Resumo
Este artigo busca refletir sobre discursos de mulheres defensoras da lactação na sociedade brasileira atual, seus desenhos, bases e consequências para a sociedade. Para explorar as ideias sobre práticas de amamentação e sua importância, analisamos postagens, imagens e conteúdos de mídia da rede social Instagram, produzidos entre 2019 e 2022, por 11 militantes brasileiras da amamentação. Elas são mulheres de camadas médias, de diferentes regiões do Brasil, que na época tinham entre 24 e 41 anos, acesso à internet e escreviam sobre amamentação, cuidado e trabalho. De forma geral, reivindicam o reconhecimento da amamentação como trabalho de interesse coletivo, como tema de saúde pública e um direito sexual e reprodutivo a ser garantido pelo Estado. Nesse sentido, o artigo dialoga com a teoria feminista que tem pautado o assunto e amplia o olhar da saúde para a prática da amamentação.
Palavras-chave:
Maternidade; Amamentação; Trabalho; Direitos Sexuais e Reprodutivos
Abstract
This article seeks to reflect on the discourses of women who advocate lactation in current Brazilian society, their designs, bases and consequences for society. To explore their ideas about breastfeeding practices and their social importance, we will analyze posts, images and media content from the social network Instagram, produced between 2019 and 2022, by 11 Brazilian breastfeeding activists. They are middle-class women, from different regions of Brazil, who at the time were between 24-41 years old, had access to the internet and wrote about breastfeeding, care and work. In general, these women claim the recognition of breastfeeding as a work of collective interest, as a public health issue and a sexual and reproductive right to be guaranteed by the State. In this sense, the article dialogues with the feminist theory that has guided the subject and expands the perspective of health to the practice of breastfeeding.
Keywords:
Motherhood; Breastfeeding; Work; Sexual and Reproductive Rights
Introdução
Às voltas com leite, alimentar e cuidar, situamos nossa pesquisa entre o domínio da saúde e das práticas de cuidado e maternagem (Nucci; Fazzioni, 2021NUCCI, Marina; FAZZIONI, Natalia. Amor ou risco? Refletindo sobre sentidos, regulações e orientações a respeito do leite materno a partir de casos de “amamentação cruzada”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 27, n. 61, 2021.; Braga, 2022BRAGA, Raquel. O trabalho invisível do cuidado e a emancipação das mulheres no cerne da discussão lactivista. 2022. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2022.). De um lado, o leite materno referido, pelas defensoras da amamentação livre demanda e lactivistas11O movimento lactivista, investigado na Espanha por Massó Guijarro (2015), nasceu em 2006, como ativismo vinculado à defesa da amamentação e à dimensão política do amamentar, com o objetivo de promover, apoiar e normalizar a lactância. Conforme Francesca Sanz Vidal (2017) e Massó Guijarro (2015): “El movimiento lactivista surge como respuesta a un importante descenso de la práctica de la lactancia materna; […] ha ido ganando espacio y visibilidad en las sociedades occidentalizadas como uno de esos movimientos necesarios para influir en el corazón de unas sociedades que han desconsiderado múltiples aspectos relacionados con la cultura del cuidado. El debilitamiento del estado de bienestar y la exacerbación del individualismo han dado lugar a la degradación de las instituciones encargadas de apoyar el ámbito del cuidado de las personas” (Sanz Vidal, 2017). “Se vindica la práctica de la lactancia (a través del lactivismo) en su dimensión de movimiento social […], en esa desobediencia epistémica tan amigable al lactivismo, que desacata la epistemología patriarcal en la lectura y consecuencias de la lactancia, y reclama una comprensión descolonizada de sí misma. Todo conocimiento es situado, y situado no solamente en un espacio geográfico sino, esencialmente, temporal y corporal; es corpopolítica y es geopolítica […]”. (Massó Guijarro, 2015)., como “amor líquido” corre o risco de reforçar uma ideia essencialista de mulher como a cuidadora nata e abnegada - de outro, os imperativos oriundos do campo da saúde correm o risco de responsabilizar unicamente a mulher pelos cuidados do bebê e sucesso da amamentação. Entre uma vertente discursiva e outra ao redor do ato de aleitar prolongadamente na atualidade, uma miríade de questões políticas emergem nesse e desse campo de estudo, que definimos como constituído pelos vínculos e limites entre a amamentação e os direitos sexuais e reprodutivos. Para termos uma ideia dos desafios, basta pensarmos em que medida amamentar atualmente seria uma escolha, um direito da mulher ou uma obrigação materna ditada pelo Estado, políticas de saúde e sociedade em geral?
Nesse sentido, refletir sobre o que dizem as mulheres sobre o amamentar no Brasil atual nos insere na compreensão de que a maternidade é um fenômeno social multifatorial; uma experiência vivida, mas também uma instituição social (Rich, 1986RICH, Adrienne. Of Woman Born. New York: Norton, 1986.) ligada a determinadas estruturas de poder, conformando um palco de disputa para conceitos tão fundamentais quanto complexos - mãe, mulher, maternidade, trabalho e cuidado. A pesquisa, realizada a partir de imagens e de relatos de experiências de lactantes militantes da amamentação no Brasil em perfis do Instagram, propicia um campo articulado de investigações sobre mulheres e suas práticas de amamentação. Nesse sentido, à luz do panorama da amamentação no Brasil, situamos o que chamamos de “ativismo pela amamentação” e relacionamos os dados da pesquisa com a teoria e movimento feministas, pensando-o como uma politização da vida íntima e do cuidado.
Nos últimos anos, feministas pesquisaram o potencial político da amamentação (Estermann Meyer, 2005MEYER, Dagmar Estermann. A politização contemporânea da maternidade: construindo um argumento. Gênero, Niterói, v. 6, n. 1, p. 81-104, 2005.). Ela é também historicamente uma questão de saúde pública, pois previne mortalidade infantil e promove nutrição equilibrada, sistema imunológico, desenvolvimento orofacial e diversos aspectos da saúde materno-infantil. Segundo dados recentes da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) (2022) e do Enani (2019), no Brasil 45,7% das crianças são aleitadas até 6 meses de idade. Esse número ainda está distante do que a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda (50%) e do esperado para 2030 pelas Metas Globais de Nutrição (OMS) (70% das crianças). Essa prática, no entanto, não acontece sem percalços e limitações para as mulheres que decidem aleitar. Entre as dificuldades estão as condições de trabalho, necessidade de separação da criança, necessidade de grandes deslocamentos, falta de apoio social e solidão. Mesmo entre aquelas que podem amamentar e assim o desejam, como se verá, o ato em si depende de muitos fatores e tem muitas implicações na vida econômica, social e afetiva das mulheres. Este artigo pretende descortinar tais limites, reflexões e leituras femininas dessa prática, tomando a escrita e as imagens produzidas por mulheres militantes da amamentação no Instagram entre 2019 e 2022.
Para isso, depois da metodologia, propomos quatro sessões teórico-analíticas: uma que explora a amamentação como biologia; outra que a aborda enquanto trabalho não reconhecido; e uma terceira que a tematiza a partir da noção de escolha, para assim ponderar, em uma última sessão, o amamentar como uma possibilidade política que se faz a partir do âmbito doméstico.
Reportagem sobre o mamaço realizado no Rio de Janeiro em 2019, na abertura do ENAM/ENACS, Encontro Nacional de Aleitamento Materno e Encontro Nacional de Alimentação Complementar Saudável.
Metodologia
O primeiro contato com o campo se deu através da experiência pessoal da primeira autora, enquanto mãe solo de gêmeos, que, em 2016, buscou apoio on-line em um grupo de Facebook sobre amamentação gemelar, que levou ao encontro de perfis de mães no Instagram. Houve uma aproximação com mães de gêmeos de várias regiões do país, conduzindo à descoberta de uma rede ampla de mães que, conforme ficou evidenciado ao longo da pesquisa, partiram do desejo de amamentar para a busca por conexão com outras mães com o mesmo objetivo. Vale ressaltar que, embora o contato inicial com as primeiras interlocutoras da pesquisa tenha sido mediado de um lugar inicial partilhado, o que se buscou investigar, através da atuação das ativistas no Instagram, foi possibilitado pela distinção entre a antropóloga e as mães que se colocavam como figuras algo públicas, que propunham debates sistemáticos sobre o tema para um grande número de seguidoras - cujo crescimento pôde também ser acompanhado ao longo da pesquisa. Tal distinção marcou a própria delimitação do campo e do teor da pesquisa ao longo do primeiro e segundo ano, motivada por interesses a princípio pessoais e, logo, distintamente antropológicos.
Através de imagens, textos de posts e discussões de 11 perfis de ativistas brasileiras no Instagram, entre 2019 e 2022, selecionamos e analisamos discursos autodeclarados feministas e suas leituras de amamentação na atualidade. Os perfis, de 11 mulheres lactantes - Clarissa Almeida, Daniela Brum, Maria Gabrielli, Gabrielle Gimenez, Veronica Linder, Luise Monteiro, Amanda Oliveira, Andressa Reis, Clarissa Roldi, Viviane Sobrinho e Lian Tai - foram selecionados pelo destaque, número de seguidoras e notoriedade pública de sua produtora no debate virtual nacional sobre aleitamento. Para seleção, consideramos também a sua singularidade ou semelhanças com outros perfis acompanhados pela primeira autora durante os anos elencados, buscando assim também representar a diversidade de discursos e de mulheres que defendem a amamentação livre demanda no Brasil atual.
Os perfis de Instagram selecionados são de mulheres de camadas médias, com ensino superior completo ou incompleto, de diferentes regiões brasileiras, com idade entre 24 e 41 anos, tendo um a três filhos. No grupo de páginas do Instagram a que chegamos nesta pesquisa destacam-se duas mães solo (termo que designa mães que criam sozinhas, sem partilha de cuidados com o genitor) e brancas e outras três mães não brancas, sendo duas negras e uma amarela.
Todas as postagens analisadas encontravam-se disponíveis de forma pública e a participação de cada mulher na investigação foi acordada previamente através de mensagens diretas no Instagram. Essas postagens foram coletadas, arquivadas e analisadas pela primeira autora durante três anos de investigação (2019-2022), a partir de seus temas, em consonância com o produzido por teorias feministas atuais; mas também das polêmicas por eles geradas e número de interações com outras mulheres. Esse artigo não esgota todo o material de campo coletado e tampouco pretendia essa tarefa, mas se desenvolve à luz de algumas das imagens e suas ideias.
A pesquisa antropológica no âmbito virtual segue a proposta metodológica de Escobar e Segata (2016ESCOBAR, Arturo. “Bem-vindos à Cyberia: notas para uma antropologia da cibercultura” e Segata, Jean. “Dos cibernautas às redes”. In: SEGATA, Jean; RIFIOTIS, Teophilos (org.). Políticas etnográficas no campo da cibercultura. Brasília, DF: ABA Publicações, 2016.) através das ideias de tecnossocialidade e cibercultura. Aqui buscamos uma análise da narrativa biográfica construída através de postagens de cunho pessoal, reflexivo e político. Argumentamos que tais mulheres, por meio de seu ativismo, tecem relações entre sua experiência enquanto lactantes e a desigualdade de direitos imposta às mulheres de forma ampla, construindo narrativas individuais e coletivas (Kofes; Manica, 2015KOFES, Suely; MANICA, Daniela. Vida & grafias: narrativas antropológicas entre biografia e etnografia. Rio de Janeiro: Lamparina, 2015.) sobre aleitamento, maternidade e direitos, compondo uma prática política.
Buscando aproximações e distanciamentos entre teoria feminista (Rich, 1986RICH, Adrienne. Of Woman Born. New York: Norton, 1986.), ciências sociais em saúde e engajamento político engendrado pelas ativistas, analisamos seus questionamentos de prescrições e imperativos morais, refletindo sobre modelos “ideais” normativos de práticas relacionadas ao trabalho reprodutivo e do cuidado, contribuindo para a discussão maior sobre direitos sexuais-reprodutivos.
As postagens eram acompanhadas e arquivadas pela primeira autora, que, conforme localizava as categorias, pôde identificar alguns destaques, por proximidade temática e/ou contraste. O que chamamos de “categorias nativas” nortearam a seleção das postagens, como “cultura do desmame” e “cultura da amamentação”, “maternidade compulsória”, “sobrecarga feminina” e “culpa materna”. Logo, percebemos categorias que atravessavam as primeiras, como “trabalho”; seguida de “saúde”, “corpo” e “biologia”; “luta” e “resistência”; “capitalismo”, “direitos” e “escolha”, as quais compuseram um quadro semântico desse universo. Mapeando o que diziam as mulheres sobre tais categorias e como as relacionavam com a amamentação e entre si, surgiram os conteúdos ora apresentados.
Qualificando a amamentação como trabalho
A luta das mulheres pelo reconhecimento das práticas ligadas à reprodução e manutenção da vida questiona a tradicional divisão sexual do trabalho enquanto fato dado, como demonstram Mies (1986MIES, Maria. Patriarchy and accumulation on a world scale. Women in the international division of labour. New Jersey: Zed Books, 1986.) e Hirata e Kergoat (2007HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 132, 2007.). Em seu discurso, as ativistas debatem o paradigma analítico pessoal/privado/doméstico vs. público/político, o qual, clássico na teoria feminista, ora se atualiza através de desafios pendentes sobre reprodução e garantia de direitos às mulheres, tensionando o ideário maior de normatividade da família nuclear patriarcal e valores morais relativos à maternidade, à parentalidade e ao cuidado. Durante a pesquisa, observamos no Instagram a intensificação dos diálogos e embates sobre amamentar ou não, debatendo os desafios circundantes, diante da pandemia de covid-19 em 2020 e 2021. O confinamento e a agudização da responsabilização familiar pelos cuidados de menores e idosos se traduziram em uma responsabilidade aumentada para as mulheres, impactadas pela sobrecarga de trabalho do cuidado em suas trajetórias laborais, o que também revela um obstáculo para sua autonomia econômica. Isso representa um custo para o exercício de direitos por parte de quem desempenha atividades de cuidado - majoritariamente, mulheres. O debate sobre a crise do cuidado e a evidência da sobrecarga feminina pelo estrangulamento do doméstico tem sido objeto de pesquisa por muitas cientistas sociais pesquisadoras da saúde pela perspectiva de gênero.
No Instagram, as ativistas defendem, através de fotos, textos e vídeos, a chamada “cultura da amamentação”, denunciando prejuízos ligados à “cultura do desmame”, presente em múltiplas - aparentemente inócuas - práticas, crenças e hábitos que minam a autonomia das mulheres e seu “poder de escolha”. Assim descrevem a “cultura do desmame”:
A cultura do desmame está na sexualização da mulher, na pornografia que fetichiza a amamentação, no feminismo mainstream que ignora as necessidades de bebês e crianças, no mercado capitalista que segue violando a NBCAL, nas propagandas onde bebês aparecem com mamadeira e chupeta, […] no sistema de saúde desatualizado, na política misógina, no abandono paterno… (Clarissa Roldi, Instagram, 10 ago. 2020).
Que autonomia têm as mulheres para escolher de fato amamentar ou não? Consideremos o contexto: falta de apoio institucional, falta de educação sexual e de políticas de planejamento familiar, não regulamentação do direito ao aborto, modo de produção capitalista, além de concepções ideológicas sobre o papel social feminino:
A romantização da maternidade é o que torna o trabalho das mães invisível, ignorando sua importância econômica e pintando tudo como “vocação natural”. O processo que transformou o TRABALHO materno (não só materno, feminino) em NÃO TRABALHO é o mesmo que transforma o corpo da mulher em propriedade - se o trabalho que ela exerce no lar NÃO é um trabalho, ele funciona quase como um recurso natural, que todos têm acesso. No fim das contas, é sempre sobre o controle dos nossos corpos (Clarissa Almeida, Instagram, 22 jan. 2021).
Afastando-se da ideia do cuidado como vocação natural feminina, ao reivindicar a amamentação enquanto trabalho, o discurso das lactivistas dialoga com teorias feministas sobre economia do cuidado, cuidado enquanto fundamental para a reprodução social e a necessidade de ressignificar a conceitualização sobre o trabalho. Ainda, a divisão sexual do trabalho é a marca da opressão e hierarquização impostas às mulheres: “a exploração do seu trabalho na esfera doméstica permanece e pode ser compreendida como um dos fundamentos - entendo que o principal - da dominação de gênero” (Biroli, 2015BIROLI, Flavia. Responsabilidades, cuidado e democracia. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, DF, v. 18, 2015.).
Amamentação e “determinismo biológico”
A defesa da amamentação enquanto prática “natural” e a argumentação das ativistas com base em “evidências científicas” trata de uma reapropriação do discurso médico autoritativo. Médicos desencorajam mulheres promovendo estereótipos e informações infundadas, como o mito do “leite fraco” ou a banalização de mamadeiras, chupetas e fórmulas infantis. Não se trata de evocar um determinismo biológico de forma irrefletida, nem de ignorar questões sociais que dizem respeito à desigualdade de gênero, classe e raça, como constatam Alzuguir e Nucci (2015ALZUGUIR, Fernanda; NUCCI, Marina. Maternidade mamífera? Concepções sobre natureza e ciência em uma rede social de mães. Mediações, Londrina, v. 20, n. 1, 2015.) pesquisando uma rede social de mães, em que a disputa entre o natural e o cultural parece produzir um paradoxo ou uma dicotomia hierárquica inane às condições que o feminismo de fato busca combater. O aspecto “natural” da amamentação aqui é evocado para normalizar a prática enquanto parte da fisiologia humana e prática cotidiana que não se deve censurar - embora a censura aconteça, tanto em espaços públicos, à revelia da proteção prevista em lei, quanto no espaço virtual -, mas visibilizar, através da politização de um ato que é íntimo, mas que não se restringe ao domínio privado.
Em consonância com outras manifestações de cunho feminista, a luta é por não restringir práticas tipicamente femininas ao âmbito privado. A insistência das ativistas em falar sobre as evidências científicas favoráveis à amamentação se ancora na necessidade de dissolver estigmas morais negativos popularmente difundidos (“essa criança está grande demais para mamar”, “seu leite não sustenta”) e conferir legitimidade ao discurso pró-aleitamento, o que não é um paradoxo, mas uma reapropriação do conhecimento científico e uma busca por construir significados próprios para suas práticas, reconciliando âmbitos da vida humana complexos, em disputa quando conjugados na experiência específica do maternar.
Amamentar é natural, mas não é inato: há técnicas, crenças e interesses em disputa; há luta contra um sistema de produção que desfavorece a prática, ao promover ideologias neoliberais e individualistas sobre cuidado. Amamentar é fisiológico, mas permeado por dilemas culturais e políticos, muitos dos quais rastreáveis à estrutura produtiva capitalista patriarcal, nada encorajadora para mulheres, atuante sobre sua subjetividade, com uma compreensão do trabalho que não contempla atividades de manutenção da vida.
Para Alzuguir e Nucci (2015ALZUGUIR, Fernanda; NUCCI, Marina. Maternidade mamífera? Concepções sobre natureza e ciência em uma rede social de mães. Mediações, Londrina, v. 20, n. 1, 2015.), o ativismo pela defesa da humanização do parto e da amamentação está ancorado num determinismo biológico, potencialmente perpetuante de relações desiguais de gênero, sendo necessária uma reflexão crítica sobre a noção de natureza aplicada em questão. Em campo, encontramos o nó que leva a trama mais além, evidenciando a potência política radical do ativismo materno, pois as lactivistas problematizam a escassez de políticas públicas de apoio a mães, bem como noções idealizadas e essencialistas sobre maternidade, o ser mulher, e a desvalorização do trabalho do cuidado. O que poderia ser caracterizado como excessiva sacralização, romantização ou idealização da prática é complexificado no próprio discurso de várias das ativistas, que se contrabalanceia ao afirmar: amamentar não é amor. “Amamentar não é sobre amor, é sobre saúde pública” (Maria Gabrielli, Instagram, 2 ago. 2021).
Como argumenta Tempesta (2018TEMPESTA, Giovana. Trabalhando pelos bons vinculamentos: reflexões antropológicas sobre o ofício das doulas. Anuário Antropológico, Brasília, DF, v. 43, n. 1, 2018.) em sua investigação sobre a atuação das doulas, a reivindicação de um conhecimento autoritativo e a articulação entre os domínios simbólicos natureza/cultura constituem um embaralhamento de fronteiras entre elementos comumente atribuídos de forma estanque, além de compor “uma estratégia discursiva original para legitimar, em meio a um campo de disputas simbólicas, políticas e institucionais, um modo de pensar e agir diferenciado” (Tempesta, 2018TEMPESTA, Giovana. Trabalhando pelos bons vinculamentos: reflexões antropológicas sobre o ofício das doulas. Anuário Antropológico, Brasília, DF, v. 43, n. 1, 2018.), o que nos parece condizer com a atuação das ativistas pela amamentação.
Em outro artigo, de Dieguez, Alzuguir e Nucci (2021DIEGUEZ, Roberta et al. “Descolonizar o nosso corpo”: ginecologia natural e a produção de conhecimento sobre corpo, sexualidade e processos reprodutivos femininos no Brasil. Sexualidad, Salud y Sociedad. Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, n. 37, 2021.), sobre movimentos em prol da ginecologia natural e a forte presença do tema no mundo virtual, aparecem mais paralelos sobre sexualidade feminina. O ideário evocado pretende um conhecimento contra-hegemônico, questionador da abordagem biomédica convencional dominante da saúde da mulher, a fim de promover maior autonomia das mulheres sobre seus corpos. Tal como busca o referido “ciberativismo menstrual” despatologizar e valorizar a menstruação, sendo o sangue assemelhado a ouro, o lactivismo busca também a positivação dos valores associados ao corpo feminino, sendo comum a terminologia “ouro líquido” para o leite materno. Tal como é reconhecida a ginecologia natural enquanto oposição ao pensamento colonizador e ao neoliberalismo, o lactivismo também encontra, no campo estudado, lugar de luta contra a subjugação dos corpos femininos.
No rastro de Carneiro (2019CARNEIRO, Rosamaria. Dilemas de uma maternidade consciente. A quantas anda a conversa dos feminismos com tudo isso? Cadernos de Gênero e Diversidade, Salvador, v. 5, n. 4, 2019.), o debate virtual sobre a experiência materna que problematiza o ideal da chamada maternidade consciente, ora associada à ofensiva naturalista e à maternidade intensiva ou ecológica (ver Gimeno, 2018GIMENO, Beatriz. La lactancia materna: política e identidad. Madrid: Ediciones Catedra, 2018.), talvez esteja mais próximo da discussão sobre o trabalho não reconhecido das mulheres, trabalho doméstico e reprodutivo não remunerado, conforme Federici (2019FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante, 2019.) e Mies (1986MIES, Maria. Patriarchy and accumulation on a world scale. Women in the international division of labour. New Jersey: Zed Books, 1986.), indicando um vínculo muito mais profundo com a política e a produção econômica.
Casa e política feita a partir do íntimo
A ideia da casa, debatida por Carneiro (2021CARNEIRO, Rosamaria. “Em casa é mais seguro!”: o olhar do refúgio, do privilégio e da política pública. In: TEIXEIRA, Luiz Antônio et al. Medicalização do parto: saberes e práticas. São Paulo: Hucitec, 2021.) enquanto lugar do qual se faz política a partir do íntimo, evidenciada na investigação com mulheres mães e sua reivindicação por partos respeitosos, encontra ecos aqui na reivindicação de mulheres por amamentar à própria discrição. A associação entre mulher e casa se inscreve num debate maior, ligado tanto à simbologia histórica da mulher como natureza (Ortner, 1974ORTNER, Sherry. “Está a mulher para o homem como a natureza para a cultura?” In: ROSALDO, Michelle; LAMPHERE, Louise (coord.). A mulher, a cultura, a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.), criadora da vida e representação corporificada do conceito de lar, quanto à instituição do doméstico/privado enquanto domínio feminino em oposição ao universo do trabalho público remunerado masculino. Uma vez que as ativistas defendem a amamentação e o cuidado enquanto trabalho, é preciso transpor fronteiras conceituais dadas, repensar o significado de trabalho e os desafios da luta por direitos sexuais-reprodutivos. Para entender a complexidade da ideia de lar presente, evoco as reflexões de Young (2005YOUNG, Iris Marion. House and Home: Feminist Variations on a Theme. Motherhood and space. Configurations of the maternal through politics, home and the body. London: Palgrave Macmillan, 2005.) sobre significados ligados à mulher como representação corporificada do conceito de lar e mantenedora da vida - o que também exige olhar para o privilégio de classe e raça que pode estar atrelado ao ideário de domesticidade. Tal ambivalência não surpreende, visto que, no campo, é componente de tantas discussões sobre amamentação e maternidade. No contexto lactivista, o lar é a materialização dessa ambivalência.
O valor potencial do lar é representado por uma forma de criação autônoma a partir do corpo e da experiência, além de reflexão política, recusada ainda hoje por algumas feministas, para as quais a associação ao lar é sinônimo de restrição e opressão. A dependência do bebê em relação à mãe na amamentação encontra críticas de base feminista, seja vinculando a prática a classes altas ou avultando o imperativo feminista liberal “meu corpo minhas regras”. Argumentações que associam a casa e a amamentação a privilégio precisam considerar que a saúde reprodutiva das mulheres e a criação de crianças são ambas desprezadas na economia política vigente, que desvaloriza a preservação e a manutenção da vida; isso é notável, por exemplo, na crescente indústria de ultraprocessados alimentícios e na precarização nutricional.
Longe de advogar por um conceito de lar nostálgico representado pela mulher abnegada, ou de defender um ideal consumista que comodificaria o lar e seu valor enquanto propriedade privada, o que encontramos na perspectiva das mulheres lactivistas é a politização da criação de crianças, focando não a conjugalidade enquanto conformadora da mulher (papel de esposa), mas a filiação (papel de mãe) na parentalidade, e a responsabilidade política pela saúde global das crianças, além do reconhecimento da insuficiência de políticas de apoio às mães para que exerçam seus direitos, desafio abordado no debate sobre hierarquias reprodutivas (Mattar; Diniz, 2012MATTAR, Laura D.; DINIZ, Carmen S. G. Hierarquias reprodutivas: maternidade e desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mulheres. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 107-119, jan./mar. 2012.) e a necessidade de políticas públicas que possibilitem às mulheres o acesso a uma experiência de maternidade digna e positiva.
O que pretendem ao reivindicar a visibilidade de seu trabalho é questionar a associação natural da domesticidade à mulher, apontando contradições flagrantes nas expectativas ditadas a elas no cuidado infantil como é permitido na realidade material cotidiana. A desvalorização do trabalho reprodutivo e doméstico é entendida por elas como responsável pela invisibilização e consequente subordinação das mulheres, o que ressoa com as considerações de Young (2005YOUNG, Iris Marion. House and Home: Feminist Variations on a Theme. Motherhood and space. Configurations of the maternal through politics, home and the body. London: Palgrave Macmillan, 2005.) sobre uma reavaliação do trabalho público e/ou privado e sua vinculação ao gênero.
Amamentação e “escolha”
Autonomia no sentido aqui adotado não se restringe à concepção liberal que isenta a proteção social dos direitos, nem se refere à mera volição enquanto desejo individual. Diz respeito a estruturas ideológicas e contratos geracionais que delineiam expectativas e possibilidades para o repertório materno. A preocupação, desde o próprio movimento, com a comodificação ou mercadorização de práticas que se pretendem críticas de um sistema dominante é digna de atenção. Criam-se cursos e consultorias para suprir a lacuna no atendimento às lactantes sobre o manejo da amamentação e seus aspectos subjetivos. Constitui-se um campo de estudos interdisciplinar de caudalosa navegação em torno do aleitamento, em que mulheres puérperas se deparam com abordagens conflitantes ou contraditórias. Portanto, o clamor das ativistas por difundir informações que visem a possibilidade de uma escolha informada ou consciente por parte das mulheres, apesar de constituir um passo rumo à apropriação das práticas que se dão em seus corpos, encontra limitações de ordem estrutural, posta a delicadeza de definir o alcance da pretendida “autonomia”, a não ser contestando os significados do sistema patriarcal, neoliberal e racista vigente.
Quando falo sobre o valor da amamentação, falo contra uma indústria que lucra milhões vendendo medo e mentira, dizendo que o leite que você produz não é bom o suficiente. […] É para que você, mãe, tenha acesso a informações para poder fazer a SUA escolha. É para que mães que não têm a possibilidade de fazer certas escolhas tenham um dia políticas públicas que lhes favoreçam, afinal, elas só são possíveis quando a sociedade reconhece o valor de suas demandas (Lian Tai, em postagem de Veronica Linder no Instagram, 10 nov. 2020).
A “escolha” diz respeito à crença de que, ao decidir o que fazer com seu corpo (amamentar ou não), isso as torna tão livres quanto os homens. Na realidade, o corpo da mulher é tido como mercadoria, e toda presumida escolha pode ser transformada em oportunidade de controle. Sobre a retórica da escolha, destacamos Hausman (2008HAUSMAN, Bernice. Women’s liberation and the rhetoric of “choice” in infant feeding. International Breastfeeding Journal, [s. l.], v. 3, n. 10, 2008.) e Calafell Sala (2017)CALAFELL SALA, Nuria. Mujeres-madres lactantes: nuevos cuerpos, nuevos discursos. Revista de Estudios de Género La Ventana, Guadalajara, v. V, n. 46, p. 143-175, 2017., que argumentam que a defesa da “livre escolha” no aleitamento se converte em recurso eficaz para difundir a ideologia neoliberal. Outra compreensão semelhante da retórica da escolha é de Ross e Solinger (2017ROSS, Loretta J.; SOLINGER, Rickie. Reproductive Justice. An Introduction. Oakland: University of California Press, 2017.), do campo da justiça reprodutiva, um movimento ativista político que busca conciliar direitos reprodutivos e justiça social. Além do direito de não ter filhos, o movimento preconiza o direito de tê-los, e de exercer a parentalidade de forma segura e digna, o que muito ecoa com o posicionamento das lactivistas.
Nos rastros de Tempesta e França (2021TEMPESTA, Giovana; FRANÇA, Ruhana. Nomeando o inominável. A problematização da violência obstétrica e o delineamento de uma pedagogia reprodutiva contra-hegemônica. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 27, n. 61, 2021.), que escrevem sobre a pedagogia reprodutiva contra-hegemônica representada pelos movimentos de mulheres contra a violência obstétrica, afirmamos que as lactivistas denunciam um problema sistêmico e multifacetado, que requer soluções igualmente sistêmicas e multifacetadas, desde como se compreendem em nossa sociedade as ideias de corpo feminino, mulher, maternidade, trabalho, escolha e autonomia. Amamentar é natural, mas não é de graça. Segundo Veronica Linder (Instagram, 22 ago. 2022), o custo envolve uma multiplicidade de fatores, muitos não monetários, ligados a problemas sociais estruturais mais amplos. O questionamento do sistema produtivo e da responsabilização individual/privada pelo cuidado tão presente no discurso das ativistas é uma pauta defendida por teóricas feministas da economia ou ética feminista do cuidado, conforme Quiroga Diaz (2011QUIROGA DIAZ, Natalia. Economía del cuidado. Reflexiones para un feminismo decolonial. Casa de la Mujer, Heredia, v. 20, n. 2, p. 97-116, 2011., p. 106, tradução nossa):
Pensar no cuidado sob a perspectiva da política pública também significa o alcance de uma reivindicação histórica do feminismo, ligada ao reconhecimento das atividades domésticas e de cuidado como trabalho. A economia feminista tem insistido que o trabalho reprodutivo é uma parte fundamental do funcionamento da economia e, portanto, um problema da esfera pública e não do lar.
Reconhecer o trabalho reprodutivo e do cuidado como essenciais para a economia implica compreender mecanismos de disputa sobre o controle de corpos e da capacidade reprodutiva das mulheres, em semelhança aos debates sobre aborto seguro e educação sexual:
A partir do momento que uma mulher diz que não amamentou porque seu leite não é suficiente, ela está dizendo que uma das características do corpo feminino é não funcionar e isso é uma das mazelas que a gente traz de muito tempo. […] Acreditar no poder do corpo não quer dizer que vai ser fácil, que problemas não vão acontecer. A luta feminista é para ter direito sobre as nossas decisões: “Eu não quero amamentar” deve ser tão válido quanto “quero fazer livre demanda até quando minha cria quiser” e não precisar de justificativa. Porque a nossa vontade sobre os nossos corpos e nossos processos deve ser soberana e ponto (Veronica Linder, Instagram, 6 maio 2019).
O paradigma da escassez do leite materno, referido anteriormente na crença de que o leite seria “fraco” ou insuficiente, foi socialmente construído em contexto de intervenção biomédica e racionalização capitalista:
O controle generalizado da amamentação por especialistas do sexo masculino é um fenômeno ligado tanto à expropriação do conhecimento e do poder de decisão das mães - e das mulheres que podem orientá-las com base em sua experiência - quanto ao crescimento de uma indústria de alimentos para bebês (Ausona Bieto et al., 2017AUSONA BIETO, Marta et al. Lactancias, capital y soberanía alimentaria: la falaz escasez de la leche humana. Dilemata, Madrid, v. 9, n. 5, 2017., tradução nossa).
As ativistas denunciam médicos patrocinados pela indústria de leites substitutos e a promoção de informações infundadas, bem como violações à Lei NBCAL (Brasil, 2006BRASIL. Presidência da República. Lei nº 11.265, de 3 de janeiro de 2006. Regulamenta a comercialização de alimentos para lactentes e crianças de primeira infância e também a de produtos de puericultura correlatos. Brasília, DF: Presidência da República, 2006. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11265.htm . Acesso em: 19 jul. 2024.
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_a... ), que prevê regulamentação de promoção comercial e rotulagem de alimentos e produtos destinados a recém-nascidos e crianças até 3 anos, assegurando seu uso de forma a reduzir interferência no aleitamento. A análise de Marton e Echazú (2010MARTON, Bibiana; ECHAZÚ, Gretel. La violencia simbólica en la consulta médica: la naturalización de la díada madre-hijo y la promoción compulsiva de la lactancia materna. Sexualidad, Salud y Sociedad. Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, n. 5, p. 119-143, 2010.) explica o crivo da “cientificidade” como artifício patriarcal e paternalista dentro da consulta médica e no atendimento a lactantes, mostrando como o discurso médico pode caracterizar violência institucional simbólica:
A auréola da cientificidade estrategicamente colocada em ação no ato performático ritual da consulta médica é sustentada pela divisão androcêntrica do mundo, em que o manuseio por um profissional médico do sexo masculino envolve, aos olhos do profissional, “expertise”, enquanto o feminino envolve “intimidade”, que é atribuída às divisões históricas paralelas entre feminino/masculino, privado/público, cultura/natureza. No caso da amamentação, a ênfase está no que é “natural”, no que “não custa nada” e, portanto, não tem valor e é incompatível com o trabalho; isso reafirma o status inferior da mulher na organização do mundo, com base nas assimetrias de gênero e agravado pelas desigualdades de classe (Marton; Echazú, 2010MARTON, Bibiana; ECHAZÚ, Gretel. La violencia simbólica en la consulta médica: la naturalización de la díada madre-hijo y la promoción compulsiva de la lactancia materna. Sexualidad, Salud y Sociedad. Revista Latinoamericana, Rio de Janeiro, n. 5, p. 119-143, 2010., p. 141, tradução nossa).
Ora, a crítica presente à ideia de escolha e ao paradigma liberal pautado no individualismo nos leva a propor uma chave de leitura que reconheça o contexto estruturalmente desigual em que almejamos discutir justiça reprodutiva (Ross; Solinger, 2017ROSS, Loretta J.; SOLINGER, Rickie. Reproductive Justice. An Introduction. Oakland: University of California Press, 2017.) e os desafios para uma antropologia da reprodução, através da luta comprometida a questionar o pressuposto da mulher enquanto detentora da função de cuidado e do servir sexual pela manutenção de um modelo de sociedade. É disso que tratamos ao falar sobre direitos reprodutivos, uma vez que diante de um fenômeno comum que atravessa a experiência materna em sua diversidade e especificidade, suscitando a necessidade de problematizar a suposta identidade materna inata atribuída ao cuidado e à amamentação. Evidências científicas operam como positivismo estratégico, enquanto parte de um processo político de apropriação do conhecimento, desde saberes centrados na experiência de mulheres.
Nesse sentido, o campo novamente ecoa tais preocupações investigativas. Algumas das ativistas, tecendo uma reflexão crítica sobre a herança escravista colonial, abordaram a alusão nada inócua de uma influencer às amas-de-leite (ver Segato, 2021SEGATO, Rita Laura. Crítica da colonialidade em oito ensaios. E uma antropologia por demanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.) escravizadas, muitas vezes puérperas, que amamentavam as crianças brancas ricas, sendo privadas de amamentar seus próprios filhos. Num contexto de reivindicação do direito de amamentar, as mulheres se posicionam de forma contundente para pensar quem de fato têm acesso aos direitos reprodutivos e à justiça reprodutiva. Nossa história de desigualdade ressoa hoje ao analisarmos a condição de mulheres trabalhadoras, domésticas ou babás em situação de vulnerabilidade social, também privadas de cuidar dos próprios filhos. Debater o trabalho do cuidado invisibilizado e a amamentação é enfrentar esse legado, onde jaz a raiz da alegação sobre amamentar ser considerado um privilégio, e não um direito a ser garantido a todas. Nesse sentido, recuperamos a discussão sobre hierarquias reprodutivas, que aponta a preconização de um modelo ideal de reprodução, branco, heterossexual e privilegiado, em detrimento da manutenção de direitos fundamentais.
Considerações finais
As lactivistas, enfatizando a importância de reconhecer as dificuldades de amamentar enquanto questões de ordem estrutural, não individual, concernente a direitos básicos, combatem a ideia de que amamentar seja evento inócuo, privilégio ou mesmo garantido por mera escolha, destacando o trabalho reprodutivo e doméstico invisibilizado, ligado ao trabalho do cuidado.
Se o aspecto natural da amamentação é cultivado no lactivismo enquanto valorização da condição mamífera, deve, no entanto, ser aprofundado para dar conta da dimensão racial e de classe, sendo importante notar que, para muitas mulheres racializadas, a sua humanidade é que deve ser preconizada. A animalidade atribuída às mulheres negras, sintoma colonial remanescente da escravidão que se atualiza no racismo hoje, contribui tanto para a invisibilização do trabalho reprodutivo e do cuidado realizado por tais mulheres quanto para a relativização moral de violências e negligências cometidas contra elas no atendimento à saúde.
Por fim, a representação de vivências em torno da amamentação por mulheres brasileiras é encontrada também no documentário De peito aberto (Mantoanelli, 2019MANTOANELLI, Graziela (dir.). De peito aberto. 80 min. São Paulo: Deusdará Filmes, 2019.), o qual traz um mosaico de cenas cotidianas de diferentes mulheres que amamentam, unidas sob o signo comum que é a vida social do leite (Carneiro; Braga, 2020CARNEIRO, Rosamaria; BRAGA, Raquel. Resenha De peito aberto. Diretora: Graziela Mantoanelli. São Paulo, 2019. Anuário Antropológico, Brasília, DF, v. 45, n. 2, p. 259-264, 2020.). Entendemos o ativismo pela amamentação como movimento social, inserido em um esforço amplo e coletivo de mulheres por construir e reivindicar ferramentas autônomas para enfrentar as condições de opressão e conflito com as quais se deparam em seus processos de reprodução e criação de filhos. Trata-se de vivências que não se dão de forma irrefletida, e que representam um adensamento de questões pautadas pelo feminismo, a partir de uma multiplicidade de experiências maternas corporificadas. Nesse sentido, a experiência ou ideal comum é capaz de unir diferentes trajetórias e vivências sob o questionamento das normas impostas às mulheres em seus processos de maternidade, possibilitando pensar o ato de aleitar como trabalho, escolha, biologia e espaço de política.
Referências
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- 1O movimento lactivista, investigado na Espanha por Massó Guijarro (2015)MASSÓ GUIJARRO, Ester. Lactivismo contemporáneo en España: ¿una nueva marea sociopolítica? Journal of Spanish Cultural Studies, London, v. 16, n. 2, 2015., nasceu em 2006, como ativismo vinculado à defesa da amamentação e à dimensão política do amamentar, com o objetivo de promover, apoiar e normalizar a lactância. Conforme Francesca Sanz Vidal (2017)SANZ VIDAL, Francesca. Lactivismo como movimiento de resistencia: (re) acciones lactivistas en contextos urbanos mexicanos. Dilemata, Madrid, n. 25, 2017. e Massó Guijarro (2015)MASSÓ GUIJARRO, Ester. Lactivismo contemporáneo en España: ¿una nueva marea sociopolítica? Journal of Spanish Cultural Studies, London, v. 16, n. 2, 2015.: “El movimiento lactivista surge como respuesta a un importante descenso de la práctica de la lactancia materna; […] ha ido ganando espacio y visibilidad en las sociedades occidentalizadas como uno de esos movimientos necesarios para influir en el corazón de unas sociedades que han desconsiderado múltiples aspectos relacionados con la cultura del cuidado. El debilitamiento del estado de bienestar y la exacerbación del individualismo han dado lugar a la degradación de las instituciones encargadas de apoyar el ámbito del cuidado de las personas” (Sanz Vidal, 2017SANZ VIDAL, Francesca. Lactivismo como movimiento de resistencia: (re) acciones lactivistas en contextos urbanos mexicanos. Dilemata, Madrid, n. 25, 2017.). “Se vindica la práctica de la lactancia (a través del lactivismo) en su dimensión de movimiento social […], en esa desobediencia epistémica tan amigable al lactivismo, que desacata la epistemología patriarcal en la lectura y consecuencias de la lactancia, y reclama una comprensión descolonizada de sí misma. Todo conocimiento es situado, y situado no solamente en un espacio geográfico sino, esencialmente, temporal y corporal; es corpopolítica y es geopolítica […]”. (Massó Guijarro, 2015MASSÓ GUIJARRO, Ester. Lactivismo contemporáneo en España: ¿una nueva marea sociopolítica? Journal of Spanish Cultural Studies, London, v. 16, n. 2, 2015.).
- 2*A ativista Clarissa Roldi desativou seu perfil no momento de registro final destes dados, à época da publicação da dissertação da primeira autora (Braga, 2022BRAGA, Raquel. O trabalho invisível do cuidado e a emancipação das mulheres no cerne da discussão lactivista. 2022. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) - Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2022.), que apresenta a pesquisa ora referenciada neste artigo.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Jan 2025 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
14 Ago 2023 - Aceito
10 Jul 2024