” ouvir relatos de VS. Em ambas UE, a equipe multidisciplinar é composta majoritariamente por mulheres. Essa é uma estratégia para que as usuárias se sintam mais “confortáveis” e “seguras”, visto que, na maioria dos casos, o agressor é um homem. Porém, as profissionais relatam que, por serem mulheres, identificam-se com as atendidas e sentem medo e esgotamento por conta disso, o que contribui para rotatividade nas equipes multidisciplinares. Isso ocorre sobretudo na UE2, em que as relações de trabalho são mais frágeis.

Outro problema que os serviços enfrentam, a questão psicológica para atender esses casos, principalmente porque a maioria dos funcionários são mulheres e você fala assim “nó, mas tem resistência?” é porque a gente se vê nessa outra mulher, então não é fácil você sentar aqui e escutar estupro o dia inteiro, né? Eu lembro que uma das médicas que passou aqui, falava “essa clínica é muito castradora, porque a gente sai daqui com medo de tudo”. Então assim, você não tem uma vida normal, no sentido de que você não sai na rua mais tranquila, você não bebe numa festa tranquila. (E1)

[…] Ela queria sair. Mas, como não tem outra pessoa para assumir, ela disse “eu fico e vou ficando até surtar” [Fala de um gestor. Refere-se à coordenadora da equipe multidisciplinar]. (E18)

Pela sensibilidade do tema da VS, são informadas estratégias para lidar com os impactos impostos pelo trabalho. Um exemplo é a organização dos atendimentos do ambulatório concentrados em um ou dois dias na semana. Adicionalmente, E18 aponta como necessário que a gestão ofereça condições de trabalho e de permanência das(os) profissionais no serviço.

Com intuito de desmistificar o tema da VS e favorecer o cuidado sem julgamento, as equipes multidisciplinares das UE realizam ações de sensibilização. Na UE1, essas ações são propostas para setores e profissionais que, de alguma forma, lidam com as mulheres em situação de VS, “do porteiro até o diretor clínico” (E1). Tais ações são avaliadas como potenciais tanto para qualificação do cuidado às mulheres quanto para melhoria da confiança entre o corpo clínico e a equipe multidisciplinar.

Consoante à sensibilização, o treinamento para profissionais do SAVS é identificado como importante para garantia da qualidade e humanização da atenção. Contudo, observou-se que, em geral, os treinamentos nas duas UE têm como foco a coleta de vestígios. Como se trata de um procedimento realizado no atendimento de urgência, apenas as(os) médicas(os) do plantão realizam essa atividade. Assim, mesmo que as equipes multidisciplinares sejam convidadas, há pouca adesão.

Eu acho bem difícil [refere-se ao SAVS]. É desafiador porque ninguém é treinado para isso. A gente não teve contato com isso durante a formação […] A gente vai aprendendo na prática, no tato […] é um atendimento delicado, bem complexo. […] para mim isso é uma falha, sabe? […] devia ser um treinamento tanto em forma de atendimento tanto em forma de coleta de material. (E15)

Outro ponto se refere ao vínculo estabelecido entre as equipes multidisciplinares e as mulheres atendidas. O vínculo é apresentado como algo que colabora para a adesão das mulheres aos cuidados propostos na atenção multidisciplinar e para motivação das(os) profissionais que verificam, como produto do trabalho da equipe, o fortalecimento dessas mulheres. Em ambas UE, as(os) entrevistadas(os) identificam que a maioria das atendidas na urgência retornam para a continuidade do cuidado ambulatorial, informando que a relação estabelecida com as(os) profissionais é importante para que as elas se sintam acolhidas e seguras para retornar à UE e continuar seguimento o acompanhamento.

Por fim, E1 afirma ser importante que a relação com as(os) profissionais envolvida(os) no cuidado em saúde seja humanizada e ausente de julgamentos. Há preocupação na equipe da UE1 de que a mulher atendida se sinta “cuidada, acolhida, bem, fortalecida”. Desse modo, E4 ressalta que isso só é possível se as(os) profissionais estiverem abertas(os) para a escuta e, consequentemente, para a construção de vínculo.

Rede de atenção e enfrentamento à VS: desafios e possibilidades de diálogo

Considerando as barreiras que impedem ou dificultam o acesso das mulheres às UE, as(os) entrevistadas(os) propõem o incentivo ao diálogo intra e intersetorial e a ampliação da prestação do SAVS como possibilidade. Comecemos pelo diálogo intersetorial, já que são raros ou inexistentes os espaços de discussão e construção de propostas para se operar no enfrentamento à VS de forma compartilhada, sendo a comunicação entre as UE e outros setores limitada à resolução de casos pontuais, configurando-se como “um grande gargalo” (E1).

Segundo relatos, existiram espaços como seminários sobre VS no passado, promovidos pelas UE e envolvendo setores além da saúde. Porém, a pandemia afetou negativamente esses encontros, que não acontecem mais. Apesar disso, profissionais das duas UE consideram crucial o diálogo entre instituições e serviços da rede para integralidade do cuidado e para proporcionar segurança às(aos) profissionais, especialmente nos casos de abortamento. Nesse caso, o contato com instituições como o Ministério Público é informado como fundamental para respaldo jurídico, seja para encaminhamento ou realização da interrupção da gestação.

[…] o diálogo com a equipe é extremamente importante. Também a procura pela promotoria foi uma demanda espontânea nossa, acho que tem que melhorar um pouco esse diálogo IML [Instituto Médico Legal], Promotoria-equipe de saúde até para definir melhor alguns passos do atendimento dessa mulher […]. Então esse diálogo entre as partes é muito importante até para dar uma segurança para equipe, a gente sofre ameaça, a gente sofre pressão de todos os lados, de todas as direções, então para dar uma segurança para equipe isso é muito importante […]. (E14)

O contato entre as UE e a segurança pública é mais frequente, seja devido à coleta de vestígios ou à condução de casos cujo atendimento tenha sido iniciado pela Polícia Militar (PM). Contudo, há um ponto de tensão quando a PM acompanha a mulher até as UE, pois não é incomum policiais interrogarem profissionais de saúde sobre os casos ou solicitarem informações referentes ao relato das mulheres para validarem ou não a ocorrência da VS.

Apesar das dificuldades, as(os) entrevistadas(os) foram unânimes em afirmar como é um avanço do diálogo intersetorial a implementação da coleta de vestígios no SUS. A inclusão do procedimento na rotina do atendimento do SUS é tida como ação que contribuiu para ampliação das coletas realizadas, visto que, na saúde, o procedimento é apresentado como uma opção segura à mulher, já que não é obrigatório, nem condicionado à formalização do boletim de ocorrência. Adicionalmente, as(os) entrevistadas(os) relatam que sua realização no SUS é “mais humanizada” e “menos constrangedora do que quando realizada no IML”, visto que a abordagem e o acolhimento da(a) profissional de saúde é diferente da(o) profissional da segurança.

É uma atenção mais humanizada! E outra coisa, nem todas querem procurar a polícia, é igual eu te falei, leva um tempo até a mulher chegar e ter coragem de procurar a polícia, então acaba que esse acesso pelo SUS democratizou o atendimento porque ela sabe que aqui não é necessário coletar vestígios, ela não vai ser obrigada a registrar um boletim de ocorrência para ter o acesso. (E7)

Dificuldades de diálogo também foram identificadas no âmbito da rede de saúde pública, sendo citados dois grandes desafios: (1) o diálogo, entre diferentes UE, para trocas e aprimoramento dos SAVS; e (2) a difícil relação entre as UE e outros níveis de atenção do SUS, como a Atenção Primária à Saúde (APS) e a rede de saúde mental. A ampliação desse diálogo é vista como necessária para agilidade das ações e integralidade do cuidado.

Sobre o primeiro desafio, cabe destacar a participação de profissionais de ambas UE em um grupo de discussão remoto (WhatsApp), formado por profissionais de diversas UE brasileiras e pesquisadoras(es) com interesse na temática, onde trocas e diálogos são realizados.

Sobre o segundo desafio, destaca-se a dificuldade de diálogo com a APS.

Alguns encaminhamentos eu acho que não tem uma receptividade. Já teve uma vez que eu liguei e eles falaram […] que a psicóloga do posto só atendia casos muito graves e eu falei “mas não é muito grave? Tô ligando exatamente porque o caso é grave”. Então, tem umas coisas assim. (E17)

As(os) entrevistadas(os) sugerem que a APS poderia contribuir na identificação de casos crônicos de VS no território, realizando encaminhamento oportuno para as UE e, ainda, colaborando com o enfrentamento da VS através de processos informativos e educativos articulados na rede. De acordo com E12, é necessário que a APS atue em diálogo com as UE, pois somente assim será possível estabelecer relações de confiança para referenciamento das mulheres para continuidade do cuidado à VS na APS.

Por fim, os profissionais indicaram a importância da ampliação do acesso das mulheres em situação de VS ao cuidado de saúde. Nomeada pelas(os) entrevistadas(os) como “capilarização”, a ampliação do atendimento da VS é proposta no sentido da responsabilização dos diferentes níveis de atenção à saúde, com possibilidade de participação do setor privado, e na perspectiva do território com ampliação do serviço para áreas onde inexistem UE.

Discussão

Os resultados demonstraram um aspecto positivo sobre a organização e estrutura das UE analisadas, visto que ambas prestam serviços fundamentais na atenção à VS. Assim, quando uma mulher acessa o serviço de urgência na UE1 ou UE2 em razão da VS, ela retorna à UE para acompanhamento ambulatorial e, se necessário e desejado, é possível realizar abortamento legal na mesma UE. Outro aspecto positivo e que representa um avanço em relação a outros cenários (Moreira et al., 2020MOREIRA, G. A. R. et al. Manifestações de violência institucional no contexto da atenção em saúde às mulheres em situação de violência sexual. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 29, n. 1, e180895, 2020.) foi a disponibilidade de materiais e insumos, visto que o SAVS envolve ações sensíveis ao tempo como a prevenção da gravidez, infecções sexualmente transmissíveis e a coleta de vestígios.

Apesar da rotatividade dos profissionais no atendimento de urgência e no abortamento se apresentar como possível fragilidade, a presença de uma equipe multidisciplinar fixa para o acompanhamento ambulatorial dos casos é um ponto positivo. Essa equipe se configura como referência técnica para VS nas UE, ainda mais notadamente na UE1 em que há uma equipe coesa, mobilizada e mais estável, considerando os vínculos de trabalho.

Nesse sentido, salienta-se que as equipes multidisciplinares das duas UE, além da tarefa protocolar de acompanhar os casos de VS, atuam como contraponto ao colocar a VS em discussão e problematização nas unidades. Contudo, muitas vezes o trabalho dessa é deslegitimado por profissionais que atuam em outros setores e serviços da UE, já que preconceitos, medos e estigmas que gravitam em torno das mulheres e da VS permeiam todo o trabalho em saúde, impondo dificuldades para estruturação do SAVS. Além disso, o silenciamento e a resistência de alguns profissionais em abordar o tema da VS e acolher as mulheres refletem diretamente na atenção prestada no SUS, do mesmo modo que fragilizam o trabalho desenvolvido em outros serviços da rede (Branco et al., 2020bBRANCO, J. G. de O. et al. Objeção de consciência ou instrumentalização ideológica? Uma análise dos discursos de gestores e demais profissionais acerca do abortamento legal. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, supl.1, e00038219, 2020b.; Silva et al., 2019SILVA, J. G. et al. Direitos sexuais e reprodutivos de mulheres em situação de violência sexual: o que dizem gestores, profissionais e usuárias dos serviços de referência?. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 28, p. 187-200, 2019.).

Os resultados deste estudo se assemelham aos achados de Oliveira et al. (2005OLIVEIRA, E. M. de et al. Atendimento às mulheres vítimas de violência sexual: um estudo qualitativo. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 39, p. 376-382, 2005.). Infelizmente, persistem problemas relatados há quase 20 anos, como a influência dos valores culturais e morais na assistência às mulheres, a falta de conhecimento sobre a existência de UE e as tensões com as autoridades policiais, já que nesse caso as ações são, em geral, focadas na denúncia, ignorando ou minimizando a necessidade de cuidados de saúde.

Há quase 30 anos, a violência foi considerada como problema de saúde pública. Contudo, o atendimento às mulheres em situação de VS continua a ser um paradoxo para o campo da saúde, pois se articulam práticas impregnadas de significações morais e religiosas que corroboram para a naturalização da violação do corpo das mulheres, a rejeição ao aborto e a manutenção da VS na invisibilidade (Villela; Lago, 2007VILLELA, W. V.; LAGO, T. Conquistas e desafios no atendimento das mulheres que sofreram violência sexual. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 471-475, 2007.).

Tal observação foi evidenciada no presente estudo quando as(os) profissionais das equipes multidisciplinares relataram: dificuldades para formar e manter as equipes; necessidade de constante mobilização/sensibilização do corpo clínico para o tema da VS; e as dificuldades e estratégias necessárias para garantir acesso humanizado ao abortamento legal. Esses aspectos demonstram os atravessamentos da construção sociocultural e dos estereótipos de gênero na prática dos profissionais de saúde, incidindo na organização das UE para atendimento à VS.

Giugliani et al. (2021GIUGLIANI, C. et al. Violência sexual e direito ao aborto legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.) corroboram com isso ao informar que a construção sociocultural contribui para o lento e frágil desenvolvimento de políticas no campo dos direitos sexuais e reprodutivos e para que mulheres sejam revitimizadas nas instituições e serviços que deveriam acolher e prestar-lhes apoio.

Do mesmo modo que ainda são frágeis as políticas de direitos sexuais (Giugliani et al., 2021GIUGLIANI, C. et al. Violência sexual e direito ao aborto legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.; Silva et al., 2019SILVA, J. G. et al. Direitos sexuais e reprodutivos de mulheres em situação de violência sexual: o que dizem gestores, profissionais e usuárias dos serviços de referência?. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 28, p. 187-200, 2019.), a presente pesquisa aponta fragilidades do SAVS que, embora formalmente instituído no âmbito do SUS e das UE em análise, enfrenta permanentes desafios para se efetivar.

Esses pontos são evidenciados principalmente na discussão sobre abortamento legal. O contexto político-religioso e o avanço do conservadorismo contribuem para o reforço aos estereótipos de gênero, para a complexificação do atendimento à VS e para a construção de barreiras de acesso impostas pelo Estado (Branco et al., 2020aBRANCO, J. G. de O. et al. Fragilidades no processo de trabalho na Atenção à Saúde à Mulher em situação de violência sexual. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 25, n. 5, p. 1877-1886, 2020a.; Moreira et al., 2020MOREIRA, G. A. R. et al. Manifestações de violência institucional no contexto da atenção em saúde às mulheres em situação de violência sexual. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 29, n. 1, e180895, 2020.; Silva et al., 2019SILVA, J. G. et al. Direitos sexuais e reprodutivos de mulheres em situação de violência sexual: o que dizem gestores, profissionais e usuárias dos serviços de referência?. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 28, p. 187-200, 2019.). Assim, dispositivos legais e técnicos operam no controle dos corpos femininos pautados numa moral conservadora que dificulta o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, sobretudo quando relacionados à assistência ao abortamento. A Portaria nº 2.561/2020 (Brasil, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.561, de 23 de setembro de 2020. Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Brasília, DF: Diário Oficial da União , 2020.) (revogada em janeiro de 2023), que tratava sobre a justificação e autorização para interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, constitui-se exemplo desses dispositivos.

A interrupção da gestação se apresentou como procedimento estigmatizante para as mulheres que a desejam ou a realizam, para as(os) profissionais que assistem as mulheres em abortamento e para os SAVS. A identificação das equipes multiprofissionais como aborteiras também foi observada em outros estudos (Giugliani et al., 2021GIUGLIANI, C. et al. Violência sexual e direito ao aborto legal no Brasil: fatos e reflexões. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2021.; Adesse et al., 2016ADESSE, L. et al. Aborto e estigma: uma análise da produção científica sobre a temática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 12, p. 3819-3832, 2016.; Villela; Lago, 2007VILLELA, W. V.; LAGO, T. Conquistas e desafios no atendimento das mulheres que sofreram violência sexual. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, p. 471-475, 2007.). Ou seja, mesmo sendo realizado dentro dos permissivos legais, o abortamento é algo que marca, deprecia, desacredita e envergonha quem realiza ou autoriza fazê-lo, pois sua realização implica a transgressão de normas religiosas e morais e de estereótipos de gênero associados à maternidade, ao cuidado e à proteção da vida (Adesse , 2016ADESSE, L. et al. Aborto e estigma: uma análise da produção científica sobre a temática. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 12, p. 3819-3832, 2016.).

No âmbito das UE analisadas, observamos uma dicotomia. Por um lado, há o trabalho da equipe multidisciplinar que propõe atividades de sensibilização voltadas ao corpo clínico, com vistas à promoção da humanização da atenção. Por outro lado, percebe-se que o debate moral e o receio de ter que responder a processos judiciais continuam incidindo no trabalho, implicando em recusas na realização do abortamento por parte de alguns profissionais mesmo nas situações previstas em lei. Essa discussão é especialmente relevante se considerarmos que o discurso moral e religioso dirigido às mulheres e fortemente presente na pauta política brasileira reverbera no discurso de alguns profissionais, afetando o atendimento daquelas que buscam o serviço.

Apesar de considerarem o atendimento à VS como emocionalmente difícil, nem todas(os) profissionais relacionaram essa violência com a problemática de gênero. As narrativas das(os) residentes que atuam no atendimento de urgência apontam para uma compreensão do trabalho como “ajuda” às mulheres. Esses profissionais lidam com os casos na fase aguda, atuando pontualmente com as consequências mais imediatas da VS e havendo poucas oportunidades de reflexão sobre o tema e sobre os casos atendidos. Interroga-se, assim, se essas(es) profissionais compreendem a violência para além do ato, ou seja, como fenômeno social complexo relacionado às desigualdades de gênero.

O não entendimento da VS enquanto fenômeno estruturado em relações desiguais de gênero contribui para que o serviço de saúde reproduza formas de opressão. No mesmo sentido, não reconhecer a violência como fenômeno complexo dificulta a formação de vínculos com as usuárias, assim como impossibilita a compreensão sobre as possibilidades de cuidado na rede e, consequentemente, a efetivação do cuidado longitudinal.

É importante refletir sobre como a organização dos processos de trabalho no atendimento de urgência, pautado na lógica da racionalidade prescritiva, contribui para o distanciamento da compreensão das dimensões socioculturais da VS. Trata-se de um trabalho “morto”, realizado a partir do seguimento de protocolos, normas e padrões técnicos/burocráticos (Merhy, 2014MERHY, E. E. Saúde: A cartografia do trabalho vivo. 4. ed. São Paulo: Hucitec , 2014.), produzindo poucos encontros capazes de gerar vínculos e, portanto, transformações.

Por outro lado, para as equipes multidisciplinares o encontro e a formação de vínculos com outros profissionais, com as usuárias e com o próprio SAVS favorecem o movimento criativo e inventivo, inclusive potencializando a coesão necessária para que as equipes continuem a existir, mesmo em face às dificuldades enfrentadas cotidianamente. Trata-se de trabalho vivo, cuja potência se dá na medida em que esses profissionais, desestabilizando as forças instituídas, propõem novas formas de organização comprometidas com as mudanças necessárias para melhor acolher e acompanhar as mulheres (Merhy, 2014MERHY, E. E. Saúde: A cartografia do trabalho vivo. 4. ed. São Paulo: Hucitec , 2014.).

Sobre a composição das equipes multidisciplinares, foi interessante notar a preocupação da gestão das UE e das coordenadoras dessas equipes em selecionar profissionais com determinado “perfil”, no intuito de favorecer a vinculação ao trabalho e a relação com as usuárias. Embora não nomeado como feminista, o perfil desejado tem a ver com o que Egan (2019EGAN, S. Excavating feminist knowledges and practices in the field of sexual assault service provision: An Australian case study. Women’s Studies International Forum, New York, v. 74, p. 169-178, 2019.) considerou como “habilidades especializadas para trabalhar com sobreviventes de VS”. Em seu estudo, a autora problematiza que as ideias feministas, reivindicadas historicamente para atenção às mulheres, estão presentes nos serviços quando esses prezam por práticas colaborativas que favoreçam a autonomia das mulheres a partir de tratamento digno e respeitoso.

Entende-se que apostar no vínculo das(os) profissionais com a equipe multidisciplinar e das equipes com as mulheres a partir de uma escuta que considere aspectos subjetivos, socioculturais, econômicos, entre outros, é uma potência que pode ser explorada para efetivação do atendimento humanizado e para coprodução da autonomia entre profissionais e mulheres atendidas (Campos et al., 2017CAMPOS, G. W. de S. et al. Tratado de saúde coletiva. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2017.). Ou seja, o vínculo é uma aposta para organização de um serviço que compreenda a VS para além do ato, fomentando saídas possíveis para cada sujeito afetado. Sendo, inclusive, propulsor de construções autonomistas das mulheres sobre a sua vida e sua saúde.

Vale lembrar, contudo, que a construção do trabalho em torno da VS não prescinde da articulação em rede. E ainda que se reconheça a importância do diálogo intra e intersetorial para ampliação da capacidade e qualidade operativa dos SAVS, bem como para superação dos desafios e barreiras de acesso, esse foi apresentado como uma das principais dificuldades das UE na implementação do SAVS.

O aprimoramento do diálogo intersetorial por meio da criação de fóruns, reuniões entre serviços, grupos de discussão, entre outros, é potente para a criação de uma rede efetiva que promova reflexão crítica sobre o papel de cada serviço tanto na atenção às mulheres em situação de VS quanto na construção de um projeto compartilhado, resultando em melhores formas de acolhimento, atendimento e acompanhamento (Aguiar et al., 2023AGUIAR, J. M. de et al. Atenção primária à saúde e os serviços especializados de atendimento a mulheres em situação de violência: expectativas e desencontros na voz dos profissionais. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 32, n. 1, e220266pt, 2023.; Santos; Bevilacqua; Melo, 2020SANTOS, A. P. dos; BEVILACQUA, P. D.; MELO, C. M. de. Atendimento à mulher em situação de violência: construção participativa de um protocolo de trabalho. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 125, p. 569-579, 2020.). Esse esforço também colabora para diminuição da tensão existente entre as instituições, como no encontro inerente ao atendimento à VS que ocorre entre os serviços de saúde e a PM, por exemplo.

Do mesmo modo, entende-se que a amplificação do debate sobre VS colabora para que as mulheres e profissionais identifiquem situações de violência, orientem e ajam oportunamente.

Considerando os resultados da pesquisa, uma possibilidade para fortalecimento do trabalho em rede em torno da VS é que as equipes multidisciplinares das UE atuem como referência técnico-pedagógica, operando na lógica do Apoio Matricial (Campos; Domitti, 2007CAMPOS, G. W. de S.; DOMITTI, A. C. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 23, p. 399-407, 2007.) com outros pontos da rede, sobretudo com a APS. Entende-se que fomentar esse dispositivo pode favorecer espaços de discussão e evitar que a mulher circule sem informações pela rede, o que colabora para sua revitimização.

Por fim, sobre a importância da ampliação do acesso ao cuidado de saúde às mulheres em situação de VS ao capilarizar o SAVS, os resultados do presente estudo corroboram pesquisas recentemente publicadas (Melo; Soares; Bevilacqua, 2022MELO, C. M. de; SOARES, M. Q.; BEVILACQUA, P. D. Violência sexual: avaliação dos casos e da atenção às mulheres em unidades de saúde especializadas e não especializadas. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 27, p. 3715-3728, 2022.; Pinto et al., 2023PINTO, I. V. et al. Estudo descritivo dos casos notificados de violência sexual e dos serviços de atendimento especializado em Minas Gerais, 2019. Epidemiologia e Serviços de Saúde, Brasília, DF, v. 32, n. 2, e2022907, 23 out. 2023.), que demonstraram a existência de vazios assistenciais em MG e reforçaram a importância do investimento na ampliação das UE no estado.

Considerações Finais

A compreensão dos processos de trabalho e das dimensões implicadas no atendimento das mulheres em situação de VS em UE são questões ainda pouco exploradas pelas pesquisas brasileiras. Nesse sentido, uma das principais contribuições deste estudo foi evidenciar que, ainda que se trate de UE e para além das questões técnicas e dos desafios inter e intrasetoriais para implementação do cuidado integral às mulheres, o atendimento da VS é permeado por questões socioculturais e de gênero que atravessam os processos de trabalho, afetando desde a conformação das equipes até a organização do atendimento e a forma como esse será ofertado.

Ainda que compreendam a VS a partir das construções sociais, as(os) profissionais discutem pouco os atravessamentos e as especificidades de gênero no atendimento da saúde. A esse respeito, discute-se que, apesar da histórica mobilização feminista para politização do tema da VS e para qualificação do cuidado às mulheres, há pouca reflexão crítica das(os) profissionais de saúde sobre os impactos sociais da VS e o papel da saúde no seu enfrentamento, sobressaindo a perspectiva biomédica do cuidado, sobretudo nos atendimentos de urgência.

Por outro lado, observa-se que a mobilização e resistência feminista tomada por alguns profissionais foram fundamentais para implementação dos SAVS nas UE e continuam sendo imprescindíveis para sua existência e garantia do seu funcionamento. Isso reforça o necessário investimento na formação permanente de profissionais de saúde para abordar temas sensíveis como as violências de gênero e seus atravessamentos de raça/cor, classe, entre outros. No mesmo sentido, destaca-se a importância da criação de espaços de reflexão e debate com valorização do diálogo, do trabalho intersetorial e multiprofissional, pois é no encontro entre as diferentes instituições, profissionais, usuárias e situações de VS que os problemas são confrontados e possibilidades de mudanças são vislumbradas.

A limitação do estudo foi que, devido à dificuldade de realizar entrevistas durante o plantão, em decorrência da dinâmica do atendimento de urgência, foram entrevistadas(os) poucas(os) profissionais que atuam nesse serviço.

Agradecimentos

As autoras agradecem ao Instituto René Rachou – Fiocruz Minas e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), pelo apoio financeiro e concessão de bolsas de pesquisa.

Referências

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  • Fontes de financiamento
    A pesquisa contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), por meio do Programa de Pesquisa para o SUS: Gestão Compartilhada em Saúde (PPSUS)- Chamada 3/2020 (Processo APQ-00814-20).
  • Aspectos éticos
    Este estudo integra as pesquisas “Atendimento às mulheres em situação de violência sexual e coleta de vestígios: pesquisa avaliativa em unidades de referência do setor saúde”, submetida aos Comitês de Ética em Pesquisa da instituição coparticipante e do Instituto René Rachou - Fiocruz Minas, sendo aprovado em 18 de dezembro de 2020, sob parecer: 4.476.736.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2023
  • Revisado
    11 Dez 2023
  • Aceito
    27 Dez 2023
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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