Resumo
Este artigo discute as ressonâncias da pandemia por covid-19 no cotidiano do sistema prisional do Ceará, tomando como foco os impactos desse período na vida dos policiais penais. Os dados aqui analisados são resultados da observação participante e de entrevistas realizadas como parte do trabalho de campo etnográfico de uma pesquisa doutoral, desenvolvida desde o percurso relacional do autor principal enquanto pesquisador e policial penal nas prisões cearenses. As alterações na política prisional no período pandêmico ganham relevo em meio às medidas adotadas para conter a disseminação do vírus nas prisões, sendo as pessoas que vivem e trabalham nestes espaços afetadas pela covid-19 e pela disciplinarização. Esta discussão foca nos impactos desse período na vida dos policiais penais que, mesmo enlutados, passaram a conviver com o medo de contaminação pelo vírus e serem alvo da guerra entre facções e Estado.
Palavras-chave:
Sistema Prisional Cearense; Política Prisional; Polícia Penal; Covid-19
Introdução
Nas duas últimas décadas, as prisões brasileiras têm sido pauta de interesse de pesquisadores, que se dobram nas condições de vida dessas instituições (Nascimento, 2021NASCIMENTO, F. E. M. Fronteiras de guerra: gestão da vida e processos de estado nas fronteiras entre policiais penais e presos. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2021. ). De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) de 2022, o aumento vertiginoso do aprisionamento (chegando a 837.443 pessoas encarceradas em 2022) deu ao Brasil a posição pouco honrosa de terceiro lugar no ranking de países que mais mantém pessoas encarceradas, ficando atrás dos Estados Unidos (mais de 2 milhões) e China (1,7 milhão) (Brasil, 2022 BRASIL. Infopen – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília, DF: Departamento Penitenciário Nacional, 2022. Disponível em: http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias . Acesso em: 12 abr. 2022.
http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-l... ).
Ainda de acordo com os dados do Depen, o Brasil conta com 1.458 prisões distribuídas entre os seus 26 estados e Distrito Federal, totalizando 581.716 vagas disponíveis. Em praticamente todas o problema da superlotação se conjuga com as difíceis condições de vida proporcionadas a pessoas privadas de liberdade pela escassez de materiais básicos, serviços que tenham como foco a ressocialização (atividades ocupacionais, estudo e lazer) e atendimento dos técnicos (médico, psicossocial e jurídico etc.).
Os problemas das prisões também são sentidos pelos policiais penais que atuam diretamente na custódia e na ressocialização (Moraes, 2013 MORAES, P. R. B. de. A identidade e o papel de agentes penitenciários. Tempo Social, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 131-147, 2013. https://doi.org/10.1590/S0103-20702013000100007
https://doi.org/10.1590/S0103-2070201300... ; Nascimento, 2022a NASCIMENTO, F. E. M. De carcereiro a policial penal: Entre nomenclaturas, imagem social e atribuições. DILEMAS, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 883-910, 2022a. https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n3.46146
https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n3.46... ), mantendo contato direto e prolongado com a população carcerária (Lourenço, 2010 LOURENÇO, L. C. Batendo a tranca: Impactos do encarceramento em agentes penitenciários da Região Metropolitana de Belo Horizonte. DILEMAS, Rio de Janeiro, v. 3, n. 10, p. 11-31, 2010. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/267790840_Batendo_a_tranca_Impactos_do_encarceramento_em_agentes_penitenciarios_da_Regiao_Metropolitana_de_Belo_Horizonte . Acesso em: 12 jun. 2024.
https://www.researchgate.net/publication... ). Nesse contexto, a natureza de tensão do trabalho desses profissionais pode ser percebida pela recorrência de distúrbios que subvertem a ordem (motins e rebeliões) (Nascimento; Siqueira, 2022 NASCIMENTO, F. E. M.; SIQUEIRA, Í. B. L. Dinâmicas “Faccionais” e Políticas Estatais entre o Dentro e o Fora das Prisões do Ceará. TOMO, n. 40, p. 123-164, 2022. https://doi.org/10.21669/tomo.vi40.15657
https://doi.org/10.21669/tomo.vi40.15657... ), pelos assassinatos na folga ou pelo adoecimento físico e mental desses profissionais (Lima et al., 2019LIMA, A. I. O. et al. Prevalência de Transtornos Mentais Comuns e Uso de Álcool e Drogas entre Agentes Penitenciários. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 35, e3555, 2019. ). O Brasil conta 88.077 policiais penais atuando diretamente na custódia de pessoas privadas de liberdade (Brasil, 2022 BRASIL. Infopen – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília, DF: Departamento Penitenciário Nacional, 2022. Disponível em: http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias . Acesso em: 12 abr. 2022.
http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-l... ), sendo esse número insuficiente para o desempenho adequado desses profissionais. A proporção prevista é de um policial penal para cada cinco pessoas encarceradas, sendo a proporção atual de 1:9 (Brasil, 2009BRASIL. CNPCP - CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA. Resolução nº 09, de 16 de janeiro de 2003. Diário Oficial da União, Brasília, DF, Seção 1, p. 54, 16 nov. 2009. ).
As difíceis condições de vida dos prisioneiros e de trabalho dos policiais penais se repetem em todos os estados do Brasil. No Ceará, apesar dos investimentos na construção de novas prisões e em penas alternativas, a superlotação é um problema que atravessa a história do estado. O Ceará mantem 22.200 pessoas presas e outras 8.219 monitoradas por tornozeleira eletrônica, contando com 16.845 vagas disponíveis e 3.150 policiais penais. A proporção aproximada de presos para o número de policiais penais é de 10:1 (Brasil, 2022 BRASIL. Infopen – Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Brasília, DF: Departamento Penitenciário Nacional, 2022. Disponível em: http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-levantamento-nacional-de-informacoes-penitenciarias . Acesso em: 12 abr. 2022.
http://dados.mj.gov.br/dataset/infopen-l... ). Essa elevada proporção causa sobrecarga de trabalho, mas também insegurança no interior das unidades prisionais superlotadas pela recorrência de motins e rebeliões, contribuindo fortemente para o adoecimento físico e mental dos policiais penais cearenses (Nascimento, 2022b NASCIMENTO, F. E. M. Fazendo Família e Etnografia Entre Irmãos de Farda. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 27, n. 3, e46391, 2022b. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2022v27n3e46391
https://doi.org/10.5433/2176-6665.2022v2... ).
Este escrito aborda o sistema prisional cearense no período da pandemia por covid-19, reconhecendo todos os problemas já citados das prisões brasileiras e o agravamento deles no período mais crítico de contágio pelo vírus SARS-CoV-2. Para tanto, objetivamos discutir as ressonâncias da pandemia no cotidiano das prisões cearenses, tomando como foco os impactos na vida dos policiais penais. A discussão entrelaça os acontecimentos mais relevantes no sistema prisional, as medidas tomadas para a contenção da disseminação do vírus e seus impactos na vida das pessoas que vivem e trabalham nas prisões.
O texto resulta de uma pesquisa doutoral realizada pelo primeiro autor entre março de 2018 e dezembro de 2021 (Nascimento, 2021NASCIMENTO, F. E. M. Fronteiras de guerra: gestão da vida e processos de estado nas fronteiras entre policiais penais e presos. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2021. ) 11A pesquisa passou pelo crivo do Comitê de Ética em Pesquisas Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual do Ceará, com CAEE: 44925015.5.0000.5053. . Trata-se de uma etnografia confeccionada por meio de trabalho de campo desenvolvido a partir do duplo papel ocupado nas prisões, como trabalhador e pesquisador (Nascimento, 2018NASCIMENTO, F. E. M. Agente penitenciário e/ou pesquisador? Trabalho e pesquisa na prisão desde um lugar relacional. Revista Norus: Novos Rumos Sociológicos, v. 6, n.10, p. 304-327, 2018. , 2022 NASCIMENTO, F. E. M.; SIQUEIRA, Í. B. L. Dinâmicas “Faccionais” e Políticas Estatais entre o Dentro e o Fora das Prisões do Ceará. TOMO, n. 40, p. 123-164, 2022. https://doi.org/10.21669/tomo.vi40.15657
https://doi.org/10.21669/tomo.vi40.15657... ). A observação participante realizada em prisões diversas se estendeu por todo o período da pesquisa, mas se deu, principalmente, na Unidade Prisional de Sobral (UP-Sobral) enquanto se desempenhava a função de policial penal em plantões que obedeciam à proporção de 24 horas de trabalho por 72 horas folga 22A descrição do cotidiano institucional da UP-Sobral foi feita em caderno de campo, alternando as atividades de trabalho como policial penal e de escrita como etnógrafo, entre uma e outra tarefa e nos horários de descanso. . Porém, para fins da discussão proposta neste texto, utilizamos apenas os dados coletados no período entre 2020 e 2021, o mais crítico da pandemia por covid-19.
Ao longo do trabalho de campo, para além dos intensos diálogos informais com presos e policiais no cotidiano da UP-Sobral, foram realizadas pelo menos 23 entrevistas semiestruturadas com policiais penais, egressos, visitantes e outros profissionais que atuam nas prisões cearenses 33 Os limites deste artigo não nos permitem o aprofundamento dos procedimentos metodológicos e analíticos, para uma descrição detalhada consultar Nascimento ( 2021 , 2022 ). . A reconstrução dos principais acontecimentos que alteraram a política prisional no período pandêmico foi feita por meio da sinalização temporal e da descrição de episódios relevantes, permitindo-nos pensar as medidas tomadas pela administração prisional para a contenção da disseminação do vírus no interior das prisões, mas também sinalizando os impactos disso na vida das pessoas privadas de liberdade e, principalmente, dos policiais penais. A narrativa foi confeccionada em primeira pessoa objetivando a sinalização do primeiro autor enquanto sujeito e objeto da pesquisa, no entanto isso não despreza o trabalho de coautoria na conceitualização, na análise dos dados, na escrita e na revisão do texto.
O texto está dividido em três seções. Na primeira, reconstruímos o percurso das alterações no cotidiano prisional cearense a partir do início da pandemia. Na seguinte, dialogamos com a literatura e com dados estatísticos que abordam as condições de vida e trabalho nas prisões brasileiras, pensando, prioritariamente, o período pandêmico. E por último tomamos como foco os acontecimentos que afetaram a vida dos policiais penais cearenses.
Panorama da pandemia de Covid-19 nas prisões cearenses
Em quatro de setembro de 2021, momento em que escrevi a última versão da tese, o Brasil somava 583 mil mortos por covid-19, de um total de 20,9 milhões de casos diagnosticados. Desse conjunto, o Ceará totalizou 933 mil infectados e 24.046 mortes em decorrência de complicações da doença. Esses dados são do repositório de dados da covid-19 organizados pelo Centro de Ciência e Engenharia de Sistemas (CSSE) da Universidade Johns Hopkins, que acompanha as estatísticas da pandemia em países do mundo todo (JHU CSSE, 2021 JOHNS HOPKINS UNIVERSITY CENTER FOR SYSTEMS SCIENCE AND ENGINEERING (JHU CSSE). COVID-19 Data Repository by the Center for Systems Science and Engineering (CSSE) at Johns Hopkins University. Baltimore, 2021. Disponível em: https://github.com/CSSEGISandData/COVID-19 . Acesso em: 24 abr. 2023.
https://github.com/CSSEGISandData/COVID-... ).
A rápida disseminação do vírus SARS-CoV-2 logo depois de constatados os primeiros casos de infecção em Wuhan, China, mobilizou a comunidade internacional principalmente em torno da Organização Mundial da Saúde (OMS), com estratégias de contenção da disseminação do vírus, atendimento às pessoas infectadas e produção de vacinas. O distanciamento social, o uso de máscaras e a higienização das mãos foram as primeiras recomendações dos especialistas para conter o avanço da pandemia, sendo adotadas por diversos países. Até que, em meados de agosto de 2020, as primeiras vacinas tiveram testes concluídos.
As alterações em decorrência da pandemia também foram sentidas no cotidiano prisional cearense por meio dos rígidos protocolos sanitários adotados para conter a disseminação do vírus, e é visando uma cronologia das medidas tomadas e dos eventos importantes que listo alguns ocorridos a seguir.
Dia 16 de março de 2020
O governador do Ceará, Camilo Santana, decretou situação de emergência em saúde no estado por meio do Decreto nº 33.510, listando diversas medidas restritivas de enfrentamento ao novo coronavírus (Ceará, 2020CEARÁ. Decreto nº 33510, de 16 de março de 2020. Decreta situação de emergência em saúde e dispõe sobre medidas para enfrentamento e contenção da infecção humana pelo novo coronavírus. Diário Oficial do Estado, Ceará, 16 mar. 2020. ). No que tange ao sistema prisional, as visitas sociais e religiosas, os cursos profissionalizantes e educacionais de nível fundamental e médio e as escoltas judiciais e hospitalares (exceto as emergenciais) foram suspensas dois dias após a decretação. A recomendação do uso de máscara, higienização das mãos e distanciamento social foram as medidas tomadas para a contenção do vírus, sendo resistidas por alguns policiais penais que reproduziam a narrativa de que a covid-19 não passava de uma “gripezinha” cujo agravamento estava restrito às pessoas do “grupo de risco” 44A OMS categorizou pessoas idosas (com idade igual ou maior que 65 anos) e pessoas portadoras de doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão, doenças respiratórias, câncer, doenças cerebrovasculares, portadoras de doença renal crônica, obesidade, asma e fumantes como pertencentes ao “grupo de risco”. . Sobre isso, Alan 55Todos os nomes dos interlocutores são fictícios, tendo a finalidade de preservação de suas identidades. , policial penal ingressante na função em 2018, disse: “ A mídia e a esquerda quer prejudicar o Brasil com esse negócio de distanciamento social ” (Alan), e Pedro, policial penal ingressante na função em 2013, complementa: “ As estatísticas de mortes estão sendo manipuladas. Toda morte agora é pela covid-19 ” (Pedro). Esse discurso negacionista era propagado pelo então presidente Jair Messias Bolsonaro e teve adesão de diversas categorias da segurança pública, principalmente as com viés militarizado, resultando em altos índices de contágios e mortes nesses profissionais.
Dia 27 de abril de 2020
A Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) confirmou o primeiro óbito de um interno por covid-19 e a contaminação de 67 policiais penais. No mesmo dia, o boletim epidemiológico do Ceará registrava 417 óbitos, contabilizando, também, 6.985 diagnósticos positivos para covid-19. Oito dias depois, o número de policiais contaminados saltou para 130, e 60 desses já estavam curados. Apesar da rápida disseminação do vírus, parte dos policiais resistia aos protocolos sanitários. Numa tentativa de adesão ao uso de máscaras entre os policiais penais, o Sindicato dos Servidores Penitenciários do Ceará (SINDASP-CE) intensificou a campanha de prevenção “Eu me protejo, Eu te protejo”, que mobilizava a categoria a seguir os protocolos sanitários. Nesse mesmo período, iniciou-se a distribuição de máscaras de tecido para a população carcerária, confeccionadas pelos próprios presos com o apoio da Cruz Vermelha, e os internos infectados foram transferidos para a Penitenciária de Segurança Máxima, transformada em hospital de campanha do sistema prisional.
Dia 24 de maio de 2020
Comecei a sentir os primeiros sintomas da covid-19. Dor de cabeça intensa, dor nos olhos e indisposição. Dois dias após os primeiros sintomas, cheguei à UP-Sobral para o plantão, relatei-os, tive a temperatura aferida e fui liberado pela técnica de enfermagem. No decorrer do dia, vários policiais penais relataram os mesmos sintomas. Um deles testou positivo e foi liberado. Na madrugada, tive dificuldades de respirar e, no dia seguinte, após sair da UP-Sobral, tive febre e falta de ar. Nos dias que seguiram, perdi o olfato e o paladar. As dores na cabeça e nos olhos diminuíram mas, insistentemente, permaneceram por aproximadamente um mês e eram acompanhadas por tosse intensa. Sintomas semelhantes foram relatados por praticamente todos os plantonistas da equipe da qual faço parte.
19 de abril de 2021
Pouco mais de um ano após as primeiras medidas para tentar conter a disseminação do coronavírus nas unidades prisionais cearenses, o Boletim divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o DEPEN, apontou o total de 21 pessoas mortas em decorrência da covid-19 no sistema penitenciário do Ceará, sendo cinco policiais penais, seis colaboradores terceirizados e seis internos. O mesmo Boletim apontou que 2.085 presos e 1.015 servidores foram diagnosticados com covid-19 (CNJ, 2021 CNJ - CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Boletim CNJ de monitoramento da Covid19. Departamento Penitenciário Nacional. Fazendo Justiça. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/04/Monitoramento-Casos-e-%C3%93bitos-Covid-19-22.4.21-Info.pdf . Acesso em: 04/09/2021.
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload... ). Além das mortes, vários policiais penais foram internados por conta do agravamento da covid-19, e os sobreviventes relatam inúmeras sequelas da doença.
24 de abril de 2021
Na UP-Sobral, o falecimento do policial penal Simão gerou comoção entre os profissionais. Ele era Chefe de Segurança e Disciplina e muito estimado por todos. Incrédulo das estatísticas de mortes pela covid-19, Simão não seguia corretamente os protocolos sanitários e propagava o discurso “negacionista”, ratificando que a pandemia não passava de uma “gripezinha” e sendo contaminado enquanto trabalhava na transferência dos presos infectados para o hospital de campanha. Além de se infectar com o vírus, ele também infectou a esposa e os três filhos, amargando a culpa e a impotência de ver uma de suas descendências de apenas 17 anos ser intubada em estado grave. Alguns dias após ser infectado, Simão foi internado numa Unidade de Terapia Intensiva (UTI) e entubado, falecendo dias depois e sem ter tido a oportunidade de ver novamente sua família e amigos. Nesse momento, os casos de adoecimento e mortes pela covid-19 eram de pessoas próximas e se temia a letalidade da doença.
24 de maio de 2021
A SAP iniciou a vacinação dos policiais penais com a primeira dose e, em meados de junho, dos internos. Apesar da vacina ser a única alternativa para a imunização, ela ainda encontrava resistência por uma pequena parte dos profissionais que justificavam a recusa baseados em teorias conspiratórias e/ou “negacionistas”, porém o Governo do Estado decretou a obrigatoriedade da vacinação a todos os servidores públicos. Com o avanço da vacinação nas prisões, várias atividades que tinham sido suspensas em 2020 foram retomadas, inclusive as aulas, os cursos profissionalizantes e as visitas sociais seguindo os protocolos de biossegurança. No momento em que reescrevemos este artigo, abril de 2023, o uso de máscara entre as pessoas presas, nos seus trânsitos nas dependências internas e externas, continuava sendo obrigatório e o setor de saúde ainda realizava aplicações da primeira, da segunda e da terceira dose da vacina na população prisional.
A pandemia e o realce dos problemas das prisões brasileiras
O Brasil tem um sistema penitenciário complexo, descentralizado e é marcado por discrepância entre sua infraestrutura e sua gestão administrativa, sendo as insuficientes condições de habitabilidade e de vida nas prisões alvo de frequentes denúncias de familiares das pessoas privadas de liberdade, instituições que defendem os direitos humanos e de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento. Os problemas da superlotação, da alimentação insuficiente e de péssima qualidade, da água racionada, da falta de materiais de higiene e da precariedade em serviços e atendimentos de saúde são algumas das questões que se intensificaram no período de pandemia por covid-19.
Nesses espaços, doenças infecciosas, tal como a tuberculose, Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) e a escabiose (sarna humana), se destacam na disseminação por conta das deficientes condições de habitabilidade, alimentação, ventilação inadequada e pelas péssimas condições de higiene das celas. Para desenhar parte da dimensão do problema, dados do DEPEN indicavam que 26.497 pessoas privadas de liberdade sofriam de alguma patologia infecciosa, com destaque para hepatite (2.509), sífilis (4.977), HIV (7.828) e tuberculose (7.387), que foram diagnosticadas no segundo semestre de 2020 (Brasil, 2020). Esses dados permitem dizer que não estamos tratando da disseminação de doenças como exceções, mas que essa é a realidade constitutiva das prisões brasileiras.
De acordo com Sánchez et al. ( 2020 SÁNCHEZ, A. et al. COVID-19 in prisons: An impossible challenge for public health? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 5, n. 36, e00083520, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311x00083520
https://doi.org/10.1590/0102-311x0008352... ), doenças infecciosas curáveis, a exemplo da tuberculose, são causas recorrentes de mortes no sistema prisional. Como ambiente propício à disseminação de infecções, as prisões têm altas taxas de incidência de doenças e de mortalidade se compararmos à população em geral 66 De acordo com Sánchez et al. ( 2020 ), no sistema prisional a escabiose tem prevalência trinta vezes maior do que a encontrada na população em geral. . Em alguns casos, essas infecções também se estendem aos trabalhadores das prisões que, no fluxo das suas atividades rotineiras, mantêm contato direto com a população carcerária (Nascimento, 2022a NASCIMENTO, F. E. M. De carcereiro a policial penal: Entre nomenclaturas, imagem social e atribuições. DILEMAS, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 883-910, 2022a. https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n3.46146
https://doi.org/10.4322/dilemas.v15n3.46... ). Se em seu contexto ordinário as prisões são consideradas criadouros de doenças infecciosas, num contexto pandêmico de altíssima transmissibilidade, como o da covid-19, a situação tende a representar ainda mais alerta.
Diante do exposto, alguns questionamentos são necessários. Como seguir o protocolo de distanciamento social em espaços que, historicamente, são superlotados? Como incentivar a higienização das mãos em um espaço que tem água e materiais de higiene racionados? Como garantir atendimento de saúde a uma população que reclama da assistência básica não apenas pela insuficiente quantidade de profissionais, mas também pela escassez de medicamentos, políticas de prevenção e de cuidados? Diante desses questionamentos, podemos perceber que a realidade constitutiva das prisões brasileiras está na contramão das orientações dos especialistas para a contenção da disseminação do vírus. Isso implica diretamente na constatação de que o Brasil tem uma das maiores taxas de contaminações e óbitos por covid-19 entre a população carcerária do mundo (De Oliveira Andrade, 2020 OLIVEIRA, R. de. COVID-19: Prisons exposed in Brazil’s crisis. BMJ, London, n. 370, m2884, 2020. https://doi.org/10.1136/bmj.m2884
https://doi.org/10.1136/bmj.m2884... ), o que pode também ser resultado da política equivocada de tratamento da pandemia no sistema prisional.
Para Ribeiro e Diniz ( 2020 RIBEIRO, L.; DINIZ, A. M. A. The Brazilian Penitentiary System under the Threat of COVID-19. Victims & Offenders, Philadelphia, v. 15, n. 7-8, p. 1019-1043, 2020. https://doi.org/10.1080/15564886.2020.1827109
https://doi.org/10.1080/15564886.2020.18... ), a ausência de infraestrutura e de assistência à saúde adequada no sistema prisional, conjugados às medidas erráticas de prevenção a covid-19, repercutiram na incidência significativa de casos diagnosticados e mortes em decorrência da doença. Os autores destacam que a taxa de incidência da doença entre presos (30,85/ 1.000 presos) é bem maior do que a média da população em geral (19,74/ 1.000 habitantes). Diante da realidade das prisões brasileiras, torna-se ainda mais difícil o cumprimento dos protocolos sanitários de isolamento social, uso de máscara e o estabelecimento de protocolos de desinfecção dos espaços, principalmente pelo grande número de pessoas reclusas e pelas complexas interações entre os policiais penais e presos.
De acordo com Campello e Godoi ( 2020 GODOI, R.; CAMPELLO, R.; MALLART, F. O colapso é o ponto de partida: Entrevista com o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro sobre prisões e a Covid-19. DILEMAS, Rio de Janeiro, 21, p. 1-15, 2020. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-21 . Acesso em: 12 jun. 2024.
https://www.reflexpandemia.org/texto-21... ), a gestão da pandemia no sistema prisional brasileiro estava muito mais preocupada em prevenir tumultos por conta da suspensão da visitação de familiares nas unidades prisionais do que com a própria disseminação do vírus entre pessoas presas e servidores. Os autores destacam que o DEPEN destinou cerca de R$ 20 milhões para a compra de granadas, munições e outros artefatos “menos letais” para prevenção a possíveis motins e rebeliões nas prisões, mas em nada atuou na diminuição do abarrotamento das unidades prisionais que, em lógica, seria o ponto de fragilidade da gestão pandêmica no sistema prisional. Em resposta à superlotação, o DEPEN chegou a sugerir investimento na compra de contêineres destinados ao isolamento das pessoas idosas, em “situação de risco” e contaminadas. Essas medidas, de acordo com os autores, têm reflexos imediatos na intensificação do uso de tecnologias que geram a dor física, por meio da indústria do castigo, ao invés da ampliação dos cuidados pelo fortalecimento da política de saúde no sistema prisional.
Também reforçando a manutenção da ordem como medida mais expressiva tomada durante a pandemia por covid-19 no sistema prisional, Godoi, Campello e Mallart ( 2020 GODOI, R.; CAMPELLO, R.; MALLART, F. O colapso é o ponto de partida: Entrevista com o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro sobre prisões e a Covid-19. DILEMAS, Rio de Janeiro, 21, p. 1-15, 2020. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-21 . Acesso em: 12 jun. 2024.
https://www.reflexpandemia.org/texto-21... ) destacam que as prisões, longe de serem identificadas como espaços segregados das políticas sanitárias, de saúde e de cuidado, funcionam como tecnologia de contágio e de óbitos que são associados a esses espaços, de forma que “o que vem se passando nas prisões do Brasil durante a pandemia pode ser visto como um prisma revelador do processo em curso do lado de fora dos muros, que massacra determinadas populações e territórios urbanos” (p. 2).
A perspectiva argumentativa de que a pandemia abriu ainda mais um fosso separando o acesso igualitário aos bens e serviços entre populações mais pobres, moradoras de áreas periféricas, e as de classe média e alta, moradoras dos bairros mais abastados é apresentada como uma das principais causas de mortes em decorrência de complicações da doença. Pensando nessa desigualdade e a partir dos dados sobre mortes ocasionadas pela covid-19 no Brasil, Costa et al. ( 2020 COSTA, J. S. et al. COVID-19 in the Brazilian prison system: From indifference as a policy to a death policy. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, n. 32, e020013, 2020. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32240218
https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v3... ) destacam que os índices de mortes são proporcionalmente muito maiores em favelas do que em regiões de classe média e alta, e no caso das prisões, mesmo com a fragilidade das estatísticas apresentadas pelo DEPEN, as estatísticas são ainda maiores do que as da população em geral.
De acordo com o boletim do CNJ de 19 de abril de 2021, o número de casos confirmados de covid-19 no sistema prisional brasileiro era de 74.982, com 364 óbitos registrados. Desse total, 55.109 dos casos e 174 dos óbitos eram pessoas presas, enquanto 19.873 diagnósticos positivos e 190 óbitos eram trabalhadores. Diante dos dados, é possível perceber que não foi apenas a população encarcerada a tomada pelas altas taxas. Chama atenção, principalmente, os índices de contágio entre profissionais que permaneceram exercendo suas atribuições durante a pandemia (CNJ, 2021 CNJ - CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Boletim CNJ de monitoramento da Covid19. Departamento Penitenciário Nacional. Fazendo Justiça. Brasília, 2021. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2021/04/Monitoramento-Casos-e-%C3%93bitos-Covid-19-22.4.21-Info.pdf . Acesso em: 04/09/2021.
https://www.cnj.jus.br/wp-content/upload... ).
A partir dos dados apresentados pelo CNJ, sublinho que o número de servidores prisionais mortos em decorrência de complicações da Covid-19 não é apenas absolutamente maior em relação ao de pessoas presas que perderam a vida em decorrência da doença, mas se considerada a relação proporcional entre essas duas populações, os dados de mortes de profissionais seriam ainda mais alarmantes. Isso implica dizer que, bem mais que o desastre anunciado da pandemia para a população carcerária, os profissionais das prisões foram os mais afetados em termos proporcionais de contágio e de mortes. Algumas pistas colhidas no trabalho de campo permitem argumentar que as políticas sanitárias no sistema prisional foram bem mais rígidas ao serem aplicadas junto à população prisional do que com os profissionais, que reproduziam o discurso “negacionista” como esquiva aos protocolos sanitários.
O período pandêmico e seus impactos na vida dos policiais penais
Em se tratando das medidas de controle epidemiológico implementadas na rotina prisional cearense para conter a disseminação do vírus, a entrada de pessoas presas passou a ser regulada, obrigatoriamente, por higienização pessoal, testagem e por um período de quarentena de quinze dias em espaço reservado. O uso de máscara passou a ser obrigatório em todas as atividades e atendimentos fora das celas e uma rotina de desinfecção, com espargimento de solução de água e cloro, passou a ser executada duas vezes ao dia nas dependências internas das unidades prisionais. No período mais crítico da covid-19, a testagem de todas as pessoas com sintomas gripais e o seu isolamento ou transferência para hospital de campanha quando diagnosticadas foram as principais medidas de contenção da contaminação pelo vírus.
A vigilância epidemiológica para com a população carcerária promoveu investimento no monitoramento, identificação de casos e bloqueio da circulação do vírus no interior das unidades prisionais cearenses. Esse enfrentamento à pandemia nas prisões destoa dos relatos de pesquisadores sobre a política de contenção da pandemia em outros estados da federação (Godoi; Campello; Mallart, 2020 GODOI, R.; CAMPELLO, R.; MALLART, F. O colapso é o ponto de partida: Entrevista com o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro sobre prisões e a Covid-19. DILEMAS, Rio de Janeiro, 21, p. 1-15, 2020. Disponível em: https://www.reflexpandemia.org/texto-21 . Acesso em: 12 jun. 2024.
https://www.reflexpandemia.org/texto-21... ; Sánchez et al., 2020 SÁNCHEZ, A. et al. COVID-19 in prisons: An impossible challenge for public health? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 5, n. 36, e00083520, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311x00083520
https://doi.org/10.1590/0102-311x0008352... ). Junto aos internos, a administração prisional regulava à risca os protocolos sanitários, porém entre os profissionais, principalmente no espaço de convivência e no alojamento, esse controle não foi executado.
Contrariando, em partes, a tragédia anunciada por pesquisadores das prisões de que a população prisional seria a mais afetada pela pandemia (Ribeiro; Diniz, 2020 RIBEIRO, L.; DINIZ, A. M. A. The Brazilian Penitentiary System under the Threat of COVID-19. Victims & Offenders, Philadelphia, v. 15, n. 7-8, p. 1019-1043, 2020. https://doi.org/10.1080/15564886.2020.1827109
https://doi.org/10.1080/15564886.2020.18... ; Sánchez et al., 2020 SÁNCHEZ, A. et al. COVID-19 in prisons: An impossible challenge for public health? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 5, n. 36, e00083520, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311x00083520
https://doi.org/10.1590/0102-311x0008352... ), os dados mostram que a população mais vulnerável das prisões, em se tratando das mortes decorrentes da covid-19, é a de profissionais. Isso se dá justamente porque são eles quem mantêm o fluxo de trabalho nas unidades, inclusive os procedimentos de rotina, manutenção da ordem e protocolos excepcionais implementados para prevenir a disseminação do vírus; transitam entre o dentro e o fora das prisões e desenvolvem entre si relações de aproximação e de intimidade em diversos espaços e atividades (Nascimento, 2022b NASCIMENTO, F. E. M. Fazendo Família e Etnografia Entre Irmãos de Farda. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 27, n. 3, e46391, 2022b. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2022v27n3e46391
https://doi.org/10.5433/2176-6665.2022v2... ), fatores que os colocaram em exposição ao contágio da doença. A ausência de protocolos rígidos e do fornecimento de equipamentos de proteção individual (EPIs) ou sua utilização de forma inadequada também são fatores que contribuíram para a rápida disseminação do vírus entre os profissionais.
Tratando-se especificamente do Ceará, campo desta pesquisa, a pandemia por covid-19 não foi o único problema enfrentado pelos policiais penais nos últimos dois anos. Conjugados a essa problemática de dimensão planetária, os índices de suicídio e de assassinatos têm sido tão letais quanto os da doença. O acirramento dos conflitos, pela guerra declarada entre as facções criminais e o Estado e por conta da implementação de uma política disciplinar militarizada nas prisões 77 Sobre a política disciplinar implementada a partir de 2019, ver Nascimento ( 2021 ) e Nascimento e Siqueira ( 2022 ). , implicou num cenário letal para os policiais penais, seja pelos assassinatos ou pelos suicídios decorrentes do adoecimento mental (Nascimento, 2022b NASCIMENTO, F. E. M. Fazendo Família e Etnografia Entre Irmãos de Farda. Mediações – Revista de Ciências Sociais, Londrina, v. 27, n. 3, e46391, 2022b. https://doi.org/10.5433/2176-6665.2022v27n3e46391
https://doi.org/10.5433/2176-6665.2022v2... ). De 2015 a 2020, foram 11 homicídios registrados. Somente em 2020, quatro policiais penais foram assassinados a bala enquanto se deslocavam pelas ruas ou de casa para o trabalho. E, em 2021, quatro profissionais cometeram suicídio, sendo três deles com a própria arma pessoal e outro em um surto psicótico dentro da prisão que o levou a efetuar doze disparos contra um colega de equipe e se suicidar posteriormente, também com sua arma de fogo. A essas mortes se somam uma morte por ataque cardíaco fulminante durante os testes físicos para um curso operacional, outra de um policial que cochilou no volante enquanto se deslocava do trabalho para casa e mais seis mortes em decorrência da covid-19 88Por meio da Lei de acesso à informação, a SAP confirmou que, até nove de setembro de 2021, seis policiais penais morreram no Ceará em decorrência da covid-19 e outros 832 foram diagnosticados com a doença. . Ao todo, entre 2020 e 2021, dezesseis policiais penais perderam suas vidas no Ceará, número alarmante para uma categoria que tem pouco mais de 3.000 profissionais.
Essas mortes estão de algum modo diretamente relacionadas à pandemia e à rotina exaustiva e tensa de trabalho implementada a partir da criação da SAP em 2019, o que ocasionou absenteísmo no trabalho por conta dos afastamentos em massa de profissionais diagnosticados com transtornos mentais. Em reportagem sobre as condições de trabalho dos policiais penais do Ceará, o jornal O Globo apontou 301 afastamentos desses profissionais em 2021, em sua maioria por doenças psiquiátricas. O excesso de trabalho e o assédio moral foram as principais queixas apontadas pelos policiais penais entrevistados na reportagem (Ribeiro, 2022 RIBEIRO, Aline. Suicídios, homicídios e problemas psiquiátricos: a crise dos policiais penais do Ceará. O Globo, Rio de Janeiro, 18 jan. 2022. Segurança Pública. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/suicidios-homicidio-problemas-psiquiatricos-crise-dos-agentes-penitenciarios-do-ceara-25358512 . Acesso em: 9 nov. 2022.
https://oglobo.globo.com/brasil/suicidio... ).
No período mais letal da pandemia, em que comércio, instituições públicas e privadas e as empresas de transporte viário foram paralisados, a SAP, sem qualquer empatia com seus servidores, reordenou sua gestão de pessoas, realocando policiais penais do interior do estado, principalmente lotados em Juazeiro do Norte e em Sobral, para exercerem suas atribuições profissionais em prisões de Fortaleza e Região Metropolitana. Parte desses profissionais residentes em cidades localizadas no Piauí, Maranhão, Paraíba, Bahia, Pernambuco ou em regiões distantes da capital, com até mil quilômetros de distância, se arriscaram em comboios de transportes particulares até a capital para não terem seus salários suspensos.
As transferências e o assédio moral por parte de alguns gestores, assim como a tensão do trabalho prisional em meio à guerra entre facções e Estado e o medo de ser vitimado pela pandemia, tiveram reflexos diretos na saúde mental desses trabalhadores, o que reflete nas altíssimas taxas de suicídio e nos afastamentos para tratamento de problemas de saúde mental como esgotamento, traumas, fadiga, Síndrome de Burnout, transtorno de estresse pós-traumático e depressão. A incidência desses casos forçou a SAP a criar um serviço de atendimento psicológico voltado aos profissionais, mas, no entanto, em nada interviu na política de gestão de pessoas, que continua tornando ainda mais dolorosa a rotina deles pelo caráter disciplinar militarizado e exaustivo de trabalho implementado e pelos assédios morais por parte de alguns gestores.
Durante uma conversa entre policiais penais sobre as mudanças no trabalho prisional a partir da criação da SAP e do início da pandemia, Artur, policial penal ingressante na profissão em 2013, relatou sua insatisfação a partir da criação da SAP: “ Aqui tá bem pior do que em uma empresa privada, e o regime parece de produção. Somos sugados até a última força durante o plantão. O chefe fica vigiando o tempo que você demora nas refeições, no banheiro […] . Além da perseguição das facções, temos a dos gestores ” (Artur). A policial penal Rosa, ingressante em 2018, disse: “ Essa gestão não liga se o guarda tá bem ou se precisa de ajuda. Muito pelo contrário, aqui tá reinando o jargão do ‘quanto pior melhor’, por isso essa quantidade alarmante de suicídios e afastamentos. Desde o início dessa gestão não temos um dia de paz ” (Rosa). Além das queixas sobre a gestão, a conversa caminhou também para os efeitos da pandemia na vida desses profissionais. Sobre o assunto, Lucas diz:
Nós não paramos durante a pandemia. Ao final de cada plantão sempre retornamos para casa com a incerteza se saudáveis ou contaminados com essa doença. O medo é constante, pois não é apenas a nossa vida que está em risco, mas também a vida dos nossos familiares. Perdemos colegas para essa doença maldita e outros permaneceram em UTIs e/ou apresentam várias sequelas . (Lucas)
Os relatos dos policiais penais abordam insatisfações, perseguições, riscos e medos decorrentes do trabalho na prisão durante o período da pandemia por covid-19. Dentre as questões, o medo tanto de ser transferido para um local de trabalho distante, de ser prejudicado pelo chefe e de se contaminar com o vírus aparecem com ênfase nas narrativas. Todos esses fatores tiveram reflexos importantes na saúde mental desses trabalhadores.
Pensando junto com a sociologia do medo, Miskolci ( 2017MISKOLCI, R. Desejos digitais: uma análise sociológica da busca por parceiros on-line. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. ) se remete aos escritos de Jean Delumeau, afirmando que essa emoção está necessariamente relacionada ao medo da morte. Partindo das análises de Delumeau, o autor aborda as transformações do medo no ocidente que se impregnou de forma domesticada pelo temor e o risco. “Talvez o que os medos coletivos tenham em comum seja o poder de questionar concepções idealizadas sobre o que cremos ser hoje, e a ameaça a que reagem envolve nossa relação com o passado e a alteridade” (p. 164). Na perspectiva do autor, as incertezas sobre a doença, bem como sobre as medidas de contenção da disseminação do vírus, geram ansiedades no cotidiano e, também, no que se refere à perspectiva de futuro. Particularmente, incertezas econômicas e de que um familiar seja uma das vítimas da pandemia são razões disparadoras de medo e ansiedade.
A literatura que versa sobre trabalhadores das prisões vem apontando o quão estressante é o trabalho desenvolvido pelos policiais penais (Lima et al., 2019LIMA, A. I. O. et al. Prevalência de Transtornos Mentais Comuns e Uso de Álcool e Drogas entre Agentes Penitenciários. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 35, e3555, 2019. ). De acordo com Bell, Hopkin e Forrester ( 2019 BELL, S.; HOPKIN, G.; FORRESTER, A. Exposure to Traumatic Events and the Experience of Burnout, Compassion Fatigue and Compassion Satisfaction among Prison Mental Health Staff: An Exploratory Survey. Issues in Mental Health Nursing, London, v. 40, n. 4, p. 304-309, 2019. https://doi.org/10.1080/01612840.2018.1534911
https://doi.org/10.1080/01612840.2018.15... ), a recorrência de eventos traumáticos vivenciada por esses profissionais têm provocado problemas mentais que impactam em redução da qualidade de vida, fadiga, esgotamento e insatisfação para com o trabalho desenvolvido no ambiente carcerário. Esses problemas são caracterizados por sensações de irritabilidade, exaustão, dormência, ansiedade e outras emoções negativas que frequentemente impulsionam o uso demasiado de álcool e/ou outras drogas como válvula de escape.
Segundo Genest, Ricciardelli e Carleton. ( 2021 GENEST, C.; RICCIARDELLI, R.; CARLETON, R. N. Correctional Work: Reflections Regarding Suicide. International Journal of Environmental Research and Public Health, Basel, v. 18, n. 8, 4280, 2021. https://doi.org/10.3390/ijerph18084280
https://doi.org/10.3390/ijerph18084280... ), o próprio ambiente de trabalho dos profissionais da segurança prisional representam riscos à saúde mental desses trabalhadores. Lidar com as condições de insalubridade das prisões, com o cenário de tensão, violência, assédio moral e com a falta de apoio da administração prisional são alguns fatores que podem influenciar no adoecimento mental dos policiais penais, que pode acarretar na morte por suicídio.
Importante salientar que essa morte não se configura apenas como algo físico, chegando ao limite de um suicídio. O morrer se estrutura anteriormente na própria configuração prisional quando se produz más condições de trabalho, falta de higiene, jornada de trabalho exaustiva e assédio moral. Além disso, existe um aperfeiçoamento dos métodos disciplinares dentro de uma perspectiva neoliberal, em que o maniqueísmo bem-mal, público-privado, lucro-gastos, progresso-atraso são manifestados nas relações prisionais.
Foucault ( 2010FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 2010. ) produz um corte no saber prisional, destacando o fenômeno em teias de microrrelações e colocando em pauta o martírio das relações dentro de unidades prisionais. Assim como um manicômio ou uma escola, a prisão segue um modelo de vigilância e punição. Contudo, com o advento do neoliberalismo, para além de uma produção de corpos dóceis regidos pelo medo, pelo trauma e pela violência física, psicológica ou mesmo simbólica, existe uma engenharia moral que coloca a prisão como uma empresa e o policial penal como um funcionário que deve atingir uma máxima performance.
O neoliberalismo é uma espécie de psicologia. Ele atua numa maquinaria social e numa engenharia moral que alicerça os modos de ser, agir e pensar das relações. Nesses entrelaços, há novas produções de sintomas e novas formas de sofrimento psíquico (Safatle; Silva Junior; Dunker, 2022SAFATLE, V. P.; DA SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. ). A reorganização do dispositivo penitenciário é uma forma de implicar novas condições sintomáticas e estratégias de sofrimento em prol de uma máquina capitalista lucrativa e perversa de moer pobre, seja ele o policial penal ou o presidiário.
Com a SAP, o sistema prisional cearense enfrenta uma política de morte alinhada aos moldes neoliberais, colocando o policial penal como “empresário de si mesmo”. Agora, ele tem que ser não apenas policial, mas atingir metas, sendo vigiado por gestores que exigem uma máxima de trabalho mesmo com más condições de trabalho, com número escasso de trabalhadores dentro das unidades e com superlotação das prisões. A complexidade das ações do policial penal se estabelece em especificidades institucionais de controle e vigilância, além do estereótipo vinculado às suas funções. Ele necessita trabalhar em equipe e potencializar atenção, autocontrole e proatividade, além de tomada de decisões frente às situações adversas e vivenciar o cotidiano prisional com situações geradoras de tensão, como ameaças e agressões, não obstante a pressão constante por eficácia produz diversos sintomas no sujeito. Esse modelo neoliberal prisional é gerador de sofrimento psíquico.
O policial penal empresário de si não consegue cumprir com eficácia suas atribuições ocupacionais, haja vista que trabalhar constantemente sob pressão, risco de morte, ameaças e não reconhecimento pela profissão configura essa gestão do sistema prisional cearense como uma “política morte” (Mbembe, 2019MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 Edições, 2019. ). Dessa forma, a prisão escancara a necropolítica não apenas para o preso, mas também para o policial penal.
Outro ponto que deve ser salientado é o fato de que o entendimento sobre saúde deve ser destacado como um processo de relações, e não apenas numa perspectiva orgânica, biológica. Colocar isso em pauta é importante para que se entenda que saúde no espaço prisional é escassa justamente porque a prisão é um contexto de resto, de morte (Neto et al., 2023 NETO, L. et al. Vegetando no Necrotério dos Vivos: “O fazer morrer e o deixar morrer” no contexto brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 53, n. 3, p. 381-410, 2023. https://doi.org/10.36517/rcs.53.3.a05
https://doi.org/10.36517/rcs.53.3.a05... ). Todos aqueles que estão imersos nesse ambiente estão passíveis de morte. É um quarto do despejo, onde se joga aquilo que não se deseja na sociedade.
O policial penal também é parte da população pobre brasileira, aquela que predominantemente abrange a massa carcerária e que é alvo da fatídica política de morte em curso no Brasil. Assim, ele compõe uma massa assalariada que luta contra ela mesma. É uma luta em que o estado necropolítico coloca em jogo a morte pela morte. Em outras palavras, essas mortes estão centradas no resto, isto é, nas pessoas que fazem parte desse modelo econômico-moral prisional, mesmo que dentro do resto exista uma hierarquia polícia-bandido.
Para além da rotina, cobrança e ameaças dentro da prisão, o policial penal vivencia dilemas éticos e valores morais próprios que colidem com as práticas realizadas durante os plantões. Esse policial tem que lidar com a lei que rege o interior das prisões e a lei que rege o mundo externo, vivenciando duas realidades diferentes. Além disso, experiencia a pressão midiática e social que, por vezes, culpa os policiais pelas ações degradantes e desumanas das unidades prisionais, não observando que ele está cotidianamente imerso nesse mesmo ambiente (Moraes, 2013 MORAES, P. R. B. de. A identidade e o papel de agentes penitenciários. Tempo Social, São Paulo, v. 25, n. 1, p. 131-147, 2013. https://doi.org/10.1590/S0103-20702013000100007
https://doi.org/10.1590/S0103-2070201300... ).
Afirmo que o modelo prisional a partir da criação da SAP mudou drasticamente o fazer do policial penal, agenciando uma política neoliberal que produz escancaradamente uma política de morte, uma “fazer morrer e deixar morrer” (Mbembe, 2019MBEMBE, A. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. São Paulo: n-1 Edições, 2019. ) nos moldes modernos de uma engenharia moral, econômica e produtora de sintomas e de sofrimento (Safatle; Da Silva Junior; Dunker, 2022SAFATLE, V. P.; DA SILVA JUNIOR, N.; DUNKER, C. (Org.). Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico. Belo Horizonte: Autêntica, 2022. ).
Por fim, é importante salientar que o sofrimento vivenciado pela polícia penal cearense perpassa um sofrimento ético-político. Esse conceito surgiu para potencializar a problemática da contradição e da dominação sociais na práxis psicossocial. O sofrimento é determinado não por aquele de ordem individual, mediante desajustamentos e desadaptações, mas sim perpassado por um tipo vinculado diretamente à situação social da pessoa, restringindo-a de lutar contra os cerceamentos sociais (Sawaia, 2014SAWAIA, B. B. (Org.). As artimanhas da exclusão: uma análise ético-psicossocial da desigualdade. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. ).
Dessa forma, o sofrimento ético-político se desenvolve como um conceito de análise dialética de inclusão/exclusão social. É a vivência singular de problemáticas sociais dominantes em cada processo histórico, que se desenvolve da situação de ser reconhecido como inferior, subalterno, sem valor (Sawaia, 2014SAWAIA, B. B. (Org.). As artimanhas da exclusão: uma análise ético-psicossocial da desigualdade. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. ). O policial penal vivencia a angústia da insuficiência no trabalho e de não atender a expectativas sociais e midiáticas, além de não existir uma valorização do trabalho desenvolvido nas unidades prisionais. Esses fatores de desvalor produzem um esgotamento profissional constante.
As relações na prisão passam a ser de sofrimento/paixão, desenvolvendo maus encontros caracterizados por servidão, heteronomia e injustiça. Tal sofrimento se firma como potência de padecimento, isto é, de reação e não de ação, no processo em que as condições sociais se mantêm, transformando-se em um mecanismo cristalizado da existência. O que se dimensiona aqui é que a relação de sofrimento ético-político se encontra no âmbito da ética dos afetos. Ele é vinculado às relações com a sociedade, que são perpassadas por afecções em que o corpo mergulha num abaixamento de potência mediante aos mecanismos de servidão ou heteronomia, frente a situações de exclusão (Sawaia, 2014SAWAIA, B. B. (Org.). As artimanhas da exclusão: uma análise ético-psicossocial da desigualdade. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. ) estruturadas a partir de uma lógica neoliberal e de morte.
As condições precárias nas penitenciárias e a superlotação, além de um quantitativo insuficiente de policiais penais dentro das unidades, contribuem para sentimentos negativos dos profissionais em relação à dificuldade de mudar o modus operandi de trabalho, o que acaba refletindo na saúde deles. Segundo Sawaia ( 2006SAWAIA, B. B. Espinosa: o precursor da ética e da educação ambiental com base nas paixões humanas. In: CARVALHO, I. C. M.; GRÜN, M.; TRAJBER, R. (Org.). Pensar o ambiente: bases filosóficas para a educação ambiental. Brasília, DF: MEC/UNESCO, 2006. p. 78-91. ), fundamentada em Espinosa, “a alegria é um estado de maior perfeição, porque está associado às afecções ativas (autonomia), e… a tristeza está associada a um estado menor de perfeição, porque favorece a inatividade e a servidão” (p. 80-81). Na perspectiva espinosana, o processo de potência do agir se constitui através do afeto ( affectus ). Quando a potência do agir aumenta, tem-se a alegria. Quando ela diminui, reina a tristeza.
Assim, a alegria produz no sujeito o agir, não se deixando levar por causas externas nas vivências do que ocorre com ele em suas afecções. Contudo, quando o sujeito tem vivências de suas afetações em causas externas excessivas, o sujeito não age, torna-se passivo (Sawaia, 2006SAWAIA, B. B. Espinosa: o precursor da ética e da educação ambiental com base nas paixões humanas. In: CARVALHO, I. C. M.; GRÜN, M.; TRAJBER, R. (Org.). Pensar o ambiente: bases filosóficas para a educação ambiental. Brasília, DF: MEC/UNESCO, 2006. p. 78-91. ). O policial penal está imerso num processo negativo laboral, em que sentimento de impotência, de espaços de escuta não produzidos desenvolvem nele uma afetação externa e passiva de exaustão. Esse modo de entender o sofrimento ético-político acentua as perspectivas de insuficiência no imaginário coletivo do policial penal, em que as afecções que marcam a atividade de seu corpo diminuem a potência de ação, mantendo-o na servidão em quase todas as esferas da vida, principalmente a laboral.
Considerações finais
Em perspectiva ampliada, a pandemia não só provocou milhões de mortes no mundo todo, mas também a materialização das diferenças e das desigualdades nos diversos segmentos populacionais. Na prisão, a letalidade do vírus parece ser apenas mais um entre as muitas outras questões que dizem respeito ao encarceramento. No que tange às deficiências da política de saúde pública, pelo contágio e falta de controle epidemiológico de doenças seculares das prisões (tuberculose, ISTs e escabiose), os dados permitem dizer que a covid-19, por mais letal que se apresente, é apenas mais um entre tantos outros problemas que afetam as prisões brasileiras. Em vista disso, podemos pensar ainda como as políticas epidemiológicas são desigualmente percebidas e sofridas pelas populações que se relacionam com a prisão, desde elementos que perpassam as dimensões da vida aos que fazem a própria política de segurança pública.
É necessário que os questionamentos acerca das políticas públicas de segurança e as problematizações em relação às dinâmicas prisionais não se limitem aos textos acadêmicos, mas que sejam incorporadas à práxis, uma vez que o trabalho se desenvolve num fator de adoecimento constante. O modus operandi prisional com a SAP se tornou um movimento de organização neoliberal que exige uma máxima performance e que gera ainda mais adoecimento, um sofrimento ético-político.
Isso tudo passa a contrariar as premissas da Lei Orgânica de Saúde, que coloca em pauta a prevenção de agravos e a promoção da saúde de trabalhadores. Além disso, é imprescindível se trabalhar a perspectiva do afeto nessa cultura que naturaliza o estresse e sofrimento, que espontaneamente pode vincular sinais e sintomas de adoecimentos psíquico com traços da personalidade dos sujeitos, produzindo dificuldades de percepção sobre esses sofrimentos no dia a dia da prisão.
A finitude deve ser pauta essencial neste contexto, sendo necessário um foco específico no trabalho de prevenção em saúde. Dialogar sobre a finitude e os sentimentos evocados por ela é essencial, pois tal temática pode evocar um potencial gerador de estresse e sobrecarga psíquica não apenas durante o processo pandêmico, mas diariamente nas dinâmicas prisionais. Nessa perspectiva, é preciso não apenas problematizar o cotidiano do policial penal, mas sensibilizar profissionais e gestores das unidades prisionais cearenses, incluindo a rotina laboral de atividades, o processo de cuidado com a saúde mental e as estratégias que potencializem atividades de desenvolvimento em habilidades sociais na comunicação e nas relações interpessoais.
Agradecimentos
Agradecemos em primeira instância a todos os policiais penais que participaram da pesquisa, compartilhando conosco suas experiências. É necessário também agradecer ao apoio institucional da Universidade Estadual do Ceará e financeiro da Faculdade 05 de Julho.
Referências
- BELL, S.; HOPKIN, G.; FORRESTER, A. Exposure to Traumatic Events and the Experience of Burnout, Compassion Fatigue and Compassion Satisfaction among Prison Mental Health Staff: An Exploratory Survey. Issues in Mental Health Nursing, London, v. 40, n. 4, p. 304-309, 2019. https://doi.org/10.1080/01612840.2018.1534911
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- 1A pesquisa passou pelo crivo do Comitê de Ética em Pesquisas Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual do Ceará, com CAEE: 44925015.5.0000.5053.
- 2A descrição do cotidiano institucional da UP-Sobral foi feita em caderno de campo, alternando as atividades de trabalho como policial penal e de escrita como etnógrafo, entre uma e outra tarefa e nos horários de descanso.
- 3Os limites deste artigo não nos permitem o aprofundamento dos procedimentos metodológicos e analíticos, para uma descrição detalhada consultar Nascimento ( 2021NASCIMENTO, F. E. M. Fronteiras de guerra: gestão da vida e processos de estado nas fronteiras entre policiais penais e presos. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2021. , 2022 NASCIMENTO, F. E. M.; SIQUEIRA, Í. B. L. Dinâmicas “Faccionais” e Políticas Estatais entre o Dentro e o Fora das Prisões do Ceará. TOMO, n. 40, p. 123-164, 2022. https://doi.org/10.21669/tomo.vi40.15657
https://doi.org/10.21669/tomo.vi40.15657... ). - 4A OMS categorizou pessoas idosas (com idade igual ou maior que 65 anos) e pessoas portadoras de doenças cardiovasculares, diabetes, hipertensão, doenças respiratórias, câncer, doenças cerebrovasculares, portadoras de doença renal crônica, obesidade, asma e fumantes como pertencentes ao “grupo de risco”.
- 5Todos os nomes dos interlocutores são fictícios, tendo a finalidade de preservação de suas identidades.
- 6De acordo com Sánchez et al. ( 2020 SÁNCHEZ, A. et al. COVID-19 in prisons: An impossible challenge for public health? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 5, n. 36, e00083520, 2020. https://doi.org/10.1590/0102-311x00083520
https://doi.org/10.1590/0102-311x0008352... ), no sistema prisional a escabiose tem prevalência trinta vezes maior do que a encontrada na população em geral. - 7Sobre a política disciplinar implementada a partir de 2019, ver Nascimento ( 2021NASCIMENTO, F. E. M. Fronteiras de guerra: gestão da vida e processos de estado nas fronteiras entre policiais penais e presos. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2021. ) e Nascimento e Siqueira ( 2022 NASCIMENTO, F. E. M.; SIQUEIRA, Í. B. L. Dinâmicas “Faccionais” e Políticas Estatais entre o Dentro e o Fora das Prisões do Ceará. TOMO, n. 40, p. 123-164, 2022. https://doi.org/10.21669/tomo.vi40.15657
https://doi.org/10.21669/tomo.vi40.15657... ). - 8Por meio da Lei de acesso à informação, a SAP confirmou que, até nove de setembro de 2021, seis policiais penais morreram no Ceará em decorrência da covid-19 e outros 832 foram diagnosticados com a doença.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Dez 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
13 Maio 2023 - Aceito
09 Abr 2024 - Revisado
05 Jun 2024