Resumo
O objetivo desta pesquisa foi analisar como os processos de medicalização da infância atuam em comunidades biossociais de pais na rede social. A investigação partiu de uma abordagem de etnografia virtual em dois grupos de comunidades de pais de crianças diagnosticadas com TDAH na plataforma Facebook, pelo período de junho de 2021 a novembro de 2022, tendo como viés analítico análise de discurso de Michel Foucault. Os resultados demonstram que as redes sociais são espaços de ancoragem, circulação e reforço de discursos que atuam a partir de enunciados biomédicos acerca da medicalização da infância, e que constroem posições de sujeitos para pais, mães e, em especial, as crianças, que são o objeto destes discursos. Além disso, os fenômenos de medicalização da infância se tornam articulados por estratégias biopolíticas que reduzem apenas a causas biológicas um conjunto de problemas sociais e educativos. Podemos afirmar, ao fim, que as redes sociais auxiliam na expansão dos diagnósticos de transtornos mentais infantis através dos inúmeros compartilhamentos de informações sobre os possíveis transtornos, atuando como ferramentas para criação, circulação e controle de corpos por meio de enunciados ancorados em discursos biopsicopatológicos, que por sua vez permitem a produção de biocidadanias digitais-informacionais e comunidades biossociais.
Palavras-chave:
Medicalização; Transtornos do Comportamento Infantil; Biopolítica; Redes Sociais; Discurso
Introdução
Os saberes biomédicos e, em especial, aqueles que se assentam na especialidade da psiquiatria, permeiam cada vez mais nosso cotidiano, ocupam de modo crescente os interstícios de nossas formas de existência. Nesta expansão, as práticas e saberes biomédicos adentram nossas vidas desde os terrenos mais comuns até aqueles mais restritos de nossa privacidade individual. Se colocam como principal e derradeira forma de conhecimento, nos quais podemos dirigir a nós mesmos e nos entender como um determinado tipo de sujeito (Rose, 2007).
Nesse sentido, não estranha a assertiva de Whitaker (2019WHITAKER, R. Prefácio. In: CAPONI, S. Uma sala de aula tranquila: neuropleticos para uma biopolítica da indiferença. São Paulo: LiberArts, 2019.) de que a psiquiatria - e de modo geral os saberes biomédicos - expandiu cada vez mais sua influência sobre nossas vidas ao longo dos últimos 65 anos. No curso deste processo, cada vez mais características antes tidas como normais passaram a ser conhecidas e caracterizadas como desviantes, e muitas delas se tornaram um transtorno (Caponi, 2016CAPONI, S. et al. Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância. São Paulo: Editora LiberArs, 2016.).
As características de determinados transtornos são hoje amplamente divulgadas em diferentes espaços institucionais, tais como livros técnico-científicos (o DSM,11 DSM é a sigla para Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. em especial), eventos científicos22Manifesto do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/manifesto_web.pdf. Acesso em: 30 out. 2022. e as mídias, de modo geral (documentários, jornais, sites de internet, entre outros).33Vide o Stop-DSM, um movimento lançado internacionalmente que problematiza o critério único proposto pelo DSM, propondo um questionamento em relação à lógica classificatória do Manual, defendendo uma abordagem subjetiva e clínica do sofrimento psíquico. Despatologiza - Movimento pela Despatologização da Vida teve início com profissionais da saúde, parceiros de pesquisa e serviço que viram a necessidade de enfrentar coletivamente os processos de patologização que transfiguram diferenças em doenças. site: www.despatologiza.com.br. Estes últimos acabam, de certo modo, sendo operacionalizadores do que pode ser denominado de popularização da ciência (Neto ., 2015NETO, A. V. Teoria e método em Michel Foucault: (im)possibilidades. Cadernos de Educação, Pelotas, v. 34, p. 83-94, 2009. DOI: 10.15210/caduc.v0i34.1635
https://doi.org/10.15210/caduc.v0i34.163... ), o que faz com que os saberes e práticas biomédicos reverberem em toda sociedade.
Nas primeiras décadas do século XXI, porém, outros espaços sociais ganharam notório poder de divulgação e reverberação de saberes. Estes espaços são as mídias sociais virtuais, materializadas em aplicativos de redes sociais, as quais indubitavelmente atravessam nossas individualidades e coletividades desde o âmbito público até o privado. No escopo da discussão sobre os saberes biomédicos em suas formas de produção de sujeitos - e tomando as redes sociais virtuais como local em que tais saberes são operacionalizados, divulgados e materializados - é que realizamos a pesquisa em questão. Assim, temos como objeto de estudo os modos como os saberes e práticas biomédicos em suas produções discursivas acerca de comportamentos e transtornos se colocam como operacionalizadores de verdade e de sujeição atuando na formação e operacionalização de grupos biossociais em redes sociais, em especial, em comunidades virtuais do Facebook.44O Facebook é uma rede social criada pelo estadunidense Mark Zuckerberg em 2004, sendo hoje um dos sistemas com maior base de usuários no mundo.
As mídias e as redes sociais são espaços virtuais que promovem a divulgação de discursos psis, que abrangem a psiquiatria, psicologia e saberes correlatos (Martinhago, 2018MARTINHAGO, F. TDAH e Ritalina: neuronarrativas em uma comunidade virtual da Rede Social Facebook. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 10, p. 3327-3336, 2018. DOI: 10.1590/1413-812320182310.15902018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018231... ). Nas comunidades virtuais do Facebook há uma construção de grupos - muitos deles de pais de crianças diagnosticadas e outros de profissionais - onde os participantes se interligam através de interesses comuns, afetos mútuos, desabafos, pedidos de ajuda sobre as mais diversas situações do dia a dia. Nesses espaços, trocam informações e discutem sobre várias temáticas, inclusive sobre os transtornos mentais na infância - e mais especificamente sobre o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), aquele com maior prevalência de diagnóstico em muitos países como Estados Unidos, Reino Unido e Israel (Whitaker, 2016WHITAKER, R. Transformando crianças em pacientes psiquiátricos: fazendo mais mal do que bem. In: CAPONI, S.; VÁSQUEZ, M. F.; VERDI, M. (org.). Vigiar e medicar: estratégias de medicalização da infância. São Paulo: LiberArs, 2016. p. 13-28.).
A composição destes grupos a partir de uma organização baseada em enunciados discursivos biomédicos pode ser compreendida como comunidades biossociais. Por comunidades biossociais compreende-se coletivos formados em torno de uma mesma concepção biológica ou piscopatológica, como no caso deste estudo, uma comunidade virtual de pais de crianças diagnosticadas com TDAH. Rabinow (1996) discute que essas formas de organização coletiva demandam a incorporação de um tipo de cidadania baseada em conhecimento médico-científico sobre determinadas enfermidades, transtornos ou doenças.
No tocante às redes sociais virtuais e suas relações na construção de comunidades biossociais, cabe menção que no Brasil pesquisas recentes analisam qual o impacto das redes sociais virtuais em condições físicas e mentais de adultos ou crianças com diagnósticos como os de autismo, HIV/aids e TDAH (Corrêa; Lima, 2020CORRÊA, L. M.; LIMA, R. C. Uma etnografia virtual em um grupo sobre o transtorno bipolar: sociabilidades e saberes produzidos no meio on-line. Interface, Botucatu, v. 24, p. e190882, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.190882
https://doi.org/10.1590/Interface.190882... ; Martinhago, 2018MARTINHAGO, F. TDAH e Ritalina: neuronarrativas em uma comunidade virtual da Rede Social Facebook. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 10, p. 3327-3336, 2018. DOI: 10.1590/1413-812320182310.15902018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018231... ). Nas análises de Martinhago (2018MARTINHAGO, F. TDAH e Ritalina: neuronarrativas em uma comunidade virtual da Rede Social Facebook. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 10, p. 3327-3336, 2018. DOI: 10.1590/1413-812320182310.15902018
https://doi.org/10.1590/1413-81232018231... ) através de uma etnografia virtual, observou-se nas narrativas as angústias e sofrimentos de familiares de crianças com diagnóstico de TDAH, o uso de medicamentos como a Ritalina55O principal tratamento utilizado para TDAH é composto por medicamentos estimulantes do sistema nervoso central, incluindo as anfetaminas e o metilfenidato (Brzozowski; Daré, 2021). e as dificuldades em lidar com os filhos sem a medicação, o que influencia os demais participantes a seguirem o mesmo caminho.
Entendendo que as práticas que incidem sobre os modos de compreensão e produção da vida e de sujeitos a partir de saberes biomédicos são estratégias de medicalização e gerenciamento da vida, e que estas tem ocorrido por meio das mídias digitais, em especial através de grupos de compartilhamento de informações por redes sociais virtuais, é que o objetivo desta pesquisa foi elaborado.
A seguir, apresentamos o caminho do estudo em seus aspectos metodológicos para, na terceira seção, discutir os resultados e tecer análises sobre o material empírico produzido para esta pesquisa.
Método
As redes sociais são ambientes virtuais que conectam pessoas através do uso das tecnologias informacionais. O Facebook foi lançado em 2004, e hoje é um dos sistemas com maior base de usuários do mundo.
Para investigação nas comunidades virtuais da rede social Facebook, foram escolhidos elementos e princípios metodológicos da etnografia virtual. A netnografia - ou etnografia virtual - é a pesquisa observacional baseada no trabalho de campo on-line. A primeira etapa desta pesquisa consistiu em uma busca exploratória nas páginas e grupos das comunidades virtuais do Facebook utilizando palavras-chave como “TDAH”, “transtorno mental na infância”, “DSM” e “transtornos na infância”.
Esta pesquisa foi realizada entre junho de 2021 e novembro de 2022, e abarcou inicialmente mais de 20 páginas e/ou grupos no Facebook. A maioria das páginas e grupos investigados é privada, ou seja, exigem permissão de um administrador da página para que se possa ter acesso aos conteúdos e discussões. De todas as possibilidades inicialmente apresentadas, optamos em participar de dois grupos específicos, dentre os quais apresentavam maior número de participantes, frequência de postagens e publicações semanais, assim como eram de domínio público em geral.
O primeiro grupo virtual66Respeitando os princípios éticos, optamos em não expor o nome dos grupos e nem prints de tela para preservar a descrição do grupo e a identidade dos participantes. elencado para pesquisa foi criado há sete anos, e conta com 28.464 mil membros7720,9 mil membros até o momento.. É composto por mães e pais de crianças com diagnósticos de TDAH, TOD, autismo e outros supostos transtornos apresentados na infância, como também de adolescentes que se intitulam portadores dos transtornos.
O grupo apresenta postagens diárias, tendo uma média de 20 publicações por dia, destacando-se entre elas a falas de mães de crianças com diagnósticos e as que estão em busca dele. As dúvidas sobre os medicamentos utilizados em cada criança ficam em evidência, e mesmo constando na descrição do grupo a proibição de vendas de medicamentos, há grande ênfase nesse assunto. Fica proibida também a venda de serviços de profissionais e exposição de fotos de crianças - pois a cada publicação de texto a moderadora da página faz uma avaliação para liberar ou não a postagem. A administradora interage quase diariamente com conteúdo sobre TDAH e várias imagens e postagens da página ABDA.88Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) é uma associação de pessoas com TDAH, sem fins lucrativos, fundada em 1999, com o objetivo de disseminar informações científicas sobre o transtorno. https://tdah.org.br/.
O segundo grupo incluído na pesquisa foi criado em 2014, conta com 40,1 mil membros (até o ano de 2023) e tem uma média de 250 publicações ao mês, em sua maioria de familiares de crianças com diagnóstico de TDAH, e de jovens e adultos com TDAH, e conta com quatro moderadoras. As postagens são diárias, relacionadas a características de crianças e adolescentes com - ou em busca de - algum diagnóstico.
No que tange os aspectos éticos, não apresentamos a pesquisa ao Comitê de Ética da Instituição em que fora realizada a pesquisa por entender que se trata de um grupo público. A escolha por comunidades virtuais públicas se deu pelo fato de que elas podem ser acessadas por observadores “invisíveis”, pois nesses ciberespaços não há restrições quanto ao tipo de participante, as conversas, postagens e discussões ficam disponíveis na plataforma publicamente. De acordo com Angrosino (2009, p. 74), “no papel de observador invisível, o etnógrafo fica separado quanto possível do cenário de estudo, os observadores não são vistos nem notados”. O objetivo não é entrevistar ou intervir com comentários nos posts do grupo, mas analisar como os discursos são veiculados pelas redes sociais. Visando manter o anonimato dos sujeitos da pesquisa, na identificação dos excertos trazidos para análise estes foram identificados apenas com as iniciais referentes aos nomes que os sujeitos se manifestavam nas redes sociais, seguido da data de publicação das postagens. Quantos aos comentários, devido à alta frequência, optou-se de manter apenas as iniciais dos nomes. Seguimos a Resolução nº 674, de 6 de maio 2022, Resolução nº 196, de 10 outubro de 1996, e resolução CNS nº 510/2016, zelando pela confidencialidade dos dados.
Inspirados em elementos da análise de discurso elaborada por Michel Foucault, realizamos as análises da pesquisa. Os discursos, nas palavras de Foucault (2020FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2020., p. 135), podem ser assim descritos: “um conjunto de enunciados que se apoiem na mesma formação discursiva”. Assim, se compreende o conjunto de possibilidades de existência de algo, daquilo que pode ser dito, mas, além disso, daquilo que pode ser pensado, veiculado, reiterado, disputado, anunciado e silenciado em termos de práticas de produção.
Para tanto, Foucault propõe quatro princípios para tal empreendimento, dentre os quais o princípio de inversão é o primeiro. Por inversão o autor destaca que é preciso reconhecer, em detrimento de uma suposta continuidade das verdades e dos saberes e de um indivíduo que fala com autoridade sobre um tema - como se dele e somente dele emanasse uma autoridade de verdade -, para, ao invés disso, propor “o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso” (Foucault, 2014FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 49). Ou seja, é preciso inverter o questionamento sobre o indivíduo que fala (quem) e que verdade fala, por qual lugar de fala e como. Assim, nos propusemos a analisar os enunciados presentes nas páginas do Facebook sem atentar para quem fala, mas sim para que modos de fala são possíveis e a partir de que regimes de verdade e supostas autoridades e/ou expertises atuam para tal validação.
O segundo elemento descrito pelo autor é o princípio de descontinuidade. Identifica-se a descontinuidade de verdade dos discursos; portanto, não se deve esperar um discurso pronto, imutável, limitável e contínuo. No caso deste estudo, procuramos atentar para as pluridiscursividades que constituíam as formas de verdade postas sobre a medicalização da infância.
Para o terceiro princípio descrito como especificidade, de modo que nessa perspectiva do autor, o conhecimento só passa a ter validade como discurso de verdade após o reconhecimento da comunidade científica - das quais legitimam o que é ou não verdade - dentro do discurso da ciência (visto existirem outros: político, de senso-comum, religioso etc.). Assim, foi sobre como, mesmo em diferentes situações e casos apresentados nas postagens, elementos de um mesmo discurso poderiam ser regularmente acionado.
Por fim, o quarto princípio é o de exterioridade, em que o autor afirma que os discursos ocupam um espaço de existência a partir das condições externas que o demarcam, “àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras” (Foucault, 2014FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 50). Novamente, nesse ínterim, buscamos analisar os limites dos discursos biomédicos e psicopatológicos quando estes disputavam legitimidade sobre o que e como uma verdade pode ser posta em circulação nos grupos analisados.
São esses quatro princípios que devem servir como elementos norteadores para a análise discursiva, demarcando fronteiras do próprio discurso, buscando a compreensão da produção das redes e significados. Em suma, a análise do discurso pode ser definida como um processo de construção e desconstrução, pois nos mostra que esses discursos veiculados são resultados de outros processos, tais como políticos, sociais e culturais, e que se constituem em tantas outras práticas através de novos discursos de modo entrelaçado.
Operar esse método de análise implica reconhecer como determinados discursos se configuram através das redes sociais e configuram as próprias redes sociais - através de profissionais de saúde, pais, educadores, entre outros - e produzem determinadas posições de sujeito, biocidadanias informacionais-digitais e comunidades biossociais.
Resultados e discussão
Medicalização e redes sociais: a produção de sujeitos
Nas discussões veiculadas pela rede, é possível observar os discursos biomédico e psicopatológico incumbidos no vocabulário dos usuários participantes. Assim, retomamos que para Foucault (2014FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.) os discursos são conjuntos de enunciados que possibilitam que algo exista, tenha sentido, significado - neste caso, a medicalização da infância pelas redes sociais. Os discursos constroem posições de sujeitos, ou seja, eles produzem lugares que permitem ser ocupados para que se possa falar algo e sobre algo. Quando uma mãe refere: “hoje finalmente meu filho teve o diagnóstico que sempre suspeitei, o TDAH”99Utilizaremos itálico para identificar as postagens e comentários do Facebook. (G.F, 12 ago 2021), ela se desloca enquanto indivíduo e se coloca dentro de uma discursividade que permite essa fala - que é aceita porque tem poder de verdade pela legitimidade e veracidade do saber médico. É nesse momento em que ela ocupa, dentro do discurso, uma posição de sujeito para falar o que fala, tornando-se sujeito desse discurso, como podemos ver nos excertos a seguir:
Post:
Uma dúvida [...]. Poderia haver outro transtorno que cause desatenção, pois minha pequena é uma criança maravilhosa. Educada, doce, gentil, mas vive em Nárnia. Vai na cozinha beber água, quando chega lá, volta com tudo, mas esquece que foi beber água. Isso quando não muda o destino no caminho, perde todos os materiais escolares, tem hiperfoco em história, geografia e redação, mas é péssima em raciocínio lógico. Já está em acompanhamento com psicóloga e psicopedagoga. Agora fará a avaliação neuropsicológica, mas não consigo ver outros sintomas pertinentes como descrito aqui pela maioria. Ela faz artes marciais, ama ler e estuda sem problemas, só necessita fazer várias atividades junto pra focar. Não temos queixas da escola, todo mundo gosta dela. A escola é maravilhosa e acolheu a minha preocupação, porque até então só consideravam ela desatenta e viajante rs. Estava bem convencida de ser déficit de atenção sem hiperatividade, mas agora acompanhando o grupo, estou em dúvidas, porque não a identifico na maioria dos relatos que leio aqui (P.A. 9 set. 2022).
Comentários:
Eu era assim quando criança (C.A.).
A minha filha é como você descreveu e o neuropsicólogo diagnosticou com TDAH (R.L.).
Bom, se já tem um acompanhamento médico e você não vê “traços aparentes” de TDAH, fique tranquila. Só continue a observação, mas não tente “encaixá-la” num diagnóstico, às vezes ela só está sendo o que é: uma criança (S.S.).
Desse modo, podemos compreender como os discursos da rede constroem posições de sujeitos, que permitem que os pais, mães e famílias das crianças diagnosticadas - ou na busca por um diagnóstico de transtorno mental - ocupem um lugar de fala, e, consequentemente, esses discursos sejam replicados aos filhos, muitas vezes sujeitando-os. Conforme demonstramos no excerto citado anteriormente, por mais que haja dúvidas de que o filho tenha TDAH, observa-se a busca por algum diagnóstico. As falas de resistência descritas por alguns participantes “eu era assim quando criança”, ou, “só continue a observação, mas não tente encaixá-la num diagnóstico, às vezes ela está sendo o que é: uma criança”, nos mostra a necessidade que os “pacientes” tem para dar voz às suas experiências, mesmo que como citado “se já tem um acompanhamento médico” significa dizer que existe uma condição e que esta foi aceita.
Tais formas de anunciação de “não encaixe” sobre os enunciados medicalizantes permitem refletir que as relações de poder e sujeição não são totalitárias ou completas em seus modos de funcionamento, ou seja, há modos de resistência e possibilidades de rupturas com os discursos que se impõem. Nem sempre os indivíduos assumirão plenamente uma posição de sujeito no âmbito dos discursos, ou se assumem, não farão de modo passivo. É justamente nesse jogo de relações que se constroem os mecanismos de sujeição e governamento, assim como modos de construção de verdades.
De todo modo, em relação a esta busca de se encaixar ou não num diagnóstico, neste caso da descrição de si a partir de enunciados calcados em discursos biomédicos, o que está em pauta é a biologização da vida, e se possível, sua otimização. Não é novidade pensar que as pessoas, caracteristicamente, tentam reformular e melhorar a si mesmas o tempo todo. A partir da metade do século passado, tornamo-nos “pessoas somáticas” (Rose, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.), que compreendem a si mesmas e se reconhecem como seres modelados geneticamente. A manutenção da saúde do corpo, dietas, exercícios físicos, suplementos alimentares, cirurgias plásticas, por exemplo, são fatores compreendidos e influenciados através desse corpo molar, mas já a nível molecular. Esses “jogos de verdade” não prometem a cura, mas a correção dos tipos de pessoas que somos ou queremos ser (Rose, 2013).
Estudos como os de Ortega (2009ORTEGA, F. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Ciências Saúde Coletiva, São Paulo, v. 14, p. 67-77, fev. 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000100012
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200900... ), Manske e Santos (2015MANSKE, G. S.; SACCHI DOS SANTOS, L. H. Corpo, esporte e biotecnologias: um ensaio inspirado em Peter Sloterdijk. Nómadas, Bogotá, DC, n. 42, p. 77-87, jan. 2015. Disponível em: Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/152879 . Acesso em: 15 out. 2022.
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/15287... ), Silva e Vaz (2016SILVA, D. J., FERNANDEZ, V. A. A emergência do sujeito cerebral e suas implicações para a educação. Childhood & Philosophy, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, p. 211-230, 2016. DOI: 10.12957/childphilo.2016.22996
https://doi.org/10.12957/childphilo.2016... ) vão na direção dessas problematizações. Ortega (2009ORTEGA, F. Deficiência, autismo e neurodiversidade. Ciências Saúde Coletiva, São Paulo, v. 14, p. 67-77, fev. 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000100012
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200900... ), por exemplo, em suas análises sobre o autismo, argumenta sobre a inexistência de critérios objetivos que permitam estabelecer “um ponto de corte no espectro”, condições necessárias para que sejam tomadas decisões objetivas em relação à imposição de terapias ou testes genéticos aos pacientes diagnosticados como autistas. Manske e Santos (2015MANSKE, G. S.; SACCHI DOS SANTOS, L. H. Corpo, esporte e biotecnologias: um ensaio inspirado em Peter Sloterdijk. Nómadas, Bogotá, DC, n. 42, p. 77-87, jan. 2015. Disponível em: Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/152879 . Acesso em: 15 out. 2022.
https://lume.ufrgs.br/handle/10183/15287... , p. 79), por sua vez, problematizam os atletas “biotecnológicos” que se configuram pelo fato de criar “objetos-sujeitos como fruto da junção de diferentes porções biológicas a um corpo”, ou seja, diversos procedimentos que possam torná-lo mais preparado, adequado e capacitado para as competições do esporte olímpico. Silva e Vaz (2016SILVA, D. J., FERNANDEZ, V. A. A emergência do sujeito cerebral e suas implicações para a educação. Childhood & Philosophy, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, p. 211-230, 2016. DOI: 10.12957/childphilo.2016.22996
https://doi.org/10.12957/childphilo.2016... , p. 215), ainda nesse escopo, argumentam que os avanços tecnológicos através de “imageamento do corpo produziram a sua objetivação”, substituindo os relatos subjetivos por imagens, algoritmos e números. Na busca por um cérebro eficiente, os tratamentos à base de medicamentos e/ou técnicas que melhorem o foco ou a concentração ganham ênfase para corrigir o desempenho de alguém que não seja considerado satisfatório - ou seja, deficiente.
No caso deste estudo, nas análises dos discursos das redes sociais, foi possível descrever, assim como nos trabalhos recém citados, estratégias de “formação de cidadãos biológicos” (Rose, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013., p. 191). Essa cidadania biológica citada por Rose (2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.) pode ocorrer tanto individual como coletivamente. Individual à medida em que as pessoas remodelam suas relações a partir de um determinado conhecimento - por exemplo, quando recebem seu diagnóstico. E coletivamente quando esse conhecimento é partilhado, através das redes sociais, que constituem coletividades a partir dos enunciados. Nas falas das postagens aqui investigadas, é possível perceber o modo como as comunidades compreendem a si mesmas e se relacionam consigo e com as outras, de uma maneira biologicamente aceita, seja para descrever aspectos relacionados a sua identidade, suas dificuldades ou dúvidas em relação à nova identidade, tal como podemos perceber nas falas a seguir:
Como sou recém diagnosticada, para mim a minha cabeça era normal ser tão cheia de pensamentos o tempo todo, então queria identificar quais são os outros comportamentos que tenho que não são normais (A.D.C., 26 dez. 2021).
Procura o DSM que lá diz até as comorbidades e critérios diagnósticos (M.M.).
Eu acompanho uns no Instagram. Me ajudam bastante (I.O.).
Como é possível perceber pelos comentários destacados, a internet disponibiliza inúmeras possibilidades de buscas sobre assistência à saúde. Hoje, os usuários podem pesquisar opções de tratamentos em diversos sites - sejam estes de profissionais da saúde, organizações governamentais, de pesquisas, universitárias, como também blogs ou páginas pessoais de pacientes ou grupos de ajuda a portadores de determinada doença. Tal prática contribui para a existência do paciente informado, um “novo ator social” capaz de interferir na relação médico/paciente (Neto ., 2015NETO, A. V. Teoria e método em Michel Foucault: (im)possibilidades. Cadernos de Educação, Pelotas, v. 34, p. 83-94, 2009. DOI: 10.15210/caduc.v0i34.1635
https://doi.org/10.15210/caduc.v0i34.163... , p. 1656), atuando como expert de seu corpo e tratamento, dando forma à figura do “leigo/paciente especialista” (Corrêa; Lima, 2020CORRÊA, L. M.; LIMA, R. C. Uma etnografia virtual em um grupo sobre o transtorno bipolar: sociabilidades e saberes produzidos no meio on-line. Interface, Botucatu, v. 24, p. e190882, 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/Interface.190882
https://doi.org/10.1590/Interface.190882... ; Ortega et al., 2013), como podemos observar nos excertos:
Boa noite, pessoal! Minha filha de 10 anos está com suspeita de TDAH (ainda encontra-se fazendo a avaliação neuropsicológica a pedido da neuropediatra). Logo, na segunda consulta, a profissional prescreveu Ritalina de 10mg. Como já usei essa medicação há algum tempo (comprava sem prescrição) e tive várias reações, ainda não comprei a medicação, pois estou insegura. Não sou médica, mas estou receosa, pois quando eu usava, ficava concentrada nos meus estudos, mas, em compensação, ficava muito eufórica, sentia dores de cabeça e um pouco deprimida quando passava o efeito. Alguém passando pela mesma insegurança ou que o filho usa? Se sim, está ajudando no desempenho escolar? (D.F., 15 jun. 2022).
Comentários:
Meu filho tem 10 anos e diagnosticado. No começo do tratamento ele sentia leves dores de cabeça e a noite ficava mais na dele, parecia triste. Depois de uns 30 dias, já surgiram as melhoras no desempenho escolar, essa sensação de tristeza já não tem mais e é raro dor de cabeça (A.S.).
Também fiquei com receio, mas hoje meu filho se concentra bem e consegue acompanhar a aula (G.B.).
Meu filho tem 9 anos, há mais de 1 ano toma meio comprimido de 10mg nos dias de aula, e tem sido ótimo [...] no início teve um pouco de dor de cabeça, mas só uns 2 dias depois da aula (K.L.).
Os diagnósticos psiquiátricos se tornaram cada vez mais aceitos socialmente e defendidos como um direito dos pacientes que, por sua vez, aceitam e exigem um rótulo pelo diagnóstico médico: sou bipolar, meu filho é TDAH, meu neto tem TOD; e isso se dá através de explicações neurológicas: ele tem excesso de dopamina, tenho déficit de serotonina; fechando a tríade com a prescrição de um psicofármaco com a esperança de “curar” os supostos transtornos de conduta (Caponi, 2019CAPONI, S.; MARTINHAGO, F. Breve história das classificações em psiquiatria. Interthesis. v. 16, n. 1, p. 74-91, 2019. DOI: 10.5007/1807-1384.2019v16n1p73
https://doi.org/10.5007/1807-1384.2019v1... ), mostrando como os comportamentos próprios da condição humana podem ser cada vez mais vistos como um diagnóstico no DSM, por exemplo.
Assim, os discursos que compõem a possibilidade de descrição do que deve ou não ser adequado a uma criança, mesmo sendo diferentes em sua forma - na fala do professor, do profissional de saúde ou dos pais - são engendrados em diversos cenários - escola, família, redes sociais - e formam um mesmo conjunto de enunciados quando se referem ao mesmo objeto - a criança medicalizada. É aqui que se pode inferir a construção de posições de sujeito mediante a circulação e veiculação desses discursos. Nestes enunciados a criança é aquela que tem a ausência de algo e que se diagnosticada a partir de saberes biomédicos e das neurociências pode, desde o uso de tratamentos e fármacos adequados - e de última geração -, ser corrigida e normalizada. A posição de sujeito produzida permite que se fale desses indivíduos como sujeitos medicalizáveis com a seguintes características: não param quietos, não terminam as atividades da escola, não ficam sentados... entre tantas outras já citadas.
Desse modo, narrativas como: “ele é muito inteligente, só que não para quieto, faz birras, faz muitas perguntas” só são possíveis porque se ancoram em determinados enunciados que permitem tal função de existência, nesse caso, pertinentes ao discurso psicopatológico que se refere a um objeto que se alinha de diferentes maneiras para designar a criança com transtorno. Tal movimento ocorre também no conjunto de excertos seguintes:
O meu filho fez 5 anos dia 27 de dezembro. Ele é muito inteligente, já faz contas de somar, sabe as letras todas, os planetas, adora saber coisas sobre o corpo humano e montar Legos. Só que não para quieto, é para vestir, para comer, às vezes fico louca com ele, não gosta de barulhos muito altos, mexe em tudo, faz birras, faz muitas perguntas, sinto que as outras pessoas olham muito para ele porque ele é muito mexido e mete conversa com todos, acho as outras crianças bem mais calmas [...]. Será alguma coisa ou estou a pensar demais? Já o levei a uma psicóloga e ela disse que ele está muito bem para a idade... obrigada (L.F., 29 dez. 2021).
Comentários:
Você descreveu meu neto que é TDAH! (S.S.).
Meu filho é igual, com sete anos agora 7 de janeiro, além disso saber falar inglês perfeitamente. Procure um neuropediatra, um psicólogo especialista em TDAH, um psiquiatra, dentista, fonoaudiólogo (R.C.C).
O meu tem, e é isso tudo que falaste do teu filho. Conclusão: tem hiperatividade e déficit de atenção. Procura coisas para te ajudares a ti pois isto não é fácil pra nós (A.D.).
O fato de uma criança de cinco anos “não parar quieta, mexer em tudo, fazer birras e muitas perguntas”, como disse a mãe, desqualifica qualquer outra característica que a criança apresente, tais como: “Ele é muito inteligente, já faz contas de somar, sabe as letras todas, os planetas, adora saber coisas sobre o corpo humano e montar Lego [...] acho as outras crianças bem mais calmas”. As barreiras impostas cultural e politicamente descrevem as possibilidades de desenvolvimento do que é considerado normal ou não na infância. A comparação entre crianças e a busca por diferenças entre elas se transforma em uma justificativa de rotular e construir possibilidades de assujeitamento. Mesmo após uma avaliação profissional - “Já o levei a uma psicóloga e ela disse q ele está muito bem para a idade” -, continua-se a busca por uma solução, explicação, justificativa que venha através de um diagnóstico - calcado em ciências “biopsicopatologizantes” -, para que se possa tratar a criança de acordo com seu transtorno mental.
Cidadania biológica: biossociabilidades e subjetivação
Os discursos biologizantes assumiram forma ao longo do século XX, e trouxeram um novo modo de nos relacionarmos com nós mesmos - em termos de neuroses, humores, emoções. De acordo com Rose (2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.), os sujeitos na virada do século XX para o XXI foram educados para compreenderem a si mesmos “em termos neuroquímicos, em consciente aliança com os profissionais de saúde e por meio do nicho de mercado farmacêutico” (Rose, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013., p. 310). Tais práticas se arrolam na produção de uma “contínua tarefa de monitoramento, gerenciamento e modulação de nossas capacidades, que constituem a tarefa da vida do cidadão biológico contemporâneo” (Rose, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013., p. 310).
Os critérios diagnósticos do TDAH descritos no DSM-IV, tais como desatenção, agitação (hiperatividade), irritação e impulsividade, eram utilizados pelos profissionais da saúde e educação para o diagnóstico em crianças a partir de seis anos. De acordo com a nova versão do DSM-V (2013), esses sintomas já podem estar presentes desde o nascimento, fazendo com que os pais e familiares fiquem atentos a qualquer comportamento que possa dar indícios de alguma alteração, reforçando cada vez mais a racionalidade biomédica na qual estamos inseridos.
O caráter interpretativo e subjetivo desses sintomas pode fazer com que cada pessoa que busque o manual encontre uma ou outra caraterística facilmente, como explícito no seguinte trecho de análise: “procura o DSM que lá diz até as comorbidades e critérios diagnósticos” (M.M.). Esses argumentos se emaranham no excerto a seguir:
Sou pai de um garotão de 7 anos e há menos de 6 meses ele foi diagnosticado com TDAH, no começo fui muito relutante, pra mim era tudo birra, falta de limites, mas graças a minha esposa abri meus olhos e mente. Tinha muito medo que meu filho ficasse um dependente dos medicamentos, ficava com medo de deixar de ver uma criança sorridente para começar a ver uma criança robotizada por causa dos remédios. Mas hoje vejo totalmente o oposto. Meu filho chega e pede para tomar os remédios. Quando ele está sem medicamento fica uma criança agitada, inquieta e totalmente incompreensível. Ele em alguns casos se transforma em um tornado onde tudo e todos que estiveram à frente dele pode ser colocado abaixo. Mas quando ele usa seus remédios ele fica mais calmo, conversa, senta para ver filme, estuda, pergunta (G. C. 22 fev. 2021).
Na postagem transcrita, todos os comentários parabenizam o pai pelo relato, pela busca ao diagnóstico e uma solução para os “problemas do filho”. Quando ele menciona “meu filho chega e pede para tomar os remédios”, esse pai ocupa um lugar nesse discurso que não necessita mais a presença do profissional de saúde. Nesse momento, o pai já ocupou um lugar de fala e colocou em funcionamento um discurso de verdade, através de uma série de enunciados que criam condições de verdade.
A indissociabilidade TDAH e Ritalina, que foi construída ao longo das décadas de 1980 e 1990, fez com que com a ampliação dos critérios diagnósticos para o transtorno aumentassem cada vez mais o consumo do medicamento (Ortega 2010ORTEGA, F. et al. Ritalin in Brazil: production, discourse and practices. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, Botucatu, v. 14, n. 34, p. 499-510, 2010. DOI: 10.1590/S1414-32832010005000003
https://doi.org/10.1590/S1414-3283201000... ). Na contramão da tendência mundial, na França o diagnóstico do TDAH surge na metade dos anos 2000 (Caliman; Prado, 2019CALIMAN, L.; PRADO, M. R. Prise de psychostimulants et attention: l’expérience de deux adolescents diagnostiqués TDAH au Brésil et en France. La Nouvelle Revue, Éducation et Société Inclusives, Suresnes, v. 85, p. 261-276, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.cairn.info/revue-la-nouvelle-revue-education-et-societe-inclusives-2019-1-page-261.htm . Acesso em: 17 jan. 2022.
https://www.cairn.info/revue-la-nouvelle... ). Em um texto intitulado “Por que as crianças francesas não têm déficit de atenção” amplamente divulgado no ano de 2013, Marilyn Wedge (2013WEDGE, M. Por que as crianças francesas não têm déficit de atenção? Pragmatismo Político, [s. l.], 20 maio 2013. Disponível em: Disponível em: https://www.pragmatismopolitico.com.br/2013/05/deficit-de-atencao-nas-criancas-francesas.html . Acesso em: 19 jul. 2024.
https://www.pragmatismopolitico.com.br/2... ) compara dados dos EUA, em que 9% das crianças foram diagnosticadas e tratadas, aos da França, em que a percentagem de crianças diagnosticadas e medicadas era inferior a 0,5%. Segundo a reportagem, os psiquiatras franceses veem o TDAH como uma condição médica com causas psicossociais e situacionais. Ao contrário dos tratamentos à base de psicofármacos que atribuem as causas a sintomas de uma disfunção biológica, na França, opta-se por tratar o contexto social subjacente.
Delimitar fronteiras sobre determinadas características, comportamentos e possíveis tratamentos das crianças, unifica aqueles que estão dentro de uma determinada “categoria”. Nas análises de Rose (2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013., p. 200), significa dizer que estão se formando cada vez mais novas “linhagens biológicas e biomédicas” de cidadãos de inúmeros modos, bem como peritos desse discurso, como, por exemplo, os pais dessas crianças numa emergência pela busca do diagnóstico do TDAH. Vejamos isso em outro trecho:
Post:
Tenho uma filha de 2 anos e 8 meses não diagnosticada, porém com muitos sintomas de TDAH. Preciso de ajuda porque não sei mais o que fazer, minha filha chora o dia todo, fala muito, grita muito, inquieta demais, uma irritabilidade grande e não dorme direito, se mexe a noite toda na cama e demorar muito pra dormir e acorda várias vezes a noite chorando muito. Minha filha usa óleos essenciais para dormir e faz tratamento com psicóloga, mas vejo que nada está adiantando e eu estou exausta, emocionalmente e fisicamente, se alguém puder me ajudar com alguma dica, indicações de psicóloga eu agradeço de coração porque me sinto esgotada (L.L. 17 jan. 2022).
Comentários:
O ideal é vc correr atrás do diagnóstico (se tiver) para que comece com as intervenções logo (terapêuticas e medicamentosas). Precisa de uma equipe multidisciplinar com terapeuta ocupacional, neuropediatra, neuropsicopedagoga, etc. Comece as intervenções enquanto ela ainda é novinha, pois os resultados são mais rápidos. Ela irá aprender a lidar com TDAH, caso tenha (A.K.).
Para aqueles que estão imersos direta ou indiretamente nesse diagnóstico, ler e imergir na busca por respostas dentro dos grupos das redes sociais parece ser uma chave que abre novos caminhos de possibilidades, e quanto mais cedo se buscar as respostas, melhor. Dessa forma, os diagnósticos agem como maneira de categorizar as particularidades das crianças, selecionando e segregando cada uma delas através de suas características, tornanda-os “sujeitos neuroquímicos” (Rose, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.).
Para Byung-Chul Han (2016HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2016., p. 63), diferentemente da perspectiva do panóptico de Bentham1010O panóptico de Bentham organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente, sendo a visibilidade uma armadilha (Foucault, 2014, p. 194). da sociedade disciplinar em que se tinha a ilusão de uma vigilância permanente, na atual sociedade do controle, ou da transparência (“panóptico digital”), os usuários da rede imaginam uma liberdade absoluta, adotando cada vez mais formas panópticas. Dentre as particularidades do panóptico digital, uma delas é que seus usuários participam ativamente da sua edificação, cada qual é exposto a visibilidade e ao controle, sendo que todos controlam todos.
Os processos de molecularização da vida reconfiguram os estilos de pensamento, e isso se manifesta na potencialização da compreensão da vida e da existência a partir de explicações que operam seus saberes não mais no corpo físico visível a olho nu, mas sim, no corpo molecular, genético (Rose, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.). Tal mudança de pensamento produz novas técnicas e tecnologias sobre os sujeitos, tornando-os parte de um novo discurso sobre a vida, a saúde e doenças, e de modo mais amplo, organiza outras formas de gerenciamento dos corpos.
Poderíamos sugerir que estamos conformando uma nova coletividade biossocial, a partir das reflexões postas por Rabinow (2002), a partir das crianças medicalizadas, com intuito de caracterizar os novos modos de identificação coletiva através da era dos genomas. Essas novas técnicas de subjetivação não prometem a cura de determinados tipos de diagnósticos, mas a correção dos tipos de pessoas que somos.
Os discursos observados na rede mostram a busca dos familiares das crianças por explicações - a partir de um viés biológico - a partir de determinadas características apresentadas pelas crianças. Pode-se observar que as redes sociais auxiliam na expansão dos diagnósticos de transtornos mentais através dos milhares de compartilhamentos de informações sobre as doenças, como nas discussões realizadas neste capítulo por meio dos depoimentos das mães sobre as características apresentadas pelos filhos, a formações de fóruns de discussão sobre os tratamentos e de que modo é possível concretizar-se os diagnósticos. O ativismo desses pais e familiares é discutir sugestões de que as enfermidades de suas crianças nada tenham a ver com condições sociais ou com gerenciamento parental (Rose, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.). Através desses discursos é possível inferir o modo como se constroem posições de sujeitos, como a da criança problemática.
Considerações finais
Em nossa atual “cultura biologizada”, busca-se regularmente uma causa ou uma solução em termos biológicos, celulares ou moleculares não apenas para as doenças, mas também para as características próprias do ser humano - capacidades, personalidade, seus próprios “eus” tornaram-se explicáveis através da biologia (Rose, 2013ROSE, N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus, 2013.). Se “para mim a minha cabeça era normal ser tão cheia de pensamentos o tempo todo”, conforme trecho das publicações analisadas, o que mudou para esse indivíduo após receber o diagnóstico de TDAH? Quais outras características normais ele ou ela encontrará quando for buscar o DSM, conforme indica um dos comentários? Esses discursos transformam as subjetividades dos indivíduos, oferecendo novos modos para descrever o que lhes causa incômodo e o que não se encaixa; são enunciados proliferados pela aplicação do conhecimento biomédico - central para que os discursos tenham teor de verdade.
Rose (2020ROSE, N. Nuestro future psiquiátrico: las políticas de la salud mental. [S. l.]: Ediciones Morata S.L., 2020., p. 184) nos faz refletir sobre uma nova biopolítica da saúde mental, através do modo pelo qual as pessoas - no caso deste estudo, mães e familiares de crianças com diagnósticos de transtornos mentais - compreendem a si mesmas e aos seus filhos, utilizando nas redes uma linguagem psiquiátrica. Para o autor, “para que as palavras do doente mental sejam ouvidas como algo mais do que um sintoma a ser interpretado por alguém que conhece o seu significado muito melhor do que quem fala, é necessário algo mais do que ‘dar voz’”.
Nas análises realizadas foi possível observar as construções de posição de sujeito a partir dos discursos e enunciados presentes nas redes sociais nas falas dos pais de crianças que buscam diagnósticos de transtorno infantil - “meu filho tem hiperatividade, não para quieto, faz muitas perguntas”. Esse processo de regulação de verdades faz com que os pais e/ou familiares das crianças, ao se relacionarem nas redes sociais e identificarem determinadas características comuns entre seus filhos, comecem a compreender a si mesmos - e às crianças - de um determinado modo, a partir de um determinado saber, falar sobre si mesmos, julgar a si mesmos, operacionalizando aquilo que Rose (2001) conceitua como práticas de subjetivação.
Desse modo, no que tange a este estudo, percebemos que tais práticas são operacionalizadas a partir de e no interior de discursos biomédicos psicopatologizantes, e que tais movimentos nas redes sociais virtuais acabam por expandir e reificar estas verdades, sujeitos e redes de relação social. Por fim, reiteramos que tais práticas produzem formas de coletividades específicas, as biossociabilidades, e atuam na construção de um tipo específico de cidadania, a saber, uma cidadania biológica, aqui aludida como biocidadanias informacionais-digitais, direcionadas a infância.
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- 1DSM é a sigla para Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.
- 2Manifesto do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. São Paulo, 2010. Disponível em: https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/manifesto_web.pdf. Acesso em: 30 out. 2022.
- 3Vide o Stop-DSM, um movimento lançado internacionalmente que problematiza o critério único proposto pelo DSM, propondo um questionamento em relação à lógica classificatória do Manual, defendendo uma abordagem subjetiva e clínica do sofrimento psíquico. Despatologiza - Movimento pela Despatologização da Vida teve início com profissionais da saúde, parceiros de pesquisa e serviço que viram a necessidade de enfrentar coletivamente os processos de patologização que transfiguram diferenças em doenças. site: www.despatologiza.com.br.
- 4O Facebook é uma rede social criada pelo estadunidense Mark Zuckerberg em 2004, sendo hoje um dos sistemas com maior base de usuários no mundo.
- 5O principal tratamento utilizado para TDAH é composto por medicamentos estimulantes do sistema nervoso central, incluindo as anfetaminas e o metilfenidato (Brzozowski; Daré, 2021BRZOZOWSKI, F.S.; DARÉ, P. K. Criando crianças para um mundo competitivo: o uso do metilfenidato para o aperfeiçoamento do desempenho da infância. In: CAPONI, S.; BROZOZOWSKI, F. S.; LAJONQUIÈRE, L. Saberes Expertos e medicalização no domínio da infância. São Paulo: LiberArs, 2021. p. 203-222.).
- 6Respeitando os princípios éticos, optamos em não expor o nome dos grupos e nem prints de tela para preservar a descrição do grupo e a identidade dos participantes.
- 720,9 mil membros até o momento.
- 8Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA) é uma associação de pessoas com TDAH, sem fins lucrativos, fundada em 1999, com o objetivo de disseminar informações científicas sobre o transtorno. https://tdah.org.br/.
- 9Utilizaremos itálico para identificar as postagens e comentários do Facebook.
- 10O panóptico de Bentham organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer imediatamente, sendo a visibilidade uma armadilha (Foucault, 2014FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 42. ed. Petrópolis: Vozes, 2014., p. 194).
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
28 Fev 2025 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
12 Set 2023 - Revisado
04 Dez 2023 - Aceito
10 Jul 2024