Resumo
As atuais diretrizes globais e nacional para controle do HIV/aids denotam uma acentuada ênfase biomédica, expressa na ampliação do acesso ao teste do HIV, visando o diagnóstico precoce, o encaminhamento para tratamento e a redução da carga viral. Por meio de um balanço crítico da literatura nacional e internacional, objetivamos identificar como a noção de promoção da saúde tem sido concebida na produção acadêmica sobre testagem do HIV entre mulheres trans/travestis, gays/outros HSH (homens que fazem sexo com homens) e mulheres cis trabalhadoras sexuais, no período entre 2010 e 2019. Os achados confirmam a tendência de biomedicalização no modo de conceber e operacionalizar programas e ações de testagem de HIV, bem como usos diferenciados da noção de promoção da saúde. Na literatura sobre gays/HSH, tal noção é empregada, predominantemente, como suporte para as estratégias de expansão de acesso ao teste, não se diferenciando da noção de prevenção. Na literatura sobre mulheres trans/travestis e trabalhadoras sexuais, majoritariamente, o teste de HIV está subordinado a uma agenda de debates e reflexões mais amplas de promoção da saúde. Os resultados permitem uma reflexão sobre como o processo de biomedicalização opera uma reconfiguração dos sentidos e práticas associados à prevenção e à promoção da saúde.
Palavras-chaves:
Teste do HIV; Promoção da Saúde; Prevenção; Aids; Medicalização
Abstract
The current global and Brazilian guidelines to control HIV/AIDS have shown a strong biomedical emphasis, stressing the importance of expanding access to HIV testing, aiming at early diagnosis, referral for treatment, and reduction of viral load. By critically reviewing the national and international literature, we aimed to identify how academic production on HIV testing among trans women/ travestis , gay men/other MSM, and cis women sex workers that has been published from 2010 to 2019 has conceived health promotion. Findings confirm the trend of biomedicalization in the conception and operationalization of HIV testing programs and actions and found other uses of the notion of health promotion. The literature on gay men/MSM predominantly use this notion to support strategies to expand access to the test, not differentiating it from to distinguish it from the notion of prevention. The literature on trans women/ travestis and sex workers mostly subordinates the HIV test to a broader agenda of debates and reflections on health promotion. Results enable a reflection on how the biomedicalization process reconfigures the meanings and practices associated with prevention and health promotion.
Keywords:
HIV Testing; Health Promotion; Prevention; Aids; Medicalization
Introdução
Nos anos recentes houve transformações significativas nas respostas à aids. Em 2014 foi estabelecido como meta global que 90% das pessoas vivendo com HIV (PVHA) soubessem de seu status sorológico, 90% das pessoas diagnosticadas recebessem terapia antirretroviral e 90% dos em tratamento alcançassem carga viral abaixo dos limites de detecção. Além disso, foi estimado que mais de 70% das PVHA chegariam ao status “indectável”, diminuindo novas infecções até a erradicação do HIV. Tais diretrizes estão fundamentadas em ações biomédicas (diagnóstico precoce, seguido do tratamento farmacológico) e na solidariedade entre nações e parcerias multissetoriais (United Nations Programme on Hiv/Aids – Unaids, 2014UNAIDS – UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS. 90-90-90. An ambitious treatment target to help end the AIDS epidemic. Geneva: UNAIDS, 2014. ). Como até 2020 as metas não foram cumpridas, estabeleceram-se novas metas para 2025, visando alcançar: 95% das pessoas em risco de HIV usando prevenção combinada, 95% das mulheres acessando serviços de saúde sexual e reprodutiva, 95% de cobertura de serviços para eliminação da transmissão vertical, 90% das PVHA recebendo tratamento preventivo para tuberculose e 90% das PVHA e pessoas em risco vinculadas a serviços integrados de saúde (Unaids, 2021UNAIDS – UNITED NATIONS PROGRAMME ON HIV/AIDS. Global AIDS Strategy 2021-2026 - End Inequalities. End AIDS. Geneva: UNAIDS, 2021. ).
O documento da Unaids, seguido pelo governo brasileiro, tornou-se uma convenção global sobre as formas prioritárias de prevenção ao HIV. Esta reconfiguração confere destaque ao Tratamento como prevenção (TcP), que tem como base maior acesso aos novos tipos de teste do HIV (rápido, punção digital, fluido oral). Embora o diagnóstico precoce do HIV integre a política nacional desde os anos 1990 (Grangeiro et al., 2009GRANGEIRO, A. et al. Voluntary counseling and testing services and their contribution to access to HIV diagnosis in Brazil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 9, p. 2053-2063, 2009. DOI: 10.1590/S0102-311X2009000900019
https://doi.org/10.1590/S0102-311X200900... ), com o TcP a testagem se consolidou como recurso de controle epidemiológico. Além do diagnóstico do HIV no pré-natal, parto e entre pessoas com tuberculose, sífilis e hepatites, fomenta-se a oferta do teste rápido em unidades básicas do Sistema Único de Saúde para população, focalizando segmentos com maior concentração de casos, denominados de populações-chave: homens que fazem sexo com homens (HSH), mulheres trans/travestis, profissionais do sexo e usuários de drogas (Ministério da Saúde, 2013MINISTÉRIO DA SAÚDE. Manual Técnico para o Diagnóstico da Infecção pelo HIV. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2013. ).
Em função do TcP, as respostas programáticas à Aids, dentro e fora do Brasil, têm apoiado a ampliação do acesso ao diagnóstico para além dos serviços de saúde, incluindo a oferta em unidades móveis de testagem, lugares públicos (por exemplo praças) e privados (como locais de interação sexual), em horários variados. O teste também é ofertado em domicílios (autoteste) e organizações não governamentais (ONGs), com apoio governamental, frente sua experiência e acesso às populações-chave. Tais intervenções fortalecem a proposta da testagem como ação rotineira e de autovigilância sorológica. Quanto a seus efeitos sociais, o diagnóstico do HIV torna-se um marcador biológico essencial para o controle epidemiológico, as interações sociais e a subjetividade (Monteiro et al., 2019MONTEIRO, S. et al. Desafios do tratamento como prevenção do HIV no Brasil: uma análise a partir da literatura sobre testagem. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 5, p. 1793-1807, 2019. DOI: 10.1590/1413-81232018245.16512017
https://doi.org/10.1590/1413-81232018245... ).
Face ao processo de biomedicalização das respostas ao HIV, que envolveu importantes transformações programáticas, cabe indagar sobre o sentido conferido às ações de prevenção e de promoção da saúde, à advocacy e aos direitos humanos. Essas perguntas derivam de reflexões acerca das implicações sociais das respostas à epidemia nos últimos anos, diante do predomínio biomédico, conceitualizadas como farmaceuticalização, remedicalização e biomedicalização (Biehl, 2007BIEHL, J. Pharmaceuticalization: AIDS Treatment and Global Health Politics. Anthropological Quarterly, Washington, DC, v. 80, n. 4, p. 1083-1126, 2007. ; Nguyen et al., 2011NGUYEN, V.K. et al. Remedicalizing an Epidemic: From HIV Treatment as Prevention to HIV Treatment is Prevention. AIDS, Birmingham, v. 25, n. 3, p. 291-293, 2011. DOI: 10.1097/QAD.0b013e3283402c3e
https://doi.org/10.1097/QAD.0b013e328340... ; Aggleton; Parker, 2015AGGLETON, P.; PARKER, R. Moving beyond biomedicalization in the HIV response: implications for community involvement and community leadership among men who have sex with men and transgender people. American Journal of Public Health, Wahington, DC, v. 105, n. 8, p. 1552-1558, 2015. DOI: 10.2105/AJPH.2015.302614
https://doi.org/10.2105/AJPH.2015.302614... ; Kenworthy; Thomann; Parker, 2017KENWORTHY, N; THOMANN, M; PARKER, R. From a Global Crisis to the ‘End of AIDS’: New Epidemics of Signification. Global Public Health, Abingdon, v. 13, n. 8, p. 960-971, 2017. DOI: 10.1080/17441692.2017.1365373
https://doi.org/10.1080/17441692.2017.13... ; Monteiro et al., 2019MONTEIRO, S. et al. Desafios do tratamento como prevenção do HIV no Brasil: uma análise a partir da literatura sobre testagem. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 5, p. 1793-1807, 2019. DOI: 10.1590/1413-81232018245.16512017
https://doi.org/10.1590/1413-81232018245... ).
A despeito de suas diferenças, esses conceitos permitem identificar que a ênfase nos recursos biomédicos (TcP; profilaxias pré e pós-exposição ao HIV), instaura uma reorganização das práticas institucionais, da posição dos agentes sociais, dos serviços de saúde e dos cuidados de si quanto à saúde e à sexualidade. Nota-se, nesse sentido, um menor protagonismo dos ativistas e pessoas mais afetadas pelo HIV nas respostas à epidemia. Diante desses deslocamentos, cabe indagar se, e como, a recente produção de evidências e práticas acerca do teste do HIV reatualiza a oposição entre prevenção e promoção da saúde, historicamente presente nos debates teórico-conceituais no campo da saúde.
O conceito de promoção da saúde nasce de reflexões acerca da crescente medicalização da sociedade nas décadas de 1980 e 1990. Sua discussão girou em torno do rompimento da hegemonia do modelo médico para pensar os determinantes sociais da saúde, defendendo a legitimidade de perspectivas sobre as condições econômicas e sociais que afetam a saúde das populações. Dessa forma, resulta de uma redefinição teórica e programática, procurando modificar as condições de vida para dotá-las de dignidade e influenciar os processos sociais e individuais para tomadas de decisão favoráveis à qualidade de vida, bem-estar e saúde. Tal enfoque não engloba apenas medidas em torno da doença, tornando-o mais abrangente que o conceito de prevenção, baseado na ação antecipada (Buss, 2009BUSS, P. Uma Introdução ao Conceito de Promoção da Saúde. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (Org.). Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009. p. 18-43. ; Moraes, 2017MORAES, M. C. L. Promoção da saúde: visitando conceitos e ideias. Revista Família, Ciclos de Vida e Saúde no Contexto Social, Uberaba, v. 5, n. 1, p. 75-76, 2017. DOI: 10.18554/refacs.v5i1.1917
https://doi.org/10.18554/refacs.v5i1.191... ).
Segundo define Czeresnia ( 2009CZERESNIA D. O Conceito de Saúde e a Diferença entre Prevenção e Promoção. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (Org). Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009. p. 39-53. ), as ações de prevenção se caracterizam por intervenções que visam controlar a transmissão de doenças para diminuir sua incidência e prevalência nas populações. Tendo por base o conhecimento epidemiológico moderno, elas incluem divulgação de informações e normas científicas, visando a mudança de hábitos, programas de rastreio (detecção precoce), reabilitação e cuidado continuado.
Por sua vez, como indica a Carta de Ottawa de 1986 11 Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf . Acesso em: 19 jun. 2024. , a noção de promoção entende a saúde como um processo dependente das condições sociais (alimentação, justiça social, renda, educação) e de valores (vida, saúde, solidariedade, equidade, democracia). Sua efetivação exige responsabilização múltipla dos problemas e soluções, envolvendo Estado e sociedade civil organizada no desenvolvimento de estratégias, no sentido de um poder técnico e consciência política para construir condições de saúde. As conferências e declarações da Organização das Nações Unidas e suas agências, nas décadas de 1990 e 2000, posicionaram o conceito de promoção da saúde no âmbito dos direitos humanos, afirmando os princípios orientadores das políticas de saúde dos países signatários, como concepção integral de saúde, intersetorialidade, empowerment, participação social, equidade, ações multiestratégicas e sustentabilidade (Buss, 2009BUSS, P. Uma Introdução ao Conceito de Promoção da Saúde. In: CZERESNIA, D.; FREITAS, C. M. (Org.). Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2009. p. 18-43. ).
Outra perspectiva convergente com os princípios da promoção da saúde refere-se ao conceito de vulnerabilidade, derivado de abordagens transdisciplinares sobre a influência de fatores socioeconômicos, culturais, institucionais e geográficos na produção das desigualdades sociais e em saúde. Na saúde pública, esse conceito adquiriu visibilidade ao demonstrar que a maior suscetibilidade ao HIV resultava da articulação de aspectos individuais, programáticos e sociais (Mann; Tarantola; Netter, 1992MANN, J; TARANTOLA, D; NETTER, T. (Ed.). AIDS in the World. Cambridge. Mass: Harvard University Press, 1992. ). Seu emprego na compreensão da disseminação global da aids colaborou para questionar o conceito epidemiológico de risco (limitado às probabilidades de exposição de certos grupos ao agravo) e intervenções centradas na responsabilidade individual.
No Brasil, as reflexões e práticas de prevenção do HIV foram marcadas pelo quadro teórico da promoção da saúde, vulnerabilidade e indissociabilidade entre saúde e direitos humanos (Ayres; Paiva; França Júnior, 2012AYRES, J. R; PAIVA, V; FRANÇA JÚNIOR, I. Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos. In: PAIVA, V. et al (Org). Vulnerabilidade e Direitos Humanos Prevenção e Promoção da Saúde. Livro I. Curitiba: Juruá, 2012. p. 71-94. ). Seus fundamentos servem, neste estudo, como referência para entender as transformações em curso, derivadas das respostas globais ao HIV, a partir do paradigma do “testar e tratar” no âmbito local.
Por meio de um balanço crítico de publicações acadêmicas de 2010 a 2019, o artigo objetiva demonstrar como a noção de promoção da saúde tem sido concebida na literatura sobre teste do HIV entre mulheres trans/travestis (MTT), gays/outros HSH e mulheres cis trabalhadoras sexuais (TS), cuja identidade de gênero coincide com aquela designada no nascimento.
Metodologia
O método da revisão integrativa resume a bibliografia para a compreensão de um fenômeno ou problematização no campo da saúde (Whittemore; Knafl, 2005WHITTEMORE, R.; KNAFL, K. The integrative review: updated methodology. Journal of Advanced Nursing, Hoboken, v. 52, n. 5, p. 546–553, 2005. DOI: 10.1111/j.1365-2648.2005.03621.x
https://doi.org/10.1111/j.1365-2648.2005... ); além de identificar questões e evidencias, lacunas de conhecimento e rever marcos teórico-conceituais. Dado seu potencial para refletir criticamente e promover ajustes nas intervenções em saúde (Crossetti, 2012CROSSETTI, M. G. Revisão integrativa de pesquisa na enfermagem o rigor cientifico que lhe é exigido. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 33, n. 2, p. 8-9, 2012 ), pretende-se que a presente revisão integrativa amplie o debate sobre ações de prevenção à aids no Brasil.
A revisão da literatura sobre testagem de HIV entre as populações-chave seguiu as etapas previstas nas pesquisas de revisão. Foram selecionadas as bases de dados e bibliotecas eletrônicas: PubMed/MEDLINE; SciELO; Web of Science; Scopus; Sociological Abstracts e Applied Social Sciences Index & Abstracts. Após consulta aos descritores do MESH (Medical Subject Headings) e do DeCS (Descritores em Ciências da Saúde), a estratégia de busca conjugou as populações, as ações, os modelos e os recursos de testagem do HIV, bem como a ênfase em prevenção ou promoção da saúde, descritas no Tabela 1 . Nas buscas, os descritores se conectavam pelo operador booleano “AND”, garantindo que os artigos tivessem um descritor de cada termo no título, resumo ou palavras-chave.
O levantamento, realizada de maio a junho de 2020, gerou 1758 artigos, importados para o gerenciador de referências Mendeley e reduzidos para 728 após eliminar as referências repetidas. A aplicação dos critérios de exclusão, por dois pesquisadores, resultou em 428 artigos (ver Prisma flow diagram), classificados por ano de publicação, população, país, metodologia, tipo de teste (punção digital, fluido oral, soro), estratégia de teste (móvel, Point of Care itinerante; autoteste, feito por/em ONG ou por pares) e por categorias temáticas, descritas no Tabela 2 .
Na análise, foram selecionados 33 artigos classificados na categoria “promoção da saúde”, listados no Tabela 3 , doravante referidos pelo número indicado neste quadro.
Por meio de análise qualitativa (Hsieh; Shannon, 2005HSIEH, H.-F.; SHANNON, S. Three approaches to qualitative content analysis. Qualitative Health Research, Thousand Oaks, v. 15, n. 9, p. 1277-88, 2005. DOI: 10.1177/1049732305276687
https://doi.org/10.1177/1049732305276687... ), buscou-se identificar, nos 33 textos, como a noção de promoção da saúde foi apresentada e apropriada no marco do paradigma do TcP, segundo as três populações-chave. E se havia uma diferenciação entre as concepções de prevenção e promoção da saúde, haja vista as reflexões apresentadas na introdução.
Resultados e discussão
Os 33 artigos foram desenvolvidos em países da América do Norte, Europa, Asia, África e América Latina, majoritariamente com abordagens quantitativas. 11 focalizaram gays/outros HSH, 10 TS e quatro MTT; os oito restantes envolveram mais de uma ou nenhuma população específica. A promoção da saúde não era o foco principal de análise dos artigos e tampouco foi encontrada uma definição a respeito ou limites entre as ações de prevenção e de promoção da saúde. Todavia, foi observada uma diferenciação quanto ao uso da noção de promoção da saúde entre os três segmentos populacionais. Nos trabalhos com gays/outros HSH, tal noção é empregada, predominantemente, como suporte para as estratégias de expansão do acesso ao teste, não se diferenciando da noção de prevenção. Na literatura sobre MTT e TS, majoritariamente, o teste de HIV está subordinado a debates e reflexões mais amplas de promoção da saúde. Tal argumento será demostrado a seguir, a partir da revisão da literatura.
Gays e demais HSH
Nos artigos relativos aos HSH, a promoção da saúde aparece frequentemente indissociável da lógica preventiva. Grande parte aborda o estigma da homossexualidade como determinante estrutural imprescindível para entender práticas sexuais de risco e as barreiras de acesso aos serviços de saúde. Nessa direção, estudos buscam demonstrar a relação entre teste do HIV e menor homonegatividade internalizada e que a educação e/ou informação em saúde é eficiente para atingir os segmentos menos sujeitos ao autoestigma. Segundo pesquisa realizada em 38 países europeus, medidas de promoção da saúde sexual conseguiram ser operacionalizadas a partir de informações sobre o HIV e demais IST para HSH, sobretudo para quem desejava, mas, não tinha acesso ao teste. Como o estigma da homossexualidade dificulta o acesso ao serviço, salienta-se a importância do debate deste tema para a promoção da equidade social e autoaceitação em torno da identidade gay (Berg et al, 2013BERG, R.C.; ROSS, M.; WEATHERBURN, P.; SCHMIDT, A. J. Structural and environmental factors are associated with internalised homonegativity in men who have sex with men: Findings from the European MSM Internet Survey (EMIS) in 38 countries. Social Science & Medicine, Amsterdam, v. 78, p. 61-69, 2013. ).
A relação entre estigma, identidade sexual e alta prevalência de HIV é igualmente assinalada. Investigação com HSH negros nos EUA estimou a correlação entre revelação da orientação sexual e comportamentos sexuais de risco ou proteção ao HIV; aqueles mais próximos da comunidade gay tinham maior conhecimento sobre Profilaxia Pré-exposição (PrEP) e participavam de programas de promoção da saúde (tipo comportamental), porém, apresentavam maior ocorrência de sexo transacional, sexo sob efeito de substâncias e menor chance de declarar o diagnóstico de HIV (Hotton et al, 2018HOTTON, A.; KEENE, L.; CORBIN, D.; SCHNEIDER, J.; VOISIN, D. The relationship between Black and gay community involvement and HIV-related risk behaviors among Black men who have sex with men. Journal of Gay & Lesbian Social Services, Abingdon, v. 30, n. 1, p. 64-81, 2018. ). A abordagem dos determinantes sociais da saúde e da doença ilustra como as noções de promoção e prevenção se confundem. O uso mais instrumental dos determinantes sociais da saúde foi também observado na adaptação de uma intervenção para casais HSH negros e latinos. Na pesquisa, o empoderamento comunitário foi reduzido à promoção de informações sobre recursos preventivos e os fatores estruturais definidos como “barreiras” no acesso ao serviço (Martinez et al, 2016MARTINEZ, O.; WU, E.; LEVINE, E. et al. Integration of Social, Cultural, and Biomedical Strategies into an Existing Couple-Based Behavioral HIV/STI Prevention Intervention: Voices of Latino Male Couples. PLOS ONE, San Francisco, v. 11, n. 3, p. e0152361, 2016. ).
Nota-se que a promoção da saúde ou noções vinculadas (vulnerabilidade, empoderamento) não são empregadas como recurso crítico ao conceito epidemiológico de risco. Em geral, as ações educativas se restringem à mudança comportamental para adesão às estratégias biomédicas preventivas. Um estudo biocomportamental categorizou os HSH em baixo, médio e alto risco de infecção ao HIV, conforme o grau de exposição e práticas de compensação de risco, baseadas na sorologia do parceiro. Foi concluído que essa estratificação é útil para definir serviços diferenciados e intervenções de promoção da saúde, como a PrEP (Bogowicz et al, 2016BOGOWICZ, P.; MOORE, D.; KANTERS, S.; MICHELOW, W.; et al. HIV testing behaviour and use of risk reduction strategies by HIV risk category among MSM in Vancouver. International Journal of STD & AIDS, Thousand Oaks, v. 27, n. 4, p. 281-287, 2016. ). A promoção da saúde equivale aqui a ações de prevenção.
Outros artigos examinam as associações entre testagem e fatores psicossociais, entendendo por promoção da saúde intervenções de comunicação e educação em saúde. Por exemplo, uma investigação sobre prevalência biocomportamental examinou a relação entre testagem recente e conhecimentos e atitudes sobre HIV. Ressaltou-se a necessidade de educar os participantes com normas de saúde sexual, a partir de ações culturalmente relevantes, dado que jovens HSH de etnias do Pacífico e Ásia relataram menos testes recentes que os de origem europeia (Lachowsky et al, 2014LACHOWSKY, N.; SAXTON, P.; DICKSON, N.; HUGHES, A.; SUMMERLEE, A.; DEWEY, C. Factors associated with recent HIV testing among younger gay and bisexual men in New Zealand, 2006-2011. BMC Public Health, London, v. 14, n. 1, p. 294, 2014. ). Embora considerem fatores estruturais, foi salientado apenas a dimensão educativa da promoção saúde, visando mudança comportamental. Igualmente, um estudo na Inglaterra denominou como ações de promoção da saúde (Witzel et al, 2016WITZEL, T. C.; MELENDEZ-TORRES, G.; HICKSON, F.; WEATHERBURN, P. HIV testing history and preferences for future tests among gay men, bisexual men and other MSM in England: results from a cross-sectional study. BMJ Open, London, v. 6, n. 9, p. e011372, 2016. ) o uso de mídia social para favorecer o aumento da testagem e uso do preservativo entre HSH.
A promoção da saúde foi também vinculada ao aconselhamento e informações sobre recursos locais de saúde e mudança comportamental, no trabalho de adaptação do serviço de prevenção do HIV para celulares, tablets e laptops (mHealth Intervention), entre jovens HSH na Romênia. As ações demonstraram eficácia, aceitabilidade e viabilidade no país (Leluțiu-Weinberger et al, 2018LELUȚIU-WEINBERGER, C.; MANU, M.; IONESCU, F. et al. An mHealth Intervention to Improve Young Gay and Bisexual Men’s Sexual, Behavioral, and Mental Health in a Structurally Stigmatizing National Context. JMIR MHealth and UHealth, [s. l.], v. 6, n. 11, p. e183, 2018. ). Apesar de reconhecer o contexto estruturalmente estigmatizante, tal aspecto não foi aprofundado. Pesquisa no Vietnã identificou que determinantes individuais e estruturais influenciavam a demanda de testagem, como baixa percepção de risco, medo do HIV, estigma percebido, desconhecimento dos serviços e preocupações com confidencialidade (Bowring et al, 2015BOWRING, A. L.; PASOMSOUK, N.; HIGGS, P.; SYCHAREUN, V.; HELLARD, M.; POWER, R. Factors Influencing Access to Sexual Health Care Among Behaviorally Bisexual Men in Vientiane, Laos. Asia Pacific Journal of Public Health, Thousand Oaks, v. 27, n. 8, p. 820-834, 2015. ). Novamente, o sentido de promoção de saúde foi associado a ações de ampliação do acesso aos serviços de prevenção e testagem, como mudança comportamental, letramento da terapia antirretroviral (TARV), percepção de risco e benefícios do teste.
A ênfase na dimensão individual da promoção foi igualmente notada no artigo com jovens bissexuais e gays/outros HSH no Quênia acerca das relações entre fatores intrapessoais, interpessoais e variáveis psicossociais e sexuais de proteção ao HIV (Harper et al, 2015HARPER, G. W.; WADE, R. M.; ONYANGO, D. P. et al. Resilience among gay/bisexual young men in Western Kenya. AIDS, [s. l.], v. 29, p. S261-S269, 2015. ). Conclui-se que os fatores de promoção da saúde podem ser atributos internos (autoeficácia, autoestima) ou influências externas (apoio familiar e de organizações comunitárias) e que os jovens HSH precisam de informações para se protegerem do HIV, mesmo em contextos heteronormativos. Na China, a discriminação por orientação sexual tem sido uma barreira para o teste de HIV, impedindo outros comportamentos que promovem a saúde. Segundo survey com 318 HSH, os chineses têm níveis maiores de homofobia internalizada em comparação com HSH de outros lugares e maior quantidade de relatos de não realização do teste de HIV. Embora o artigo assinale o receio à homofobia como um fator estrutural de barreira ao teste, seu enfrentamento se limita à ação educativa por meio de marketing social e estratégias de comunicação sobre teste e tratamento (Pyun et al, 2014PYUN, T.; SANTOS, G.; ARREOLA, S. et al. Internalized homophobia and reduced HIV testing among men who have sex with men in China. Asia-Pacific Journal of Public Health, Thousand Oaks, v. 26, n. 2, p. 118–125, 2014. ).
A abordagem da promoção da saúde aparece mais delineada em artigo sobre a criminalização da homossexualidade em Uganda e a compreensão das barreiras de acesso aos serviços de saúde. Avaliou-se o impacto do projeto de lei de 2009 que aumentava as punições, fomentando o ocultamento da identidade gay. Os profissionais de saúde seriam obrigados a revelar a sexualidade dos usuários, o teste de HIV se tornaria compulsório e haveria proibição de serviços de prevenção e cuidado de HIV para os HSH. O debate do projeto provocou medo e reclusão da comunidade, indo contra as diretrizes internacionais, sendo recomendada a revisão dos documentos do Banco Mundial e da OMS para desenvolver respostas ao HIV informadas pelos direitos humanos (Semugoma; Beyrer; Baral; 2012SEMUGOMA, P.; BEYRER, C.; BARAL, S. Assessing the effects of anti-homosexuality legislation in Uganda on HIV prevention, treatment, and care services. SAHARA-J: Journal of Social Aspects of HIV/AIDS, Abingdon, v. 9, n. 3, p. 173–176, 2012. ).
Mulheres trans e travestis (MTT)
Na literatura sobre MTT as principais discussões relativas à promoção da saúde salientam a importância da atuação de educadoras de pares e da afirmação de gênero no acesso aos serviços de saúde, incluindo a realização da testagem. Segundo alguns estudos, a falta de uso do pronome apropriado das MTT pelos profissionais compromete à prevenção e assistência. Os cuidados clínicos associados à afirmação de gênero são apresentados como oportunos para a prevenção. A partir do consentimento das usuárias, a testagem poderia integrar o exame de sangue para monitoramento de hormônios sexuais. Identificou-se que horários flexíveis, funcionários(as)/provedores(as) de saúde trans e contato por telefone/mídias/e-mail são recursos para a retenção dessa população nas clínicas.
Outra investigação analisa um modelo de atendimento clínico integrado à afirmação de gênero e pesquisa comunitária, para intervir na infecção pelo HIV entre MTT de Boston, Nova York e San Francisco. Embora seja baseado na prevenção e no cuidado clínico, o artigo sustenta que a afirmação de gênero reduz os riscos de saúde mental, sendo um determinante social chave da saúde (Reisner, Radix, Deutsch, 2016REISNER, S.; RADIX, A.; DEUTSCH, M. B. Integrated and Gender-Affirming Transgender Clinical Care and Research. Journal of Acquired Immune Deficiency Syndromes, [s. l.], v. 72, p. S235-S242, 2016 ). Há o reconhecimento que fatores estruturais, como a falta de reconhecimento legal, poderiam levar à marginalização política e social e ao aumento da vulnerabilidade ao HIV.
A prevenção do HIV e a afirmação de gênero foram igualmente abordadas em trabalho sobre preferências de recursos de prevenção entre MTT no Brasil (Sevelius et al, 2019SEVELIUS, J.; MURRAY, L.; FERNANDES, N.; VERAS, M.; GRINSZTEJN, B.; LIPPMAN, S. Optimising HIV programming for transgender women in Brazil. Culture, Health & Sexuality, Abingdon, v. 21, n. 5, p. 543–558, 2019. ). O estudo demonstrou o interesse desse segmento por intervenções que combinassem o empoderamento, o apoio de educadoras de pares e a oferta de recursos biomédicos. São discutidas as implicações da transfobia no acesso aos serviços e que as expectativas desfavoráveis do resultado do teste de HIV podem levar à depressão, violência e discriminação. A perspectiva da promoção da saúde é enfatizada pela valorização da afirmação de gênero, autonomia e redução da discriminação nos serviços.
Outra investigação exemplifica como ações de promoção de saúde podem estar subordinadas à lógica da prevenção ao abordar as respostas programáticas ao HIV entre MTT na América Latina, com base em entrevistas com representantes da Unaids, Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e lideranças regionais comunitárias. Frente à dificuldade de realização do teste, são apresentadas alternativas, como unidades móveis de testagem e uso de pares e organizações de base comunitária para captação. No caso do Brasil, foram ressaltadas as intervenções com populações-chave a partir da capacitação das ONGs (Silva-Santisteban et al, 2016SILVA-SANTISTEBAN, A.; ENG, S.; DE LA IGLESIA, G.; FALISTOCCO, C.; MAZIN, R. HIV prevention among transgender women in Latin America: implementation, gaps and challenges. Journal of the International AIDS Society, New York, v. 19, n. 2, p. 20799, 2016. ). Considera-se que a exclusão social é a chave para compreender as dimensões da vulnerabilidade ao HIV. Todavia, em vários países, as intervenções sugerem que as ações de promoção não são um fim em si mesmo, mas um meio para os objetivos da prevenção biomédica.
A estratégia de condicionar a prevenção do HIV à oferta de serviços sociais para MTT, definidos como promoção da saúde, foi identificada na avaliação do Programa Sisters na Tailândia. A presença de educadoras de pares no centro de atendimento, nos locais de sociabilidade e na comunicação virtual foi associada ao recebimento do teste de HIV (Pawa et al, 2013PAWA, D.; FIRESTONE, R.; RATCHASI, S. et al. Reducing HIV Risk among Transgender Women in Thailand: A Quasi-Experimental Evaluation of the Sisters Program. PLOS ONE, San Francisco, v. 8, n. 10, p. e77113, 2013. ). Neste trabalho, nota-se uma diferenciação menos nítida entre promoção e prevenção.
Estudos e avaliações de experiências combinando MTT e HSH tendem a conceber a promoção da saúde como as ações que favorecem o acesso ao teste de HIV e a outros recursos, entre eles o preservativo. A atuação de pares na educação em saúde é citada de forma mais instrumentalizada, assim como na abordagem da discriminação sexual como barreira de acesso aos serviços e autocuidado. O entendimento da promoção da saúde é englobado aos objetivos da prevenção, se aproximando dos estudos sobre HSH.
Em Myamar foram estudadas as barreiras aos serviços de testagem e prevenção entre HSH e MTT de difícil acesso. Foi identificado que o medo do estigma e a necessidade de atender às expectativas de gênero motivam a não divulgação da orientação sexual nos serviços e a evitação de ambientes que revelam a identidade sexual, como serviços específicos para HSH. As dificuldades de engajar HSH ocultos na prevenção do HIV foram corroboradas pelos prestadores de serviços. Foram sugeridas ações de promoção da saúde online (informação e aconselhamento) e serviços capazes de garantir anonimato, privacidade e aprimoramento dos provedores de serviços liderados por pares e equipes de saúde convencional (Veronese et al, 2019VERONESE, V.; CLOUSE, E.; WIRTZ, A. et al. “We are not gays... don’t tell me those things”: Engaging ‘hidden’ men who have sex with men and transgender women in HIV prevention in Myanmar. BMC Public Health, London, v. 19, n.63, p.1-12, 2019. ). A promoção da saúde fica mais nítida na indicação de estratégias abrangentes de empoderamento – como a reforma legal e a mobilização da comunidade LGBTI – contra o estigma e discriminação sexual. Entretanto, o foco ainda é o acesso aos serviços para realização da testagem.
Nesta direção, nos Estados Unidos foi avaliada uma intervenção para população latina baseada na atuação de aconselhadores de saúde leigos para reduzir a grande carga de HIV entre minorias sexuais e de identidade de gênero latinas (gays/outros HSH, bissexuais, MTT). A ação, denominada Hola , contava com pares treinados para estimular o uso de preservativos, testes de HIV/demais IST e discussão sobre prevenção. Tais atividades eram entendidas como promoção da saúde. A intenção era mudar o comportamento da população, mas teve alcance mais amplo, com o engajamento de vários membros da comunidade e encaminhamentos para atender diversas necessidades identificadas (Sun et al, 2015SUN, C.; GARCÍA, M.; MANN, L.; ALONZO, J.; ENG, E.; RHODES, S. Latino Sexual and Gender Identity Minorities Promoting Sexual Health Within Their Social Networks: Process Evaluation Findings From a Lay Health Advisor Intervention. Health Promotion Practice, Thousand Oaks, v. 16, n. 3, p. 329–337, 2015. ).
Trabalhadoras sexuais (TS)
Nos artigos sobre TS, a discussão sobre promoção da saúde também revela uma abordagem mais ampla sobre saúde. Parte das reflexões deriva de perguntas de pesquisa e avaliação acerca dos impactos do envolvimento comunitário nas ações de prevenção e testagem. A participação comunitária nas estratégias de promoção da saúde nem sempre confere centralidade ao teste de HIV. São enfatizados aspectos sociais da vida das TS na abordagem preventiva, como o estigma da prostituição, implicações da violência, fortalecimento dos laços comunitários e empoderamento, visando sua qualidade de vida.
Seguindo essa linha, na caracterização das redes sociais de TS de baixa renda no sul da China, notou-se que as conexões sociais vinculadas a cidade natal delas, denominadas de rede laoxiang , eram mais poderosas entre as que migravam do campo para as grandes cidades, cumprindo o papel das ONG em termos de mobilização coletiva. Tais redes organizavam a vida dessas mulheres e influenciavam seus comportamentos de saúde, estimulando a busca pelos serviços de saúde sexual e teste de HIV e demais IST, promoção do preservativo, além de mitigar os efeitos das campanhas antiprostituição. Foi salientado que as redes poderiam colaborar para expandir as opções biomédicas da prevenção do HIV e serem cruciais para as campanhas de saúde (Tucker et al, 2011TUCKER, J.; PENG, H.; WANG, K. eT al. Female Sex Worker Social Networks and STI/HIV Prevention in South China. PLoS ONE, San Francisco, v. 6, n. 9, p. e24816, 2011. ).
Outros trabalhos mencionam a promoção da saúde ao analisar estratégias de base comunitária. Estudo transversal em Karnataka (Índia), constatou que as TS mais expostas à mobilização comunitária foram mais propensas ao teste de HIV e ao uso do preservativo na última relação sexual e menos às infecções por gonorreia e clamídia. A atuação comunitária favoreceu a melhor negociação do uso de preservativos, o acesso aos serviços e a abordagem de outras preocupações em suas vidas (Beattie et al, 2014BEATTIE, T. S.; MOHAN, H.; BHATTACHARJEE, P. et al. Community mobilization and empowerment of female sex workers in karnataka state, south india: Associations with hiv and sexually transmitted infection risk. American Journal of Public Health, Washington, DC, v. 104, n. 8, p. 1516-1525, 2014. ).
Pesquisa no Canadá analisou a implementação de um programa de prevenção do HIV e promoção da saúde para TS imigrantes, principalmente asiáticas. O programa empregou agentes comunitárias para realizar educação em saúde nos estabelecimentos e encaminhar para o cuidado primário, autoteste de IST e teste de HIV no local do trabalho sexual. Tais ações favoreceram a realização de mais testes, acesso a outros serviços de saúde e a atividades de promoção da saúde (redução de riscos e informações sobre serviços sem julgamento). Os achados sugerem que a oferta de serviços pode ser uma porta de entrada chave para os profissionais de saúde promoverem cuidado e educação em saúde sexual, adequados ao contexto cultural (Bungay et al, 2013BUNGAY, V.; KOLAR, K.; THINDAL, S.; REMPLE, V; JOHNSTON, C. L.; OGILVIE, G. Community-Based HIV and STI Prevention in Women Working in Indoor Sex Markets. Health Promotion Practice, Thousand Oaks, v. 14, n. 2, p. 247-255, 2013 ). No Quênia, ex-TS atuaram como educadoras de pares no programa sobre aprendizado de formas de prevenção do HIV, auxiliando na promoção e na manutenção do bom relacionamento com a comunidade, facilitando a inscrição rápida e aceitação nos serviços. Houve adesão ao programa e as ações resultaram no aumento da testagem de IST e respostas aos incidentes violentos. Todavia, as inscrições nas clínicas locais foram relativamente baixas entre as mulheres, assim como o teste de HIV entre mulheres e homens. Foi destacada a importância de envolver a população alvo no desenho do programa e da avaliação das ações, visando o seu aperfeiçoamento (McClarty et al, 2018MCCLARTY, L.; BHATTACHARJEE, P.; ISAC, S. et al. Key Programme Science lessons from an HIV prevention “Learning Site” for sex workers in Mombasa, Kenya. Sexually Transmitted Infections, [s. l.], v. 94, p. 346-352, 2018. ).
Investigações apoiadas na lógica da determinação social da saúde e da doença demonstram que o estigma do trabalho sexual deve ser considerado nas ações de promoção da saúde sexual das TS. Segundo investigação na Índia, profissionais de saúde de clínicas e programas de HIV/demais IST reproduziam visões discriminatórias contra as TS, entre elas: evitar exame especular, não abordar o uso do preservativo e teste de HIV, não orientar o parceiro e considerar que o trabalho sexual dissemina o HIV, devendo ser proibido. Após treinamento, houve melhoria na qualidade do cuidado, sendo necessárias novas intervenções no âmbito programático para mudar as atitudes dos profissionais (Jayanna et al, 2010JAYANNA, K.; WASHINGTON, R.; MOSES, S. et al. Assessment of attitudes and practices of providers of services for individuals at high risk of HIV and sexually transmitted infections in Karnataka, south India. Sexually Transmitted Infections, [s. l.], v. 86, n. 2, p. 131-135, 2010. ).
Uma pesquisa no Brasil revelou que o segredo da atuação no comércio sexual nos serviços de saúde foi associado a menores chances de utilizar serviços de saúde, não realização do teste de HIV nos últimos 12 meses e falta de oferta de Profilaxia Pós-exposição (PEP) e PrEP para TS. Os achados reiteram que as respostas ao HIV devem envolver o combate ao estigma nos serviços, o reconhecimento do trabalho sexual como legítimo socialmente, o empoderamento comunitário e demais dimensões da vulnerabilidade ao HIV, como coinfecção de outras IST e maior pagamento para práticas sexuais mais arriscadas (Dourado et al, 2019DOURADO, I.; GUIMARÃES, M. D.; DAMACENA, G.; MAGNO, L.; DE SOUZA JÚNIOR, P.; SZWARCWALD, C. Sex work stigma and non-disclosure to health care providers: data from a large RDS study among FSW in Brazil. BMC International Health and Human Rights, London, v. 19, n. 8, 2019. DOI: 10.1186/s12914-019-0193-7
https://doi.org/10.1186/s12914-019-0193-... ).
A menção à promoção da saúde surge ainda em artigos que abordam a violência estrutural e de gênero, bem como a violação ou ameaça aos direitos das TS e seus impactos nas condições de saúde e vulnerabilidade ao HIV. Em Uganda, embora a realização do teste seja referida como indicador da vulnerabilidade ao HIV, um estudo sobre conflitos sociais e armados apontou que a alta vulnerabilidade ao HIV, expressa no número de diagnósticos positivos, decorre da violação de direitos humanos, conflitos, aplicação de práticas punitivas amparadas pelas leis, pelo encarceramento, pelos abusos sexuais, pelo endividamento, pela oferta de sexo desprotegido, entre outros (Goldenberg, Stephenson, Bauermeister, 2018GOLDENBERG, T.; STEPHENSON, R.; BAUERMEISTER, J. Community stigma, internalized homonegativity, enacted stigma, and HIV testing among young men who have sex with men. Journal of Community Psychology, Hoboken, v. 46, n. 4, p. 515-528, 2018. ).
Perspectiva similar é apresentada na pesquisa acerca da regulamentação do trabalho sexual e seus efeitos sobre a saúde sexual das TS em Tijuana, México. A regulamentação aumentou o teste do HIV nesse segmento, mas a proposta tinha um alto custo anual e exigia testes periódicos. Os bares que compravam a permissão do trabalho sexual eram capazes de promover a prevenção do HIV e as mulheres regularizadas atuavam em locais mais “sofisticados”, conseguindo pagar a licença; contudo, aquelas socialmente mais vulneráveis não conseguiam. Para garantir a promoção da saúde – como os direitos humanos e trabalhista –, o estudo recomenda a revisão do referido regulamento e a adoção de abordagens adicionais e não regulatórias, baseadas no empoderamento e na organização de grupo, combinando campanhas e políticas governamentais sobre sexo seguro e cuidados holísticos de saúde sexual e de HIV (Gaines et al, 2013GAINES, T. L.; RUSCH, M. L.; BROUWER, K. C. et al. Venue-level correlates of female sex worker registration status: A multilevel analysis of bars in Tijuana, Mexico. Global Public Health, Abingdon, v. 8, n. 4, p. 405-416, 2013 ).
Frente às implicações de questões estruturais, como violência, assédio e prisão por parte da polícia ou clientes por risco ao HIV, investigação na Índia indagou se intervenções comunitárias para TS poderiam mitigar esse impacto. No âmbito da avaliação do programa Avahan foi constatada a redução significativa de fatores associadas à infecção pelo HIV entre TS – como estupros, prisão e espancamento por clientes, policiais, cafetões, estranhos, desordeiros (Beattie et al, 2015). Concluiu-se que programas abrangentes de prevenção ao HIV, em larga escala, reduzem a violência, as prisões e a infecção por HIV/demais IST. O diferencial dessas abordagens é a ênfase nos direitos humanos, incluindo o debate sobre violência, discriminação e exclusão social para promover acesso à prevenção, ao tratamento e aos cuidados de HIV e outras IST.
Embora apoiada em uma concepção mais ampla de saúde, a lógica da instrumentalização da promoção da saúde para fins de prevenção também foi encontrada na pesquisa com TS. Em estudo na África do Sul, TS relataram dificuldades de acesso aos serviços, decorrentes do estigma do trabalho sexual. Organizações não governamentais de saúde e advocacy forneceram serviços de saúde sexual e reprodutiva, por meio de instalações móveis, educação de pares e distribuição de materiais educativos, que promoveram confiança entre elas e os profissionais. O trabalho resultou na normalização do teste de HIV e na busca desses serviços (Makhakhe et al, 2019MAKHAKHE, N.; MEYER-WEITZ, A.; STRUTHERS, H.; MCINTYRE, J. The role of health and advocacy organisations in assisting female sex workers to gain access to health care in South Africa. BMC Health Services Research, London, v. 19, n. 1, p. 746, 2019. ). Nota-se que a mobilização comunitária e o empoderamento, caros para a agenda da promoção da saúde, foram de certa forma instrumentalizados para objetivos de prevenção.
Demais estudos envolvendo grupos específicos e populações em geral
Nesses artigos foi identificado que a concepção de promoção da saúde se reflete nos desenhos metodológicos e nas análises acerca dos processos de saúde e doença e os direitos humanos das populações. Seguem alguns exemplos.
Diante das condições de vida de HSH e TS em Burkina Faso e Togo, foram avaliadas políticas e programas de saúde que resultavam em assédio e até prisão das populações chave; além do pouco apoio governamental no enfretamento do estigma e treinamento de profissionais de saúde. Em Burkina Faso, a legislação permite o teste sem aconselhamento e consentimento, em função do plano geral de saúde para triagem de pessoas doentes. Em Togo, qualquer pessoa com IST estava sujeita a supervisão médica obrigatória, o que gerou a recusa dos serviços de HIV entre jovens HSH e TS. Apesar de não empregar a expressão “promoção da saúde”, o artigo desenvolve uma reflexão sobre fatores sociais e estruturais que reforçam a discriminação e sua incidência no âmbito programático e no autocuidado (Duvall et al, 2015DUVALL, S.; IRANI, L.; COMPAORÉ, C.; et al. Assessment of Policy and Access to HIV Prevention, Care, and Treatment Services for Men Who Have Sex With Men and for Sex Workers in Burkina Faso and Togo. JAIDS Journal of Acquired Immune Deficiency Syndromes, [s. l.], v. 68, p. S189–S197, 2015 ).
Considerando a maior prevalência de HIV entre MTT e homens latinos e da maior propensão ao diagnóstico tardio, estudo nos EUA identificou que após migração há diminuição das redes sociais e que o estigma e a dispersão geográfica limitam a reconstrução de novas redes. Argumenta-se que educadores de pares podem facilitar os processos de imigração e reassentamento. Conclui-se que a redução do estigma do HIV em nível comunitário e abordagens criativas para promover o teste de HIV, incluindo as redes sociais, influenciam positivamente a normalização da testagem (Barrington et al, 2018BARRINGTON, C; GANDHI, A; GILL, A; VILLA TORRES, L; BRIETZKE, MP; HIGHTOW-WEIDMAN, L. Social networks, migration, and HIV testing among Latinos in a new immigrant destination: Insights from a qualitative study. Global Public Health, Abingdon, v. 13, n. 10, p. 1507-1519, 2018. ).
Outro trabalho, centrado na revisão dos programas educativos em Singapura, identificou entre seus principais efeitos a redução de encontros com TS entre adultos e o aumento no uso de preservativos em bordéis. Entretanto, ressalta-se a baixa conscientização das estratégias preventivas do HIV, o forte estigma da aids, os baixos índices de teste de HIV e o aumento do sexo casual desprotegido entre heterossexuais no país. Os programas de promoção do teste voluntário precoce são dificultados pelo acesso precário, alto custo e estigma em relação às PVHA. Propõe-se explorar novas formas de promover o preservativo, reiterando seus efeitos no aumento do prazer, em vez da abordagem tradicional orientada para a doença (Wong et al, 2012WONG, M.; SEN, P.; WONG CM Et al. Human Immunodeficiency Virus (HIV) Prevention Education in Singapore: Challenges for the Future. Annals of the Academy of Medicine, Singapore, v. 41, n. 12, p. 602-609, 2012. ).
A apropriação dos fundamentos da promoção da saúde foi identificada na análise dos processos sociais de marginalização de pessoas LGBT na Suazilândia, capazes de potencializar a vulnerabilidade ao HIV e limitar o envolvimento dessas populações nos serviços de prevenção. O país apresenta a maior taxa de incidência de HIV em termos globais, além de leis que criminalizam práticas consensuais entre pessoas do mesmo sexo e trans. Os resultados assinalaram processos primários de marginalização, reação e resistência nos domínios estrutural, comunitário e interno. A marginalização estrutural (criminalização, discriminação em saúde, violência contra LGBT) foi enfrentada por redes de base, criadas para acessar e compartilhar recursos de prevenção do HIV com pessoas LGBT, e o Ministério da Saúde; inclusive para acessar o teste de HIV. A marginalização interna, derivada do auto estigma e práticas sexuais de risco, embora arraigada, foi encarada a partir de estratégias de autoaceitação e apoio social, favorecendo o uso dos serviços de saúde. Os achados são úteis para informar a implementação de estratégias comunitárias e de direitos, capazes de melhorar a cobertura de serviços para pessoas LGBT, visando a prevenção do HIV e estratégias de cascata de cuidados (Logie et al, 2017LOGIE, C.; LACOMBE-DUNCAN, A.; BRIEN, N. et al. Barriers and facilitators to HIV testing among young men who have sex with men and transgender women in Kingston, Jamaica: A qualitative study. Journal of the International AIDS Society, Hoboken, v. 20, n. 1, 2017. ).
Foram incluídos artigos que não abordavam as três populações contempladas na revisão, mas que referiam o tema da promoção da saúde. Um deles trata da relação desse tema com a religião, assinalando que as crenças e valores islâmicos poderiam ser alinhados aos valores do trabalho social para a promoção do HIV e para redução de risco em ambientes comunitários, religiosos e de saúde; com desenvolvimento de políticas sociais de saúde para as populações-chave, muçulmanas ou não. Destaca-se a influência dos líderes muçulmanos para a introdução de noções de aceitação e promoção da saúde em relação a minorias sexuais, podendo promover a tolerância da população LGBTQIA+ e influenciar o desenvolvimento de políticas de prevenção do HIV (Shaw et al, 2017SHAW, S.; SAIFI, R.; LIM, S.; SAIFUDDEEN, S.; KAMARULZAMAN, A. Islam and HIV related social services in Malaysia. Journal of Religion & Spirituality in Social Work: Social Thought, Abingdon, v. 36. n. 1-2, p. 133-145, 2017. ).
Outro estudo focaliza o campo da comunicação a partir da análise dos conteúdos de promoção da saúde em postagens nos perfis de Facebook dos Ministérios de Saúde do Brasil e do Peru, argumentado que as mídias sociais contribuem para melhorar a compreensão e engajamento de temas como a aids. Foram identificadas mensagens com abordagem individual (busca modificar e influenciar estilos de vida, crenças e comportamentos de risco); com conteúdo estrutural (determinantes sociais da saúde, vulnerabilidade à aids, gênero, estigma) e mensagens híbridas. O conteúdo da promoção da saúde nas campanhas analisadas intercala mensagens focadas nos comportamentos individuais ou ações institucionais, com pouca articulação com as desigualdades sociais. A transmissão de informações sobre saúde primou mais por sua potencialidade de instrução e convencimento e não de esclarecimento e diálogo com a população (Cadaxa; Sousa; Mendonça, 2015CADAXA, A.; SOUSA, M. F.; MENDONÇA, A. V. Health promoting messages posted in Facebook by the health ministries of Brazil and Peru during an AIDS awareness campaign. Revista Panamericana de Salud Pública, São Paulo, v. 38, n. 6, p. 457-463, 2015. ).
Considerações finais
O balanço crítico da literatura confirma a tendência de biomedicalização no modo de conceber e operacionalizar os programas e ações de testagem de HIV. Tal afirmação tem por base a proporção majoritária de artigos orientados por essa política global e uma menor quantidade de pesquisas e projetos de intervenção apoiados no paradigma da testagem e aconselhamento voluntário. A revisão permitiu, ainda, identificar que o emprego da noção de promoção da saúde nos artigos nem sempre se diferencia da noção de prevenção e que existe uma variação quanto a seu uso, segundo as três populações investigadas.
Nos trabalhos com gays/outros HSH, as questões mais afins à agenda da promoção da saúde foram identificadas em reflexões ou descrições sobre a vulnerabilidade social desse segmento, notadamente no tocante à aceitação da orientação sexual, ao vínculo comunitário e à diminuição do estigma. Tais temas são evocados para informar os alcances e limitações das estratégias de prevenção ou a necessidade de serviços e intervenções específicas para essa população. Particularmente entre HSH negros e latinos, os estudos tendem a argumentar sobre a necessidade de serviços de prevenção culturalmente adaptados, capazes de facilitar o acesso aos serviços de HIV, proteção ao estigma e discriminação, empoderamento e inclusão de pares para a educação em saúde. No entanto, as intervenções educativas se restringem à modificação comportamental para adesão às estratégias biomédicas preventivas. Essa tendência revela uma subordinação da noção de promoção da saúde às estratégias de testagem do HIV e, consequentemente, uma indiferenciação entre o que seria da ordem da prevenção e o que seria da promoção da saúde.
Nas pesquisas que abordavam as MTT, foi mais comum encontrar uma perspectiva ampliada de saúde, especialmente nos argumentos em torno da atuação dos grupos de pares para adoção de práticas de proteção ao HIV, realização de teste e apoio social. A promoção da saúde está na base dos estudos que demonstram a articulação entre a gestão da afirmação de gênero e os cuidados com comportamentos saudáveis, incluindo os relacionados ao HIV. Ocorrendo da mesma forma em artigos acerca do respeito do uso do nome social e pronome de gênero correto para melhorar o acesso aos serviços de saúde e outras formas de discriminação que prejudicavam a relação com profissionais de saúde e a comunidade. Todavia, há estudos que indicam uma instrumentalização do trabalho de pares, visando prioritariamente a criação de condições para facilitar o acesso ao teste de HIV, apontando para uma diferenciação menos nítida entre promoção e prevenção.
Na literatura sobre TS, a aproximação com agenda temática da promoção da saúde se refletia nas discussões sobre empoderamento e atuação de pares como estratégias chave para reduzir a vulnerabilidade social ao HIV. Tais trabalhos tratam mais frequentemente os fatores socioestruturais que condicionam a saúde e proteção ao HIV. São apresentadas como evidências da vulnerabilidade ao HIV nessa população a violência estrutural e de gênero, as leis discriminatórias e repressivas, a ausência de políticas de proteção e outras violações de direitos. Entretanto, nota-se em algumas pesquisas uma ambiguidade entre prevenção e promoção, a exemplo dos estudos que descrevem o emprego de agentes comunitários de saúde em programas de encaminhamento para a testagem do HIV, ao mesmo tempo em que se buscava promover o empoderamento das MTT.
Em suma, a tendência de biomedicalização da resposta ao HIV, que trata os problemas e soluções para a testagem com uma tônica mais individual, é mais recorrente nos trabalhos com gays/HSH. Segundo esse enfoque, as ações educativas e de mudança comportamental, entendidas como de promoção, se apresentam como auxiliares para o sucesso das estratégias de prevenção e testagem. Por outro lado, a literatura sobre TS e MTT revela, majoritariamente, uma agenda mais ampla de debates e reflexões sobre saúde, nas quais as perspectivas sobre prevenção e promoção da saúde são integradas e o teste não assume centralidade.
Cabe destacar outro diferencial, relativo ao maior volume de estudos com HSH quando comparado às pesquisas com MTT e TS. Esse aspecto foi bastante evidenciado na seleção inicial da revisão (428 artigos) e em revisões anteriores com as três populações, uma sobre ações e formas de captação para o teste de HIV (Mora; Brigeiro; Monteiro, 2018MORA, C; BRIGEIRO, M; MONTEIRO, S. A testagem do HIV entre “HSH”: tecnologias de prevenção, moralidade sexual e autovigilância sorológica. Physis, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, 2018. DOI: 10.1590/S0103-73312018280204
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201828... ) e a outra acerca de PEP e PReP (Murray; Brigeiro; Monteiro, 2022MURRAY, L.; BRIGEIRO, M.; MONTEIRO, S. A Retreat from Human Rights? A Reflection on the Place of Sex Workers in Contemporary HIV Prevention Studies and Strategies. Global Public Health, Abingdon, v. 17, n. 11, p. 3160-3174, 2022. DOI: 10.1080/17441692.2021.1896762
https://doi.org/10.1080/17441692.2021.18... ).
Uma hipótese para as variações entre os três segmentos tem por base o fato de parcela da população de HSH apresentar maior capital econômico e simbólico, que pode resultar na maior pressão por ações e políticas de saúde. Entre as MTT e TS, mesmo havendo conquistas no campo dos direitos, os processos de marginalização e exclusão social parecem mais expressivos. De todo modo, a maior proporção de estudos envolvendo testagem e HSH evidencia uma maior problematização de sua exposição ao HIV, que certamente se reflete em mais recursos para pesquisa e intervenção com essa população, comparativamente às MTT e TS. Outra hipótese complementar diz respeito à maior adequação dos HSH às abordagens preventivas biomédicas, pensadas para indivíduos autônomos e responsáveis pela gestão dos riscos e da sexualidade (Oscar, 2019OSCAR, R. Pílulas diárias anti-HIV: a construção de uma narrativa antropológica sobre a PrEP. 2019. 189 f. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2019. ).
A interpretação desta revisão precisa considerar ainda as diferentes formas de conceber a relação entre as estratégias biomédicas preventivas, gênero e o exercício da sexualidade por parte dos pesquisadores, profissionais de saúde e sujeitos. Salienta-se que essas interpretações são preliminares e necessitam de aprofundamento em estudos futuros.
Importa ressaltar que as evidências descritas apontam que a hegemonia biomédica nas atuais respostas ao HIV tem implicado em um distanciamento das orientações originais do movimento da promoção da saúde, principalmente entre os gays/HSH. Tal constatação nos remete à discussão das relações entre produção científica e definição de políticas de saúde promovida por Johns, Bayer e Fairchild ( 2016JOHNS, D. M.; BAYER, R.; FAIRCHILD, A. L. Evidence and the Politics of Deimplementation: The Rise and Decline of the “counseling and Testing” Paradigm for HIV Prevention at the US Centers for Disease Control and Prevention. Milbank Quarterly, Hoboken, v. 94, n. 1, p. 126-162, 2016. DOI: 10.1111/1468-0009.12183
https://doi.org/10.1111/1468-0009.12183... ) acerca das origens, desenvolvimento e declínio do paradigma do ‘aconselhamento e testagem’ no Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) americano. Com base nas entrevistas com informantes-chaves e na análise da produção acadêmica e documental, constatou-se que as políticas baseadas em evidências apenas posteriormente começaram a ganhar importância na tomada de decisões dos especialistas das agências de saúde pública, responsáveis pelas ações frente a doenças emergentes. Segundo os achados, as alterações nas políticas de saúde pública não são orientadas somente por evidências de pesquisa, experimentais ou epidemiológicas, mas por fatores sociais e políticos que guiam a interpretação dos dados de pesquisas e as decisões.
O balanço crítico da literatura apresentada atesta que o processo de biomedicalização das respostas ao HIV/Aids vai além da ampliação do domínio da racionalidade médica nas ações de cuidado. Implica uma reconfiguração de práticas e sentidos do que vem a ser prevenção e promoção da saúde, constatação a ser considerada criticamente na formulação das políticas de saúde pública.
Referências
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» https://doi.org/10.2105/AJPH.2015.302614 - AYRES, J. R; PAIVA, V; FRANÇA JÚNIOR, I. Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao Quadro da Vulnerabilidade e Direitos Humanos. In: PAIVA, V. et al (Org). Vulnerabilidade e Direitos Humanos Prevenção e Promoção da Saúde. Livro I. Curitiba: Juruá, 2012. p. 71-94.
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- 1Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf . Acesso em: 19 jun. 2024.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Out 2024 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
17 Maio 2024 - Aceito
28 Maio 2024