Covid-19 e tempos de crise: entre o risco e o cuidado

Kátia Lerner Rachel Aisengart Sobre os autores

Resumo

Este artigo reflete sobre as noções de risco e cuidado em contextos de crise, tendo em vista a experiência social da covid-19. Trata-se de compreender como as instituições e os sujeitos que protagonizaram o debate público lidaram com a noção de perigo. O foco do artigo incide sobre os seguintes eixos de reflexão: o discurso midiático, os pronunciamentos do então presidente Bolsonaro, o posicionamento de profissionais de saúde e a perspectiva de sujeitos no cotidiano dos cuidados e do adoecimento. A análise de material jornalístico, pronunciamentos de autoridades governamentais e trabalhos científicos sobre os dois primeiros anos da pandemia revelou a polissemia dessas concepções. Observa-se uma tensão em torno da noção de gravidade, uma vez que a pandemia tanto era vista como evento ordinário quanto excepcional; e o cuidado formulado como dimensão individual e, também, coletiva; na qual os cuidadores estavam marcados pela vulnerabilidade, angústia e exaustão. A experiência pandêmica nesse contexto se deu sob a égide do desamparo estatal e institucional, diante de condições políticas marcadas pelo recrudescimento da extrema direita e o governo Bolsonaro.

Palavras chave:
pandemia; risco; cuidado; crise

Introdução

No horizonte dos diferentes processos de adoecimento – agudos ou crônicos –, dois conceitos são centrais: risco e cuidado. Eles adquirem especial densidade quando pensados em contextos de situações críticas – entendidas como qualidade da realidade. Essas situações são construtos históricos e sociais também referidas a forças desencadeadoras de processos fora do controle, e que impõem limites que condicionam ideias, decisões e ações. Nelas emergem distintas concepções de crise, calamidade, catástrofe ou outros termos – signos de destruição, danos, sofrimento, aflição e morte (Visacovsky, 2011VISACOVSKY, S. E. Estados Críticos: la experiencia social de la calamidad. La Plata, Buenos Aires: Al Margen, 2011. ).

Com o surgimento no final de 2019 do novo coronavírus, a pandemia de covid-19 significou um evento crítico de grande magnitude, uma experiência globalizante comum, quando todos os países viviam sob certo nível de domínio das circunstâncias, com uma medicina de controle. A crise sanitária interrompeu a previsibilidade do fluxo de vida, acarretando de imediato a emergência de distintos sentimentos, como angústia, medos, incertezas, inseguranças e constrangimento (Rezende, 2020REZENDE, C. B. Reflexões sobre o constrangimento e o medo na pandemia. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, p. 1-15, 2020. ).

As catástrofes ambientais, os desastres e/ou epidemias de tempos anteriores, como a gripe espanhola, HIV/Aids, Chernobyl, tsunamis, entre outros, foram eventos que não alcançaram um número tão significativo de países e pessoas afetadas. Em contrapartida, a covid-19 envolveu um número expressivo de casos e mortes e, também, a sobreposição de enfermidades resultantes de macroprocessos econômicos e políticos, com interações não apenas entre doenças (em nível individual), mas também entre epidemias (em nível populacional), diante do contexto de desigualdades sociais, raciais, ambientais, políticas e econômicas vigentes, em especial no Brasil. As interações de comorbidades entre si (diabetes, hipertensão e covid-19) e com as condições sociais e biológicas prejudiciais configuraram o que certos autores denominam de sindemia (Almeida-Filho, 2021 ALMEIDA-FILHO, N. Sindemia, infodemia, pandemia de COVID-19: Hacia una pandemiología de enfermedades emergentes. Salud Colectiva, [s. l.], v. 17 n. 29, e3748, 2021. DOI: https://doi.org/10.18294/sc.2021.3748 .
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), ocasionando agravamento do sofrimento social na saúde individual e coletiva. Acrescente-se o dado de que esse cenário sanitário foi marcado por uma nova configuração comunicacional, com a produção, circulação e consumo de informações em volume, velocidade e alcance inéditos, caracterizando o que a Organização das Nações Unidas (ONU) denominou de infodemia , uma pandemia de desinformação que acarretou importantes desafios na gestão e enfrentamento da crise vivida (Almeida-Filho, 2021 ALMEIDA-FILHO, N. Sindemia, infodemia, pandemia de COVID-19: Hacia una pandemiología de enfermedades emergentes. Salud Colectiva, [s. l.], v. 17 n. 29, e3748, 2021. DOI: https://doi.org/10.18294/sc.2021.3748 .
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).

As catástrofes geralmente são acompanhadas por destruição, ameaças à existência, insegurança e aflição. Nesse sentido, a pandemia foi um evento crítico, fora do controle e não planejado, condição que demandou forças na busca por equilíbrio e pela possibilidade de futuro (Visacovsky, 2011VISACOVSKY, S. E. Estados Críticos: la experiencia social de la calamidad. La Plata, Buenos Aires: Al Margen, 2011. , p. 16). No Brasil, essas forças foram operadas por um conjunto heterogêneo de atores, a começar pelos organismos internacionais, como a ONU e seus órgãos de saúde, entre eles a Organização Mundial de Saúde (OMS); o governo em diferentes níveis – federal, estadual e municipal –, com destaque para o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais e municipais; e, ainda, aqueles que estavam na linha de frente do enfrentamento à crise: os profissionais de saúde. Os meios de comunicação também se destacaram, ao dar visibilidade à sua ocorrência, divulgando dados epidemiológicos, formas de prevenção e enfrentamento.

Este artigo tem como objetivo refletir sobre o imbricamento entre as noções de risco e cuidado em contextos de crise, tomando como referência o contexto da covid-19 no Brasil. Interessa-nos em especial compreender como as instituições e os sujeitos que protagonizaram o debate público lidaram com a noção de perigo. Para tal, colocamos em foco os seguintes eixos de reflexão: o discurso midiático, sobretudo o jornalismo corporativo de referência, por sua importância no contexto pandêmico; o discurso governamental, pela relevância dos pronunciamentos do então presidente Bolsonaro, na construção da ideia de segurança/insegurança diante do novo vírus; dos profissionais de saúde, por sua posição estratégica no âmbito do cuidado e da gestão do risco na pandemia; e a perspectiva de sujeitos em sua vivência cotidiana da doença. Esses eixos serão explorados menos por suas práticas concretas e mais pela dimensão simbólica que aportaram, pelo que deram a ver em termos das concepções de risco e cuidado que engendravam.

Para desenvolver essa investigação, tomamos como marco temporal os dois primeiros anos da pandemia, que contemplaram a emergência do vírus, o período de distanciamento social mais intenso até o relativo controle, pela disponibilização da vacina. Nosso objeto empírico foi um jornal de referência nacional, O Globo , por sua abrangência, importância social e política como veículo de comunicação, a partir dos textos publicados no site do jornal, coletados por meio da ferramenta de busca da Plataforma de Ciência de Dados Aplicada à Saúde/Icict/Fiocruz. Analisamos, também, alguns dos pronunciamentos do então presidente Bolsonaro, acessados por matérias jornalísticas n’ O Globo ou em suas lives ; consultamos, ainda, matérias diversas publicadas na grande mídia, que abordaram a experiência dos profissionais de saúde e de indivíduos nesse período. Esse corpus permitiu acessar a perspectiva de alguns dos principais atores que estiveram à frente da gestão da pandemia, e que protagonizaram o debate público nos temas privilegiados 11Kátia Lerner agradece ao CNPq o apoio pela Bolsa de Produtividade (PQ2) e à CAPES o apoio dado à pesquisa “Obstáculos à comunicação de risco na pandemia de COVID-19: infodemia, desinformação, algoritmos e desconfiança em contextos de polarização política e de crise dos sistemas peritos”. .

Sobre risco e cuidado

Associado à ideia de perigo, risco constitui uma noção moderna e, segundo alguns autores, um dos aspectos fundantes da sensibilidade contemporânea. Embora as sociedades tenham concepções próprias sobre o que seria “perigoso”/“não perigoso”, “seguro”/“inseguro”, sua emergência na Modernidade enfatizou uma oposição às ideias de fatalidade e destino. Trata-se de uma nova atitude em relação ao futuro, não mais como “espelho do passado” ou domínio de oráculos, mas como condição passível de colonização, com o fortalecimento da crença na ação humana e na noção de controle . Acionada em diferentes dimensões da vida social, como na ciência, no direito, na saúde e na economia, a categoria risco também se faz presente no vocabulário cotidiano das pessoas comuns (Lupton, 1999LUPTON, D. Risk. London: Routledge, 1999. ).

Um dos principais autores a teorizar sobre o risco foi o sociólogo Ulrich Beck. Ele aponta uma ruptura no interior da modernidade, em que a sociedade industrial clássica estaria dando lugar ao que denomina de “sociedade (industrial) de risco”. Essa se caracterizaria pela progressiva consciência dos danos gerados por seu próprio desenvolvimento, carreando a crítica à ciência, à tecnologia, ao progresso e aos novos movimentos sociais, caracterizando uma modernidade reflexiva (Beck, 2016BECK, U. Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2016. ). Os padrões de globalização resultantes da modernização tardia teriam tornado os riscos cada vez mais difíceis de calcular e controlar, cruzando fronteiras nacionais e socioeconômicas. Ao dar centralidade à questão ambiental, o autor argumenta que os riscos contemporâneos seriam caracterizados pelo fato de serem fabricados (pela ciência, pelo mercado e pelo governo), de serem invisíveis aos sentidos humanos (como no caso da radioatividade, toxinas e poluentes de alimentos, água e ar) e não terem fronteiras espaciais e temporais. Ao serem vividos de forma coletiva, afetariam a todos, inclusive aqueles que os geraram ou lucraram com ele.

A obra de Beck foi importante na discussão sociológica sobre a modernidade, e também foi objeto de inúmeras críticas, como seu caráter eurocêntrico e evolucionista, cujo modelo de desenvolvimento não levava em consideração as estruturas imperiais que conferiram proporção mundial à modernização ou que distribuíam de modo desigual os riscos globais. O caso da pandemia é exemplar, ao revelar um evento que acometeu o mundo todo, cuja capacidade de reação e enfrentamento ocorreu de maneira desigual, conforme observado no momento de produção e distribuição de insumos para testes, máscaras e vacinas contra a covid-19. Outro ponto importante de crítica foi o fato de ele ignorar “a materialidade local do risco, as interpretações culturalmente localizadas dos mesmos e o diagnóstico imanente de potenciais de emancipação” (Bosco; Ferreira, 2016BOSCO, E.; FERREIRA, L. Sociedade mundial de risco: teoria, críticas e desafios. Sociologias, Porto Alegre, v. 18, n. 42, p. 232-264, 2016. , p. 249).

Beck e outros autores sinalizam que a ideia do risco como forma de evitação de eventos indesejados está presente em muitas dimensões da vida social. Entre elas, destaca-se o campo da saúde, especialmente após a metade do século XX, quando a ideia de doença foi ressignificada pela epidemiologia por meio da noção de fatores de risco. Nesse momento, tal concepção tornou-se estratégica na avaliação de perigo nas vidas cotidianas.

Da concepção moderna que indexava a manifestação de um sintoma à busca pela lesão e o diagnóstico, passamos a conviver com um novo regime que investigava a alteração anatômica ou fisiológica anterior ao sintoma, deslocando o foco da doença já constituída para sua provável manifestação futura (Vaz; Portugal, 2012VAZ, P.; PORTUGAL, D. “A nova ‘boa-nova’: marketing de medicamentos e jornalismo científico nas páginas da revista brasileira Veja. Comunicação, Mídia e Consumo. São Paulo, v. 9, n. 26 p. 37-60, 2012. ). Pessoas consideradas sãs passaram a agir preventivamente, incorporando práticas relegadas aos classificados como enfermos/as; critérios de doença se tornaram mais estritos, ampliando os/as que poderiam ser categorizados/as como doentes; ou, ainda, os/as já doentes se tornaram objeto de intenso escrutínio, para evitar agravamento da condição. A reconfiguração das fronteiras de “normal” e “patológico” acarretou a crescente indissociação entre saúde, doença e cura, impactando os modos como as pessoas lidam com seus corpos, profissionais configuram suas práticas terapêuticas e as instituições delineiam suas políticas (Aronowitz, 2009ARONOWITZ, R. The Converged Experience of Risk and Disease. The Milbank Quarterly, [s. l.], v. 87, n. 2, p. 417-442, 2009. ).

A noção de risco está, desse modo, estreitamente vinculada à ideia de cuidado , pois a percepção de perigo engendrará, potencialmente, ações direcionadas à prevenção e enfrentamento do infortúnio, voltadas para “manter, continuar e reparar nosso ‘mundo’, para que possamos viver nele da melhor maneira possível” (Tronto, 2007TRONTO, J. Assistência democrática e democracias assistenciais. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 285-308, 2007. , p. 287). O cuidar envolve uma pluralidade de práticas, conta necessariamente com sujeitos e instituições sociais, além de sistemas classificatórios que definem os elementos e sujeitos reconhecidos como merecedores de atenção, pela classificação como vulneráveis ou em risco, e redes de relações, arranjos, circuitos e regimes 22 Utilizamos o conceito de ‘arranjos de cuidado’ nos termos de Natalia Fazzioni ( 2018 ): as “relações estabelecidas em torno da pessoa com um corpo adoecido e vulnerável, com o objetivo de mantê-lo, repará-lo e gerir suas sensações” (Soneghet, 2022, p. 235). Fazzioni ( 2018 , p. 145) se refere ao termo em alusão ao conceito de ‘arranjo familiar’, que diz respeito ao que se ‘organiza’ de determinada maneira, no sentido de resolver, ainda que improvisadamente, um problema cotidiano. A ideia de ‘arranjos de cuidado’ não se restringe à organização formal estabelecida com o Estado e o mercado, mas engloba-os. Entendemos como regimes de cuidado “o modo como os estados de bem-estar social entendem, regulam e direcionam as suas políticas públicas no que diz respeito aos cuidados” (Groisman, 2015 , p. 61). a partir dos quais essas práticas se efetivam (Groisman, 2015GROISMAN, D. O cuidado enquanto trabalho: envelhecimento, dependência e políticas para o bem-estar no Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. ; Fazzioni, 2018FAZZIONI, N. Nascer e Morrer no Complexo do Alemão: políticas de saúde e arranjos de cuidado. 2018. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. ). No campo da saúde, o cuidado pode ser analisado segundo três perspectivas principais: como categoria ontológica (entendimento das práticas de cuidado); como categoria genealógica (cuidado de si) e como categoria crítica (como principal modo de interação prática na saúde) (Ayres, 2009AYRES, J. R. C. M. Cuidado: trabalho e interação nas práticas de saúde. Rio de Janeiro: CEPESC-IME/UFRJ/ABRASCO, 2009. ). Na prática, a mesma atividade concreta de cuidar pode assumir várias formas de significação: como profissão, obrigação ou como ajuda (Guimarães, 2024 GUIMARAES, N. A. A “crise do cuidado” e os cuidados na crise: refletindo a partir da experiência brasileira. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, e230050, 2024. DOI: https://doi.org/10.1590/2238-38752024V1418
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). Ao assumir que o cuidado é uma constante social, as questões concernentes a quem cuida de quem, em que condições, quem é elegível (ou não) para o cuidado tornam-se constitutivas da ordem social. Nesse sentido, a presença ou ausência de cuidado é especialmente visível em contexto de crises, seja por fatores externos (guerras, crises econômicas ou sanitárias) ou internos (doenças, perdas ou outros). Em situações de crise, a assimetria entre quem presta cuidado e quem o recebe se torna especialmente exaltada (Guimarães, 2024 GUIMARAES, N. A. A “crise do cuidado” e os cuidados na crise: refletindo a partir da experiência brasileira. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, e230050, 2024. DOI: https://doi.org/10.1590/2238-38752024V1418
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, p. 7) 33O ato de prover cuidado está associado a atributos como capacidade, potência ou poder social, enquanto o de receber tende a denotar vulnerabilidade e necessidade, ao mesmo tempo em que significa ser merecedor de inclusão e proteção. .

Cuidado e risco na pandemia: concepções em embate

Embora os riscos – e cuidados – estejam imbricados aos contextos sociais, econômicos, ambientais, políticos e históricos que os engendram, na produção concreta de situações prejudiciais aos indivíduos e coletividades (pobreza, fome, contaminação, desigualdade social), eles também possuem uma dimensão mais abstrata, ligada a significados e percepções. Neves aponta que a noção de risco é sempre polissêmica e, estando no domínio das matrizes culturais, admite “atribuições de significados diferentes quando mobilizados em sistemas simbólicos distintos” (Neves, 2008NEVES, E. M. Antropologia e ciência: uma etnografia do fazer científico na era do risco. São Luís: EDUFMA, 2008. , p. 33). A avaliação de uma situação como negativa e as opções por determinadas formas de enfrentamento e cuidado estão, assim, ligadas ao sistema de valores dos grupos sociais nos quais surgiram e constituem elementos de classificação e ordenamento da vida social, engendrando determinadas percepções e a prescrição de certas ações (Neves, 2008NEVES, E. M. Antropologia e ciência: uma etnografia do fazer científico na era do risco. São Luís: EDUFMA, 2008. , p. 34). Acompanhar a produção discursiva do risco e do cuidado, levando em conta seus contextos, é assim uma via de acesso ao mundo social no qual eles foram produzidos, na compreensão de seus valores e posições diante da catástrofe.

A eclosão da pandemia ocorreu durante o governo Bolsonaro, que chegou ao poder após intensa contraposição aos governos petistas, envolvendo querelas jurídicas e morais, que ocasionaram prisão de integrantes do Partido dos Trabalhadores e do presidente Lula. A inesperada ascensão de Bolsonaro, que atuou como deputado federal de 1991 a 2019 ( https://www.camara.leg.br/deputados/74847/biografia ), sem grande projeção na cena política nacional, contou com a utilização de uma retórica antissistema e representou o fortalecimento da extrema direita no país. De perfil populista, questionou as instituições da democracia representativa e fez uso de dispositivos tecnológicos no contato com a sociedade; afirmou sua recusa à “velha política” (instituições e mediações) e a desconfiança dos meios de comunicação, principalmente os grupos O Globo , Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo .

O então presidente codificou a pandemia e os cuidados segundo sua avaliação da periculosidade da doença. Caracterizada como “pequena crise” ou “gripezinha” (24 de março de 2020) 44 Ver https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/10/bolsonaro-diz-que-questao-do-coronavirus-e-muito-mais-fantasia.ghtml . Acesso em: em 24 mar. 2020. https://www.youtube.com/watch?v=rcxB7DsEAFQ . Acesso em: 15 abr. 2024. , era compreendida enquanto evento ordinário , de risco reconhecido como real, mas de caráter pouco ameaçador. Afinal, quem nunca teve uma gripe? Soma-se o fato de tratar-se de evento sobre o qual a ação humana teria restrita ingerência. O discurso bolsonarista a semantizou como um evento inevitável: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre. É a vida” (29 de março de 2020, grifo nosso). Normalizado, o perigo era deslocado para a economia, e o risco em jogo era o agravamento da pobreza e do desemprego, definindo a priorização da proteção econômica.

Tal perspectiva acarretava determinadas concepções de cuidado. Em um contexto no qual autoridades sanitárias apontavam como principais modos de enfrentamento o uso de máscara e o distanciamento social, com debates sobre o desenvolvimento de vacinas, Bolsonaro apostou na disseminação do contágio, ainda que tensionado por prefeitos, governadores e autoridades sanitárias. Tal postura pode ser aferida pelo incentivo ao não uso da máscara, pela defesa do “isolamento vertical” (somente dos grupos considerados “de risco”, como idosos), incitamento à aglomeração e ao uso do “kit covid” 55Uso de medicamentos sem comprovação científica de eficácia contra o novo coronavírus. O kit era composto basicamente por duas drogas: Ivermectina, utilizada para tratamento de infecções parasitárias, e hidroxicloroquina – para tratamento de malária, ambas com grande probabilidade de efeitos colaterais. Vale referir a adesão ou recusa de profissionais de saúde ao uso e prescrição desse kit em momento inicial da pandemia e, em momento posterior, posicionamento favorável (ou não) à vacinação. . O mesmo ocorreu em relação à vacina; embora com atuação ambígua, pela pressão social em prol da resposta à crise, ao mesmo tempo o governo investiu grandes somas na aquisição do imunizante da AstraZeneca e incitou a resistência à vacina, advertindo que poderia “virar jacaré”, além da recusa do ex-presidente em mostrar seu cartão de vacinação ou ao afirmar que não vacinaria sua filha 66 “Se você virar um jacaré, problema de você. Se você virar super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não vão ter nada a ver com isso” (17 dez. 2020) (Lopes, 2022). Ver também https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2021/12/27/bolsonaro-diz-que-nao-vai-vacinar-filha-de-11-anos-contrariando-indicacoes-da-ciencia.ghtml . .

A postura de Bolsonaro sobre a posição do Estado, no que tange ao cuidado na pandemia, é relevante, pois para ele, “Cada família tem que proteger seus idosos, não jogar isso para o Estado. É colocar os idosos em casa e o resto ir trabalhar, porque os empregos estão sendo destruídos”. A afirmativa, em entrevista ao programa “Brasil Urgente” (Band TV, 2020), explicita um debate sobre o cuidado, denominado por Groisman de familismo : a ideia de atribuição do cuidado à família, desresponsabilizando o Estado (Groisman, 2015GROISMAN, D. O cuidado enquanto trabalho: envelhecimento, dependência e políticas para o bem-estar no Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. ). Revela, também, perspectiva distinta da preponderante na história da saúde pública brasileira, quando o enfrentamento às epidemias esteve ligado a esforços de construção e consolidação de instituições públicas de pesquisa científica e ações sanitárias.

Na contramão do que ocorria com Bolsonaro, a pandemia foi vista na cobertura de forma constante como fenômeno excepcional; o lugar do risco, no entanto, sofreu variações. Nos primeiros momentos de insegurança, alguns elementos despontavam como focos de tensão: a possibilidade de queda da bolsa de valores e o “vírus da China”, nomenclatura reveladora da posição simbólica desse país. A perspectiva convergia com os medos que circulavam nas mídias sociais, diferenciando-se do ocorrido no México, com a epidemia H1N1 ou, até, com a Itália, então importante foco epidemiológico da doença. Gradualmente o risco foi deslocado para a gestão do Governo Federal e, com o avanço dos debates sobre distanciamento social e a crescente oposição do presidente a tais orientações, O Globo recrudesceu suas posições, minando os argumentos do governante, destacando seus críticos, enfatizando os “panelaços”, os comentários em redes sociais de anônimos e políticos, de governantes e mídia internacional que contradiziam sua posição. O uso da cloroquina e de drogas sem eficácia comprovada científica e clinicamente constituiu fonte de tensionamento, com ápice em abril de 2020, com a demissão do então Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta 77O Ministério da Saúde na gestão de Bolsonaro teve sua pasta ocupada por quatro ministros: Luiz Henrique Mandetta (de 2 janeiro de 2019 a 16 de abril de 2020), Nélson Teich (de 17 de abril de 2020 a 15 de maio de 2020), Eduardo Pazuello (de 16 de setembro de 2020 a 23 de março de 2021) e Marcelo Queiroga (23 de março de 2021 a 31 de dezembro de 2022). Essa rotatividade foi motivada por tensões nas concepções de cuidado em jogo, em temas como distanciamento social, cloroquina, testagem em massa, divulgação dos dados epidemiológicos, e a situação crítica de Manaus, ao final da gestão de Pazuello. O anúncio de saída de Mandetta foi cercado de clamor, com a população “batendo panelas” (“panelaço”) como forma de protesto. Essas tensões referiam-se também a vários governadores e prefeitos, gerando outro foco de tensão. .

Assim, o olhar sobre a cobertura noticiosa revela como, desde o início da crise sanitária, a pandemia foi codificada como de extrema gravidade, evento extraordinário, o que pode ser ilustrado pelas transformações nos três primeiros meses da cobertura após decretada emergência sanitária, quando o jornal reconfigurou, de modo inédito, sua estrutura noticiosa. A mudança foi expressa pela dedicação integral da capa ao tema e a criação da seção “Especial Coronavírus”, que paulatinamente incorporou as editorias Mundo, País e Rio.

Outra forma de construir a ideia de “crise” pelo jornal se deu pelo recorrente acionamento de fontes médico-científicas, como epidemiologistas. No entanto, essa gravidade foi construída a partir da centralidade do modelo biomédico, obscurecendo outras abordagens como a das ciências humanas e sociais, cuja problematização de aspectos sociais, econômicos, raciais e políticos poderia lançar luz a elementos dramáticos da experiência da covid-19 em determinados grupos sociais.

É digno de nota, também, o uso diário de infográficos monitorando o número de casos suspeitos, de infectados e de óbitos no país. Lançando mão de números, infográficos e projeções, o jornal fez uma performance retórica, em que sublinhou a autoridade científica biomédica e, consequentemente, a sua própria. Para Giddens ( 1991GIDDENS, A. As consequências da Modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991. ), os sistemas peritos, sistemas de excelência técnica ou de competência profissional que assumiram papel de destaque na modernidade, têm sua efetividade vinculada à confiança dos consumidores, em sua maioria leigos, o que se dá pela “fé” em sua competência para controlar riscos (Giddens, 1991GIDDENS, A. As consequências da Modernidade. São Paulo: Editora Unesp, 1991. ). Tal condição foi expressa mediante o recorrente acionamento de cientistas por esses veículos, que chegaram a incorporá-los em sua estrutura permanente, como na criação no O Globo de uma coluna fixa, A hora da ciência . Essa aliança reforçava o lugar dos jornais como espaço de produção de verdade e, também, da própria ciência. A partir do novo cenário comunicacional na internet, os jornais buscaram se reposicionar como fonte confiável e se empenharam por se afirmar como portadores de autoridade para apontar o risco e, portanto, em um posicionamento vinculado ao cuidado.

Profissionais da saúde: entre o risco e o cuidado

Em todos os países, a situação pandêmica acarretou uma busca de organização dos sistemas de saúde para mitigação da doença. O esforço evidenciou fragilidades e carências das estruturas de atenção à saúde, sobretudo no que tange à proteção e integridade física dos profissionais de saúde. Desde o início da pandemia, o Brasil contou com uma situação especial, pelo negacionismo de seu presidente e das tensões entre Ministério da Saúde e governos estaduais e municipais.

Na pandemia, a vulnerabilidade dos profissionais de saúde ficou cada vez mais visibilizada, seja pela sobrecarga e precarização de trabalho, seja pela dificuldade de acesso a equipamentos de proteção individual (EPI). A consciência dessa condição gerava angústia, acirrada pela peculiaridade dessa atuação, marcada pelo inesperado, com riscos específicos diante da (in)disponibilidade de testagem, escassez de medicamentos e recursos para enfrentamento do vírus, com alta taxa de transmissão, cuja infecção produzia diversos efeitos e um processo do morrer muito sofrido, com restritas possibilidades de alívio (Grossi; Toniol, 2020GROSSI, M. P.; TONIOL, R. (org). Cientistas sociais e o Coronavírus. São Paulo: ANPOCS; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020. 718 p. ; Matiuzo, 2022MATIUZO, A. A pandemia no Emílio Ribas. São Paulo: Contexto, 2022. ).

De março de 2020 a janeiro de 2021 – início da vacinação de profissionais de saúde no Brasil – condutas terapêuticas sofreram alterações, com base em trocas científicas com pesquisadores. A essa instabilidade do conhecimento científico em um momento de incertezas somava-se a circulação de notícias falsas, às quais os médicos e demais profissionais também tinham acesso, propiciando acirramento da insegurança entre equipes de saúde.

No Brasil, o atendimento a infectados por covid-19 contou com diferentes fases: após março de 2020, havia escassos conhecimentos sobre o vírus, suas formas de transmissão, as alterações clínicas por ele produzidas, e sobre meios de controle da infecção. A tônica era surpresa e busca de entendimento, além das medidas de proteção ao contágio. Com a escassez de testes, nesse período foi fundamental o uso e acesso (nem sempre possível) a EPIs, cuja utilização causava grande desconforto e havia preocupação com a possibilidade de contaminação de familiares 88 Disponível em: https://catracalivre.com.br/saude-bem-estar/tecnico-de-enfermagem-que-dormia-no-terraco-e-vacinado/#google_vignette . 20/01/2021. Acesso em: 29 mar. 2024. .

Após a fase inicial, surgem propostas de cuidados preventivos e de condutas tidas como “adequadas” na assistência, elaboradas e divulgadas em meio científico, como o uso de medicamentos anti-inflamatórios (corticoides); de recursos tecnológicos (respirador artificial e ventilação não invasiva); além de mudança da postura dos pacientes no leito (Matiuzo, 2022MATIUZO, A. A pandemia no Emílio Ribas. São Paulo: Contexto, 2022. , p. 156). O trabalho de equipes de saúde sofre transformações, na busca pelo controle dos imponderáveis.

Entrevistas com profissionais de saúde que atuaram no atendimento a infectados por covid-19, seja na chamada “linha de frente” ou em UTIs, estudos 99 Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-analisa-o-impacto-da-pandemia-entre-profissionais-de-saude . sobre stress e burnout de profissionais de saúde ou, ainda, notícias da mídia 1010 Por exemplo: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56937231 . Acesso em: 6 abr. 2024. apontam sobrecarga de trabalho, medo do contágio e da possibilidade de transmissão para familiares, exaustão, sofrimento e sensação de impotência diante da gravidade dos casos e pelo número de óbitos, sobretudo nos dois primeiros anos da pandemia (Matiuzo, 2022MATIUZO, A. A pandemia no Emílio Ribas. São Paulo: Contexto, 2022. ). O Brasil foi um dos países com maior número de óbitos entre enfermeiros e, em geral, entre os profissionais de saúde (Machado et al., 2022).

No período de enfrentamento da pandemia, mensagens ambíguas circulavam sobre a imunização e profissionais de saúde foram tanto considerados “heróis” quanto sofreram críticas e ataques. À semelhança da ideia de transformação dos vacinados em jacarés, por vezes os próprios profissionais de saúde emitiam opiniões contrárias à vacinação, ao uso de máscaras e isolamento social.

O caso ocorrido no Rio de Janeiro, em junho de 2020, é ilustrativo. Trata-se de uma médica que trabalhava em hospital de campanha para infectados por covid-19, e residia ao lado de um terreno no qual eram organizadas festas. Uma noite, vinda de plantões consecutivos, advertiu os frequentadores de um evento sobre os riscos de contaminação, pedindo que saíssem dali. Recebida com risos e ofensas, descontrolou-se e danificou o retrovisor e o para-brisas de um carro. Foi então agredida, arrastada, teve cabelos arrancados e sofreu fraturas. Seus vizinhos notificaram a polícia, que interrompeu a violência. O episódio ilustra duas leituras do contexto: uma negacionista, dos frequentadores do evento; e a outra, concernente à preocupação da médica com o risco de contágio, adoecimento e, até, de morte.

Conforme diversos pesquisadores (Ariès, 2003ÀRIES, P. História da morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003. ; Foucault, 1999FOUCAULT, M. O nascimento do hospital. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999. ; Menezes, 2004MENEZES, R. A. Em busca da boa morte. Antropologia dos Cuidados Paliativos. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2004. ), um longo processo histórico resultou na crescente delegação social dos cuidados de doentes e moribundos à instituição médica e seus profissionais. A atribuição dos encargos dos cuidados a profissionais da saúde passou a ser reconhecida no século XX, sobretudo no Ocidente, com a criação e normatização da Organização Mundial de Saúde, a ser seguida pelos Ministérios da Saúde de cada país.

O sofrimento e indignação da médica agredida podem ser entendidos segundo algumas hipóteses: exaustão física, pelos plantões consecutivos em condições estressantes; sofrimento emocional, pelo acompanhamento de casos graves, com muitas mortes de pacientes em sofrimento. Por fim, com base na ideia de sofrimento moral, resultante da delegação social dos cuidados à figura do médico, aliada à ausência de proteção individual dos frequentadores da festa.

Segundo a OMS, até maio de 2021, ao menos 115 mil profissionais da saúde morreram vítimas da covid-19 em todo o mundo, e é possível que esse número seja maior, devido à subnotificação. No Brasil, essa situação é confirmada, pois não houve uma sistematização dos números de contaminados e de óbitos entre trabalhadores da saúde. Segundo Machado et al ( 2023 MACHADO, M. H; TEIXEIRA, E. G.; FREIRE, N. P.; PEREIRA, E. J.; MINAYO, M. C. S. Óbito de médicos e da equipe de enfermagem por COVID-19 no Brasil: uma abordagem sociológica. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, p. 405-419, 2023. DOI: https://doi.org/10.1590/1413-81232023282.05942022
https://doi.org/10.1590/1413-81232023282...
), poucas são as exceções: os Conselhos Federais de Medicina e de Enfermagem contabilizaram o número de profissionais mortos desde o início da pandemia 1111Este estudo (Machado et al., 2023) destaca algumas constatações sobre mortes causadas pelo novo coronavírus, como: a maioria dos médicos que morreram eram homens com mais de 60 anos; os profissionais da enfermagem com maior número de óbitos foram mulheres pretas e pardas, com idade inferior a 60 anos; quatro estados de duas regiões foram os mais atingidos por perdas de profissionais de saúde: Pará e Amazonas – na região Norte; e Rio de Janeiro e São Paulo – na região Sudeste. Os dados evidenciam as desigualdades presentes entre as distintas categorias profissionais, na área da saúde. . Por questões de política institucional, conjunturalmente, o país não conta com fontes seguras e estáveis, para determinar a dimensão da devastação de contaminados e mortos, na população e entre profissionais de saúde. A escassez e ausência sistemática de dados sobre óbitos de profissionais de saúde em geral durante a pandemia consiste em fato grave, que implica em apagamento da história.

A partir do pressuposto de que as decisões do então presidente do Brasil e de seus ministros da saúde podem ser englobadas em uma biopolítica da morte 1212 No sentido de modelos de regulação e de poder utilizados para regular a morte humana ou criar ‘mundos de morte’, nos quais determinadas pessoas, com características específicas, como cor da pele ou pertencimento a certos grupos étnicos, são configuradas como menos dignas de vida ou, em última instância, como ‘menos humanos’ que outros (Mbembe, 2018 ; Lupton, 2022, p. 63). ou em uma necropolítica (Mbembe, 2018MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. ), a atuação dos profissionais de saúde na pandemia pode ser entendida segundo esse referencial. Assim, por serem eles os responsáveis por decisões concernentes à vida, sofrimento e morte de pacientes, o médico pode ser um instrumento a serviço da necropolítica, ao recusar um atendimento; ao selecionar quem vai ter acesso a oxigênio ou, ainda, ao transmitir mensagens de descrédito sobre a vacina (inserir referência ao vídeo da médica). Por outro lado, no atendimento a infectados por covid-19, equipes de saúde que não contaram com EPIs ou com condições de trabalho adequadas estavam mais vulneráveis à contaminação. Portanto, no desempenho de seu trabalho de assistência a contaminados pelo novo coronavírus, profissionais de saúde atuaram no limiar de uma difícil equação, entre o risco e o cuidado. Tal posicionamento evidencia as tensões entre ser objeto e, ao mesmo tempo, ser instrumento da necropolítica.

Na pandemia, as pressões sobre equipes de saúde contaram com distintas origens: de usuários do sistema de saúde, por atendimento e acesso a recursos terapêuticos e tecnológicos; de proteção a seus familiares dos riscos de contaminação; de atendimento às normas de órgãos governamentais – que, por vezes, conta com paradoxos e tensões –; e, por fim, decorrentes do próprio sofrimento individual, por questões morais associadas a decisões. Em tempos críticos, como na pandemia, os limites entre o autocuidado, o cuidado do outro e a exposição a riscos podem sofrer transformações e apagamentos, sobretudo na vigência de diferentes lógicas, em tensão e paradoxo.

A pandemia configurou um panorama na atenção à saúde que realçou diferenças sociais existentes, como as marcadas desigualdades sociais – no acesso a serviços de saúde e ao cuidado em sentido amplo – e racismo estrutural (Grossi; Toniol, 2020GROSSI, M. P.; TONIOL, R. (org). Cientistas sociais e o Coronavírus. São Paulo: ANPOCS; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020. 718 p. ). A organização da vida social, dos cuidados de si e dos próximos foi objeto de transformações, segundo orientações de distanciamento de familiares, entre outras medidas. A seguir abordamos as formas de cuidado de si e do outro, a partir dos riscos presentes na pandemia.

O cuidado de si e do outro

A emergência da covid-19 reconfigurou a sensação de relativa segurança presente no século XX, marcada pela medicina de controle. Diante dos limites da biomedicina e da imprevisibilidade do coronavírus, as rotinas individuais foram pautadas pela exacerbação dos sentimentos de medo e risco, quando gestos outrora triviais, como tocar, respirar e estar próximo fisicamente foram considerados potencialmente fatais.

A concepção de saúde/doença individualizada, característica da lógica do risco na perspectiva da epidemiologia (preconizando o cuidado individual como forma de prolongamento da vida: rastreamento, boa alimentação, exercícios, medicamentos, entre outras práticas), foi confrontada pelo novo cenário, que colocava em cena a priorização do cuidado coletivo, expresso pela ideia de “achatar a curva”. Era preciso reduzir a circulação do vírus para diminuir o contágio e desonerar o sistema de saúde, explicitando uma tensão entre risco individual e coletivo.

A covid-19 enfatizou a ideia de fragilidade do curso da vida e de um destino comum da humanidade, motivando inicialmente falas que celebraram a emergência da crise como possibilidade de construção de novas utopias. Contudo, o tempo evidenciou a presença de desigualdades que marcavam a situação, pelas diferentes condições materiais de existência, e pelas distintas concepções de risco e cuidado em jogo. A defesa amplamente difundida pela mídia e por autoridades científicas de medidas tidas quase como imperativos sociais e sanitários - “fique em casa!”, “lave as mãos!” - era, para muitos, inviável. Sem água encanada, com escassos recursos materiais, insegurança alimentar, vivendo de arranjos coletivos, tais práticas eram secundarizadas pelas dificuldades de implementação. Para alguns, a covid-19 era “apenas mais uma luta”.

Em cada contexto, a gestão dos riscos e do cuidado assumiu diferentes contornos. Dados de pesquisa do Fórum de Segurança Pública/Datafolha apontam, nesse período, uma aparente redução da violência contra a mulher, pela queda nos registros policiais, acompanhada pelo aumento da violência letal contra esse grupo (2,2%) e das chamadas em canais oficiais de ajuda (Bueno et al., 2021BUENO, S. et al. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública/Datafolha. 3. ed. São Paulo: Datafolha, 2021. ). O documento indica que os números reduzidos apontam dificuldade de denúncia, provavelmente “em função do maior convívio junto ao agressor e da consequente ampliação da manipulação física e psicológica sobre a vítima; e das dificuldades de deslocamento e acesso a instituições e redes de proteção” (Bueno et al., 2021BUENO, S. et al. Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. Relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública/Datafolha. 3. ed. São Paulo: Datafolha, 2021. , p. 8), com funcionamento prejudicado na pandemia. Nesse panorama acrescente-se queda de renda familiar e aumento do consumo de álcool. Em resposta às orientações do “fique em casa”, indaga-se: qual casa? O que é a casa? Ficar com quem? Em quais condições? O cuidado se depara permanentemente com a relação entre público-privado e, consequentemente, é marcado pelo contexto de preocupações políticas (Tronto, 2007TRONTO, J. Assistência democrática e democracias assistenciais. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 285-308, 2007. ).

As formas de classificação do risco e do cuidado podem variar segundo faixa etária e posicionamento geracional. No século XXI, muitas pessoas com mais de 60 anos sustentam e/ou ajudam financeiramente filhos adultos e o apoio pode abranger duas gerações. Diante do aumento do desemprego e trabalho informal, a casa dos pais/avós tornou-se lugar de suporte socioeconômico e afetivo de filhos e netos. Com o prolongamento da vida, idosos ultrapassam 80 anos, sobretudo em camadas médias, aos familiares é atribuída a responsabilidade dos cuidados. Ocorre, portanto, uma reestruturação da estrutura etária brasileira. Na pandemia, em segmentos médios urbanos brasileiros, os cuidados dos idosos foram empreendidos pela geração seguinte, com a preocupação sobre o contato com cuidadoras contratadas, pelo uso de transporte público (Heilborn et al., 2020HEILBORN, M. L. A.; PEIXOTO; C. E., BARROS, M. L. de. Tensões familiares em tempos de pandemia. Physis; Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 30, n. 2, e3002006, 2020. ). A urgência da situação propiciou uma reelaboração das relações familiares, por vezes a despeito da vontade dos sujeitos.

A vulnerabilidade biológica, mais presente em certos grupos, como idosos, pessoas com enfermidades crônicas ou raras, entre outras condições graves, consiste em relevante dimensão na configuração de classificações. Neves (2023) aponta como pessoas vivendo em situações de desigualdades sociais e raciais tiveram agravamentos por condições físicas específicas. Nesse contexto, a categoria “comorbidade” despontou como meio de biolegitimidade. Em um cenário no qual todos estão em perigo, como lidar com segmentos de maior risco? Esses grupos acionaram estratégias sociais e familiares, para garantia da sobrevivência, buscando reconhecimento de sua condição. Como exemplo, a corrida a consultórios pelo “atestado de comorbidade” para acesso antecipado à vacina, em um contexto de negação de cidadania, quando a ausência de um padrão homogêneo oficial de gestão da pandemia gerou profundo desamparo. Se, por um lado, tais estratégias buscavam maximizar o acesso ao cuidado, por outro, emergiram questões previamente problematizadas, como a ideia de “grupo de risco” e os estigmas a ele associados, com uma moralização das doenças e acionamento de categorias acusatórias (Neves, 2023).

Por fim, enfatizamos que o cuidado nunca é individual, cada pessoa está no centro de uma rede complexa de relações, marcadas pela interdependência e reciprocidade (Tronto, 2007TRONTO, J. Assistência democrática e democracias assistenciais. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 22, n. 2, p. 285-308, 2007. ). Familiares, profissionais de saúde e cuidadoras/es participam dessa teia, complexificada na pandemia. Em países nos quais camadas médias e altas contam com cuidado caracterizado pela diferença entre quem cuida (os médicos) e quem serve 1313No Brasil, frequentemente, mulheres, negras, pobres, de baixa escolaridade e migrantes. (cuidadores/as marcados/as por gênero, raça, língua, religião, migração), a pandemia desvelou tanto relações de solidariedade como de indiferença.

A infecção de uma trabalhadora doméstica contaminada por sua patroa recém-chegada da Itália, marcando a primeira morte por covid-19 no Rio de Janeiro, inverteu a lógica do perigo: das classes trabalhadoras, tidas como perigosas, para objeto de contágio. O avançar da pandemia conduziu à dispensa de trabalhadoras e redistribuição das tarefas domésticas na família. A despeito dessa mudança, a tensão em definir ou não o trabalho doméstico como serviço essencial revelou as lógicas de cuidado vigentes em um país profundamente hierarquizado. Conforme Cal (2023, p. 3), sobre o decreto que incluía a categoria no contexto paraense, “a apreensão de ficar ‘sem empregada’ pareceu ganhar mais importância do que o risco de ser contaminado pela trabalhadora”. Embora o decreto tenha sido modificado após pressão de entidades sindicais e outros setores, tal questão revela “a falta de preocupação pública com as pessoas que realizam essa atividade sustentada numa cultura da servidão, a partir da qual uns não podem prescindir de serem servidos pelos outros sob pena de perda de status e da falta de distanciamento da pobreza” (Cal, 2023CAL, D. Trabalho Doméstico, Interseccionalidades e Saúde: análise das percepções de risco sobre a pandemia de Covid-19 na mídia e entre trabalhadoras. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 46., 2023, São Paulo. Congresso […]. São Paulo: Intercom, 2023. , p. 10).

Conclusões

Passados quatro anos da eclosão da pandemia, seguimos refletindo sobre suas consequências individuais e coletivas. Até o momento, não há números confiáveis de mortos e de pessoas com sequelas do novo coronavírus. É preciso avaliar o conjunto ainda desconhecido de enlutados e atingidos pela crise sanitária. Para muitos, a sensação de segurança e estabilidade foi profundamente afetada. Em resposta, uma busca de esquecimento ou desejo de distanciamento de um tempo aparentemente em suspenso .

A pandemia produziu muitos desafios. Para Lupton ( 2022LUPTON, D. Covid Societies. Theorizing the Coronavirus Crisis. London: Routledge, 2022. ), ocorreu um entrecruzamento dos planos e dimensões macro e micropolíticas: o contágio, a morte, os riscos, a incerteza, os medos, as desigualdades sociais, o estigma e as relações de poder. Cada contexto contou com condições locais específicas, em conexão com forças globalizantes. Diferentes concepções e modos de gestão do risco e cuidado estavam em jogo, ora em complementariedade, ora em disputa. Lupton ( 2022LUPTON, D. Covid Societies. Theorizing the Coronavirus Crisis. London: Routledge, 2022. ) aponta as marcantes diferenças entre o norte e o sul global, indicando as transformações associadas à esperança em cada segmento do globo e segundo a inserção social. Distinções na gestão do cuidado também são encontradas no cenário brasileiro, a partir do reconhecimento das vulnerabilidades presentes em cada contexto – sejam elas individuais ou coletivas, físicas, psíquicas, sociais ou de outras ordens.

Tempos de crise produzem sofrimento, e as redes sociais desempenham relevante papel na gestão dos riscos e, sobretudo, em ações de cuidado. Ressaltamos aqui certos tipos de intervenção social, com a criação de redes de sociabilidade em prol de suporte e proteção (rede favela e central única de favelas, entre outras) 1414https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57476679 ; https://vejario.abril.com.br/cidade/favela-pandemia-novo-coronavirus/#google_vignette ; https://portal.fiocruz.br/noticia/movimentos-lancam-painel-unificador-covid-19-nas-favelas , entre outras. Acesso em 18/04/2024. No crescente volume de publicações das ciências sociais, há um aumento de estudos sobre o campo da saúde mental, com foco sobre o conceito de trauma. Certamente há muito o que pesquisar, e inclusive temáticas já abordadas demandam maior aprofundamento e análise, como os argumentos de profissionais de saúde negacionistas.

A configuração de novas formas de sociabilidade e de projetos individuais está em curso, sobretudo em decorrência da perda de referenciais até então vigentes, como a possibilidade de controle sobre o próprio destino. Coletivamente, o término da emergência sanitária e a mudança no cenário político brasileiro arrefeceram alguns impasses, com uma gestão mais comprometida com o cuidado. Contudo, não significou a saída de cena de atores responsáveis por dilemas enfrentados, como quais riscos priorizar e como conduzir o cuidado, para quem e de que maneira. O otimismo decorrente da produção de vacinas com eficácia comprovada e da superação da crise foi acompanhado por dúvidas sobre as capacidades de domínio de novos agentes infecciosos ou variantes, como alertam cientistas sobre a probabilidade de endemias recorrentes.

Por fim, apontamos a relevância de realizar pesquisas com pessoas e grupos afetados pela pandemia, acessando suas narrativas e contextos, de modo a subsidiar a criação de estratégias e modos de redefinição e organização da vida, sofrimento, perdas e suporte. Cabe, ainda, indagar os sentidos atribuídos à esperança, a partir dos limites impostos pela pandemia e pelas escolhas nacionais e internacionais concernentes ao meio ambiente, à vida e, em última instância, ao futuro individual e coletivo.

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  • VISACOVSKY, S. E. Estados Críticos: la experiencia social de la calamidad. La Plata, Buenos Aires: Al Margen, 2011.

  • Financiamento
    Este artigo conta com financiamento dos seguintes projetos: Midiatização da memória de eventos limites: o sofrimento em novas configurações comunicacionais”, Bolsa de Produtividade CNPq, processo 316359/2023-8 (coordenação Kátia Lerner) e “Obstáculos à comunicação de risco na pandemia de Covid-19: infodemia, desinformação, algoritmos e desconfiança em contextos de polarização política e de crise dos sistemas peritos”, Edital Capes No 12/2021 Chamada PDPG Impactos da Pandemia (coordenação Paulo Vaz)
  • 1
    Kátia Lerner agradece ao CNPq o apoio pela Bolsa de Produtividade (PQ2) e à CAPES o apoio dado à pesquisa “Obstáculos à comunicação de risco na pandemia de COVID-19: infodemia, desinformação, algoritmos e desconfiança em contextos de polarização política e de crise dos sistemas peritos”.
  • 2
    Utilizamos o conceito de ‘arranjos de cuidado’ nos termos de Natalia Fazzioni ( 2018FAZZIONI, N. Nascer e Morrer no Complexo do Alemão: políticas de saúde e arranjos de cuidado. 2018. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. ): as “relações estabelecidas em torno da pessoa com um corpo adoecido e vulnerável, com o objetivo de mantê-lo, repará-lo e gerir suas sensações” (Soneghet, 2022, p. 235). Fazzioni ( 2018FAZZIONI, N. Nascer e Morrer no Complexo do Alemão: políticas de saúde e arranjos de cuidado. 2018. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. , p. 145) se refere ao termo em alusão ao conceito de ‘arranjo familiar’, que diz respeito ao que se ‘organiza’ de determinada maneira, no sentido de resolver, ainda que improvisadamente, um problema cotidiano. A ideia de ‘arranjos de cuidado’ não se restringe à organização formal estabelecida com o Estado e o mercado, mas engloba-os. Entendemos como regimes de cuidado “o modo como os estados de bem-estar social entendem, regulam e direcionam as suas políticas públicas no que diz respeito aos cuidados” (Groisman, 2015GROISMAN, D. O cuidado enquanto trabalho: envelhecimento, dependência e políticas para o bem-estar no Brasil. 2015. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. , p. 61).
  • 3
    O ato de prover cuidado está associado a atributos como capacidade, potência ou poder social, enquanto o de receber tende a denotar vulnerabilidade e necessidade, ao mesmo tempo em que significa ser merecedor de inclusão e proteção.
  • 4
  • 5
    Uso de medicamentos sem comprovação científica de eficácia contra o novo coronavírus. O kit era composto basicamente por duas drogas: Ivermectina, utilizada para tratamento de infecções parasitárias, e hidroxicloroquina – para tratamento de malária, ambas com grande probabilidade de efeitos colaterais. Vale referir a adesão ou recusa de profissionais de saúde ao uso e prescrição desse kit em momento inicial da pandemia e, em momento posterior, posicionamento favorável (ou não) à vacinação.
  • 6
    “Se você virar um jacaré, problema de você. Se você virar super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí ou algum homem começar a falar fino, eles não vão ter nada a ver com isso” (17 dez. 2020) (Lopes, 2022). Ver também https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2021/12/27/bolsonaro-diz-que-nao-vai-vacinar-filha-de-11-anos-contrariando-indicacoes-da-ciencia.ghtml .
  • 7
    O Ministério da Saúde na gestão de Bolsonaro teve sua pasta ocupada por quatro ministros: Luiz Henrique Mandetta (de 2 janeiro de 2019 a 16 de abril de 2020), Nélson Teich (de 17 de abril de 2020 a 15 de maio de 2020), Eduardo Pazuello (de 16 de setembro de 2020 a 23 de março de 2021) e Marcelo Queiroga (23 de março de 2021 a 31 de dezembro de 2022). Essa rotatividade foi motivada por tensões nas concepções de cuidado em jogo, em temas como distanciamento social, cloroquina, testagem em massa, divulgação dos dados epidemiológicos, e a situação crítica de Manaus, ao final da gestão de Pazuello. O anúncio de saída de Mandetta foi cercado de clamor, com a população “batendo panelas” (“panelaço”) como forma de protesto. Essas tensões referiam-se também a vários governadores e prefeitos, gerando outro foco de tensão.
  • 8
  • 9
  • 10
    Por exemplo: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56937231 . Acesso em: 6 abr. 2024.
  • 11
    Este estudo (Machado et al., 2023) destaca algumas constatações sobre mortes causadas pelo novo coronavírus, como: a maioria dos médicos que morreram eram homens com mais de 60 anos; os profissionais da enfermagem com maior número de óbitos foram mulheres pretas e pardas, com idade inferior a 60 anos; quatro estados de duas regiões foram os mais atingidos por perdas de profissionais de saúde: Pará e Amazonas – na região Norte; e Rio de Janeiro e São Paulo – na região Sudeste. Os dados evidenciam as desigualdades presentes entre as distintas categorias profissionais, na área da saúde.
  • 12
    No sentido de modelos de regulação e de poder utilizados para regular a morte humana ou criar ‘mundos de morte’, nos quais determinadas pessoas, com características específicas, como cor da pele ou pertencimento a certos grupos étnicos, são configuradas como menos dignas de vida ou, em última instância, como ‘menos humanos’ que outros (Mbembe, 2018MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018. ; Lupton, 2022, p. 63).
  • 13
    No Brasil, frequentemente, mulheres, negras, pobres, de baixa escolaridade e migrantes.
  • 14

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2024
  • Aceito
    26 Jul 2024
  • Revisado
    20 Ago 2024
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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