Reinventando a roda: Capoeira como dispositivo de cuidado em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas

Reinventing the Wheel: Capoeira as a Care Device in a Psychosocial Care Center for Alcohol and Other Drugs

Stefania Vallado Alves Carla Regina Silva Flavia Liberman Sobre os autores

Resumo

Este artigo apresenta alguns resultados de uma pesquisa de mestrado cujo objetivo foi identificar as repercussões da prática da capoeira como dispositivo de cuidado e promoção da saúde para pessoas que fazem uso prejudicial de substâncias psicoativas. A pesquisa seguiu as diretrizes do método cartográfico e acompanhou, no período de 2019 a 2020, as atividades de um grupo de capoeira que ocorriam semanalmente no Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Outras Drogas II (CAPS AD II), parte da Rede de Atenção Psicossocial na cidade de São Paulo. Os participantes eram usuários que se interessavam por essa prática. Foram produzidos diários de campo e registros fotográficos. A prática da capoeira, como experiência afrorreferenciada, é percebida como promotora de saúde, atuando como um dispositivo de cuidado que valoriza os espaços de encontros e trocas de saberes-fazeres-sentires, incluindo aspectos coletivos, sociais, políticos, econômicos e culturais, proporcionando resgate e significado singulares. A inserção da capoeira nos serviços de saúde torna-se um dispositivo importante para expressões e posicionamentos sociais, políticos e afetivos, configurando-se também como um espaço de aproximação de singularidades, por meio da mandinga e da malícia que compõem essa grande roda.

Palavras-chaves:
Capoeira; Cuidado em Saúde; Saúde Mental; Terapia Ocupacional; Cultura Afrorreferenciada

Abstract

This study describes some results of a research project for a Master’s degree that aimed to find the impact of practicing capoeira as a care and health promotion device for people who make hazardous use of psychoactive substances. This research followed the guidelines of the cartographical method and followed the process of the capoeira group that took place weekly in a Psychosocial Care Center - Alcohol and Other Drugs (Caps AD II) -, which belongs to the Psychosocial Care Network in the municipality of São Paulo, from 2019 to 2020. Participants were users who were keen on such practice. Records were made using images and field diaries. The practice of capoeira as an Afro-Brazilian experience promoted health and provided care in spaces that value encounters and sharing of knowledge-doings-feelings - including the collective, the social, the political, the economic, and the cultural - of unique importance and significance. The practice of capoeira within health services becomes an important device for social, political, and affective expression and positioning and as a space for bringing together singularities by the mandinga and mischief that make up this “great roda” (gathering).

Keywords:
Capoeira; Health Care; Mental Health; Occupational Therapy; Afro-Brazilian Culture

Introdução

Este artigo apresenta alguns resultados de uma pesquisa de mestrado, que teve como objeto de estudo um grupo de capoeira que exercia suas atividades durante o período de 2019 a 2020 no Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e outras Drogas (CAPS AD II), serviço de saúde mental integrante da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Sistema Único de Saúde (SUS), na cidade de São Paulo. Um dos objetivos da pesquisa foi identificar as repercussões da prática de capoeira como um dispositivo de cuidado e promoção de saúde para pessoas que fazem uso prejudicial de substâncias psicoativas.

Concordamos com Deleuze quando ele afirma que o dispositivo é uma “máquina de fazer ver e fazer falar”. A produção de novos dispositivos indica um movimento que precisa ser construído caso a caso, onde é possível “traçar um mapa, cartografar, percorrer terras desconhecidas” (Deleuze, 1992DELEUZE, G. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992., p. 155) na busca por desdobramentos que permitam ultrapassar as formas consensuais e hegemônicas de subjetivação.

Nesse sentido, buscamos compreender se - e como - a prática da capoeira aponta, ou não, para possibilidades de ampliação de trocas sociais e produção de vida para sujeitos que fazem uso prejudicial de substâncias psicoativas e são estigmatizados em seus cotidianos.

Na sociedade, é comum que o tema do consumo de substâncias psicoativas seja associado à criminalização, à “doença mental” e à população em situação de rua, sendo frequentemente abordado por meio de um discurso único e simplificado, que se reflete em práticas que visam à exclusão. Por tal razão, iniciamos a discussão a partir de uma concepção sobre o uso de substâncias, estabelecendo algumas considerações sobre esses consumos na sociedade capitalista, racista e patriarcal.

Romaní (1999ROMANÍ, O. Las drogas: sueños y razones. Barcelona: Ariel, 1999.) apresenta uma definição do que pode ser considerado “droga” com base no potencial de modificação no organismo humano, abrangendo diversas substâncias, como bebidas, medicamentos, drogas sintéticas não prescritas, ervas e alimentos. O autor também destaca o potencial relacional das drogas, argumentando que as substâncias psicoativas, ou simplesmente as drogas, adquirem essa classificação devido à relação que a sociedade estabelece com elas. De acordo com Brites (2006BRITES, C. M. Ética e uso de drogas: uma contribuição da ontologia social para o campo da saúde pública e da redução de danos. 2006. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/17822 . Acesso em: 5 jul. 2024.
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, p. 47), “o registro histórico e antropológico do uso de drogas, no processo de desenvolvimento histórico do ser social, indica uma prevalência fenomênica dessa atividade que lhe confere um caráter trans histórico”. Assim, não apenas é inatingível o ideal de uma sociedade sem o consumo de drogas, mas também se reconhece a presença constante do uso de drogas ao longo da história.

Na sociedade capitalista neoliberal, somos profundamente influenciados pelo consumo, e moldamos nossas relações com amigos, familiares, amores, comidas e drogas em função desse consumo. Em outras palavras, nossas relações afetivas são mediadas pelo ato de consumir, muitas vezes através de datas específicas nas quais expressamos nosso afeto e presenteamos pessoas importantes para nós.

Conforme apontado por Passos e Souza (2011PASSOS, E. H.; SOUZA, T. P. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de “guerra às drogas”. Psicologia & Sociedade , São Paulo, v. 23, n. 1, p. 154-162, 2011. https://doi.org/10.1590/S0102-71822011000100017
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), na sociedade do consumo, os produtos muitas vezes adquirem uma natureza intangível, representando uma “sensação de bem-estar”, um “estilo de vida” ou até mesmo uma “identidade pré-fabricada”. Nesse contexto, as drogas são integradas a uma rede de produção de substâncias que contribui para uma ampla criação de subjetividade. De acordo com esses autores, o consumo de drogas se torna um meio rápido e acessível para participar dessa produção de subjetividade voltada para o consumo.

Daniela Ferrugem (2019FERRUGEM, D. Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial. Belo Horizonte: Letramento, 2019.) afirma que as drogas desempenham uma função que vai além do prazer de uso imediato, ocupando um lugar como anestesiante de sofrimentos, facilitador de sociabilidade, acesso ao consumo e inserção social. Ela acrescenta que na sociedade moderna, estamos constantemente impulsionados por uma busca eterna pelo prazer total, felicidade incondicional e outros ideais inatingíveis. Muitos dos conhecimentos relacionados ao consumo de substâncias psicoativas foram e ainda são moldados pelo enfrentamento de um suposto mal e pela guerra contra as pessoas, perpetuando a hierarquia racial em nosso país. Ferrugem nos leva a refletir sobre uma questão central: quem é o verdadeiro inimigo nessa guerra/proibição das drogas na sociedade brasileira?

Vivemos em sociedades que foram constituídas historicamente a partir de poderes hegemônicos e interrelacionados do patriarcado, dos colonialismos e colonialidades e do capitalismo, que sustentam os processos de desigualdade e exclusão (Castro-Gómez; Grosfoguel, 2007CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2007.).

Ressaltamos que toda a formação histórica do nosso país é assentada sobre um processo violento de anos de colonização, escravização, exploração e genocídio de povos negros e indígenas sustentados pela força militar imperialista (Nascimento, 2016NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.).

Dessa forma, se existe um acesso desigual à produção de riqueza, as exposições aos riscos do uso de substâncias também se tornam desiguais, o que reforça a ideia de Ferrugem (2019FERRUGEM, D. Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial. Belo Horizonte: Letramento, 2019.) de que as pessoas mais pobres, especialmente a população negra, enfrentam um maior risco de uso prejudicial de substâncias. Isso ocorre tanto devido às suas condições de vida precárias e à falta de políticas públicas adequadas quanto ao potencial risco de violência e encarceramento. De acordo com essa autora, a classe social e a raça desempenham papéis determinantes na maior ou menor probabilidade de riscos decorrentes do consumo de substâncias, que pode resultar em um rótulo de “usuário” para aqueles que são de classe média e brancos, ou de “traficante” para aqueles que são negros e pobres.

As constantes tensões políticas presentes quando o tema é sobre álcool e outras drogas, ameaçam o cuidado em liberdade de sujeitos que fazem uso prejudicial de susbstâncias psicoativas. Em relação à Política Nacional de Saúde Mental, que se baseia na Lei nº 10.216/01, é relevante notar que somente em 2002 o Ministério da Saúde regulamentou o acompanhamento de pessoas que fazem uso prejudicial de substâncias psicoativas no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio das portarias n° 336 (Brasil, 2002aBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 336, de 19 de fevereiro de 2002. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p. 22, 20 fev. 2002a. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0336_19_02_2002.html . Acesso em: 25 ago. 2023.
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) e nº 816 (Brasil, 2002bBRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 816, de 30 de abril de 2002. Diário Oficial da União , Brasília, DF, Seção 1, p. 29, 3 mai. 2002b. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2002/prt0816_30_04_2002.html . Acesso em: 10 jul. 2024.
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). Essas portarias estabeleceram um modelo de saúde mental aberto e comunitário, tendo como referência os CAPS AD.

Na perspectiva da Reforma Psiquiátrica brasileira, a expansão do cuidado para as pessoas que fazem uso prejudicial de substâncias e a valorização das conquistas no território de origem e em liberdade requerem esforços dos serviços e equipes de saúde mental. Isso envolve a mudança de concepções que são frequentemente reducionistas e derivam de políticas hegemônicas de origem proibicionista, bem como de uma compreensão exclusivamente biológica e bioquímica da vida humana, que promovem a lógica da abstinência como a única abordagem válida para o cuidado. Nesse contexto, Romano et al. (2023ROMANO, B.; SCHNEIDER, J. N.; COUTO, A. A.; SERPA JUNIOR, O. D. Caminhos da participação popular na saúde mental: uma revisão narrativa. Saúde e Sociedade , São Paulo, v. 32, n. 2, e210875pt, 2023. https://doi.org/10.1590/S0104-12902023210875pt
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) descrevem o atual processo acelerado de desmantelamento das conquistas alcançadas pela Reforma Psiquiátrica brasileira. Esse processo envolve ações que visam a aumentar o financiamento de hospitais psiquiátricos e desacelerar a implementação de CAPS.

Pensar no cuidado em liberdade, conforme preconizado no CAPS, é atuar no viés da desinstitucionalização, que impulsiona os profissionais a acessar o usuário em seus próprios territórios e a promover ações para além dos limites institucionais, ou seja, extramuros. Isso implica buscar oportunidades de acesso a espaços de lazer, cultura, esporte, educação e trabalho, ao mesmo tempo em que se articulam os diferentes equipamentos que fazem parte da Rede de Atenção Psicossocial, de acordo com a Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011 (Brasil, 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Diário Oficial da União , Brasília, DF, Seção _1, p. 230, 26 dez. 2011. Disponível em: Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt3088_23_12_2011_rep.html . Acesso em 25 de agosto. 2023
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). No entanto, é importante ressaltar que o controle e a normatização dos corpos das pessoas que fazem uso de drogas no campo da saúde mental muitas vezes ativam lógicas racistas e práticas higienistas e manicomiais sob o pretexto de cuidado.

O discurso midiático e social, fundamentado no medo e no ódio em relação à população jovem, negra e periférica - amplificado pelo racismo estrutural (Almeida, 2019ALMEIDA, S. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.) -, bem como na associação entre pobreza e criminalidade e no desprezo pelos mais pobres (Cortina, 2020CORTINA, A. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. São Paulo: Contracorrente, 2020.), contribui para a perpetuação de estigmas e estereótipos em relação às pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas. Esse fenômeno reforça as violências e violações cometidas contra aqueles que não se encaixam nos padrões normativos.

Esta pesquisa seguiu uma direção oposta, tensionando a ampliação dos mecanismos de encarceramento e repressão a determinados segmentos não desejados na sociedade, como negros, jovens e moradores de periferias.

A prática da capoeira nos serviços de saúde mental é realizada por meio da interface arte, saúde e cultura. Atualmente, no Brasil, há práticas intersetoriais que abordam atividades culturais significativas, que dinamizam e fortalecem o campo da saúde. Isso compreende um conjunto de estratégias que se concentram na construção de projetos de vida, na promoção da produção de subjetividade e na reconstrução da cidadania dos sujeitos como forma de atenção à saúde. Tais práticas viabilizam estratégias voltadas para a criação de espaços de troca, experimentação e criação de novas formas de participação social. As experiências envolvendo arte e cultura no contexto da saúde mental têm o potencial de abrir um vasto leque de possibilidades e contribuir para a alteração do imaginário social e para a redução do estigma associado à loucura e às pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas (Amorim; Severo, 2019AMORIM, A. K. M. A.; SEVERO, A. K. S. Saúde mental, cultura e arte: discutindo a reinserção social de usuários da rede de atenção psicossocial. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, Belo Horizonte, v. 12, n. 2, p. 282-299, 2019. http://dx.doi.org/10.36298/gerais2019120207
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).

Ao compreender e abarcar a imensa complexidade que envolve a prática da capoeira, nosso objetivo não foi alinhá-la a um único discurso, mas sim trazer nesse gingado seu caráter de expressão corporal existencialmente negra e de resistência. Dessa forma, buscamos criar espaço para discutir um tema frequentemente negligenciado dentro desses serviços de saúde mental.

A vivência na capoeira pode envolver práticas que possibilitam a ampliação de diferentes habilidades, como espontaneidade, expressividade, ritmo, resistência, destreza corporal, presença, prontidão e improviso. Além das habilidades corporais, como observado por Alves e Seminotti (2006ALVES, M. C.; SEMINOTTI, N. A. O pequeno grupo “Oficina de Capoeira” no contexto da reforma psiquiátrica. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 15, n. 1, p. 58-72, 2006. https://doi.org/10.1590/S0104-12902006000100007
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), a capoeira pode potencializar relações, interações, interlocuções e socializações entre diferentes sujeitos. Nessa perspectiva, para além de uma prática corporal e expressiva, a capoeira pode ser um considerável potencializador das tão essenciais práticas em promoção de saúde.

Caminhos da pesquisa

Este estudo seguiu as diretrizes do método cartográfico. Conforme explicado por Passos e Barros (2015PASSOS, E.; BARROS, R. B. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 17-31.), a cartografia como método de pesquisa acompanha os efeitos sobre o objeto de estudo e o pesquisador, assim como acompanha a experiência de produção de conhecimento ao longo do próprio processo de investigação. Segundo Kastrup (2007KASTRUP, V. O funcionamento da atenção no trabalho do cartográfo. Psicologia & Sociedade, São Paulo, v. 19, n. 1, p. 15-22, 2007. https://doi.org/10.1590/S0102-71822007000100003
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), o método cartográfico visa a acompanhar um processo, e não apenas representar um objeto. A autora destaca que utilizar esse método no estudo da subjetividade possibilita captar as forças e signos circulantes, ou seja, as pontas do processo. A escolha pelo método cartográfico parte do fato de que o ato de pesquisar não ocorre de modo prescritivo, mas se constrói em processo.

A pesquisa acompanhou o processo do grupo de capoeira que se reunia semanalmente, de outubro de 2019 a novembro de 2020, em encontros com duração aproximada de 1 hora e 30 minutos, no CAPS AD situado na Zona Leste do município de São Paulo.

Como espaço físico, foram utilizados diversos locais no ambiente de convivência do CAPS AD, havendo ocasiões em que os encontros ocorreram na área externa do serviço devido ao grande número de participantes. Os encontros de capoeira eram atividades oferecidas como parte do projeto de cuidado aos usuários frequentadores. Qualquer usuário interessado na prática podia integrar o grupo, o qual era coordenado por um usuário mestre de capoeira e por uma das coautoras, que fazia parte da equipe multiprofissional do serviço. O perfil dos frequentadores do grupo era predominantemente composto por adultos do gênero masculino que se autodeclaravam negros.

O registro das experiências foi realizado após cada encontro com o grupo, e um diário de campo foi construído. Esse diário foi mantido em um caderno, no qual foram coletadas, selecionadas e registradas cenas, diálogos, vivências e impressões subjetivas. De acordo com Domingues e Azevedo (2019DOMINGUES, A. R.; AZEVEDO, A. B. A escrita comum como dispositivo na formação em saúde. Mnemosine, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 23-39, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/mnemosine/article/view/45971/ . Acesso em: 5 jul. 2024.
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), o diário de campo cria uma narrativa que emerge da experiência individual, mas que também se torna uma escrita compartilhada, influenciada pela presença de todos os envolvidos. Além disso, segundo essas autoras, o diário de campo mapeia os elementos presentes na experiência, destacando as palavras, os afetos e a própria vivência.

Também foram tiradas fotografias durante os encontros do grupo. O uso da fotografia tinha como objetivo registrar e documentar o que ocorria durante os grupos, a fim de possibilitar novas experimentações no processo de trabalho. A fotografia serviu para registrar movimentos visíveis e invisíveis do cotidiano do grupo, buscando captar detalhes que normalmente passariam despercebidos.

De acordo com Ribeiro et al. (2022RIBEIRO, L. S.; BRAGÉ, É. G.; ROCHA, D. G.; RAMOS, D. B.; LACCHINI, A. J. B. A fotografia em saúde mental: um olhar para o subjetivo. SMAD, Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas, Ribeirão Preto, v. 18, n. 1, p. 87-94, 2022.https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2022.170033
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), a fotografia possibilita um exercício de olhar reflexivo sobre os sujeitos, sem imposições, permitindo interpretações individuais por parte daqueles que as observam. Ainda para esses autores, no campo da saúde mental, a utilização da fotografia possibilita valorizar o que anteriormente era excluído e marginalizado, realçando as singularidades.

O processo de análise se desdobrou a partir da reflexão da coautora ao revisitar os registros do diário de campo feitos ao término de cada encontro, bem como das memórias intensivas do processo. Sensações, acontecimentos expressos e frases marcantes dos usuários, que foram anotadas nos diários de campo ao longo dos encontros do grupo, desempenharam um papel importante na análise. Além disso, as fotografias foram usadas para evocar a memória dos momentos vividos. A revisitação desses materiais teve como objetivo capturar e destacar a experiência, as cenas ocorridas nos encontros e as imagens registradas, além das narrativas que orientaram a análise e a discussão dos dados.

Neste artigo, enfatizaremos a experiência da prática de capoeira e como ela se configura como um dispositivo na promoção de saúde para os usuários dentro de um CAPS AD. Vamos discutir a relação entre a capoeira e a questão racial, explorando essa conexão por meio da análise dos diários de campo e da literatura. Dividimos esse extenso debate em dois momentos distintos. O primeiro, intitulado “Gingando com a promoção de saúde”, tem como objetivo apresentar pistas que demonstram a repercussão da prática de capoeira como promoção de saúde para usuários de substâncias psicoativas. No segundo momento, exploraremos a pergunta “De qual gingado estamos falando?”.11Este trabalho foi aprovado pelo comitê de ética e pesquisa com seres humanos.

“Gingando com a promoção da saúde”

No que diz respeito à relação entre a prática de capoeira e a promoção de saúde como um dispositivo de cuidado para os usuários do CAPS AD, este artigo se baseia em um campo teórico que rompe com o modelo curativo e hospitalocêntrico de atenção à saúde. Esta concepção valoriza espaços coletivos de trocas de saberes e parte de um conceito ampliado de saúde, que inclui o coletivo, o social, o político, o econômico e o cultural, conforme definido por Iglesias e Dalbello-Araújo (2011IGLESIAS, A.; DALBELLO-ARAÚJO, M. As concepções de promoção da saúde e suas implicações. Cadernos Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 19, n. 3, p. 291-298, 2011.). Durante os encontros, algumas falas dos participantes expressam a importância da valorização de si e da construção coletiva:

Nois tá ocupando um lugar aqui no CAPS que não é só de dependente de química, nois tá podendo até se apresentar em outros CAPS e mostrar que a gente não é só noia, tamo podendo ser visto de outra forma e isso me deixa felizão, poder conhecer gente que não seja bebendo uma na praça. (Diário de campo, 7 fev. 2020)

A partir da prática de capoeira, os corpos que iam se apresentando ao longo dos grupos começaram a começaram a compor novos enredos, alimentando sentidos e gingados carregados de possibilidades, criações - uma experiência que reinventou, tocou e afetou. Cada corpo, com sua maneira única de se expressar, reverberava no coletivo como espaço de sentido e modos de expressão. A compreensão da prática de capoeira, em suas múltiplas dimensões (ética, política, afrorreferenciada, social e afetiva), como um processo de promoção da saúde por meio de experiências singulares e sensíveis que possibilitam compor as relações do coletivo ali presente, com base em Amaral e Santos (2015AMARAL, M. G. T.; SANTOS, V. S. Capoeira, herdeira da diáspora negra do Atlântico: de arte criminalizada a instrumento de educação e cidadania. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 62, p. 54-73, 2015. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i62p54-73
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), resultou na criação de novos modelos de cuidados em saúde.

Entre um movimento e outro, os corpos capoeiristas em ação experimentaram transformações dentro do coletivo, dando origem a diferentes formas de existência e interação no mundo, como será demonstrado a seguir:

Ir lá na festa do CAPS Infantil e poder jogar capoeira com a molecada me fez sentir que eu era muito mais do que minha família fica dizendo que eu sou, o bêbado da família. Na próxima vez quero levar minha mãe, pra ela ver que eu posso tá com as pessoas sem arrumar confusão. (Diário de campo, 28 fev. 2020)

Cada encontro era uma surpresa, um desabafo, com relatos sobre corpos estigmatizados e marginalizados devido ao uso de substâncias psicoativas. Gritos de libertação da subjetividade surgiam antes, durante ou após o início do grupo.

Nesse cenário de experiências corporais por meio da prática de capoeira, embalados por acontecimentos e agenciamentos, o gingado do grupo era alimentado pelo encontro e pela troca de experiências. As experiências corporais ressaltavam a importância da capoeira como estratégia de cuidado à saúde. Diferentes gingados se aproximaram e se afastaram quando necessário, demonstraram atenção, colaboraram na criação de composições e conectaram corpos diversos, reescreveram mundos.

Intensidades, formação, resistência, singularidades, luta e saúde permearam a prática de capoeira no CAPS AD. Nesse processo de construção coletiva, as relações possibilitaram novos modos de agir. O grupo forneceu pistas para enxergar a prática de capoeira como um fluxo constante, reinventado continuamente e capaz de promover saúde para além dos modelos biomédicos e reducionistas.

A construção do conhecimento em torno da prática de capoeira abre espaço para diversas abordagens de cuidado em saúde. Essa perspectiva se concentra na vitalidade, nas relações, na participação e na cidadania, na potencialidade de criar com o outro, estar com o outro e na possibilidade de produzir efeitos por meio da experiência compartilhada. A capoeira proporciona ambientes para além de settings fechados para promover saúde, permitindo a criação de espaços alternativos de atuação política e social.

Ao entender a promoção de saúde como uma construção social e, de acordo com Pereira, Penteado e Marcelo (2000PEREIRA, I. M. T. B.; PENTEADO, R. Z.; MARCELO, V. C. Promoção da saúde e educação em saúde: uma parceria saudável. O Mundo da Saúde, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 39-44, 2000.), valorizar os determinantes socioeconômicos em uma perspectiva histórica, contextual e ampla como uma experiência coletiva, a prática da capoeira oferece cuidados em saúde que vão além do enfoque assistencial puramente biomédico. Isso ocorre devido à sua natureza coletiva e de interação com o outro.

Por meio da prática da capoeira, histórias são contadas, experiências são vivenciadas, memórias são reativadas e singularidades são respeitadas. Ela possibilita a criação de espaços para a expressão criativa, potencializa as relações com o outro e coloca os corpos como protagonistas de suas próprias jornadas. Os cantos, as palmas, o berimbau e sua magia impulsionam conexões e contagiam, enquanto o riso se torna protagonista.

Capoeira e seus elementos

Manifestação afrorreferenciada, a capoeira engloba em sua prática diferentes formas de expressão e linguagens que se manifestam por meio de luta, dança, jogo, mímica, música e espiritualidade. Entre as várias formas de expressão da capoeira, de acordo com Alejandro Frigerio (1989FRIGERIO, A. Capoeira: de arte negra a esporte branco. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 4, n. 10, 1989. Disponível em: Disponível em: https://centroafrobogota.com/attachments/article/34/Alejandro%20Frigerio%20-%20Capoeira.%20De%20arte%20negra%20a%20esporte%20branco.pdf . Acesso em: 8 jul. 2024.
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), a capoeira Angola se destaca como o segmento tradicional dessa prática, caracterizada por suas raízes ancestrais africanas e seu papel como uma manifestação de resistência às estruturas racistas coloniais que permeiam a sociedade brasileira.

Um estudo importante conduzido por Frigerio (1989FRIGERIO, A. Capoeira: de arte negra a esporte branco. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 4, n. 10, 1989. Disponível em: Disponível em: https://centroafrobogota.com/attachments/article/34/Alejandro%20Frigerio%20-%20Capoeira.%20De%20arte%20negra%20a%20esporte%20branco.pdf . Acesso em: 8 jul. 2024.
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), baseado em aproximadamente oito meses de observação em espaços tradicionais de capoeira Angola no estado da Bahia, identificou oito características distintivas que definem sua prática como uma forma artística única, de criação afrorreferenciada e que reflete fielmente as tradições do grupo étnico de origem dessa prática. Assim, as oito características que diferenciam a capoeira Angola e a consolidam como uma arte são as seguintes:

  1. Malícia: um dos fundamentos dessa prática, em que o capoeirista angoleiro tem a habilidade de surpreender o adversário, defendendo-se sem atacar o outro e evitando ser apanhado de surpresa;

  2. Complementação: durante o jogo, os dois capoeiristas ficam atentos aos movimentos um do outro e sempre se deslocam, atacam ou se defendem em função do que o adversário fizer;

  3. Jogo baixo: movimentos predominantemente baixos, porém não apenas isso: grande parte dos movimentos são realizados pelos angoleiros com as mãos apoiadas no chão e pernadas de pouca altura;

  4. Ausência de violência: na capoeira Angola, os jogos, em geral, são exatamente isso - jogos -, porém apenas a partir do momento em que ambos os capoeiristas, respeitando a tradição, decidem divertir-se dentro de uma roda;

  5. Movimentos bonitos: nessa mistura de jogo e luta, o elemento estético adquire grande importância, mas é uma estética própria, de um contexto étnico determinado;

  6. Música lenta: realizada em um ritmo lento, em comparação com outras práticas de capoeira;

  7. Importância do ritual: para os angoleiros, esse é um jogo com regras que não são escritas, mas presentes, e que dão o tom para seu desenrolar, dado o exemplo do ritual de gestos que se realizam ao pé do berimbau invocando proteção; e

  8. Teatralidade: os movimentos das mãos, as expressões do rosto fingindo medo, alegria, distração, a maneira como certas canções são gestualizadas, um golpe recebido - com a dramatização adequada pode ser incorporado ao fluir do jogo.

As características descritas continuam a caracterizar a capoeira Angola atualmente, pois, embora tenha passado por mudanças ao longo do tempo, ela mantém sua identidade étnica única. Desde o seu surgimento até os dias de hoje, uma roda de capoeira Angola requer participantes que desempenhem papéis de cantores, instrumentistas, dançarinos e jogadores. É importante destacar que essa prática é intrinsecamente relacional, ou seja, uma roda de capoeira não pode ser realizada por uma única pessoa.

Esse gingado vai além de uma simples prática corporal e expressiva; são experiências que mobilizam, contagiam, transformam, deslocam e conectam, abrindo novos horizontes. Na busca por ampliar as trocas sociais e adotar abordagens alternativas na promoção da saúde, distanciando-se do modelo higienista tradicional de cuidado e comprometendo-se com o cuidar da saúde de sujeitos e coletivos, a prática da capoeira se revelou uma estratégia significativa de promoção de saúde dentro do CAPS AD.

A grande roda: “De qual gingado estamos falando?”

Os corpos que carregam malícia, executam movimentos bonitos e se esquivam das violências cotidianas enquanto preservam a importância dos rituais - não apenas dentro das rodas de capoeira - perpetuam, por meio das músicas e do enfrentamento da opressão, a reflexão sobre a relevância de manter vivas as práticas de expressões existencialmente negras.

Essa perspectiva se alinha com a ideia de Amaral e Santos (2015AMARAL, M. G. T.; SANTOS, V. S. Capoeira, herdeira da diáspora negra do Atlântico: de arte criminalizada a instrumento de educação e cidadania. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 62, p. 54-73, 2015. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i62p54-73
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), os quais destacam que, se, por um lado, a população negra tinha o seu corpo como maior patrimônio, meio de expressão e veículo para a manutenção e reconstrução de suas práticas afrorreferenciadas; por outro, esse mesmo corpo ainda é alvo de violência, preconceito e racismo nos dias de hoje.

Conforme Frantz Fanon (2008FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 104), um renomado psiquiatra negro, a noção de negritude e o seu peso só se tornaram aparentes quando nós, brancos, assim o determinamos: “De um dia para o outro, os pretos tiveram de se situar diante de dois sistemas de referência. Sua metafísica ou, menos pretensiosamente, seus costumes e instâncias de referência foram abolidos porque estavam em contradição com uma civilização que não conheciam e que lhes foi imposta”. Seguindo a linha de raciocínio de Fanon, podemos observar a destruição desses sistemas de referência, uma vez que a população escravizada foi brutalmente arrancada de seus países de origem, separada de suas famílias, forçada a renunciar às suas tradições culturais, sofreu a perda de seus nomes, além de ter sido submetida a abusos que afetaram tanto a sua integridade física quanto psicológica e cultural.

A prática de capoeira no CAPS AD II se revelou como um sistema de referência por meio das linguagens do corpo e da música, transformando-se em dança, movimento, encontro e reconhecimento. Diversos usuários que participaram do grupo compartilharam suas histórias e tiveram suas práticas afrorreferenciadas destacadas por meio da capoeira. Eles enfatizaram que as músicas associadas aos rituais nas rodas de capoeira representam o reconhecimento de uma prática ancestral e de resistência, como evidenciado nos trechos dos diários de campo a seguir:

Nois tá ligado que a capoeira é um esporte nosso, de preto. É só nois olhar aqui nessa roda e ver que quase todo mundo que tá aqui é preto. Nois pode tá junto, contando nossa caminhada pelas músicas. (Diário de campo, 6 dez. 2019)

Já outro usuário diz que:

Samba, capoeira, nossa feijuca, nosso axé pros mano aqui que é de axé, é tudo nosso. E isso os homi não pode tirá. Tentam tirar de nois nossas coisas, mas tem coisa que nois carrega no corpo, tá ligado? (Diário de campo, 6 dez. 2019)

Diante dos fragmentos dos diários expostos e da experiência com o grupo no CAPS AD, fica evidente que a capoeira possui um enorme potencial para manter vivo o protagonismo de corpos que foram e ainda são vítimas de violência diariamente. Por meio das canções, rituais, danças e diálogos reflexivos que a capoeira proporciona, os usuários puderam compartilhar suas perspectivas e experiências, tornando-se protagonistas de suas próprias histórias. Isso permitiu que eles resgatassem suas raízes culturais e projetassem transformações futuras. Apresentar práticas afrorreferenciadas e discutir seu papel central nos serviços de saúde pode ser uma estratégia para combater, de certa forma, racismo nas instituições e romper com a invisibilidade étnico-racial (Costa et al, 2020COSTA MC, Santos AC, Souza JV, Costa JC, Porto RM, Freire SR. Laboratório ISẸ́: construções de estratégias para restituição histórica e existencial de pessoas negras. Rev. Interinst. Bras. Ter. Ocup. Rio de Janeiro. 2020. v.4(5):734-741. DOI: 10.47222/2526-3544.rbto36913
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).

A capoeira, como destacam Amaral e Santos (2015AMARAL, M. G. T.; SANTOS, V. S. Capoeira, herdeira da diáspora negra do Atlântico: de arte criminalizada a instrumento de educação e cidadania. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 62, p. 54-73, 2015. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i62p54-73
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), é herdeira da diáspora africana no Brasil, sendo uma resposta marcante e duradoura dada pela população negra ao sistema escravagista, desumano e cruel. Ainda para esses autores, a capoeira é uma prática ancestral fruto de luta que teve sua origem nas senzalas e tornou-se uma das mais importantes manifestações afrorreferenciadas de resistência da população que foi escravizada no Brasil colonial (Amaral; Santos, 2015AMARAL, M. G. T.; SANTOS, V. S. Capoeira, herdeira da diáspora negra do Atlântico: de arte criminalizada a instrumento de educação e cidadania. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 62, p. 54-73, 2015. https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i62p54-73
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).

Reforçamos também a importância de trazer à tona a compreensão da maneira como diferentes participações foram criativamente ressignificadas, trazendo narrativas e performances que dialogaram com a história pessoal e cultural de cada usuário. Como exemplo:

O parceiro ali falou que isso aqui é coisa de preto e faz parte de nois e é memo. Quando eu era pivete, eu comecei a colar no projeto do bairro e, nesse projeto, os mano falava sobre a história da capoeira também, falava que fazia parte da nossa cultura. Eu fui indo, indo, até que cheguei no cordão amarelo e azul e virei instrutor de capoeira da molecadinha. Por muito tempo a capoeira me fez andar pelo certo e hoje, quando eu tô aqui no grupo, eu não sou aquele mano jogado na rua. (Diário de campo, 6 dez. 2019)

Já outro usuário nesse mesmo dia dizia para o grupo:

A capoeira é isso, é legal porque ela envolve um monte de coisa. Aqui a gente não é julgado como noia, como bêbado, aqui nois sente outras coisas que são da hora pá nois. (Diário de campo, 6 dez. 2019).

Nesses corpos que se ativam enquanto corpos capoeiristas, que se esquivam diante do racismo, do estigma e dos preconceitos, fatos históricos são narrados, territórios significativos por essa prática são revisitados, reflexões são possibilitadas e modos próprios de encaixar determinadas relações são experimentados, dando aos corpos violentados a oportunidade de serem protagonistas de suas próprias histórias.

As narrativas contadas pelos próprios usuários são formas de expressão e de conteúdos perante diferentes posicionamentos afetivos, sociais e até políticos. A prática da capoeira enquanto saber múltiplo e, ao mesmo tempo, singular revela diferentes modos de subjetivação na relação com a sociedade e configura-se como um lugar de criação, trocas e aproximação com uma prática existencialmente negra.

a capoeira de que tratamos mais especificamente é coisa de gente negra nesse sentido, coisa de gente preta enquanto politicamente motivados, parte da raça negra, da cultura negra, da raça que pretendemos ser dela como capoeiras, mas que não pode nos aprisionar como categoria necessária e naturalizada, mas sim como contingencial, negociável, em um fluxo processual de disputas de sentido. (Cordeiro, 2016CORDEIRO, G. S. Capoeira e ato de fala mandigueiro: vem jogar mais eu, mano meu. Linguagem em Foco, Fortaleza, v. 8, n. 2, p. 41-54, 2016. Disponível em: Disponível em: https://revistas.uece.br/index.php/linguagememfoco/article/view/1903 . Acesso em: 5 jul. 2024.
https://revistas.uece.br/index.php/lingu...
, p. 43)

É acerca dessa afirmação que respondemos de quais corpos estamos falando nessa pesquisa: corpos com formas de linguagens, de luta por libertação, de resistência, de alegria, de mandinga, de malícia, de seres políticos, poéticos e tantas outras nuances. É na direção da mandinga e da malícia que a prática de capoeira chega ao CAPS AD, com o ritmo e o som do berimbau conduzidos pelo usuário mestre de capoeira, pelas batidas do atabaque, pela dança, pelo pandeiro tocado, pelas palmas e pelo coro dos usuários em roda cantando, dançando, lutando, brincando e se afetando, tendo a prática de capoeira como um espaço que possibilita lugares e vozes para a construção de sentidos.

Compartilhar é permitir-se transformar dentro e fora dos grupos que ocorrem no CAPS AD, constituindo as experiências individuais e coletivas a partir das linguagens do corpo, do encontro e da afetação que a prática de capoeira possibilitou. Linguagens se organizaram como narrativas, que foram reinventadas pelos usuários que transitam entre diversos círculos da sociedade. Dialogar sobre o lugar da branquitude, negritude e resistência é assumir uma posição política de cuidado em saúde.

Considerações finais

A conclusão desta grande roda deve reconhecer a processualidade e o movimento desta pesquisa e o trabalho também orientado pela perspectiva ética-política de cuidado em liberdade e territorial, buscando-se uma visão crítica da realidade em sua complexidade e possibilitando o desejo e o compromisso na direção de novas descobertas. Nesse encontro de diferentes gingados, a prática de capoeira no CAPS AD II possibilitou que os usuários pudessem vivenciar um resgate de suas expressões afrorreferenciadas, experiências de relações com o outro, protagonismo e novos lugares de experimentação de si.

A prática de capoeira como dispositivo de cuidado e promoção de saúde nos serviços de saúde mental pode possibilitar a descentralização do poder do profissional técnico de saúde, que é um dos objetivos da desinstitucionalização, permitindo a mudança nas relações de poder. Nesse sentido, deseja-se oferecer a todos os participantes, fundamentalmente aos usuários, um espaço de construção de um serviço em saúde pautado pelo cuidado coletivo, no qual os usuários de fato sejam protagonistas de seus cuidados.

Por se tratar de uma atividade que comporta múltiplos significados - podendo ser poesia, música, atividade corporal, espaço de troca, afetação, resistência, luta e muitas outras coisas -, a partir da prática de capoeira experiências são ressignificadas, histórias são narradas através dos diferentes corpos que gingam em roda. Propondo um compromisso com o cuidar da saúde de indivíduos e coletivos e visando a outras formas de atenção à saúde, para além da mera ausência de doença ou uso de substâncias psicoativas - ou seja, de um modelo higienista de cuidado em saúde -, na perspectiva da ampliação de trocas sociais a prática de capoeira apresentou-se como uma estratégia necessária de promoção de saúde dentro do CAPS AD.

As experiências compartilhadas que contagiaram, transformaram-se e conectaram-se deram espaço para diferentes corpos protagonizarem suas próprias histórias, sendo certo que esses corpos muitas vezes são violentados e marginalizados por conta do racismo, preconceito e julgamentos morais. Nesse sentido, as diversas violências e exclusões historicamente operacionalizadas na sociedade obstaculizam a existência de lugares em que ocorram experiências de trocas e relações com o outro, o que é fundamental no processo da reabilitação psicossocial.

Portanto, a prática de atividades afrorrefenciadas, e da capoeira em especial, como processo de cuidado em saúde, torna-se um dispositivo importante, possibilitando a formação de espaços que oferecem encontros e trocas com o outro. Essa prática se apresenta como diferentes formas de expressão e posicionamentos sociais, políticos e afetivos, configurando-se também como um espaço de aproximação de singularidades, pela mandinga e pela malícia que compõem essa grande roda.

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  • 1
    Este trabalho foi aprovado pelo comitê de ética e pesquisa com seres humanos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2024
  • Revisado
    21 Abr 2024
  • Aceito
    10 Jul 2024
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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