Resumo
A desinstitucionalização, apoiada na experiência da psiquiatria democrática italiana, se tornou o eixo principal das políticas da reforma psiquiátrica brasileira. Contudo, a tendência a isolar usuários de saúde mental ainda persiste, levando a internações recorrentes ou à neoinstitucionalização. Na ausência dos antigos manicômios, vêm se constituindo novos circuitos de confinamento da loucura, que têm as comunidades terapêuticas como exemplo paradigmático. Considerando que a instituição é o conjunto de dizeres, práticas e moralidades que levam à objetificação dos usuários, traduzindo a racionalidade dominante, é preciso revelar a ideologia destes novos redutos manicomiais para entender a função que cumprem na sociedade atual. O presente artigo busca, portanto, analisar, por meio de revisão bibliográfica narrativa, o que estas instituições representam, como operam e quais questões elas colocam para a rede de atenção psicossocial - em particular os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Ao discutir o caso do Centro Vita e das comunidades terapêuticas, que expressam uma lógica semelhante, constatou-se que, se por um lado são locais destinados à morte dos improdutivos, por outro, encarnam moralidades e mentalidades atravessadas pelo discurso religioso, respondendo a necessidades subjetivas e existenciais que precisam ser tratadas com urgência, diante da crescente desfiliação social que assola os usuários de saúde mental e seus familiares.
Palavras-chave:
Neoinstitucionalização; Comunidades Terapêuticas; Religião; Reforma Psiquiátrica; CAPS
Introdução
Apoiada na experiência da psiquiatria democrática italiana, a desinstitucionalização se tornou o eixo das políticas da reforma psiquiátrica brasileira, buscando não só retirar usuários de saúde mental dos hospitais psiquiátricos, como também garantir sua inserção social com o apoio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Estes serviços oferecem recursos terapêuticos variados, como oficinas terapêuticas, projetos de geração de trabalho e renda, atendimentos individuais, em grupo e aos familiares, acolhimento à crise, visitas domiciliares, passeios e articulações com clínicas da família e outros serviços do território. É por meio destas estratégias que os CAPS buscam não só desconstruir a instituição psiquiátrica enquanto estabelecimento, mas também como conjunto de dizeres, práticas e moralidades que levam à objetificação dos usuários, traduzindo a racionalidade dominante. Apesar disso, a tendência a excluir e isolar a loucura ainda persiste, levando a internações recorrentes ou à neoinstitucionalização (Fiocruz; Fundação Calouste Gulbenkian, 2015FIOCRUZ - FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ; FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN. Inovações e Desafios em Desinstitucionalização e Atenção Comunitária no Brasil: Documento Técnico Final. Rio de janeiro: Fiocruz; Fundação Calouste Gulbenkian, 2015.). Entre abrigos, asilos e clínicas psiquiátricas particulares, comunidades terapêuticas e prisões, muitos sujeitos vêm sendo capturados novamente pela lógica asilar. A família, que se tornou peça-chave no cuidado do membro com transtorno mental, busca, muitas vezes, a internação como forma de aliviar a sobrecarga física e subjetiva trazida pela relação diária com o paciente e também porque ainda entende o tratamento hospitalar como resposta mais eficaz a alterações emocionais e comportamentais.
O presente artigo busca discutir o que estas instituições representam, de que modo operam e quais questões colocam para a reforma psiquiátrica, oferecendo subsídios para o CAPS repensar sua atuação. Trata-se de um ensaio reflexivo sobre o tema da neoinstitucionalização de usuários de saúde mental, com base em uma revisão bibliográfica narrativa que cotejou artigos, livros e relatórios que discutem e mapeiam as novas institucionalizações, sobretudo em comunidades terapêuticas (CTs), com debates sociológicos e filosóficos capazes de contribuir para ampliar a compreensão do fenômeno. Ao discutir o caso do Centro Vita, em Porto Alegre, e, em seguida, das comunidades terapêuticas, que expressam lógica semelhante, será possível constatar tanto o contexto social, político e econômico que dá margem à constituição destas instituições, quanto os sentidos que os usuários e familiares ali encontram, tendo a religião como fio condutor. Por se tratar de um movimento que vai na contramão da reforma psiquiátrica e da atuação dos CAPS, esta tendência pode contribuir para colocá-los em análise e apontar caminhos para a superação de obstáculos pelos serviços substitutivos.
Se por um lado há uma vasta bibliografia sobre porta giratória11Este fenômeno começou a ser estudado na década de 60, sendo considerado uma consequência do modelo, ainda em implementação, da reforma psiquiátrica. O método para definir a porta giratória se baseia em uma razão entre a frequência de reinternações e o tempo de estudo, que podem variar em diferentes proporções: duas ou mais internações no período de um ano; três ou mais no período de dois anos; quatro ou mais em um período de cinco anos; quatro ou mais sem intervalo superior a dois anos e meio, no curso de dez anos (Parente et al., 2007)., investigando suas razões e estratégias para minorá-la (Machado; Santos, 2012MACHADO, V. C.; SANTOS, M. A. O apoio familiar na perspectiva do paciente em reinternação psiquiátrica: um estudo qualitativo. Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, v. 16, n. 42, p. 793-806, 2012. DOI: 10.1590/S1414-32832012005000036
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201200... ; Muniz; Nogueira; Guljor, 2014MUNIZ, P. L.; NOGUEIRA, M. I.; GULJOR, A. P. O fenômeno revolving door: um desafio à reforma psiquiátrica. Diversitates International Journal, Niterói, v. 6, n. 2, 2014.; Sgambati, 1983SGAMBATI, E. R. V. Reinternação e rejeição familiar: um estudo com pacientes psiquiátricos. 1983. 82 f. Dissertação (Mestrado em Enfermagem) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1983.; Silva; Stefanelli, 1991SILVA, M. C.; STEFANELLI, M. C. Estudo preliminar sobre fatores que levam a reinternação de pacientes em hospitais psiquiátricos. Revista Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 10, n. 1, p. 21-28, 1991.; Silveira et al., 2016SILVEIRA, L. H. C. et al. O outro lado da porta giratória: apoio comunitário e saúde mental. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 21, n. 2, p. 325-335, 2016.; Solomon; Doll, 1979SOLOMON, P.; DOLL, W. The varieties of readmission: the case against the use of recidivism rates as a measure of program efectiveness. American Journal of Orthopsyquiatry, Washington, DC, v. 49, n. 2, p. 230-239, 1979.), há poucos estudos sobre os casos que vêm sendo institucionalizados em outros tipos de asilo. Nos Estados Unidos, embora a porcentagem de americanos que viviam em instituições de todos os tipos tenha se mantido em 1% de 1950 a 1970, a proporção desse número ocupando os hospitais estatais caiu de 39% para 20%, enquanto nas casas de repouso aumentou de 19% para 44%, sendo as condições nos lares de idosos tão escandalosas quanto as dos andarilhos pela cidade (Talbott, 2004TALBOTT, J. A. Deintitutionalization: avoiding the disasters of the past. Psychiatric Services Washington, DC, v. 55, n. 10, p. 1112-1115, 2004. DOI: 10.1176/appi.ps.55.10.1112
https://doi.org/10.1176/appi.ps.55.10.11... ). De acordo com Melman (2001MELMAN, J. Família e Doença Mental: repensando a relação entre profissionais de saúde e familiares. São Paulo: Escrituras, 2001.), alguns pacientes, principalmente os que tiveram o quadro piorado pela longa permanência institucional, foram transferidos para asilos não psiquiátricos e comunidades terapêuticas privadas e um grande contingente acabou abandonado nas ruas.
De acordo com Marrow e Luhrmann (2012MARROW, J.; LUHRMANN, T. M. The zone of social abandonment in cultural geography: on the street in the United States, inside the family in India. Culture, Medicine, and Psychiatry, Berlin, v. 36, n. 3, p. 493-513, 2012.), a presença de esquizofrênicos em situação de rua se tornou quase a norma nos EUA. Muitas pessoas com transtorno psicótico grave vivem de forma nômade, deslocando-se entre moradias assistidas, abrigos, internações hospitalares, sistema prisional e a condição de sem-teto, o que Kim Hopper chamou de ‘’circuito institucional’’ (Hopper et al., 1997 apud Marrow; Luhrmann, 2012MARROW, J.; LUHRMANN, T. M. The zone of social abandonment in cultural geography: on the street in the United States, inside the family in India. Culture, Medicine, and Psychiatry, Berlin, v. 36, n. 3, p. 493-513, 2012.). Embora ofereçam algum tratamento de saúde mental, reabilitação, refeições e leitos para aqueles que de outra forma estariam completamente desassistidos, essas instituições também os mantêm em uma situação de marginalidade, expressando o paradoxo do cuidado/abandono. Ao encerrar pessoas pobres com doenças mentais graves fora da habitação convencional, em locais semelhantes aos campos de refugiados americanos, o “circuito institucional” acaba por corroborar a falta de moradia no mesmo ato em que oferece abrigo (Marrow; Luhrmann, 2012MARROW, J.; LUHRMANN, T. M. The zone of social abandonment in cultural geography: on the street in the United States, inside the family in India. Culture, Medicine, and Psychiatry, Berlin, v. 36, n. 3, p. 493-513, 2012.).
Em Boston, apenas 500 dos 4000 pacientes retirados do Hospital Estadual, a partir de 1960, estavam vivendo na comunidade (Bandeira, 1991BANDEIRA, M. Desinstitucionalização ou transinstitucionalização: lições de alguns países. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 40, n. 7, p. 355-360, 1991.). Do restante, 200 retornaram, por serem tidos como incapazes de uma vida em sociedade, 1500 já estavam mortos em 1977, 800 foram para os Nursing homes e 1000 para outros serviços, como board-and-care e casas de transição. Para Talbott (2004TALBOTT, J. A. Deintitutionalization: avoiding the disasters of the past. Psychiatric Services Washington, DC, v. 55, n. 10, p. 1112-1115, 2004. DOI: 10.1176/appi.ps.55.10.1112
https://doi.org/10.1176/appi.ps.55.10.11... ), o que se alcançou não foi a desinstitucionalização, mas a transinstitucionalização. O paciente com doença mental crônica teve seu locus de vida e cuidados transferidos de uma única instituição ruim para várias miseráveis. Nesta mesma perspectiva, Rotelli (2001ROTELLI, F. A instituição inventada. In: NICÁCIO, M. F. (org.). Desinstitucionalização. 2. ed. São Paulo: Hucitec , 2001. p. 89-99.) afirma que a desinstitucionalização, entendida e praticada como desospitalização, levou não só ao abandono de parcelas significativas da população psiquiátrica, como também à transinstitucionalização (passagem para casas de repouso, albergues para idosos, “cronicários ‘não psiquiátricos’”...) e a outras formas - mais obscuras - de internação. Quando a desospitalização se fez conforme instâncias burocrático-administrativas, e não foi acompanhada de um complexo processo de desinstitucionalização, teve como resultado o “aviltamento dos significados” e “uma realidade feita de esqualidez e abandono” (Venturini, 2016VENTURINI, E. A linha curva: o espaço e o tempo da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2016., p. 112).
Na Europa, estudos indicam que, desde 1990, a diminuição do número de leitos em hospitais psiquiátricos vem sendo acompanhada do aumento de internações forenses, de vagas em moradias protegidas e de pessoas com transtornos mentais nas prisões. Com base na análise de dados de 11 diferentes países da Europa ocidental (Reino Unido, Irlanda, Dinamarca, Áustria, Bélgica, França, Alemanha, Suíça, Holanda, Espanha e Itália), Chow e Priebe (2016CHOW, W. S.; PRIEBE, S. How has the extent of institutional mental healthcare changed in Western Europe? Analysis of data since 1990. BMJ Open, London, v. 6, n. 4, 2016. DOI: 10.1136/bmjopen-2015-010188
https://doi.org/10.1136/bmjopen-2015-010... ) concluíram que as associações e os fatores propulsores desta tendência permanecem indefinidos. Por isso, as autoras indicam a necessidade de novas pesquisas, que levem em conta as características dos pacientes das diferentes instituições, avaliem a efetividade do cuidado em cada uma delas e abarquem um período de longo prazo, com o objetivo de respaldar políticas mais adequadas em saúde mental.
Na Índia, apesar de grande parte das pessoas com transtorno mental permanecer subjugada no meio familiar, há um circuito institucional particular para onde são levadas quando as famílias têm recursos financeiros (Marrow; Luhrmann, 2012MARROW, J.; LUHRMANN, T. M. The zone of social abandonment in cultural geography: on the street in the United States, inside the family in India. Culture, Medicine, and Psychiatry, Berlin, v. 36, n. 3, p. 493-513, 2012.). Desde a década de 1980, há novos hospitais psiquiátricos privados em funcionamento, construídos como reflexo da desinstitucionalização indiana, que transformou as instituições de custódia financiadas pelo Estado em unidades para o cuidado de quadros psiquiátricos agudos. Tais hospitais favorecem o abandono, por permitirem o não comparecimento dos parentes para visitação dos internos.
No Brasil, os retrocessos também vêm se apresentando com a tendência à neoinstitucionalização, através da política de assistência social (com os abrigos para idosos, crianças e adolescentes), de álcool e outras drogas (com as comunidades terapêuticas), da expansão dos planos de saúde com baixa regulação estatal (que levam ao aumento nas internações psiquiátricas em estabelecimentos privados), do sistema socioeducativo (com as internações de adolescentes que cometem delitos), do sistema penal (tanto nos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico quanto na prisão comum, fenômeno ainda pouco estudado) (Fiocruz; Fundação Calouste Gulbenkian, 2015FIOCRUZ - FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ; FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN. Inovações e Desafios em Desinstitucionalização e Atenção Comunitária no Brasil: Documento Técnico Final. Rio de janeiro: Fiocruz; Fundação Calouste Gulbenkian, 2015.). Em relação a este último ponto, Bandeira (1991BANDEIRA, M. Desinstitucionalização ou transinstitucionalização: lições de alguns países. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 40, n. 7, p. 355-360, 1991.) afirma que, sem o tratamento medicamentoso combinado com terapia de suporte, aumenta a probabilidade de agravamento de surtos agudos, sintomas ativos e uso de drogas, levando muitos pacientes a cometerem pequenos roubos e assaltos que culminam no ciclo ruas-prisão-hospital. Segundo Brink (2005BRINK, J. Epidemiology of mental illness in a correctional system. Current Opinion in Psychiatry, v. 18, n. 5, p. 536-541, 2005. DOI: 10.1097/01.yco.0000179493.15688.78.
https://doi.org/10.1097/01.yco.000017949... ), a porcentagem de presos com transtornos mentais oscila entre 55% e 80% e as taxas de psicose nesses ambientes são, muitas vezes, mais altas do que na comunidade. Uma série de estudos em diferentes países indica que a prevalência de transtornos mentais na população carcerária é significativa, podendo ser de cinco a dez vezes maior do que na população em geral (Andreoli et al., 2014ANDREOLI, S. B. et al. Prevalence of mental disorders among prisoners in the state of Sao Paulo, Brazil. PLoS One, Bethesda, v. 9, n. 2, 2014. DOI: 10.1371/journal.pone.0088836
https://doi.org/10.1371/journal.pone.008... ).
Em pesquisa desenvolvida na cidade de São Paulo por Andreoli et al. (2014ANDREOLI, S. B. et al. Prevalence of mental disorders among prisoners in the state of Sao Paulo, Brazil. PLoS One, Bethesda, v. 9, n. 2, 2014. DOI: 10.1371/journal.pone.0088836
https://doi.org/10.1371/journal.pone.008... ), foi constatado que a prevalência por toda a vida e por 12 meses de qualquer transtorno mental na população carcerária é de, respectivamente, 68,9% e 39,2% entre mulheres, e 56,1% e 22,1% entre homens, proporção significativamente maior do que fora da cadeia. Em relação a transtornos mentais graves, enquanto os índices variam entre 0,4% e 7,7% na população geral, foram identificadas taxas de prevalência por 12 meses de 14,7% e 6,9% entre mulheres e homens presos, respectivamente, resultados semelhantes aos de outros estudos.
Segundo Lefebvre (1987LEFEBVRE, Y. Chercher asile dans la communauté. Santé mentale au Quebec, Quebec, v. 12, n. 1, p. 66-78, 1987.), as instâncias judiciárias e jurídicas têm contribuído para que a prisão se torne uma alternativa à desinstitucionalização, a ponto de os casos psiquiátricos ocuparem de 10% a 15% das vagas no sistema carcerário. A insuficiência e inadequação dos serviços sociais e de cuidado, bem como a incompreensão e a rejeição tanto das unidades públicas de saúde quanto da comunidade em relação a uma parcela de jovens pacientes psiquiátricos, contribuem para que sejam capturados pelo sistema criminal. O rótulo da periculosidade é usado para justificar a sua exclusão e encobrir a incapacidade da rede de tratá-los.
Zonas de abandono social
As novas formas de isolar pacientes com graves transtornos mentais são relatadas por Venturini:
Permanece existindo a resposta de sistematizar as pessoas incômodas ou improdutivas e, em torno dessa exigência, solidificam-se interesses variados. Como exemplo desse mecanismo temos o peso crescente colocado sobre as prisões, os centros de detenção temporária para imigrantes, as instituições para deficientes, as residências sanitárias assistidas para idosos, as comunidades terapêuticas geridas pela iniciativa privada e destinadas ao tratamento dos usuários de álcool e outras drogas [...] na psiquiatria, surgem novas formas de assistência, geridas pela iniciativa privada, mais mórbidas que os antigos institutos segregadores: as residências para portadores de sofrimento mental, as comunidades protegidas, os lares para idosos - verdadeiros guetos do século XXI (Venturini, 2016VENTURINI, E. A linha curva: o espaço e o tempo da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2016., p. 85-86).
Evidencia-se aí que uma rede paralela aos serviços da reforma psiquiátrica persiste, reatualizando formas de confinamento jamais superadas. Para Biehl (2005BIEHL, J. Vita: Life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005.), as demandas e estratégias da luta antimanicomial foram enredadas por movimentos neoliberais no campo da saúde e até impulsionaram estes movimentos, na medida em que pacientes psiquiátricos foram despejados de manicômios superlotados e ineficientes, mas poucos investimentos destinaram-se à rede territorial. Passou a haver mais pessoas com transtornos mentais nas ruas do que nunca. Em meio às altas taxas de pobreza, desemprego, narcotráfico e violência, instituições filantrópicas e religiosas assumiram o papel do cuidado para grupos desamparados por um Estado cada vez mais ausente. Estes espaços são erguidos ante o “vácuo de respostas” no qual a população mais pobre se vê.
Na cidade de Porto Alegre - local da pesquisa etnográfica de Biehl (2005BIEHL, J. Vita: Life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005.) -, enquanto o número de “casas geriátricas” era de aproximadamente 25, em 1976, no início da década de 2000 já havia mais de 200, sendo que 70% operavam de forma clandestina, abrigando idosos, “doentes” mentais e pessoas com deficiências graves. Muitas delas recebiam recursos estatais e doações filantrópicas (Biehl, 2005BIEHL, J. Vita: Life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005.). No ano de 1997, inspeções sanitárias identificaram que entre 20% e 30% dos pacientes das mais de 200 instituições existentes eram psiquiátricos.
O Centro Vita - asilo/instituição de reabilitação para usuários de drogas e alcoolistas em Porto Alegre - recebe, desde a década de 90, não só alcoolistas e dependentes químicos, mas também um crescente número de pessoas com laços familiares rompidos, como pacientes psiquiátricos, doentes, desempregados e moradores de rua, deixados lá por parentes, vizinhos, hospitais e a polícia22Toda a análise sobre a instituição presente neste artigo, incluindo falas de funcionários, decorre de uma leitura crítica da etnografia feita por Biehl (2005) no estabelecimento, e não de observação in loco.. Seu fundador, “Zé das drogas”, ex-morador de rua e ex-narcotraficante, após se converter ao pentecostalismo, teve uma visão na qual um espírito lhe dizia para abrir uma instituição em que pessoas como ele poderiam encontrar Deus e regenerar suas vidas. Alguns internos pertenciam a famílias de trabalhadores ou de classe média e outros vinham de instituições médicas ou estatais das quais foram despejados para as ruas ou direto para o Vita. Vemos aí um processo de transinstitucionalização e não de desinstitucionalização como preconizaria a política da reforma. O exemplo do Centro Vita, neste caso, visa contribuir para a compreensão da lógica que opera nos espaços de neoinstitucionalização e do que motiva a exclusão de inúmeros usuários de saúde mental neste circuito, revelando uma racionalidade comum às comunidades terapêuticas, como será visto adiante.
Segundo a etnografia de Biehl (2005BIEHL, J. Vita: Life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005.), o acompanhamento no Centro envolvia uma rotina disciplinar, com o ensinamento de valores cívicos, “boa” alimentação, higiene pessoal, abstinência total de cigarros, drogas e bebidas, laborterapia, grupos de autorreflexão, administração de medicações psiquiátricas, contenção mecânica em determinadas situações e a religião, que se manteve presente na trajetória da instituição desde o início. Um dos funcionários fez dela a base do acompanhamento na enfermaria, mediando a conversão religiosa de seus colegas mais próximos e trazendo seus amigos da igreja pentecostal para trabalhos regulares.
Se, por um lado, não havia um tratamento adequado para os casos psiquiátricos, por outro, os pacientes não tinham para onde ir e alguns até procuravam a instituição. Sem alternativa, Vita os mantinha ali, buscando promover a moralização dos comportamentos, o controle por meio de psicofármacos ou simplesmente o afastamento do convívio social.
A exclusão é tão radical nestes espaços, bem como a condição de exceção em relação à justiça e direitos humanos, que Biehl (2005BIEHL, J. Vita: Life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005.) usa a noção de “ex-humanos” para designar os que ali se encontram. Vita não se enquadrava nos preceitos da reforma psiquiátrica, mantinha-se isenta de fiscalizações ou regulações e ainda era apoiada por juízes, que a elogiavam e argumentavam não haver outro lugar para os internos. Grandes somas de dinheiro eram destinadas ao Centro através de fundos regionais e nacionais reservados ao trabalho filantrópico e pastoral que substituía antigas instituições estatais. Na realidade, a etnografia de Biehl (2005)BIEHL, J. Vita: Life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005. acaba por revelar que a função de deixar as pessoas morrerem é o que mais garante dinheiro à instituição, pois conforme o Estado não se responsabiliza por idosos, deficientes e pessoas com transtorno mental, é preciso assegurar um lugar onde tenham o seu fim.
Em 1995, grande parte dos 200 pacientes da enfermaria não tinha identificação formal e vivia em situação degradante. Estas “zonas de abandono social”, que se disseminam por toda parte nas grandes cidades brasileiras, “abrigam em condições desumanas, os doentes mentais e sem teto, pacientes com AIDS, os novos e velhos corpos improdutivos” (Biehl, 2005BIEHL, J. Vita: Life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005., p. 4). Além de não intervirem nestas zonas, as autoridades direcionam os indivíduos indesejados para elas, garantindo que permaneçam anônimos, sem direitos e sem ninguém que se responsabilize por seu cuidado. Deste modo, estas instituições não estão apenas abrigando aqueles que não se enquadram no jogo político-econômico, mas também assegurando a sua exclusão ao lhes inserir em uma nova delimitação social, capaz de manter o seu lugar de exceção e isentar o poder público da responsabilidade. Em última instância, esses espaços atuam para acelerar a morte destas pessoas.
Nesse sentido, Agamben (2002AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.) propõe a noção de vida nua com base no Homo Sacer, figura do direito romano que designa aquele cuja existência não tem qualquer valor, do qual o assassinato não seria punido nem sequer considerado como tal. É um protótipo do que ocorre nos campos de concentração, configuração típica de estados de exceção, que, para o autor, vêm se tornando o próprio modo de funcionamento do poder democrático na contemporaneidade. O corpo como realidade biopolítica é alçado de tal maneira à posição de instrumento produtivo do Estado que a possibilidade de matá-lo se torna a principal ferramenta do poder (Agamben, 2002AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.). Ele perde seu valor e sentido na cidade para além dos atributos biológicos que o movimentam ao trabalho. Como mostra Mbembe (2018MBEMBE, A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.), com o conceito de necropolítica, o sistema capitalista é intrinsecamente baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e morrer. Para o autor, a lógica do sacrifício sempre esteve no coração do neoliberalismo, que poderia, portanto, ser chamado de “necroliberalismo”.
Em Vita, os corpos são matáveis justamente por não se enquadrarem no jogo econômico. O “fazer morrer”, próprio à soberania aristocrática, se atualiza neste estado de exceção permanente que se abate sobre loucos, dependentes químicos, miseráveis, criminosos, entre outros. O necropoder, elemento estrutural do neoliberalismo atual, opera por meio de práticas e dispositivos que gerenciam a morte de determinadas populações (Mbembe, 2018MBEMBE, A. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.). Logo, o “fazer morrer, deixar viver” da soberania não é exatamente substituído pelo “fazer viver, deixar morrer” dos Estados nacionais no exercício do biopoder,33Para Foucault (1999), o poder do Rei de matar os súditos era o que garantia o controle sobre eles na época da soberania. Com a assunção dos Estados nacionais modernos no século XVIII, se forma um outro tipo de poder, que se exerce não mais a partir da capacidade de fazer morrer, mas de fazer viver. A vida ganha valor político devido à sua capacidade produtiva. Nasce com o capitalismo a realidade de um novo corpo, que se constitui como força de trabalho das nações. Este corpo-riqueza precisa ser cuidado e otimizado na sua dimensão coletiva, como parte de um todo - a população - atravessado por processos biológicos como natalidade, morbidade, mortalidade, envelhecimento... O Estado passa a administrar estes processos naturais através do biopoder, tendo a medicina como um dos principais instrumentos. mas “fazer viver e fazer morrer” convivem e se complementam para garantir que a sociedade se constitua dentro de um certo molde. O governo atua sobre a vida também através do poder de morte.
Segundo o próprio Foucault (1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.), a produção de vida está articulada à possibilidade de deixar morrer, pois a eliminação de uns asseguraria a existência de todos, em lógicas como a do racismo de Estado e das guerras. O genocídio não tem apenas o sentido de morte física, mas de aniquilação política e expulsão do tecido social. Nas palavras do autor, “a morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura” (Foucault, 1999FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., p. 305).
Ao traçar os motivos que levam ao abandono de alguém em um lugar como Vita, torna-se possível compreender os arranjos sociais, familiares, médicos, psicofarmacológicos e científicos que determinam quem merece viver ou morrer. A família é uma peça central na engrenagem que arbitra se o paciente vai permanecer na sociedade ou será abandonado à morte, e a ciência, através da medicação, assume a função de trazer certa neutralidade para esta decisão.
Com a queda dos investimentos estatais em setores públicos no contexto do neoliberalismo, a família assume o papel de “psiquiatra por procuração”, recorrendo a técnicas médicas para exercer funções que seriam do Estado na forma dos serviços de saúde (Biehl, 2005BIEHL, J. Vita: Life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005.). Com base em uma lógica de controle e produtividade, os membros com transtornos mentais que não aceitam a medicação e permanecem fora da ordem estabelecida pelo grupo familiar são destinados ao asilo. Para Alverga e Dimenstein (2006ALVERGA, A. R.; DIMENSTEIN, M. A reforma psiquiátrica e os desafios na desinstitucionalização da loucura. Interface: comunicação, saúde, educação, Botucatu, v. 10, n. 20, p. 299-316, 2006. DOI: 10.1590/S1414-32832006000200003
https://doi.org/10.1590/S1414-3283200600... ), formas manicomiais de expressão ou de subjetividade permeiam todo o espaço-tempo, atravessando nossas ações. São os “desejos de manicômio”, isto é, os anseios de dominar, subjugar, classificar, hierarquizar, oprimir e controlar entranhados no tecido social, que geram a força motriz das instituições, expressando-se nas práticas e concepções ainda presentes no campo da saúde mental.
O histórico de abandono pode ser tomado como o negativo de uma fotografia, que se revelada, evidencia as formas de vida endossadas na atualidade. As frequentes perguntas retóricas de familiares e técnicos do Centro Vita indagando “o que fazer?”, de forma a indicar que não há outra saída além da exclusão, parecem revelar que os modos de ser contemporâneos não pretendem se reformular para abarcar os que não se enquadram no cotidiano produtivista. A fala de um funcionário da instituição é emblemática neste sentido. Segundo ele, diante de um membro familiar doente e improdutivo, sobretudo em famílias de baixa renda, não haveria outra saída que não a institucionalização.
Comunidades terapêuticas e o paradigma religioso
Embora o Centro Vita não se intitule como comunidade terapêutica, ele guarda inúmeras semelhanças com estas instituições. De acordo com o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas (CFP, 2018CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas - 2017. Brasília, DF: CFP, 2018. Disponível: <Disponível: site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-Nacional-em-Comunidades-Terap%C3%AAuticas.pdf > Acesso em: 15 jun. 2019.
site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/... ), enquanto o número de leitos em hospitais psiquiátricos teve forte queda nos últimos anos, as comunidades cresceram em quantidade e vêm ganhando novos usos, passando a internar não só usuários de álcool e outras drogas, mas também pacientes com transtornos mentais severos, idosos sem moradia e pessoas cujos comportamentos são julgados moralmente desviantes. Este perfil evidencia que as comunidades ganharam a função de isolar sujeitos com condutas socialmente condenáveis. Nas palavras do relatório, “cada um dos exemplos ratifica o perfil desses espaços como expressão contemporânea de segregação” (CFP, 2018CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas - 2017. Brasília, DF: CFP, 2018. Disponível: <Disponível: site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-Nacional-em-Comunidades-Terap%C3%AAuticas.pdf > Acesso em: 15 jun. 2019.
site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/... , p. 136). A internação de usuários com diferentes tipos de sofrimento psíquico revela que estas instituições vêm se tornando “uma renovada expressão dos estabelecimentos manicomiais” (CFP, 2018CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas - 2017. Brasília, DF: CFP, 2018. Disponível: <Disponível: site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-Nacional-em-Comunidades-Terap%C3%AAuticas.pdf > Acesso em: 15 jun. 2019.
site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/... , p. 139). Tanto no Centro Vita como nas comunidades, o saber psiquiátrico só existe em associação com outras abordagens, formando um híbrido que busca não só o tratamento psicopatológico, mas, sobretudo, o controle dos corpos através das medicações, religião e práticas disciplinares.
Estas instituições existem no Brasil e em outros países desde o final da década de 1960, mas se disseminaram com maior intensidade aqui nas últimas décadas, tanto através de organizações religiosas vinculadas a inúmeras igrejas cristãs quanto de organizações privadas com fins lucrativos (Vasconcelos; Cavalcante, 2019VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. A importância da produção acadêmica e do debate sobre as religiões/espiritualidade na atual conjuntura social e política brasileira e, particularmente, na política de drogas. In: VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec , 2019. p. 13-30.). Na qualidade de pessoa jurídica, elas vêm adotando diversas nomeações no Brasil: clínicas, centros de tratamento, comunidades religiosas e laicas, casas e comunidades terapêuticas acolhedoras, tanto filantrópicas quanto privadas. Oferecem serviços geralmente situados em áreas isoladas, sem formalização jurídica, muitos criados por ex-dependentes químicos em abstinência (Cavalcante, 2019CAVALCANTE, R. A institucionalização clínica e política das comunidades terapêuticas e a sua relação com a saúde mental brasileira. In: VASCONCELOS, E. M; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec, 2019. p. 245-308.).
As comunidades ganharam espaço no âmbito público após serem incluídas na Rede de Atenção Psicossocial, na categoria “Serviços de Atenção em Regime Residencial”, e definidas, segundo a Portaria nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011, do Ministério da Saúde, em seu art. 9º, inciso I, como locais destinados “a oferecer cuidados contínuos de saúde, de caráter residencial transitório por até nove meses para adultos com necessidades clínicas estáveis decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas” (Brasil, 2011BRASIL. Portaria MS/GM nº 3.088, de 23 de dezembro de 2011. Institui a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2011.).
Apesar de terem sido incluídas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), muitas CTs atuam de forma asilar e segregadora (CFP, 2018CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas - 2017. Brasília, DF: CFP, 2018. Disponível: <Disponível: site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-Nacional-em-Comunidades-Terap%C3%AAuticas.pdf > Acesso em: 15 jun. 2019.
site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/... ), o que se torna ainda mais grave considerando que se beneficiam de recursos públicos. Das 28 instituições visitadas pela Inspeção Nacional, 18 receberam algum tipo de recurso ou doação de órgãos públicos nas esferas municipal, estadual ou federal, embora muitas delas não apresentem condições mínimas de infraestrutura ou salubridade. O que chama a atenção é que, na prática, o eixo central do tratamento na maioria das comunidades vai de encontro à lógica da atenção psicossocial. Logo na entrada das CTs, os recém-chegados passam por uma revista que se assemelha ao sistema prisional, tendo que agachar e ficar pelados. Além disso, são despojados de seus documentos pessoais em 85% dos casos, o que “limita a possibilidade de abandono unilateral do tratamento, e exerce efeito simbólico bastante significativo, de ‘mortificação’ do eu anterior” (Natalino, 2018NATALINO, M. A. C. Isolamento, disciplina e destino social em comunidades terapêuticas. In: SANTOS, M. P. G. (org.). Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA, 2018. p. 133-166. v. 1, p. 47), como nas instituições totais analisadas por Goffman (1961GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1961.). Outro fator que contribui para esta mortificação subjetiva é a projeção do espaço arquitetônico, que torna todas as esferas da vida compartilhadas, incluindo o descanso e os momentos de lazer. Esta indistinção entre público e privado é típica de instituições totais.
Também de acordo com Natalino (2018NATALINO, M. A. C. Isolamento, disciplina e destino social em comunidades terapêuticas. In: SANTOS, M. P. G. (org.). Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA, 2018. p. 133-166. v. 1), os internos são relegados a uma situação de isolamento social, que é favorecida pelo isolamento geográfico no qual as CTs se encontram, estando 74% delas na área rural. Outros fatores que contribuem para a restrição do convívio são o impedimento da livre saída, o uso de cercas altas e/ou eletrificadas, câmeras de vigilância e observação constante por parte da equipe, a aplicação de punições em caso de tentativa de fuga, restrição de visitas, retenção de documentos, pertences, cartões bancários ou para acesso a benefícios previdenciários, o controle de ligações telefônicas, a violação de correspondências e o trancamento das portas dos quartos na hora de dormir e depois do almoço para a “sonoterapia”, sem conexão com o mundo exterior em caso de eventuais emergências (CFP, 2018CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas - 2017. Brasília, DF: CFP, 2018. Disponível: <Disponível: site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-Nacional-em-Comunidades-Terap%C3%AAuticas.pdf > Acesso em: 15 jun. 2019.
site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/... ).
A infração da Lei n. 10.216 (Lei da Reforma Psiquiátrica) é clara em grande parte das comunidades, considerando os inúmeros obstáculos colocados quando o interno decide sair, como multa por quebra de contrato, retenção de documentos e pressão sobre familiares, o que retira da pessoa o poder de decidir pelo encerramento do tratamento, caracterizando privação de liberdade. Ainda mais grave do que ferir os princípios da reforma psiquiátrica, são as violações dos direitos humanos cometidas por algumas destas instituições, com a aplicação de castigos e punições que poderiam inclusive ser classificados como práticas de tortura e tratamento cruel ou degradante de acordo com a legislação brasileira: obrigatoriedade de execução de tarefas repetitivas (sobretudo a cópia de trechos bíblicos), aumento da laborterapia, supressão de alimentação, violência física (principalmente em caso de tentativa de fuga, com soco no olho ou “mata-leão”), isolamento por longos períodos (em quartos ou cubículos dentro da própria instituição), privação de sono e uso irregular de contenção mecânica (amarras) ou química (medicamentosa) (CFP, 2018CFP - CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas - 2017. Brasília, DF: CFP, 2018. Disponível: <Disponível: site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relat%C3%B3rio-da-Inspe%C3%A7%C3%A3o-Nacional-em-Comunidades-Terap%C3%AAuticas.pdf > Acesso em: 15 jun. 2019.
site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/... ).
Em relação à abordagem adotada nestas instituições, Loeck demonstra que “as CTs apresentam configurações híbridas e fluidas, que deslizam entre os paradigmas religioso-espiritual e técnico-científico” (Loeck, 2018LOECK, J. F. Comunidades terapêuticas e a transformação moral dos indivíduos: entre o religioso-espiritual e o técnico-científico. In: SANTOS, M. P. G. (org.). Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA, 2018. p. 77-100. v. 1., p. 81). Embora ainda predominem os trabalhadores não técnicos, mais vinculados à vertente religiosa do modelo, vem ocorrendo uma “significativa profissionalização dessas entidades, o que tem tornado o universo simbólico dessas instituições cada vez mais complexo” (Loeck, 2018LOECK, J. F. Comunidades terapêuticas e a transformação moral dos indivíduos: entre o religioso-espiritual e o técnico-científico. In: SANTOS, M. P. G. (org.). Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA, 2018. p. 77-100. v. 1., p. 82), envolvendo psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e médicos. Entre psicoterapias individuais, grupais, laborterapia e reuniões de Doze Passos (no modelo dos Alcoólicos e Narcóticos Anônimos), as comunidades deslizam entre diferentes abordagens que mesclam saberes médicos, psicológicos, socioassistenciais, práticas espirituais (Ipea, 2017IPEA - INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Perfil das comunidades terapêuticas brasileiras. (Nota Técnica nº 21). Brasília, DF: IPEA, 2017.), ressignificação da história pessoal pela condenação absoluta do uso de drogas, valorização do trabalho e temor a Deus. A drogadição é vista tanto pelo prisma da medicina, a partir da noção de dependência química - doença crônica e incurável -, quanto pelo da religião - na forma do pecado.
Assim como na lógica manicomial, que partia da ideia de uma enfermidade mental supostamente independente das vicissitudes situacionais, as CTs tomam o uso problemático de drogas como questão individual, seja a partir da ideia de pecado ou de doença incurável (Loeck, 2018LOECK, J. F. Comunidades terapêuticas e a transformação moral dos indivíduos: entre o religioso-espiritual e o técnico-científico. In: SANTOS, M. P. G. (org.). Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA, 2018. p. 77-100. v. 1.). A identificação com esta marca leva os indivíduos a uma espiral de tentativas de se desvencilhar de seu “desvio intrínseco”, construindo uma carreira institucional que pode envolver tanto idas e vindas da CT como a escolha por seguir trabalhando na área. Inúmeros internos passam anos na instituição, tempo que se prolonga porque os familiares não têm interesse em buscá-los.
Em relação aos que saem das comunidades, vale destacar que muitos retornam, como se demonstra pelas altas taxas de reincidência. Em 2015, quase a metade dos 138.568 acolhidos em CT havia passado por instituições semelhantes anteriormente. A parcela de internos reincidentes é superior à daqueles que concluem o tratamento e 55% abandonam antes (Natalino, 2018NATALINO, M. A. C. Isolamento, disciplina e destino social em comunidades terapêuticas. In: SANTOS, M. P. G. (org.). Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA, 2018. p. 133-166. v. 1). Sobre as taxas de reincidência, Natalino (2018)NATALINO, M. A. C. Isolamento, disciplina e destino social em comunidades terapêuticas. In: SANTOS, M. P. G. (org.). Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA, 2018. p. 133-166. v. 1 afirma que são diretamente proporcionais ao grau de isolamento social e rigidez do regime disciplinar aplicado nestas instituições. As comunidades promovem a reconstrução do eu, conforme incutem no indivíduo as renúncias características da sua configuração ideológica e social. Desse modo, restringem as possibilidades de reconstituição de vínculos com o mundo civil e ampliam a dependência em relação ao mundo moral e ao regime disciplinar da instituição. Além disso, os internos que saem das CTs e encontram redes públicas sucateadas e deficitárias tendem a sofrer reinternações recorrentes, configurando o fenômeno revolving door nas comunidades (Natalino, 2018NATALINO, M. A. C. Isolamento, disciplina e destino social em comunidades terapêuticas. In: SANTOS, M. P. G. (org.). Comunidades terapêuticas: temas para reflexão. Rio de Janeiro: IPEA, 2018. p. 133-166. v. 1).
Cavalcante (2019CAVALCANTE, R. A institucionalização clínica e política das comunidades terapêuticas e a sua relação com a saúde mental brasileira. In: VASCONCELOS, E. M; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec, 2019. p. 245-308.) indica que, no mesmo período da expansão da rede de saúde mental, com o aumento do número de CAPS no país, as comunidades terapêuticas se fortaleceram politicamente. Ou seja, não foi apenas o déficit de serviços da reforma que abriu caminho para as CTs, pois elas também já possuíam uma força política capaz de fomentar a sua difusão e contribuir para que se estabelecessem como circuito paralelo. Retomando a noção de racionalidade hemiderna (Parker, 1995PARKER, C. Religião popular e modernização capitalista: outra lógica na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1995.), Cavalcante supõe que os entrelaçamentos entre o discurso religioso e os paradigmas médico e legal, impulsionados pela força motriz da tradição popular, estão por trás desta consolidação. As comunidades encarnam vetores constitutivos do hibridismo de nossa sociedade, que tem na religião o fio condutor de expectativas, moralidades e mentalidades. Como mostra Maluf (2011MALUF, S. Além do templo e do texto: desafios e dilemas do estudo de religião no Brasil. Revista Antropologia em Primeira Mão, Florianópolis, n. 124, 2011. Disponível: <Disponível: http://apm.ufsc.br/files/2011/05/124.pdf > Acesso em: 10 dez. 2023.
http://apm.ufsc.br/files/2011/05/124.pdf... ), esta heterogeneidade extrapola os limites dos saberes instituídos. A autora observa a emergência de um campo de intersecções entre novas formas de religiosidade e espiritualidade, bem como práticas terapêuticas alternativas de diferentes tipos nas grandes cidades brasileiras, a partir da década de 1990, que ela relaciona a elementos históricos da configuração social e cultural do país, envolvendo o ecletismo tanto da vivência religiosa quanto da terapêutica. O modo como estas experiências se imiscuem na vivência de cada sujeito implica um campo de construção de sentidos para a existência e de estratégias de cuidado de si que extrapolam o âmbito das técnicas formais e discursos biomédicos. É este modo sui generis de congregar o terapêutico e o religioso que se expressa nas comunidades terapêuticas.
Por ser própria de nossa cultura, tal tendência também se faz presente em outros ambientes, como clínicas psiquiátricas, presídios, escolas e igrejas, revestindo-se de uma moralidade que participa ativamente dos nexos entre tratamento e religião. A lógica da autoajuda, do trabalho em grupo para a normalização de condutas, da correção moral e da religiosidade como caminho para a mudança do estilo de vida é um modus operandi que perpassa diferentes modalidades institucionais. Em sintonia com a noção de instituição usada no presente trabalho, as CTs não são apenas locais com endereço fixo, mas sobretudo um conjunto de saberes e práticas baseadas em influências filosóficas e teóricas que ultrapassam os muros do estabelecimento (Cavalcante, 2019CAVALCANTE, R. A institucionalização clínica e política das comunidades terapêuticas e a sua relação com a saúde mental brasileira. In: VASCONCELOS, E. M; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec, 2019. p. 245-308.). Uma demonstração disso pode ser encontrada no próprio Centro Vita, analisado anteriormente, que apesar de não ser uma comunidade terapêutica, apresenta características muito semelhantes: novos usos, que incluem pessoas com transtornos mentais não associados à dependência de álcool e outras drogas; a forte presença da religião como forma de tratamento; a disciplina na busca pela correção moral do indivíduo; o apoio de políticos e setores do judiciário que vêm desconsiderando os preceitos da reforma psiquiátrica.
Apesar de estes aspectos indicarem as resistências sociais à desinstitucionalização e o olhar moral que ainda recai sobre uma grande parcela de pessoas com transtornos mentais de diferentes tipos, eles também permitem entrever que estas instituições exercem uma função estruturante, capaz de responder a anseios não atendidos em outras esferas. Como mostra Vasconcelos (2019VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. A importância da produção acadêmica e do debate sobre as religiões/espiritualidade na atual conjuntura social e política brasileira e, particularmente, na política de drogas. In: VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec , 2019. p. 13-30.), muitas igrejas neopentecostais44O neopentecostalismo é a religião predominante nas comunidades terapêuticas e instituições afins. proporcionam apoio social e pessoal durante o dia inteiro e até em plantões noturnos, em contraste com a escassez de serviços públicos de atenção psicossocial, acompanhamento a dependentes químicos, assistência social e saúde como um todo em grande parte dos bairros pobres e periféricos das cidades. De forma paradoxal, no mesmo passo em que as religiões levam à intolerância em relação a certas formas de subjetividade, elas também exercem um papel indispensável através de mecanismos simbólicos e socializantes (Vasconcelos, 2019VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. A importância da produção acadêmica e do debate sobre as religiões/espiritualidade na atual conjuntura social e política brasileira e, particularmente, na política de drogas. In: VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec , 2019. p. 13-30.). Em locais periféricos e desfavorecidos, as igrejas neopentecostais oferecem espaços de socialização e significação de situações existenciais limite, por meio de cultos e rituais de “cura pela fé”. As congregações evangélicas promovem o senso comunitário através de uma rede de solidariedade que auxilia os mais pobres a lidarem com experiências difíceis, como doenças, desemprego e violência. A sensação de pertencimento e identificação proporcionada por esta rede contribui para a estruturação de subjetividades fragilizadas pelas condições socioeconômicas.
A necessidade de reconfigurar laços e construir referências é marcante no contexto contemporâneo de crescente individualização, vulnerabilidade e desfiliação social.55Para Castel (1998 apud Vasconcelos, 2019), a desfiliação social decorre da fragilização da proteção social - privada ou pública -, dos vínculos de trabalho e dos laços com familiares e a rede social mais próxima. Com a perda das regulações coletivas, configura-se um “individualismo de massa”, que Castel (1998CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.) ilustra com a imagem do jovem toxicômano do subúrbio, para o qual a falta de vínculos, estabilidade trabalhista, transmissão familiar e perspectiva futura tornam seu corpo o único bem e vínculo. Nas palavras do sociólogo, estes traços “são encontrados em numerosas situações de insegurança e de precariedade que se traduzem através das trajetórias estremecidas, feitas de buscas inquietas para se virar no dia-a-dia” (Castel, 1998CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998., p. 603). No contexto atual de avanço do neoliberalismo, esta realidade se torna ainda mais avassaladora. A promessa contemporânea de viver a individualidade de forma livre e independente se esvai para pessoas em posições sociais carentes de recursos objetivos e proteções coletivas.
No Brasil, as trajetórias dos sujeitos em situação de vulnerabilidade social sofrem, de forma mais premente, os impactos dos seguintes fatores: aumento notável de pessoas morando sozinhas ou famílias monoparentais (sobretudo lideradas por mulheres); sobrecarga doméstica devido à crescente participação da mulher no mercado de trabalho; redução da presença física do homem e da mulher em casa, assim como a precarização das funções simbólicas de maternagem e paternagem; diminuição da capacidade de prover cuidado aos membros familiares dependentes; tendência ao abandono ocasional ou permanente da casa da família como forma de sobrevivência, levando a perdas mais bruscas dos laços (Vasconcelos, 2019VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. A importância da produção acadêmica e do debate sobre as religiões/espiritualidade na atual conjuntura social e política brasileira e, particularmente, na política de drogas. In: VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec , 2019. p. 13-30.).
Neste cenário, o discurso religioso, particularmente o neopentecostalismo, assume a função de instaurar um senso coletivo e compartilhado onde o neoliberalismo gerou a responsabilização individual. Nas palavras de Vasconcelos (2019VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. A importância da produção acadêmica e do debate sobre as religiões/espiritualidade na atual conjuntura social e política brasileira e, particularmente, na política de drogas. In: VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec , 2019. p. 13-30., p. 164): “as religiões neopentecostais atuais oferecem uma estrutura psíquica compartilhada, com seus respectivos mecanismos intensos de defesa associados a rituais de eficácia simbólica que polarizam as vicissitudes da vida entre os extremos Deus/bem total e Diabo/mal total”. A ideia de que problemas, dores e vícios são obra do demônio e que um caminho de devoção e fé pode levar à cura ajuda a desresponsabilizar o sujeito - aliviando o estigma perante família e comunidade -, bem como a traçar um horizonte palpável de mudança. Muitas vezes, os próprios pastores têm histórias de vida marcadas pela drogadição, crime, tráfico ou outras experiências devastadoras, tornando-se exemplos reais da possibilidade de transformação, com os quais os fiéis se identificam rumo à construção de um novo caminho. Além da oferta simbólica presente nesta teologia, as obras sociais e filantrópicas destinadas aos filiados e aos mais pobres possibilitam compensações materiais para a situação precária na qual se encontram.
Considerações finais
O presente artigo buscou tomar as diferentes formas de neoinstitucionalização, não só como negativos do processo de desinstitucionalização, mas também indicativos de necessidades dos usuários e familiares que não estão sendo atendidas pelos dispositivos da reforma, bem como de aspectos sociais, econômicos e políticos que demandam atenção. A construção de novos circuitos institucionalizantes e a busca das famílias por estes locais demonstra de que forma a instituição tem se reatualizado em nossa sociedade. Na ausência dos antigos manicômios, moralidades e práticas disciplinares perpassadas pelo discurso religioso impulsionam outras formas de confinamento da loucura, revelando funções que precisam ser consideradas no processo de desinstitucionalização atual. Nesse cenário, o exemplo das comunidades terapêuticas se mostra como importante elemento de análise, pela sua prevalência e expansão, bem como por catalisar elementos centrais do contexto social, que também operam em outros locais de neoinstitucionalização, como mostra Cavalcante (2019CAVALCANTE, R. A institucionalização clínica e política das comunidades terapêuticas e a sua relação com a saúde mental brasileira. In: VASCONCELOS, E. M; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec, 2019. p. 245-308.).
Embora, como vimos com Biehl (2005BIEHL, J. Vita: Life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005.), estes locais atuem para acelerar a morte dos improdutivos, relegando-os à condição de ex-humanos, é preciso também analisar os sentidos que muitos usuários e familiares ali encontram, tendo a fé religiosa como fio condutor. Diante da desestruturação social trazida pelo avanço do neoliberalismo e o consequente aprofundamento dos processos de exclusão dos mais vulneráveis, a religião oferece um repertório de dispositivos de subjetivação a partir do qual se formulam respostas para questões existenciais profundas, uma fonte de preceitos para a construção da identidade e moralidade individuais ou um arcabouço de práticas filantrópicas e assistenciais (Vasconcelos, 2019VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. A importância da produção acadêmica e do debate sobre as religiões/espiritualidade na atual conjuntura social e política brasileira e, particularmente, na política de drogas. In: VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec , 2019. p. 13-30.). Entender o alcance das comunidades terapêuticas e outras instituições ligadas ao discurso religioso exige, portanto, que possamos lançar luz sobre estas funções e tomá-las como meios para questionar a nossa prática.
Para Cavalcante (2019CAVALCANTE, R. A institucionalização clínica e política das comunidades terapêuticas e a sua relação com a saúde mental brasileira. In: VASCONCELOS, E. M; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec, 2019. p. 245-308.), é fundamental reconhecermos a hemidernia brasileira, com todo o seu conjunto de saberes e práticas religiosas, entrelaçados com outros saberes, para entrarmos em contato com os referenciais usados por muitos de nossos usuários para darem sentido à existência. Esta dimensão precisa ser não só considerada como incluída na prática clínica através da articulação com as entidades religiosas que fazem parte da rede de suporte dos sujeitos, buscando fortalecer aquelas que questionam a violação de direitos e a lógica proibicionista. A desinstitucionalização, no seu sentido mais amplo, envolve este movimento de dar lugar aos referenciais que compõem a construção identitária e subjetiva de cada usuário, retirando-o do lugar de objeto.
Na tecitura desta rede, em que os serviços substitutivos precisam se lançar para além dos muros do estabelecimento para se conectar com as entidades que integram a vida dos usuários acompanhados, fica claro que a rotina dos CAPS deve ultrapassar a realização de atividades terapêuticas no interior do serviço, desinstitucionalizando a própria assistência. Tanto a participação no fortalecimento da rede de cada usuário, quanto o acolhimento à crise e escuta cuidadosa destes sujeitos e seus familiares frente a experiências de extrema desorganização psíquica, violência e risco social - justamente aquelas que dão margem à busca por instituições asilares pautadas no discurso religioso - revelam-se como pontos chave no enfrentamento da neoinstitucionalização. É necessário promover refiliação, continuidade e ancoragens subjetivas onde o “necroliberalismo” produziu ruptura, desfiliação e desamparo. Assim como o sujeito precisa ser refiliado socialmente e sua condição de saúde mental entendida no interior de um campo social, político e econômico, os CAPS também precisam atuar em rede e, para tanto, reconhecer a rede que referencia cada sujeito. Para este circuito operar com a força necessária, dispondo de um montante de recursos e profissionais capaz de garantir a mobilidade do serviço em direção ao território existencial de cada usuário, os investimentos públicos devem se voltar inteiramente para a rede substitutiva, com o fim de qualquer financiamento para comunidades terapêuticas ou outras instituições do tipo.
A partir desta perspectiva, delineiam-se algumas questões para a nossa prática: como os CAPS estão se relacionando com entidades religiosas que proporcionam apoio e referenciais identitários aos usuários? Por que o manejo dado às demandas de alguns pacientes não está sendo suficiente para que eles entendam o serviço como lugar capaz de acolher experiências difíceis e, por isso, acabam buscando soluções nas comunidades terapêuticas ou outras instituições do tipo? Qual postura os CAPS vêm tomando com estes usuários, que não está sendo capaz de proporcionar o contorno subjetivo e amparo do qual carecem em algumas situações? Este é o desafio para a reforma psiquiátrica nos próximos anos.
Referências
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- 1Este fenômeno começou a ser estudado na década de 60, sendo considerado uma consequência do modelo, ainda em implementação, da reforma psiquiátrica. O método para definir a porta giratória se baseia em uma razão entre a frequência de reinternações e o tempo de estudo, que podem variar em diferentes proporções: duas ou mais internações no período de um ano; três ou mais no período de dois anos; quatro ou mais em um período de cinco anos; quatro ou mais sem intervalo superior a dois anos e meio, no curso de dez anos (Parente et al., 2007).
- 2Toda a análise sobre a instituição presente neste artigo, incluindo falas de funcionários, decorre de uma leitura crítica da etnografia feita por Biehl (2005)BIEHL, J. Vita: Life in a zone of social abandonment. Berkeley: University of California Press, 2005. no estabelecimento, e não de observação in loco.
- 3Para Foucault (1999)FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999., o poder do Rei de matar os súditos era o que garantia o controle sobre eles na época da soberania. Com a assunção dos Estados nacionais modernos no século XVIII, se forma um outro tipo de poder, que se exerce não mais a partir da capacidade de fazer morrer, mas de fazer viver. A vida ganha valor político devido à sua capacidade produtiva. Nasce com o capitalismo a realidade de um novo corpo, que se constitui como força de trabalho das nações. Este corpo-riqueza precisa ser cuidado e otimizado na sua dimensão coletiva, como parte de um todo - a população - atravessado por processos biológicos como natalidade, morbidade, mortalidade, envelhecimento... O Estado passa a administrar estes processos naturais através do biopoder, tendo a medicina como um dos principais instrumentos.
- 4O neopentecostalismo é a religião predominante nas comunidades terapêuticas e instituições afins.
- 5Para Castel (1998CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998. apud Vasconcelos, 2019VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. A importância da produção acadêmica e do debate sobre as religiões/espiritualidade na atual conjuntura social e política brasileira e, particularmente, na política de drogas. In: VASCONCELOS, E. M.; CAVALCANTE, R. (org.). Religiões e o paradoxo apoio social intolerância, e implicações da política de drogas e comunidades terapêuticas. São Paulo: Hucitec , 2019. p. 13-30.), a desfiliação social decorre da fragilização da proteção social - privada ou pública -, dos vínculos de trabalho e dos laços com familiares e a rede social mais próxima.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
20 Jan 2025 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
19 Dez 2023 - Aceito
10 Ago 2024