Resumo
A hegemonia do modelo biomédico, resultante de eventos históricos, da colonização europeia ao apoio de fundações norte-americanas, é contestada no Brasil após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS). O conceito de bucalidade propõe uma visão ampliada para além desse modelo, destacando a necessidade de alternativas que respeitem a universalidade, integralidade e equidade. Objetivou-se analisar a bucalidade, com uma revisão integrativa e reflexão acerca de seu potencial epistemológico decolonial, com oito estudos incluídos na amostra final. A bucalidade, enquanto alternativa epistemológica, valoriza a boca como território de experiências, contrapondo-se à objetivização. Alinhada às críticas ao viés eurocêntrico da modernidade, mas dialogando com teorias europeias, se aproxima de uma epistemologia fronteiriça. Esta revisão identificou o potencial da bucalidade, para integrar a subjetividade e possibilitar futuras pesquisas focadas nos interesses da saúde bucal brasileira e latino-americana.
Palavras-chave:
Bucalidade; Saúde Bucal; Saúde Coletiva; Decolonialidade; Revisão Integrativa
Introdução
O impacto das relações internacionais no campo da saúde não é exatamente recente, mas é notório o seu crescimento significativo a partir do século passado, com o fortalecimento de perspectivas globais e dos marcos históricos, como a fundação da Organização das Nações Unidas e as experiências de cooperação de diferentes países (Santana, 2011SANTANA, J. P. Um olhar sobre a Cooperação Sul-Sul em Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 2993-3002, 2011.). Nos últimos anos, a crise global vivenciada pela sindemia da covid-19 apresentou importante destaque a essas relações, bem como ao elemento político da saúde pública em suas diferentes formas de enfrentamento (Ungerer, 2020UNGERER, R. Movimento dos não alinhados e G77: o Sul Global e a Covid-19. In: BUSS, P. M.; FONSECA, L. E. (org.). Diplomacia da saúde e Covid-19: reflexões a meio caminho. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2020. p. 173-184.; Santos, 2023SANTOS, C. A cooperação Sul-Sul e o multilateralismo multinormativo na criação do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Vacinas do BRICS. Revista Tempo Do Mundo, Brasília, v. 31, p. 117-144, 2023. DOI: 10.38116/rtm31art4
https://doi.org/10.38116/rtm31art4... ).
Todavia, tais relações nem sempre ocorreram de forma harmônica, cooperativa ou multilateral entre os diferentes países, reflexo das próprias tensões geopolíticas existentes. Um bom exemplo deste processo foi a hegemonia histórica do modelo biomédico da saúde.
O modelo biomédico apresenta uma abordagem cartesiana que separa sujeito e objeto, de modo a valorizar o distanciamento objetivo, a tecnologia, a técnica e a especialização, e, assim, fragmenta o paciente e reduz o organismo e o processo de adoecimento a elementos mecânicos, químicos, físicos e biológicos, com a centralização do cuidado na figura do profissional médico (Barros, 2002BARROS, J. A. C. Pensando o processo saúde doença: a que responde o modelo biomédico? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 67-84, 2002. DOI: 10.1590/S0104-12902002000100008
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200200... ).
O estabelecimento desse modelo não foi um processo completamente orgânico. A partir de ideias que surgiam no final do século XIX e no início do século XX, e frente ao caótico estado do cenário da formação médica, o educador norte-americano Abraham Flexner promoveu, com subvenções das Fundações Rockefeller e Carnegie, uma reforma no ensino da saúde, fortalecendo o hospital como ambiente de formação e o currículo biomédico e disciplinar nos Estados Unidos (Pagliosa; Da Ros, 2008PAGLIOSA, F. L.; DA ROS, M. A. O Relatório Flexner: Para o Bem e Para o Mal. Revista Brasileira de Educação Médica, Brasília, v. 32, n. 4, p. 492-499, 2008. DOI: 10.1590/S0100-55022008000400012
https://doi.org/10.1590/S0100-5502200800... ). Durante o período das décadas de 20 a 60, a Fundação Rockefeller participou ativamente da expansão desse modelo científico de modo global, estimulando instituições e cursos com recursos técnicos e financeiros em diversos países, incluindo aqueles pertencentes à América Latina, como foi o caso do Brasil (Faria; Costa, 2006FARIA, L.; COSTA, M. C. Cooperação Científica Internacional: Estilos de Atuação da Fundação Rockefeller e da Fundação Ford. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 49, n. 1, p. 159-191. 2006. DOI: 10.1590/S0011-52582006000100007
https://doi.org/10.1590/S0011-5258200600... ).
Todavia, as complexidades do processo saúde-doença e os resultados e custo-efetividade do modelo biomédico levaram ao surgimento de questionamentos e ao desenvolvimento de novas alternativas. Conforme o clássico modelo conceitual de saúde de Earp e Ennet (1991EARP, J. A.; ENNETT, S. T. Conceptual Models for health education and practice. Health Education Research, Oxônia, v. 6, n. 2, p. 163-171, 1991. DOI: 10.1093/her/6.2.163
https://doi.org/10.1093/her/6.2.163... ), o processo saúde-doença seria composto, na verdade, por relações causais existentes em um conjunto de conceitos associados, favorecendo a interpretação por diferentes teorias e níveis de investigação. Outras abordagens conceituais posteriores com importante destaque foram o modelo de paradigma transdisciplinar de Albrecht, Freeman e Higginbotham (1998ALBRECHT, G.; FREEMAN, S.; HIGGINBOTHAM, N. Complexity and Human Health: the case for a transdisciplinary paradigm. Culture, Medicine and Psychiatry, Cambridge, v. 22, n. 1, p. 55-92, 1998. DOI: 10.1023/A:1005328821675
https://doi.org/10.1023/A:1005328821675... ), a teoria unificada de saúde de Almeida-Filho (2013)ALMEIDA-FILHO, N. Para uma teoria unificada sobre saúde-doença: I. Saúde como objeto-modelo complexo. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 47, n. 3, p. 433-450, 2013. DOI: 10.1590/rsp.v47i3.76649
https://doi.org/10.1590/rsp.v47i3.76649... e a mensuração de equidade de Dover e Belon (2019DOVER, D. C.; BELON, A. P. The health equity measurement framework: a comprehensive model tomeasure social inequities in health. International Journal for Equity in Health, Londres, v. 18, n. 36, 2019. DOI: 10.1186/s12939-019-0935-0
https://doi.org/10.1186/s12939-019-0935-... ).
No Brasil, nenhum fator histórico foi mais preponderante para mudanças na saúde do que o Movimento da Reforma Sanitária, influenciado pelo fortalecimento das ideias da Atenção Primária à Saúde, em debate internacional da década de setenta, e que implicou na reforma das políticas de saúde pública nacionais, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Federal de 1988 (Matuda; Aguiar; Frazão, 2013MATUDA, C. G.; AGUIAR, D. M. L.; FRAZÃO, P. Cooperação interprofissional e a Reforma Sanitária no Brasil: implicações para o modelo de atenção à saúde. Saúde & Sociedade, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 173-186, 2013. DOI: 10.1590/S0104-12902013000100016
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201300... ). Tendo a saúde como direito e um caráter descentralizado, universal, integral e equitário, o SUS representou na saúde pública brasileira o sopro das ideias democráticas que recuperavam seu local no cenário político nacional.
No âmbito da saúde bucal, os modelos conceituais tradicionais foram, em essência, transpostos à realidade particular da área (Scherer; Scherer, 2015SCHERER, C. I.; SCHERER, M. D. A. Avanços e desafios da saúde bucal após uma década de Programa Brasil Sorridente. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 49, 2015. DOI: 10.1590/S0034-8910.2015049005961
https://doi.org/10.1590/S0034-8910.20150... ). A colonização portuguesa, as condições socioeconômicas desfavoráveis, a alimentação precária e a falta de políticas públicas fizeram do Brasil um país mutilado e edêntulo (Cunha, 1952CUNHA, E. S. História da Odontologia no Brasil: 1500-1900. Rio de Janeiro: Editora Científica, 1952.; Narvai; Frazão, 2008NARVAI, P.C; FRAZÃO, P. Políticas de Saúde Bucal no Brasil. In: MOYSÉS, S.T.; KRIGER, L.; MOYSÉS, S.J. (Org.). Saúde bucal das famílias: trabalhando com evidências. São Paulo: Artes Médicas, 2008. p. 1-20.; Chaves et al., 2017CHAVES, S. C. et al. Políticas de Saúde Bucal no Brasil 2003-2014: cenário, propostas, ações e resultados. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 6, p. 1791-1803, 2017.).
No século XX, predominou a Odontologia de Mercado, com seu caráter biologicista, assistencialista, clínico-cirúrgico, individualista e mercantilista (Narvai, 2006aNARVAI, P. C. Saúde bucal coletiva: caminhos da odontologia sanitária à bucalidade. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 40, n. spe., p. 141-147, 2006a. DOI: 10.1590/S0034-89102006000400019
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200600... ). Somente com a fluoretação das águas houve uma política pública com impacto real nas condições de saúde bucal da população (Narvai, 2000NARVAI, P. C. Cárie dentária e flúor: uma relação do século XX. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 381-392, 2000. DOI: 10.1590/S1413-81232000000200011
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200000... ; Frazão, 2012FRAZÃO, P. Epidemiology of dental caries: when structure and context matter. Brazilian Oral Research, São Paulo, v. 26, n. 1, p. 108-1014, 2012. DOI: 10.1590/S1806-83242012000700016
https://doi.org/10.1590/S1806-8324201200... ). Todavia, a falta de universalidade e a desigualdade no abastecimento público das águas também agravaram as iniquidades regionais no país (Antunes; Narvai, 2010ANTUNES, J. L. F.; NARVAI, P. C. Políticas de saúde pública no Brasil e seu impacto sobre as desigualdades em saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 2, p. 360-365, 2010. DOI: 10.1590/S0034-89102010005000002
https://doi.org/10.1590/S0034-8910201000... ).
Os cuidados à saúde bucal brasileira só começaram a transcender o modelo assistencial previdenciário hegemônico com a criação do SUS. A partir do primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a saúde bucal ocupou papel central na agenda governamental, com a criação, em 2004, da Brasil Sorridente, a Política Nacional de Saúde Bucal (Carvalho et al., 2009CARVALHO, L. A. C. et al. Procedimentos Coletivos de Saúde Bucal: gênese, apogeu e ocaso. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 3, p. 490-499, 2009. DOI: 10.1590/S0104-12902009000300013
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200900... ; Chaves et al., 2017CHAVES, S. C. et al. Políticas de Saúde Bucal no Brasil 2003-2014: cenário, propostas, ações e resultados. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 22, n. 6, p. 1791-1803, 2017.). Investimentos posteriores no aumento das equipes de saúde bucal, na criação de Centros de Especialidades Odontológicas e nos Laboratórios Regionais de Próteses Dentárias fizeram do Brasil Sorridente a maior política pública de saúde bucal do mundo (Cayetano et al., 2019CAYETANO, M. H. et al. Política Nacional de Saúde Bucal Brasileira (Brasil Sorridente): Um resgate da história, aprendizados e futuro. Universitas Odontológica, Bogotá, v. 38, n. 80, 2019.).
A visão naturalista dos processos de saúde-doença tem sido base para a medicina ocidental na América Latina e, por meio do colonialismo, atuou de maneira a desqualificar e suprimir conhecimentos e práticas dos povos nativos, em prol do modelo biomédico e de uma epistemologia capitalista nos processos de saúde (Nunes; Louvision, 2020NUNES, J. A.; LOUVISON, M. Epistemologias do Sul e decolonização da saúde: por uma ecologia do cuidado na saúde coletiva. Saúde & Sociedade, São Paulo, v. 29, n. 3, 2020. DOI: 10.1590/S0104-12902020200563
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202020... ). Por outro lado, o histórico do SUS e dos movimentos populares em saúde revela, então, uma importante resposta local, enquanto conjunto de políticas públicas, como modelo alternativo àquela hegemonia quase absoluta da estrutura biomédica.
Essas tensões existentes representam não somente os diferentes modelos de atenção à saúde. Refletem também a atuação de diferentes forças e interesses no âmbito geopolítico, o que traz à tona outra importante questão: os efeitos do colonialismo para além do período colonial. Pensadores como Walter Mignolo, Aníbal Quijano e Enrique Dussel buscaram exprimir uma denúncia dessas relações de colonialidade mantidas na modernidade, em oposição às formas de dominação modernas, em um processo que pode ser denominado de decolonização, enquanto teoria social e política não-eurocêntrica (Ballestrin, 2013BALLESTRIN, A. América e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, 2013. DOI: 10.1590/S0103-33522013000200004
https://doi.org/10.1590/S0103-3352201300... ).
A colonialidade é compreendida enquanto fruto da modernidade europeia, que reduziu os povos colonizados por meio de sistemas de classificação, em especial a partir de ideias de raça, de gênero e de trabalho. Impôs assim pela exploração, pela dominação e pelos conflitos o mito da superioridade. Ao considerar os povos “primitivos”, justificou a violência e a dominação sob o pretexto da “libertação civilizatória”, que se propagou pelos processos históricos, políticos, econômicos, sociais, culturais e epistemológicos (Grosfoguel, 2008GROSFOGUEL, R. Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, v. 80, p. 115-147, 2008. DOI: 10.4000/rccs.697
https://doi.org/10.4000/rccs.697... ; Mignolo, 2008MIGNOLO, W. D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade. Cadernos de Letras da UFF, Rio de Janeiro, n. 34, p. 287-324, 2008.; Ballestrin, 2013BALLESTRIN, A. América e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, 2013. DOI: 10.1590/S0103-33522013000200004
https://doi.org/10.1590/S0103-3352201300... ; Reis; Andrade, 2018REIS, M. N.; ANDRADE, M. F. F. O pensamento decolonial: análise, desafios e perspectivas. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 202, p. 1-11, 2018.)
O pensamento decolonial surge como um movimento de resistência teórica, prática, política e epistemológica. Em contraposição às imposições da modernidade e da colonialidade, encontra seu discurso em diferentes pensadores e teorias a partir de diagnósticos e prognósticos oriundos dos povos colonizados, de modo a se desvincular da pós-modernidade e do eurocentrismo (Ballestrin, 2013BALLESTRIN, A. América e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, 2013. DOI: 10.1590/S0103-33522013000200004
https://doi.org/10.1590/S0103-3352201300... ; Oliveira; Lucini, 2021OLIVEIRA, E. S.; LUCINI, M. O Pensamento Decolonial: Conceitos para Pensar uma Prática de Pesquisa de Resistência. Boletim Historiar, Acaraju, v. 8, n. 1, p. 97-115).
Trata-se, portanto, de um conjunto de construções de pensamento, de produção e de valorização dos conhecimentos que sejam alternativos à lógica colonizadora, historicamente complexa, a partir de reflexões críticas acerca das relações de poder, com foco na libertação das opressões coloniais (Zeifert; Agnoletto, 2019ZEIFERT, A. P. B.; AGNOLETTO, V. O pensamento decolonial e a teoria crítica dos direitos humanos: saberes e dignidade nas sociedades latino-americanas. Revista Húmus, São Luis, v. 9, n. 26, p. 197-218, 2019.; Torre et al., 2022TORRE, S. et al. O pensamento decolonial: das raízes do debate a uma proposta de método. Revista X, Curitiba, v. 17, n. 1, p. 341-371, 2022.).
Nesse sentido, Quijano (2009QUIJANO, A. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, B. de S.; MENESES, M. P. (org). Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. p. 73-117.) argumenta que a diversidade cultural latino-americana deve traduzir-se em novos modelos, que se apresentem enquanto uma epistemologia alternativa à epistemologia dominante. Tal perspectiva permite compreender que, embora a decolonialidade tenha se organizado e se fortalecido enquanto movimento nas últimas décadas, suas origens são as contrapartidas à própria fundação da colonialidade (Ballestrin, 2013BALLESTRIN, A. América e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 11, p. 89-117, 2013. DOI: 10.1590/S0103-33522013000200004
https://doi.org/10.1590/S0103-3352201300... ).
Para Mignolo, essa opção decolonial deve ser epistêmica e se desvincular do modelo de acumulação de conhecimento ocidental, valorizando uma geopolítica e política de Estado de pessoas, religiões, conceitos e subjetividades racializadas pela razão moderna, imperial e colonial (Mignolo, 2008MIGNOLO, W. D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade. Cadernos de Letras da UFF, Rio de Janeiro, n. 34, p. 287-324, 2008.). Desse modo, as alternativas decoloniais podem emancipar o pensamento latino-americano por uma articulação interdisciplinar de elementos filosóficos, culturais, políticos e econômicos (Reis; Andrade, 2018REIS, M. N.; ANDRADE, M. F. F. O pensamento decolonial: análise, desafios e perspectivas. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 202, p. 1-11, 2018.).
Apesar dos avanços da saúde coletiva, na área da saúde bucal poucas foram as tentativas de ruptura desenvolvidas no âmbito epistemológico. Destaca-se o trabalho do pesquisador Carlos Botazzo (2013BOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec, 2013.), com o conceito de bucalidade, que compreende a capacidade da boca em ser boca, que se relaciona com a formação social, com as funções do trabalho bucal, como a fala, a manducação e a erótica, e que transcende a ideia tradicional odontológica, em um processo amplo e integrado à totalidade da experiência do sujeito.
Esses trabalhos da boca são, então, base para compreendê-la enquanto consumo e enquanto produção, de modo a resgatar o ser social, o subjetivo e a historicidade. Desse modo, a bucalidade constitui um campo de análise mais amplo do que o permitido pela visão técnica e biológica da Odontologia, ou mesmo pela saúde bucal coletiva (Botazzo, 2006BOTAZZO, C. Sobre a bucalidade: notas para a pesquisa e contribuição ao debate. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 7-17, 2006. DOI: 10.1590/S1413-81232006000100002
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200600... ).
A bucalidade é também resposta às crises desses campos, e busca integrar as dimensões relacionadas à vida humana social, ao aproximar-se das ciências humanas e distanciar-se da objetividade predominante nas ciências da saúde. Por isso, a boca deixa de ser compreendida como um órgão, para ser considerada um território a revelar novos discursos e novas significações para além do ser biológico (Botazzo, 2006BOTAZZO, C. Sobre a bucalidade: notas para a pesquisa e contribuição ao debate. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 7-17, 2006. DOI: 10.1590/S1413-81232006000100002
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200600... ).
Em suma, trata-se de uma abordagem que vai além da segmentação cartesiana do modelo biomédico e da Odontologia de Mercado, de modo a ser concepção alternativa a tais reducionismos e, portanto, com potencial enquanto epistemologia decolonial, no sentido de fortalecer os princípios democráticos do SUS.
Com base no exposto, o presente estudo teve como objetivo promover uma análise sobre o conhecimento científico atual do tema da bucalidade, a partir de uma revisão integrativa e análise crítico-reflexiva sobre seu potencial enquanto alternativa epistemológica pós-colonial.
Método
Considerado o objetivo proposto, a metodologia deste estudo se divide em duas etapas: (1) uma revisão integrativa da produção de conhecimento científico acerca da bucalidade; (2) uma reflexão crítica, contextualizando a bucalidade dentro da teoria pós-colonial.
A revisão integrativa da literatura configura-se como um método da Prática Baseada em Evidência, capaz de contribuir no aprofundamento teórico sobre determinado tema, na medida em que reúne e sintetiza resultados de pesquisas de forma sistemática e ordenada. Com isso, traz uma análise ampla da literatura para contribuir na incorporação do conhecimento e o redirecionamento das práticas de cuidado em saúde (Mendes; Silveira; Galvão, 2008MENDES, K. D. S.; SILVEIRA, R. C. C. P.; GALVÃO, C. M. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 17, n. 4, p. 758-764, 2008. DOI: 10.1590/S0104-07072008000400018
https://doi.org/10.1590/S0104-0707200800... ). A relevância da revisão integrativa não se restringe apenas à formulação de políticas, protocolos e procedimentos, mas estende-se também ao fomento do pensamento crítico essencial para a prática cotidiana (Souza; Silva; Carvalho, 2010SOUZA, M. T.; SILVA, M. D.; CARVALHO, R. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 102-106, 2010.).
Para a elaboração desta revisão, foram seguidas seis etapas, a saber: (1) elaboração da pergunta norteadora; (2) busca na literatura, com critérios de inclusão e exclusão dos artigos; (3) coleta de dados e elaboração de planilha no programa Microsoft Excel®, com os dados relativos aos artigos científicos; (4) análise crítica dos artigos incluídos; (5) discussão dos resultados; e (6) elaboração do relatório final, compondo a síntese qualitativa da literatura (Souza; Silva; Carvalho, 2010SOUZA, M. T.; SILVA, M. D.; CARVALHO, R. Revisão integrativa: o que é e como fazer. Einstein, São Paulo, v. 8, n. 1, p. 102-106, 2010.).
O estudo teve início com a seguinte pergunta norteadora: “Qual a evidência disponível acerca da bucalidade enquanto alternativa epistemológica à Odontologia para a população brasileira e latino-americana?”. Definiu-se o conceito de bucalidade tal qual postulado por Botazzo (2013BOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec, 2013.), enquanto uma possibilidade de “alternativa epistemológica à Odontologia”, considerado o objetivo desta revisão de não somente mapear as publicações no tema, mas também investigar a bucalidade enquanto possibilidade epistemológica diversa à Odontologia tradicional. Por este enfoque, limitou-se a pesquisa ao contexto brasileiro e latino-americano, visto que a bucalidade nasce historicamente na realidade desses países e suas comunidades historicamente colonizadas.
O levantamento bibliográfico incluiu como base de dados o PubMed (Public Medical LiteratureAnalysis Online), LILACS (Literatura Latinoamericana e do Caribe em Ciências da Saúde) e SciELO (Scientific Eletronic Library Online). A busca foi realizada de maneira simultânea e independente por dois revisores, com os mesmos critérios em todas as bases de dados, no período entre dezembro de 2023 e janeiro de 2024. A chave de busca utilizada foi composta pelos seguintes descritores: (1) “bucalidade”; (2) “saúde bucal brasileira”; (3) “saúde bucal latino-americana”, com o emprego dos operadores booleanos “AND” e “OR”, em português, espanhol e inglês, de acordo com a base de dados, conforme sintetizado na Figura 1.
Palavras-chave e operadores booleanos empregados na estratégia de busca. Florianópolis, 2024.
Optou-se pela inclusão de todas as formas de evidências disponíveis acerca da bucalidade, sem recorte temporal, disponíveis online na forma completa, em português, inglês ou espanhol. Foram excluídos artigos que não apresentassem relação direta do estudo com o tópico da bucalidade.
A seleção inicial dos artigos foi feita mediante leitura dos títulos e resumos; aplicando os critérios de inclusão e exclusão. Foram excluídos artigos duplicados. Nos casos de dúvida ou resumo indisponível, o texto integral foi acessado. Foi feita a leitura minuciosa de cada artigo na íntegra, avaliando sua relação com a temática.
Os artigos selecionados para compor a revisão integrativa foram organizados em uma planilha no Microsoft Excel®, considerando os seguintes elementos: (1) título do estudo; (2) autores; (3) periódico; (4) idioma; (5) ano de publicação; (6) classificação metodológica do estudo; (7) local em que a pesquisa foi conduzida, se aplicável; (8) conceito de bucalidade; (9) síntese dos resultados observados, se aplicável; (10) considerações apresentadas pelos autores; e (11) outras informações relevantes, se aplicável. Após a extração destes dados, eles foram submetidos a técnicas de análise estatística descritiva. Um quadro-síntese foi também construído buscando fornecer um mapa das publicações acerca da bucalidade.
Os resultados foram então analisados por uma técnica de reflexão crítica, entendida enquanto processo que parte de um objeto de reflexão (a interseção dos temas bucalidade e decolonialidade), conduzida pelo contínuo reexame e reavaliação dos dados, com a finalidade de explorar novas estruturas e perspectivas, a partir dos referenciais teóricos da decolonialidade, com ênfase em Walter Mignolo e Aníbal Quijano, de modo a identificar possíveis zonas de concordância e de divergência entre as perspectivas, e as fronteiras da bucalidade enquanto alternativa epistemológica decolonial (Kember et al., 2008KEMBER, D. et al. A four-category scheme for coding and assessing the level of reflection in written work. Assessment &Evaluation in Higher Education, Londres, v. 33, n. 4, p. 369-379, 2008. DOI: 10.1080/02602930701293355
https://doi.org/10.1080/0260293070129335... ).
Resultados
A aplicação da estratégia de busca identificou nove estudos nas bases de dados investigadas. Destes, apenas um era duplicado. A leitura dos oito títulos e resumos permitiu identificar que todos os estudos estavam dentro dos critérios de inclusão, e que nenhum deles apresentou o critério de exclusão único. Portanto, a amostra final foi composta por oito publicações. Esse processo com cada uma de suas etapas está representado no fluxograma da Figura 2
O processo de coleta de dados entre os estudos da amostra final permitiu identificar que todos foram publicados em língua portuguesa e em periódicos brasileiros. Dos oito estudos, cinco compuseram um debate em edição especial da revista Ciência & Saúde Coletiva, no ano de 2006, e possuem relação direta entre si. Os outros três artigos foram publicados nos periódicos Revista de Saúde Pública (1) e Revista Saúde & Sociedade (2), nos anos de 2006, 2017 e 2022, respectivamente.
Em relação à metodologia empregada, seis dos estudos foram ensaios e/ou análises críticas de cunho teórico, refletindo acerca de elementos referentes ao conceito de bucalidade. A pesquisa de Bortoli e colaboradores (2017BORTOLI, F. R. et al. Percepção da saúde bucal em mulheres com perdas dentárias extensas. Saúde & Sociedade, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 533-544, 2017. DOI: 10.1590/S0104-12902017162160
https://doi.org/10.1590/S0104-1290201716... ), por sua vez, adotou uma metodologia de pesquisa qualitativa, conduzida por meio de entrevistas para investigar, sob a perspectiva teórica da bucalidade, a percepção de mulheres frente a extensas perdas dentárias.
O Quadro 1 apresenta uma síntese dos principais elementos de cada um dos estudos incluídos na amostra final desta revisão integrativa.
Análise crítico-reflexiva
A bucalidade surge enquanto alternativa teórica dentro do campo da saúde bucal coletiva, em especial pela necessidade de, frente às limitações do modelo biomédico em saúde, oferecer um campo teórico e conceitual capaz de compreender de uma maneira mais ampla o elemento social da boca (Barros, 2002BARROS, J. A. C. Pensando o processo saúde doença: a que responde o modelo biomédico? Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 67-84, 2002. DOI: 10.1590/S0104-12902002000100008
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200200... ; Botazzo, 2006BOTAZZO, C. Sobre a bucalidade: notas para a pesquisa e contribuição ao debate. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 7-17, 2006. DOI: 10.1590/S1413-81232006000100002
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200600... ; Kovaleski; Freitas, Botazzo, 2006KOVALESKI, D. F.; FREITAS, S. F. T.; BOTAZZO, C. Disciplinarização da boca, a autonomia do indivíduo na sociedade do trabalho. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 97-103, 2006. DOI: 10.1590/S1413-81232006000100017
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200600... ).
Nesse sentido, pode ser caracterizada não como uma área científica, mas como o campo conceitual que considera a boca enquanto fonte de experiências humanas, na perspectiva do sujeito e dos trabalhos que, pela boca, ele manifesta, como a fala, a alimentação e o erotismo (Botazzo, 2006BOTAZZO, C. Sobre a bucalidade: notas para a pesquisa e contribuição ao debate. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 7-17, 2006. DOI: 10.1590/S1413-81232006000100002
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200600... , 2013BOTAZZO, C. Diálogos sobre a boca. São Paulo: Hucitec, 2013.). É, portanto, uma compreensão que extrapola os elementos de uma ciência odontológica enrijecida e objetivizante.
Ao valorizar o papel do sujeito cuja autonomia foi reduzida, produz uma crítica ao próprio modelo científico odontológico, oferecendo uma nova forma de compreender os conhecimentos associados à boca não só em uma perspectiva técnico-científica, mas também em seu âmbito histórico, experiencial e social. Nesse sentido, pode-se afirmar que a bucalidade pode ser mais do que um conceito teórico na área de saúde bucal coletiva ou um paradigma, como propõe Freitas (2006FREITAS, S. F. T. Mais algumas notas para contribuição ao debate sobre a bucalidade. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 31-33, 2006. DOI: 10.1590/S1413-81232006000100007
https://doi.org/10.1590/S1413-8123200600... ), mas principalmente uma alternativa epistemológica.
A ciência odontológica que reduz os sujeitos é a mesma ciência do modelo biológico que limita o fenômeno do processo saúde-doença. É fundada no pressuposto da neutralidade, que na modernidade foi veículo de validação da superioridade de uma determinada maneira de pensamento, cuja característica historicamente foi eurocêntrica.
Para Walter Mignolo (2008MIGNOLO, W. D. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade. Cadernos de Letras da UFF, Rio de Janeiro, n. 34, p. 287-324, 2008.), a retórica da Modernidade desde o século XVI buscou, em missão civilizatória, impor desenvolvimento e modernização, sob a lógica da colonialidade, apropriando-se de terras de maneira massiva e promovendo extermínios de recursos naturais e de vidas.
O conceito de colonialidade, introduzido pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano é também o lado sombrio da modernidade: a modernidade é um projeto que não se desvincula da invasão europeia contra os territórios de outros povos e de um processo de dominação. O mundo pré-moderno era um mundo policêntrico e não capitalista. Com a modernidade, o capitalismo é imposto como uma forma global de organização, a partir de uma estrutura de controle de recursos, autoridade, economia, subjetividade, normas e classificação racial e de gênero e sexo entre europeus e ocidentais e os demais povos, consumada pelo controle do trabalho (Mignolo, 2017MIGNOLO, W. D. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, 2017. DOI: 10.17666/329402/2017
https://doi.org/10.17666/329402/2017... ).
A modernidade produziu portanto uma miragem, com uma estruturação global racial, separando mouros e judeus na Europa e índios e negros nos outros continentes, organizando classes de trabalho com base em um sistema de produção e controle de capital, separando a divisão internacional de trabalho entre centro e periferia, centralizando as organizações políticas e militares e outras instituições de poder entre homens europeus, produzindo - inclusive com caráter supostamente científico - uma hierarquia racial, estruturada em parte sobre a noção de progresso, produzindo uma hierarquia e classificação de sexo, gênero e uma hierarquia espiritual e estética e, por fim, a produção de uma hierarquia epistêmica, entre outras (Mignolo, 2017MIGNOLO, W. D. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, 2017. DOI: 10.17666/329402/2017
https://doi.org/10.17666/329402/2017... ).
Ainda que todos estes elementos sejam fundamentais na compreensão da indissociabilidade da Modernidade com a Colonialidade e seus efeitos que perduram mesmo após o fim do período colonial, é esta última hierarquia imposta, a epistêmica, que está intimamente ligada à questão mais imediata da saúde bucal coletiva aqui posta: o conhecimento e a cosmologia ocidental foram priorizados em relação às demais formas de produção do conhecimento, muitas vezes consideradas sem valor (Mignolo, 2017MIGNOLO, W. D. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, 2017. DOI: 10.17666/329402/2017
https://doi.org/10.17666/329402/2017... ).
A percepção colonial europeia de que todos os povos não-europeus eram “atrasados” produziu uma razão que desprezou as formas alternativas (não-europeias, colonizadas) de saber, ocultando seu caráter eurocêntrico sob a forma de um discurso neutro e supostamente científico/racional/moderno. O mito do evolucionismo contribuiu para uma interpretação que a América a ser colonizada estaria no “passado” e, portanto, seria menos evoluída, justificando assim o processo colonizador como uma espécie de dever moral civilizatório, mesmo que sob a força e a violência (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005. p. 107-126.).
Ao oferecer uma preocupação com o aspecto subjetivo da boca, a bucalidade abre caminho para pesquisas que revelem as manifestações do corpo dos povos colonizados, de maneira a ofertar um caminho de pesquisa mais amplo do que os limites científicos da odontologia. Por outro lado, o conceito de bucalidade, em essência, ainda está muito vinculado a teorias produzidas dentro de uma própria perspectiva da epistemologia eurocêntrica, com a influência de autores europeus como Foucault e Freud acerca do corpo.
Nesse ponto, parece a bucalidade antes enquadrar-se mais naquilo que Mignolo (2017MIGNOLO, W. D. Colonialidade: O lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, 2017. DOI: 10.17666/329402/2017
https://doi.org/10.17666/329402/2017... ) denomina de epistemologia fronteiriça, que está intimamente ligada ao processo decolonial, pelo anthropos que não quer se submeter à humanitas imposta pelo pensamento eurocêntrico, mesmo sendo esta inevitável. Cabe à pesquisa em bucalidade o desenvolvimento de seu próprio campo teórico, que poderá demonstrar se, de fato, ela se tornará uma epistemologia alternativa àquela linguagem supostamente neutra e científica imposta pelas ciências em geral e, em especial, pela ciência odontológica, ou se o campo adaptar-se-á ao caráter de fronteira do pensamento, transitando entre ambas as influências.
Quando consideramos os princípios doutrinários e organizativos do SUS, como a universalidade, a integralidade, a equidade, a descentralização, a regionalização, a hierarquização e a participação social, percebe-se que um modelo cuja construção do conhecimento é individualizada e focada nos aspectos objetivos não parece ser capaz de oferecer uma prática coerente com estes princípios. Nesse sentido, como apontado por Couto e Botazzo (2022COUTO, J. G. A.; BOTAZZO, C. “Prefiro mexer no coração a mexer na boca”: reflexões sobre o cuidado em saúde bucal. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 31, n. 2, 2022. DOI: 10.1590/S0104-12902022210709pt
https://doi.org/10.1590/S0104-1290202221... ), não há mais espaço para uma concepção puramente tecnocrática, que deveria ser renunciada enquanto modelo de cuidado em saúde bucal.
Quando pensamos no histórico de implementação dos modelos outrora hegemônicos de cuidado de saúde, com fomento técnico e financeiro por meio de grandes instituições norte-americanas, é necessário refletir até que ponto estes são de fato representativos às realidades vivenciadas em países como o Brasil e outros tantos que compõe o Sul Global, e o quanto podem representar, conforme identificado nas teorias decoloniais, os efeitos contínuos de um processo de colonização a perdurar. Tal análise ganha ainda mais importância frente às resistências encontradas no próprio processo de implementação e fortalecimento do Sistema Único de Saúde e das alternativas contra-hegemônicas dentro do próprio país no campo da saúde bucal.
Considerações finais
A presente revisão integrativa permitiu identificar que a bucalidade é um tema emergente e que pode fornecer um campo teórico para percepções que ultrapassem os limites da Odontologia, com possibilidades para investigação dos aspectos sociais e culturais de modo a integrar a subjetividade e ultrapassar o modelo individualista do cuidado em saúde bucal. Nesse sentido, a bucalidade se diferencia das formas de conhecimento na área da Odontologia e até mesmo da saúde bucal coletiva, pois oferece um campo novo e único, repleto de possibilidades.
As publicações identificadas nesta revisão integrativa demonstraram um caráter completamente nacional, o que está de acordo com a ideia de que todos os textos foram em língua portuguesa, e se trata de uma teoria que surge também das experiências nacionais. Considerando a possibilidade de desenvolver teorias próprias relacionadas às experiências latino-americanas e brasileiras, em oposição ao poder colonial que ainda subsiste, identificou-se potencial para valorizar perspectivas suprimidas pela epistemologia tradicional da ciência odontológica.
Todavia, o atual desenvolvimento do conceito de bucalidade não permite compreendê-lo enquanto uma alternativa decolonial plena, já que mantém um diálogo bastante próximo a conceitos e concepções oriundos da epistemologia moderna/eurocêntrica. Ao habitar ambos os mundos, é possível considerar que, atualmente, a bucalidade é um pensamento fronteiriço, o que lhe dá um importante valor para o futuro das pesquisas em saúde bucal coletiva, em especial àquelas que se preocupam com o contexto da realidade brasileira e latino-americana.
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
27 Jan 2025 - Data do Fascículo
2024
Histórico
- Recebido
22 Jun 2024 - Aceito
08 Ago 2024