Políticas de saúde e povos indígenas: experiências de gestão da pandemia de covid-19

Cristina Dias da Silva Rita de Cássia Maria Neves Sobre os autores

Resumo

Desde os anos 2000, as pesquisas antropológicas acumularam importantes perspectivas sobre o universo das políticas de saúde indígena proposta pelo Estado brasileiro, em especial a reorganização dos serviços de saúde indígena através de distritos sanitários especiais indígenas (DSEI). Tais pesquisas abordaram de forma sistemática a produção política da saúde voltada para os povos indígenas, com análises e questionamentos focados nas possibilidades e limites do modelo de atenção diferenciada proposto, bem como das formas de participação social. Nosso objetivo neste artigo é analisar algumas estratégias de ação e resistência por meio de uma análise articulada de dois campos etnográficos: (1) a assembleia anual de 2023 do povo Xukuru do Ororubá (RN), que trouxe para o centro do debate uma avaliação do subsistema e das ações realizadas por estes antes e durante a pandemia; (2) os planos de enfrentamento e boletins epidemiológicos divulgados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) durante o período 2020-2022. A pandemia foi um período em que os povos indígenas se pronunciaram em defesa do subsistema. Assim, voltamo-nos a tentar imaginar como o cenário da pandemia destacou aspectos das formas de mobilização indígena que merecem espaço de reflexão por desvelar conexões entre itinerários terapêuticos e itinerários políticos.

Palavras-chave:
saúde indígena; políticas públicas; pandemia de covid-19; etnografia de documentos; etnologia indígena

Introdução

Este artigo tem como proposta refletir sobre as políticas de saúde indígena adotadas pelo Estado brasileiro tomando por base o debate conceitual produzido por três antropólogas, Jean Langdon, Luiza Garnelo e Carla Teixeira, que abordaram de forma sistemática a produção política da saúde indígena. Ao tratar aspectos distintos do problema, os trabalhos dessas autoras focam nas possibilidades e limites do modelo de atenção diferenciada, bem como nas formas de participação social. A partir deste arcabouço, procuramos analisar algumas das estratégias de resistência indígena às violências coproduzidas pelo Estado enquanto situações históricas de longo prazo. Propomos, portanto, um debate tendo por base etnográfica dois conjuntos de dados: (1) a assembleia anual de 2023 do povo Xukuru do Ororubá (RN) cujo acúmulo de produção reflexiva trouxe para o centro do debate uma avaliação do subsistema e das ações realizadas por estes durante a pandemia de covid-19; (2) os planos de enfrentamento e boletins epidemiológicos divulgados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) durante o período 2020-2022. A pandemia foi um período em que os povos indígenas se pronunciaram em defesa do subsistema e desse modo buscamos compreender como esse cenário de profunda crise na saúde pública destacou formas de mobilização indígena que merecem espaço de reflexão por desvelar a conexão entre itinerários terapêuticos e itinerários políticos.

Historicamente desde a criação do Subsistema de Saúde Indígena (SasiSUS) em 1999, a antropologia tem contribuído para produzir uma reflexão qualificada sobre o subsistema, a partir de análises e experiências com dados etnográficos produzidos em realidades distintas em todo o Brasil. Diversos antropólogos e antropólogas, tais quais Garnelo ( 2003GARNELO, L.; SAMPAIO, S. As Bases sócio-culturais do controle social em saúde indígena. Problemas e questões da Região Norte. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 311-317, 2003. ); Langdon ( 2004LANGDON, E. J. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração entre antropologia e profissionais de saúde. In: LANGDON, J.; GARNELO, L. (orgs.). Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de Janeiro: Contracapa. 2004. p. 33-52. ); Teixeira ( 2012TEIXEIRA, C. C. A produção política da repulsa e os manejos da diversidade na saúde indígena brasileira. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 55, n. 2, p. 1-37, 2012. ), Athias e Machado ( 2001ATHIAS, R.; MACHADO, M. Saúde indígena no processo de implantação dos distritos sanitários: temas críticos e propostas para um diálogo interdisciplinar. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 2, p. 425-431, 2001. ), Cardoso ( 2015CARDOSO, M. D. Políticas de saúde indígena no Brasil: do modelo assistencial à representação política. In: CARDOSO, M. D. (orgs.). Saúde Indígena: Políticas Comparadas na América Latina. Florianópolis: Editora da UFSC, 2015. p. 83-106. ), entre outros, têm se dedicado a avaliar o subsistema ao longo desses anos, não só para discutir políticas públicas voltadas à realidade dos povos indígenas, mas para apresentar propostas que articulem e respeitem as especificidades culturais no campo da saúde indígena. Para uma melhor contextualização da proposta, entendemos que essa literatura se complementa e representa um conjunto importante de análises e questionamentos sobre os limites e possibilidades de certo modelo de atenção diferenciada, aquele proposto na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (BRASIL, 2002BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Gabinete do Ministro. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, Portaria nº 254, de 31 de janeiro de 2002. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2002. ), cujas formas de participação social continuam sendo construídas e reivindicadas pelos povos indígenas como parte central da estratégia do subsistema. Em termos teórico-metodológicos, portanto, propomos refletir sobre a situação da saúde indígena por meio desse exercício continuado de (re)contextualização minuciosa de pessoas e documentos, através de uma lógica que atue nas redes de relações historicamente criadas, tendo por base o caso etnográfico das assembleias entre os Xukuru do Ororubá e os documentos, entendidos como parte das práticas estatais.

Uma antropologia das práticas

A antropóloga Jean Langdon atua como pesquisadora no campo da saúde indígena desde antes da criação do subsistema de saúde indígena e sempre o tratou como prática social, um fenômeno amplo, não neutro, inserido em um campo político, motivo pelo qual seus trabalhos, ao mesmo tempo em que enfatizam a importância de se analisar as práticas e saberes locais, discutem a circulação e possibilidades de diálogo ou confronto no campo biomédico.

Um dos conceitos mais debatidos por Langdon é o de atenção diferenciada como proposto na PNASPI (Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas). Sendo o conceito fundamental que define o subsistema, em boa parte dos textos produzidos individualmente ou em conjunto com outras pesquisadoras, Langdon teceu críticas à forma engessada como o modelo foi implementado (Langdon, 2004LANGDON, E. J. Uma avaliação crítica da atenção diferenciada e a colaboração entre antropologia e profissionais de saúde. In: LANGDON, J.; GARNELO, L. (orgs.). Saúde dos povos indígenas: reflexões sobre antropologia participativa. Rio de Janeiro: Contracapa. 2004. p. 33-52. ; Langdon e Diehl, 2007LANGDON, E. J.; DIEHL, E. E. Participação e autonomia nos espaços interculturais de saúde indígena: reflexões a partir do sul do Brasil. Saúde & Sociedade, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 19-36, 2007. ; Langdon e Cardoso, 2015LANGDON, E. J.; CARDOSO, M. D. Saúde Indígena: políticas comparadas na América Latina. Florianópolis: Editora da UFSC, 312p, 2015. ; Langdon e Garnelo, 2017LANGDON, E. J.; GARNELO, L. Articulación entre servicios de salud y “medicina indígena”: reflexiones antropológicas sobre política y realidad en Brasil. Salud Colectiva, Lanús, v. 13, n.3, p. 457-470, 2017. ). Para a autora, a dimensão etnográfica das pesquisas junto aos indígenas tem demonstrado que temas como pluralismo e multiplicidade médica, necessários ao debate da atenção diferenciada, são perpassados por conflitos, contradições e relações de poder. A partir de uma “antropologia da práxis”, foi possível a autora realizar uma análise crítica do próprio subsistema identificando o distanciamento entre a legislação e as práticas cotidianas na atuação das equipes de saúde locais. Além disso, Langdon fez uma crítica ao modelo de atenção diferenciada a partir de suas transformações ao longo dos anos, destacando as mudanças ocorridas desde a primeira conferência de saúde indígena, em 1986, cujo foco do debate sobre a atenção diferenciada era articular sistemas culturais distintos de saúde dentro de uma política pública, algo que foi incorporado posteriormente ao texto da PNASPI. Nas conferências seguintes, 1993, 2001 e 2006, a proposta de articulação entre distintos sistemas culturais foi cedendo lugar para a ideia de incorporar as práticas de saúde indígena ao subsistema. A crítica de Langdon ocorreu a partir de um amplo conjunto de experiências etnográficas vivenciadas por ela e outras pesquisadoras no sul do país. Em artigo publicado com Garnelo em 2017, as autoras examinam criticamente as políticas de saúde indígena no Brasil e o significado de articulação ou integração de práticas médicas tradicionais, apontando as contradições e tensões presentes na organização estrutural do Subsistema:

O debate empreendido pela rede de pesquisadores em saúde indígena, sobre a integração ou articulação das práticas médicas tradicionais na atenção básica, apresenta ainda mais complexidade e dificuldade. Qualquer diálogo entre sistemas e práticas de conhecimento tão diversos implica comunicação entre epistemologias marcadamente diferentes e requer uma vontade de colocar o próprio ponto de vista em perspectiva

(Langdon; Garnelo, 2017LANGDON, E. J.; GARNELO, L. Articulación entre servicios de salud y “medicina indígena”: reflexiones antropológicas sobre política y realidad en Brasil. Salud Colectiva, Lanús, v. 13, n.3, p. 457-470, 2017. , p. 466).

Luiza Garnelo é uma das principais pesquisadoras sobre saúde indígena no país, em especial na região amazônica, tendo se dedicado de maneira continuada a analisar a situação da política de saúde destinada aos povos indígenas desde os anos de 1990, produzindo um panorama bastante importante dos reveses políticos na produção da assistência à saúde. Por meio de detalhada reconstrução contextual da implantação do modelo distrital na saúde indígena, a autora coteja elementos da política indigenista, entendendo-a como uma tradição de pensamento entre agentes governamentais brasileiros, com elementos da política neoliberal de redução do Estado viabilizada pelo governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) à época. O paradoxo entre duas ideias distintas sobre o Estado, uma que pensa no Sistema Único de Saúde (SUS) como descentralização para fortalecer políticas sociais e participação social, e outra que emerge como desresponsabilização do Estado, nos fornece o complexo contexto político e histórico da emergência do SUS e do Subsistema de Saúde Indígena. Como pontua a autora:

Ao fim dessa verdadeira crônica do cotidiano é possível verificar que o subsistema de saúde indígena representa um importante avanço na formulação de novas políticas sociais dirigidas aos povos indígenas. Contudo, ele também comporta uma profunda ambigüidade, ao contrapor a democracia universalizante do Sistema Único de Saúde aos direitos à diferença étnica.

(Garnelo, 2004GARNELO, L. Política de Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: Análise Situacional do Período de 1990 a 2004. Documento de Trabalho n° 9. Universidade Federal de Rondônia; Escola Nacional de Saúde Pública. Porto Velho: Universidade do Amazonas, 2004. , p. 24).

Nesse sentido, Garnelo reconhece não apenas a diversidade étnica como um paradigma a ser necessária e urgentemente considerado no interior das políticas de saúde indígena, mas também nos alerta para a diversidade de situações regionais brasileiras. Nordeste, Amazônia e o eixo Centro-Oeste/Sul-Sudeste apresentam embates e problemas historicamente distintos. Em seus textos (Garnelo, 2004GARNELO, L. Política de Saúde dos Povos Indígenas no Brasil: Análise Situacional do Período de 1990 a 2004. Documento de Trabalho n° 9. Universidade Federal de Rondônia; Escola Nacional de Saúde Pública. Porto Velho: Universidade do Amazonas, 2004. ; Garnelo e Sampaio, 2003GARNELO, L.; SAMPAIO, S. As Bases sócio-culturais do controle social em saúde indígena. Problemas e questões da Região Norte. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 19, n. 1, p. 311-317, 2003. , 2005GARNELO, L.; SAMPAIO, S. Organizações indígenas e distritalização sanitária: os riscos de “fazer ver” e “fazer crer” nas políticas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1217-1223, 2005. ), fica evidente tal leitura dinâmica dos processos que envolveram a implementação da política de saúde indígena no Brasil: enquanto no Nordeste houve uma ênfase no processo de distritalização realizado em parceria com as prefeituras, na região Amazônica destacaram-se as associações indígenas, e no eixo Centro-Oeste/Sul-Sudeste a presença de organizações não governamentais (ONGs) teriam sido as maiores responsáveis pelas parcerias firmadas em torno da prestação de assistência à saúde indígena pelo modelo dos Distritos Sanitários.

A contribuição original dos trabalhos da antropóloga Carla Teixeira, por sua vez, busca compreender as relações entre os povos indígenas e as políticas de saúde a eles destinadas pelo Estado brasileiro a partir de uma etnografia das instituições e das práticas estatais (Teixeira, 2010TEIXEIRA, C. C. Autonomia em saúde indígena: sobre o que estamos falando? Anuário Antropológio 2009/I. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2010. , 2012TEIXEIRA, C. C. A produção política da repulsa e os manejos da diversidade na saúde indígena brasileira. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 55, n. 2, p. 1-37, 2012. , 2017TEIXEIRA, C. C. Participação social na saúde indígena: a aposta contra a assimetria no Brasil? AMAZÔNICA: Revista de Antropologia, São Paulo, v. 9, p. 716-733, 2017. ). Elaborando aspectos pouco pronunciados nos processos saúde-doença, mas com fundamental relevância para compreensão das contradições e paradoxos dos itinerários terapêuticos, a autora destaca os itinerários e processos políticos que constituem os reveses de uma cidadania diferenciada (Teixeira; Silva, 2013, 2015TEIXEIRA, C. C.; SILVA, C. D. The construction of citizenship and the field of indigenous health: A critical analysis of the relationship between bio-power and bio-identity. Vibrant, Florianópolis, v. 12, p. 351-384, 2015. , 2019TEIXEIRA, C. C.; SILVA, C. D. Indigenous health in Brazil: Reflections on forms of violence. Vibrant, Florianópolis, v. 16, p. 1-22, 2019. ). Para essa agenda de pesquisas, questões como autonomia, participação social e controle social se constituíram – para além de conceitos normativos das políticas públicas de saúde – como categorias a serem investigadas e desconstruídas e que, por tal abordagem teórico-metodológica, nos permitiu lançar luz sobre o processo de produção das relações de poder em contextos indígenas no Brasil, assim como dar relevância etnográfica às estratégias e possibilidades de disputa pelos sentidos atribuídos à saúde indígena e seus itinerários terapêuticos.

No texto em que discute especificamente os sentidos atribuídos à noção de autonomia no campo da saúde indígena, a autora destaca que “os povos indígenas brasileiros guardam um conhecimento prático e em processo de reflexão das possibilidades de autonomia e protagonismo que passam pelos meandros internos da engenharia institucional do Estado nacional” (Teixeira, 2010TEIXEIRA, C. C. Autonomia em saúde indígena: sobre o que estamos falando? Anuário Antropológio 2009/I. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2010. , p. 120). Assim, o debate sobre os processos de participação indígena no cenário da produção das políticas públicas de saúde requer um olhar atento para (1) o reenquadramento de perspectivas e formas de compreensão dos conceitos normativos utilizados no cotidiano das práticas estatais; e (2) o manejo político de conceitos oriundos do paradigma da diversidade cultural, como é o caso da atenção diferenciada. Produzindo um questionamento de sua plasticidade e de sua capacidade de produzir outros significados, os textos da autora privilegiam as disputas de sentido que ocorrem no cotidiano da gestão das políticas de saúde indígena.

Ao trazer esse conjunto de referências para o debate, nos propomos realizar uma reflexão que envolva um estranhamento metodológico em torno dos sentidos atribuídos às políticas públicas, ao Estado e à participação social para elucidar conflitos epistêmicos e políticos que surgem no esteio das ações emergenciais para a saúde indígena, apontando para as possibilidades do protagonismo indígena, sem perder de vistas as práticas estatais que atravessam as dinâmicas sociais no campo da saúde indígena no Brasil.

O Povo indígena Xukuru do Ororubá - uma experiência de participação social

Os Xukuru do Ororubá vivem na Serra do Ororubá, região entre o agreste e o sertão do estado de Pernambuco e possuem três Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI). Possuem um Conselho de Saúde local (CISXO), que regula e fiscaliza a atuação das equipes de saúde, entre estes, os Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e os Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN). Nos últimos anos, juntou-se à equipe uma nutricionista e uma psicóloga. Ao mesmo tempo, os Xukuru vêm há muitos anos investido na formação biomédica de seus quadros, de forma que alguns técnicos e auxiliares em enfermagem são indígenas.

Simultaneamente à implantação do subsistema de saúde indígena nos Xukuru, um movimento interno por parte das lideranças passou a repensar e retomar as práticas consideradas tradicionais, promovendo encontros, debates e ações específicas tais como os encontros entre os conhecedores tradicionais e demais membros das equipes de saúde e os encontros chamados de “Urubá Terra” para promoção da saúde e trocas de sementes, além de promover encontros onde se pensa a natureza e a agricultura articulados à crença nos “Encantados” (entidades espirituais que orientam a vida do povo Xukuru), que se configuram como base da saúde e da religião Xukuru.

Foi dessa forma que os Xukuru promoveram vários encontros desde 2006, com objetivos claros de discutir saúde através da relação entre os curadores tradicionais e as EMSI. Embora tenham ocorridos outros encontros mais recentes, devemos destacar os dois primeiros em parceria com o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI-PE), para tratar de curas tradicionais e uso de plantas medicinais, com a presença de todas as EMSI e dos curadores tradicionais.

O primeiro encontro foi realizado nos dias 17 e 18 de fevereiro de 2006, na aldeia Pedra D’Água, local onde se localiza a mata sagrada do Rei do Ororubá, espaço de moradia e presença dos Encantados. O objetivo desse encontro foi, de acordo com o relatório produzido pelos próprios Xukuru, “sistematizar as práticas de cura desenvolvidas pelos conhecedores da ciência natural” (2006 p. 6) e teve como tema central: “Medicina Tradicional a partir do respeito com a natureza”. O segundo encontro foi realizado no mesmo local nos dias 7, 8 e 9 de setembro de 2006. Nesse segundo encontro, os objetivos se centraram no poder das curas tradicionais e das ervas medicinais; a valorização das tradições e formas de dar continuidade a elas e, por fim, a associação da medicina indígena com a biomedicina. Em ambos os encontros estavam presentes lideranças locais, sabedores tradicionais (rezadeiras (os)/ benzedeiras (os) e curandeiros), pajé, cacique, membros da EMSI (Agentes Indígenas de Saneamento/AISAN, médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares, AIS e a coordenadora do Polo Base), além de um representante do DSEI-PE.

Esses dois encontros são interessantes porque demonstram que a preocupação dos Xukuru com a prática da medicina tradicional, inclusive relacionando a cura com ritual, é antiga e vem sendo estimulada há quase vinte anos. Além disso, identificamos uma atenção especial com a chamada “medicina natural”, e que pode ser pensada em um sentido mais amplo do termo. Ou seja, a “medicina natural” é uma categoria que envolve as práticas culturais de alimentação, o controle dos recursos hídricos, o uso das plantas medicinais, envolve as relações familiares, distribuição de alimentos, a relação com a morte, os rituais, o uso sustentável da água, etc. Desses encontros e de uma demanda advinda das assembleias anuais do povo Xukuru, surgiu os encontros do Urubá Terra.

Além desses encontros específicos no campo da saúde, as assembleias Xukuru também compõe fortemente esse cenário. Estas tiveram início em 2001, três anos após o assassinato do Cacique Xikão em 1998 a mando de um fazendeiro que possuía terras na Serra do Ororubá. Desde 1999, os Xukuru realizam um ato público no dia 20 de maio, em homenagem ao cacique, mas a partir de 2001, esse ato foi precedido por uma assembleia que se manteve até os dias atuais. O que se iniciou como um ato de protesto, aos poucos adquiriu outras conotações. Os Xukuru resignificaram esse dia, associando a data do assassinato de Xicão às conquistas e decisões coletivas. Em 1999, no aniversário de morte desse cacique, o 20 de maio teve um caráter de afirmação étnica e reivindicação política, aliada a um sentimento de perda. No ano seguinte, em 2000, esse evento foi antecedido por dois dias de reuniões, na aldeia Pedra D’Água, chamada de pós-conferência indígena, porque sucedeu à conferência indígena que aconteceu, em Porto Seguro (BA), em abril daquele mesmo ano. Em 2001, os Xukuru realizaram, entre os dias 18 e 19 de maio, a sua Primeira Assembléia do Povo Xukuru . As assembleias sempre foram palco de debates sobre criminalização, enfrentamentos jurídicos e políticos, mas também sobre a gestão do território no campo ambiental, da saúde e da educação.

Em 2014, por exemplo, a 14ª Assembleia do Povo Xukuru do Ororubá teve como tema: “Limolaigo Toípe – Terra dos Ancestrais: A Água é o sangue da Terra”, em que os Xukuru reafirmaram a preocupação com o uso de agrotóxicos em plantações dentro do território, como uma prática que contamina as nascentes e o lençol freático. Nessa assembleia, notamos entre os objetivos a discussão sobre a saúde a partir da relação com a gestão do território e do manejo da água.

Esse conjunto de encontros reflexivos implementados pelos Xukuru ao longo dos anos deram o suporte para o enfrentamento da covid-19 em 2020. Além disso, em 2018, o povo Xukuru teve sua luta reconhecida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em que o Estado brasileiro foi condenado a pagar uma indenização pela morosidade no processo jurídico de desintrusão de posseiros do território já demarcado há mais de 20 anos, além de firmar um acordo para conclusão do processo de desintrusão o mais rápido possível. De posse desse dinheiro, e com toda essa experiência reflexiva dos encontros e assembleias, os Xukuru fizeram um plano de enfrentamento ao vírus da covid-19 de forma bastante consistente e, na assembleia de 2023, prestaram contas do uso do dinheiro em várias frentes de ações, inclusive do montante usado para o combate ao vírus.

No período da pandemia, os povos indígenas foram os mais fragilizados. Não se sabia exatamente o número de indígenas com a doença, ou mesmo mortos durante a pandemia. Essa situação só foi amenizada pela atuação da SESAI, que começou a produzir boletins epidemiológicos na tentativa de compilar os dados que chegavam através dos distritos sanitários, sobretudo, pela atuação dos Agentes Indígenas de Saúde. Mesmo assim, ainda ficaram de fora os dados de povos que ainda não eram assistidos pela SESAI e os indígenas que moram nas cidades. Foi também um período em que havia dados divergentes coletados pelo Ministério da Saúde, pela SESAI e por organizações indígenas como a APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) e a APOINME (Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo) 11 No caso de Pernambuco, há uma importante rede de produção dados, a Rede de Monitoramento de Direitos Indígenas em Pernambuco (REMDIPE), associada aos trabalhos da APOINME, que pode ser acessada em: https://www.indigenascontracovidpe.com/boletimremdipe . . Por ora, é importante dizer que durante o governo Bolsonaro (2019-2022) houve várias tentativas de desarticular o subsistema de saúde. Assim, o contexto político se revelou duplamente perverso, tanto porque ignorava sérias demandas por atendimento por parte dos povos indígenas, mas também porque embora tenha sido extensivamente criticado por pesquisadores e indígenas ao longo dos anos, o subsistema de saúde indígena sempre foi uma luta coletiva fundamental. Todas as críticas se constituíram como base para refletir sobre a qualidade da oferta da assistência em saúde, no intuito de melhorar o subsistema e não de o eliminar. Assim, o período exigiu dos pesquisadores uma reflexão atenta aos processos políticos que tentavam enquadrar a compreensão sobre a importância de um subsistema de saúde indígena e do próprio SUS 22 Durante a pandemia muitos textos foram produzidos articulando a situação dos povos indígenas e o SUS. Entre eles, podemos citar: Cruz; Fernandes; Jesus, 2020 ; Modesto; Neves, 2020 ; Santos; Pontes; Coimbra Jr., 2020 ; Scopel; Dias-Scopel; Neves; Segata, 2021 ; Alarcon e Pontes, 2022 .

O subsistema é voltado para a prevenção à doença através da atenção primária, e durante a pandemia de covid-19, o combate à doença foi centrado no modelo hospitalocêntrico (terciário), não aproveitando a enorme experiência da atenção primária nas terras indígenas. Podemos destacar que, entre os planos de enfrentamento ao vírus publicados pela SESAI entre 2020 e 2021, as estratégias de prevenção estão ligadas à evitação de contato, mas pouco relacionadas aos modos de vida nas aldeias e a participação efetiva de indígenas em suas elaborações. Talvez por isso consigamos identificar a relevância dos Xukuru, que tiveram a possibilidade de produzir um plano estratégico, revelando um sistema de prioridades conectado ao cotidiano da comunidade indígena.

Os Xukuru, de posse de orçamento próprio, e com uma experiência reflexiva grande, como citada anteriormente, estabeleceram um plano de combate cuja estratégia de comunicação consistiu em realizar uma campanha intitulada “Povo Xukuru do Ororubá em defesa da vida”:

Diante das discussões internas acerca do combate ao covid-19 foram realizadas ações pelos agentes dos sistemas de saúde e educação do Povo Xukuru do Ororubá em visita a todas as casas, de todas as comunidades, para entregar panfletos, máscaras, álcool em gel 70% e camisa, sensibilizando todos os residentes nas comunidades, no combate à aglomeração, manter o isolamento social e todas as medidas sanitárias necessárias à prevenção da covid-19; incluindo as barreiras sanitárias nas aldeias. Valor do investimento total do plano: R$ 90.000,00. (slides apresentados pelo Conselho Indígena de Saúde Xukuru do Ororubá (CISXO), na 23ª Assembleia Xukuru) .

Além disso, eles fizeram das escolas na TI Xukuru, pequenos hospitais de campanha, para onde eram encaminhados os casos de covid-19, isolando-os dos demais familiares, mas permanecendo no território. Com isso, de acordo com a fala dos conselheiros de saúde e do cacique Marcos, no pico da pandemia, enquanto o município de Pesqueira-PE teve em torno de 6 a 7 mil casos, com 128 mortos, os Xukuru tiveram 130 casos, com 3 mortes. Para eles, essa ação conjunta da Associação Xukuru, com a educação e a saúde salvou muitas vidas. Além disso, segundo o cacique Marcos, muitas outras coisas foram feitas para conter a pandemia:

O DSEI, o município, nesse período pandêmico, muito sem saber o que fazer, e os profissionais aqui com medo porque eles estavam na linha de frente nesse processo e muitas vezes não se sabia como manusear as coisas, preocupados, saíram de seus lares para esse enfrentamento e nós encontramos um pessoal que tinha uma expertise em relação a essa questão, de como deveriam ser utilizados os equipamentos, quais as preocupações e nós contratamos uma equipe para fazer um treinamento para os nossos agentes de saúde e nossos demais profissionais de saúde, para estes saberem como se precaver e como explicar à população, tirando aquela tensão. Todo mundo tinha que se isolar, mas a equipe de saúde estava lá, de frente, fazendo o trabalho acontecer. Compramos kits para os motoristas que circulavam na área e que levava as pessoas para as compras na cidade, para higienizar os carros e as famílias poderem entrar no carro com certa segurança. Por exemplo, na aldeia Canabrava, logo no início, tivemos oito casos e fizemos um espaço de acolhimento coletivo, isolamos a escola, montamos toda uma estrutura, toda uma equipe montada e voltada para lá. Na época, a informação era de que quando a pessoa se contaminava, ela se isolava dentro de casa, mas a gente dizia: Oxe, mas não vai contaminar os demais da casa? E a gente pensou: vamos fazer o inverso! A gente juntou todo mundo que era da mesma aldeia, no mesmo espaço, com a equipe lá e a assistência à família e eles ficaram ali, com o acompanhamento de uma equipe preparada e nós, enquanto associação, dando assistência. Colocamos cama, internet, televisão, toda uma estrutura de hospital para acolhimento dessas pessoas que foram contaminadas pelo covid-19. Então foi uma luta e a associação atuou rapidamente, tendo em vista que o Estado não tinha condições de acompanhar isso aqui dentro. A SESAI e o governo federal não chegaram e a associação entrou com toda a força para poder dar essa cobertura. (Fala do Cacique Marcos Xukuru na 23ª Assembleia Xukuru) .

Esse relato nos faz refletir em várias direções. Certamente, um dos aspectos interessantes é o tema da autonomia indígena na condução das ações de saúde, que no caso Xukuru se deu por meio da elaboração de um plano de ação colaborativo que trouxe resultados, protegendo a comunidade do vírus, reafirmado pelo cacique a partir da discrepância com os dados epidemiológicos do município. Entretanto, e talvez o mais importante debate, tenha sido a escolha dos Xukuru em reforçar a atenção primária, ao construir espaços afetivos de isolamento nas aldeias, demonstrando o sentido de prevenção e organização coletiva que sempre foi valorizado de maneira sistemática pelos Xukuru ao longo dos anos. Assim, recoloca-se o debate sob outro prisma, de como podemos ter um subsistema eficaz, quando bem gerido, não no sentido orçamentário do termo, mas no sentido de acúmulo de conhecimentos e modelos de organização estruturados localmente ao longo dos anos. Os Xukuru experienciaram isso na pandemia e o dinheiro recebido foi importante, mas isso se deu principalmente pelo acúmulo de conhecimento e não apenas por deter o controle orçamentário. Além disso, o caso Xukuru aponta que a atenção diferenciada não se dá apenas na tentativa de articular sistemas distintos de saúde, mas na capacidade de apresentar e executar ações particulares em meio a políticas públicas generalistas. O caso do povo Xukuru se assemelha ao que foi tratado por antropólogos e antropólogas em outras situações, a de que em plena situação de crise sanitária e de gestão (pelo estado), as ações desses povos tiveram um impacto fundamental, reafirmando a importância da participação social efetiva como base do subsistema. Isso não significa que não houve perdas irreparáveis, como atesta os três volumes do livro “Pandemia e Território” (Almeida; Marim; Melo, 2020aALMEIDA, A. W. B.; MARIN, R. E. A.; MELO, E. A. de. Pandemia e Território. Volume 1: Territórios das mobilizações políticas, Territórios de guerra, desastres e políticas econômicas e Territórios indígenas. São Luís: UEMA Edições/PNCSA, 2020. ), que nos apresentou um panorama dos dramas e vidas arrebatadas já no primeiro ano da pandemia.

A produção de documentos durante a pandemia de covid-19: alguns apontamentos

Analisando parte da produção de documentos do período, considerando os boletins emitidos pela SESAI, assim como os planos de enfrentamento elaborados para cada Distrito Sanitário, podemos perceber que a tônica dos dados girava em torno do constante aumento dos números de infectados e foi a principal forma de produção de conhecimento oficial nos anos de 2020 a 2022. Uma grande massa de informações foi produzida durante este período e que permanece ainda sendo explorada com a devida atenção pelos pesquisadores.

Na coletânea organizada pelas antropólogas Ferreira e Lowenkron ( 2020FERREIRA, L. M.; LOWENKRON, L. Etnografia de documentos. Pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias. Rio de Janeiro: E-papers, 2020. ), temos a oportunidade de refletir sobre os documentos não apenas como conjuntos de dados técnicos com objetivos meramente informacionais, mas, antes, como artefatos culturais que possuem tanto uma dimensão material quanto estética, e que são produzidos em contextos de interação entre pessoas e documentos. As formas desta produção documental não devem ser naturalizadas, mas tratadas como problemas de pesquisa. Especificamente podemos pensar na confluência bem-vinda entre estas reflexões e o debate antropológico sobre práticas estatais no Brasil, com destaque para o complexo contexto no qual as políticas indigenistas brasileiras foram se constituindo ao longo dos anos (Souza Lima, 2002aSOUZA LIMA, A. C. Tradições de conhecimento para gestão colonial da desigualdade: reflexões a partir da administração indigenista no Brasil. In: BASTOS, C.; ALMEIDA, M. V.; FELDMAN-BIANCO, B. (coords.) Trânsitos coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2002ª. p 151-172. , 2002bSOUZA LIMA, A. C. Sobre gestar e gerir a desigualdade: pontos de investigação e diálogo. In: SOUZA LIMA, A.C. Gestar e Gerir: estudos para uma antropologia da administração pública no Brasil. (Coleção Antropologia da Política). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002b. p.11-22. , 2010TEIXEIRA, C. C. Autonomia em saúde indígena: sobre o que estamos falando? Anuário Antropológio 2009/I. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2010. ). Dentro do espaço deste artigo, gostaríamos de destacar e endossar a perspectiva de que “os documentos são tecnologias centrais na produção e fabricação das realidades que governam, sejam elas corpos, territórios, relações” (Ferreira; Lowenkron, 2020FERREIRA, L. M.; LOWENKRON, L. Etnografia de documentos. Pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias. Rio de Janeiro: E-papers, 2020. , p. 9).

Assim, nosso intuito aqui é chamar atenção para dois aspectos desta produção de textos oficiais que conformam o teor dos documentos consultados: a ausência de um planejamento de caráter colaborativo com os povos indígenas (desvalorização da participação social como forma de enfrentamento) e a pouca articulação promovida com o pessoal da atenção primária, uma vez que a ênfase estava dada em medidas de isolamento pensadas a partir da suspensão do cotidiano, sem a devida contextualização das distintas possibilidades de adesão às práticas de isolamento no interior das comunidades indígenas. Iremos tratar mais detalhadamente de dois tipos de documentos: (1) os planos de enfrentamento do governo para os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, a partir do caso do DSEI Pernambuco e (2) os boletins epidemiológicos da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI).

O plano de enfrentamento (Plano de Contingência Distrital para Infecção Humana pelo novo coronavírus (covid-19) em Povos Indígenas) é um tipo de documento oficial, elaborado para ser um conjunto de estratégias de ação para contenção do vírus. Notamos logo na introdução que o documento está voltado aos profissionais de saúde, por meio do qual se reforçam ações técnicas como identificação, notificação e manejo oportuno dos infectados, e não trata, portanto, de uma experiência de manejo ou gestão coletiva da pandemia. Apesar de mencionar o contexto das populações indígenas, os objetivos específicos narrados na sequência não abordam o assunto, como podemos ver a seguir:

  • atualizar os serviços de saúde com base nas evidências técnicas e científicas nacionais e/ou internacionais;

  • evitar transmissão do vírus para profissionais de saúde e contatos próximos;

  • evitar que os casos confirmados evoluam para o óbito, por meio de suporte clínico;

  • orientar sobre a conduta frente aos contatos próximos ;

  • acompanhar a tendência da morbidade e da mortalidade associadas à doença;

  • produzir e disseminar informações epidemiológicas.

Na sequência, temos um parágrafo no qual são apresentados dados da situação epidemiológica do DSEI Pernambuco em relação às síndromes gripais, com o número de casos absolutos de 2019, destacando as semanas epidemiológicas 18 a 22 como as mais críticas do ano devido às condições sazonais de mudança da estação, com mais chuva e frio. Não há outros dados epidemiológicos. As etnias Xukuru do Ororubá, Atikum e Pankararu são citadas neste momento para indicar os polos mais populosos de atendimento. Em seguida, o documento se volta para as “definições de casos operacionais”, que consistem em procedimentos ambulatoriais para o atendimento, dividindo a população entre indígenas que saíram da aldeia nos últimos 14 dias e indígenas que não saíram da aldeia. Entretanto, o documento não menciona as estratégias de circulação no interior da aldeia (como destacamos acima vemos apenas a menção geral de orientar sobre a conduta frente aos próximos ). Conforme vimos na fala do Cacique Marcos, que deu destaque exatamente a outro tipo de isolamento, houve especial consideração à circulação interna como referência, culminando na criação de pequenos hospitais de campanha dentro das aldeias Xukuru. Ao contrário disso, o plano de enfrentamento enfatiza para os profissionais de saúde que “a avaliação do grau de exposição do contato deve ser individualizada , considerando-se o ambiente e o tempo de exposição”. Um quadro baseado nesta percepção individualizada do sujeito foi adicionado, conforme podemos ver abaixo:

Figura 1
. Avaliação do grau de exposição à covid-19

O quadro oferece um mapa de possíveis diagnósticos tendo como limite territorial a aldeia e tendo o indivíduo como referência. Sair e entrar na aldeia se tornou a principal maneira de buscar ativamente pessoas possivelmente contaminadas. Ao mesmo tempo em que a busca ativa está focada nos itinerários de indivíduos que precisam ser mapeados e localizados, a principal unidade espacial que regula os itinerários é a aldeia em toda a sua coletividade.

Apesar de não haver maiores detalhes de como conjugar uma busca por indivíduos e ao mesmo tempo, tomar a aldeia como fronteira a ser vigiada, o documento segue na tentativa de esclarecer sobre 3 níveis de respostas que os profissionais de saúde do subsistema de saúde indígena precisam estar preparados para responder, são eles: Alerta, Perigo Iminente e Emergência em Saúde Pública. Há diferenças no grau de intervenção, mas as recomendações giram em torno de categorias fixadas: Vigilância no SASISUS, Vigilância nos municípios e estados, Suporte laboratorial, Medidas de controle de infecção, Assistência no SASISUS, Assistência nos municípios e estados, Assistência farmacêutica no SASISUS, Assistência farmacêutica nos municípios e estados, Vigilância sanitária - medidas de saúde em pontos de entrada em terras indígenas, Comunicação de risco e Gestão. Cada uma destas categorias é acrescida de um aumento na velocidade e amplitude das respostas. Entretanto, é apenas no último nível de resposta, a Emergência em Saúde Pública, que uma noção de especificidade cultural é mencionada, quando se alerta para a possibilidade de traduzir o material informativo para as línguas indígenas no item Comunicação de risco. Não existe nenhum tipo de reflexão destinada às formas de ação coletiva capazes de produzir enfrentamentos eficazes em situações de crise. Assim como em nenhum momento a ideia de participação social aparece efetivamente no texto. De fato, no momento de crise sanitária, percebemos que a noção de participação social se tornou menos presente nos textos oficiais. E embora o texto seja direcionado aos profissionais da saúde, não há no caso do documento em tela nenhuma menção específica à atuação dos profissionais da atenção primária, engajados diretamente nas rotinas dentro dos distintos territórios e culturas indígenas.

Perguntamo-nos, portanto, se a participação social não poderia ter se tornado mais valorizada em momentos de crise, como vemos no caso dos Xukuru, cuja eficácia das ações de prevenção e isolamento social esteve diretamente ligada a uma noção específica de autonomia: a possibilidade de conjugar a forma de produção de dados e assistência dos agentes governamentais (informes epidemiológicos e protocolos enfrentamento produzidos pelas equipes de saúde), em cooperação com os povos indígenas, que produziram significativas avaliações sobre a melhor forma de lidar com a pandemia nos territórios indígenas e apresentaram resultados interessantes de serem discutidos, com redução do número de casos entre os Xukuru, cuja produção de dados realizadas pela associação Xukuru (como a REMDIPE e a APOINME) inclui redes de pessoas que borram as fronteiras entre aldeia e cidade.

Já os boletins epidemiológicos cumprem uma função de dar dinâmica às decisões cotidianas, atualizando de forma constante o número de infectados que foram oficialmente registrados, isto é, que puderam ser diagnosticados pelos profissionais de saúde e cuja notificação foi computada. Só em termos de boletins epidemiológicos semanais levantamos 820 informes emitidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena e outros 90 boletins produzidos pela Secretaria de Vigilância em Saúde, este último fornecendo dados contrastivos entre as regiões brasileiras.

Nosso interesse de resgatar a produção desse tipo de documento é, primeiramente, ressaltar a dinâmica do repasse de informações, que percorrem um itinerário que sai das aldeias/localidades, chega aos sistemas de consolidação de dados da secretaria e se transformam em números periodicamente divulgados. A produção de dados e seus sentidos atribuídos são, em si mesmas, situações etnográficas a serem exploradas. Em segundo lugar, buscamos chamar atenção para a sua própria forma de produção. Assim como no caso dos protocolos de enfrentamento, os boletins também apresentam seis categorias fixas que buscam fornecer um panorama da situação geral dos povos indígenas do Brasil através do fornecimento do número de casos: (1) suspeitos, (2) confirmados, (3) descartados, (4) infectados, (5) recuperados e (6) óbitos. Mesmo que esses números não sejam precisos, isto é, seus dados são relativos aos contextos diversos e complexos de sua produção, ainda assim, a prática de acompanhar diariamente estes índices se tornou uma forma de linguagem estabelecida pelos documentos oficiais produzidos para a contenção da pandemia. A intensidade de produção destes boletins se tornou um evento tão ou mais importante do que os números trazidos ali, uma vez que a frequência de sua divulgação nos pareceu ser o elemento central de sua forma de produção.

Ainda, podemos destacar que tal documento não se insere na categoria daqueles que promovem ações específicas, mas é entendido como subsídio para as ações. Nesses termos, os povos indígenas localizados fora dos territórios abrangidos pelos distritos sanitários ficam de fora dessa conta. Já as redes indígenas acionadas pelas organizações indígenas, como no caso Xukuru, parecem nos apontar para possibilidades que se complementam aos dados oficiais na medida em que se desprendem da territorialização distrital estrita e elegem formas de atuação coletivas e localmente conectadas.

Considerações Finais

A pandemia de covid-19 nos alertou para várias questões. Antes da pandemia, o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena estava sob forte ameaça, assim como o SUS, que viveu período de intensa desvalorização. Na ocasião se cogitou articular o sistema público de saúde com o privado. No entanto, a pandemia trouxe um debate para o grande público sobre a importância do SUS no combate a eventos dessa magnitude. O SUS permaneceu quando o sistema privado quase colapsou. A realidade mostrou que com a chegada da vacina, a rede de atenção básica foi acionada e o Brasil, com uma população gigantesca, conseguiu distribuir e vacinar rapidamente as pessoas.

No caso do Subsistema, os indígenas de todo o país saíram em defesa do mesmo. Evidentemente a adoção de medidas sanitárias e orientações epidemiológicas foram, nessa ocasião, a base da atenção primária, mas como problematizamos, foi também um momento em que se deixou de lado um enorme aprendizado e não se deu a devida atenção ao princípio da gestão e da participação social, base do subsistema. Perdemos a chance de potencializar e melhorar o subsistema a partir das experiências locais de combate ao vírus. O caso Xukuru é um dos casos que nos mostra a importância de superar o campanhismo de políticas generalistas, que pouco reconhece as forças locais de atuação. A partir desse conjunto de questões e com a criação do Ministério dos Povos Indígenas, talvez possamos retomar o debate, considerando formas organizativas de gestão da saúde que englobam as especificidades culturais em sentido amplo, articulando experiências saúde e doença aos processos políticos de gestão e produção de dados.

Para retomar o debate estabelecido entre as autoras de referência que citamos ao início do texto, seria importante reconhecer que, embora as atuações indígenas em torno da pandemia não tenham sido aproveitadas como poderiam, buscamos problematizar o tipo de vínculo construído política e historicamente que retroage a um tempo muito anterior ao da pandemia de covid-19. Afinal, a autonomia pela qual se luta não é aquela do fazer sozinho, não é uma autogestão, como vemos em casos como o da relação entre os povos indígenas e o estado no Canadá, analisado por Teixeira (2009). Ademais, a ideia de articulação dos sistemas de saúde deve ser pensada, como bem destacaram Langdon e Garnelo ( 2004LANGDON, E. J.; GARNELO, L. Saúde dos povos indígenas. Reflexões sobre Antropologia participativa. Rio de Janeiro: Contra Capa/ABA, 2004. ) em coletânea seminal sobre o assunto, enquanto uma participação tanto de usuários indígenas, profissionais de saúde e antropólogos envolvidos no processo de assistência à saúde indígena.

Assim, mais do que comparar a linguagem normativa dos textos oficiais à realidade “concreta”, considerando que ambas são constituídas em meios a disputas de significados, nosso intuito foi o de apontar que a própria produção documental (tanto por meio das assembleias Xucuru quanto dos informes oficiais do governo) já configura um conjunto de práticas a serem analisadas, isto é, representam formas do conflito produzido no âmbito da saúde indígena. Deste modo, evitamos naturalizar as práticas estatais e ensejamos um debate premente na saúde indígena: como articular não somente distintas percepções de saúde, mas distintas percepções de Estado na produção da assistência no interior do subsistema de saúde indígena brasileiro?

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  • 1
    No caso de Pernambuco, há uma importante rede de produção dados, a Rede de Monitoramento de Direitos Indígenas em Pernambuco (REMDIPE), associada aos trabalhos da APOINME, que pode ser acessada em: https://www.indigenascontracovidpe.com/boletimremdipe .
  • 2
    Durante a pandemia muitos textos foram produzidos articulando a situação dos povos indígenas e o SUS. Entre eles, podemos citar: Cruz; Fernandes; Jesus, 2020CRUZ, F.S.M; FERNANDES, F.S.; JESUS, F.S.B. de. Povos Indígenas e os desafios da covid 19: Produção de Memória e Mobilizações Políticas. In: NOGUEIRA, E. M. de S.; SANTANA, I. de (orgs.). Lições e Memórias de uma pandemia. São Paulo: SABEH, 2020. p. 225-243. ; Modesto; Neves, 2020MODESTO, J.G.; NEVES, I.B. Povos Indígenas em Contexto de Crise Sanitária: Reflexões sobre Estratégias de Enfrentamento à covid-19. Vulkapanavo: Revista Terena, [s. l.], n. 4, 2020 ; Santos; Pontes; Coimbra Jr., 2020SANTOS, R. V.; PONTES, A. L.; COIMBRA JR, C. E. A. A “total social fact”: COVID-19 and indigenous peoples in Brazil. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 10, 2020. ; Scopel; Dias-Scopel; Neves; Segata, 2021SCOPEL, D.; DIAS-SCOPEL, R.; NEVES, R. C. M.; SEGATA, J. Os povos indígenas e a covid-19. Espaço Ameríndio, Porto Alegre, v. 15, n. 2, p. 1-15, 2021. ; Alarcon e Pontes, 2022ALARCOM, D. F.; PONTES, A. L.de M. A gente precisa lutar de todas as formas: Povos Indígenas e o enfrentamento da covid-19 no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2022. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2024
  • Aceito
    08 Ago 2024
  • Revisado
    20 Ago 2024
Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Pública. SP - Brazil
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