A inconstitucionalidade da cobrança de serviços de saúde por organizações sociais: o caso do Estado de São Paulo

The unconstitutionality of the recovery of health services by social organizations: the case of São Paulo state

Aline Albuquerque Sant’Anna de Oliveira Sobre o autor

RESUMO

O presente artigo teve como escopo analisar a incompatibilidade entre a Lei Complementar n.º 1.131, de 27 de dezembro de 2010, do Estado de São Paulo, que permite a destinação dos serviços de saúde das organizações sociais a pacientes particulares ou usuários de planos de saúde privados e a ordem constitucional vigente, especificamente no que concerne ao princípio do acesso universal e gratuito às ações e aos serviços sanitários, e o direito humano à saúde. Para tanto, efetuou-se pesquisa bibliográfica e documental. A partir da premissa de trabalho, que consistiu na inconstitucionalidade da inovação legislativa paulista, buscou-se demonstrar, por meio do exame do substrato teórico inserto no princípio do acesso universal e igualitário e dos elementos do direito humano à saúde, a imperiosidade de se declarar a invalidade da norma paulista.

PALAVRAS-CHAVE:
Organização social; Sistema Único de Saúde; Direito à saúde

ABSTRACT

This article aimed at analyzing the incompatibility between the new legal discipline introduced by Law 1,131, December 27th, 2010, of the State of Sào Paulo, which allows the allocation of health services of social organizations to private patients or users of health insurance and the current constitutional order, specifically the principle of free and universal access to health, and the human right to health. Therefore, the research was based on the legal theory and the federal and state laws. From the premise of the paper, which consisted on the unconstitutionality of São Paulo legal innovation, it sought to demonstrate, through the exam of the theoretical background inserted in the principle of universal and equal access and content elements of the human right to health, the imperiousness of declaring the invalidity of the Brazilian legal laws.

KEYWORDS:
Social organization; Unified Health System; Right to health

Introdução

A inserção das organizações sociais no seio do Sistema Único de Saúde (SUS) vem sendo acompanhada de acalorada contenda, tanto na comunidade jurídica quanto no movimento sanitário. Como exemplo, o Ministério Público do Tribunal de Contas do Distrito Federal formulou uma representação contra o Governo do Distrito Federal, questionando a constitucionalidade e a legalidade do contrato firmado entre o citado Governo e a organização social ‘Real Sociedade Espanhola de Beneficência’. Dentre11Informações detal hadas sobre a Representação 07/2009 do Ministério Público de Contas do Distrito Federal se encontram em: http:/www.tcdf.gov.br/MpjTcdf/MPjTCDF.htm os argumentos expostos pelo Ministério Público de Contas, destaca-se a inconstitucionalidade do repasse da gestão integral de hospital público para instituição privada, considerando-se que a participação do setor privado na esfera do SUS é complementar.

O entendimento manifestado pelo Ministério Público de Contas do Distrito Federal ancora-se no próprio texto constitucional, posto que o parágrafo 1º do artigo 199, da Constituição Federal, estabelece que “as instituições privadas poderão participar de forma complementar do SUS, segundo diretrizes deste”. Na mesma linha, o Grupo de Trabalho da Saúde da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão elaborou o documento intitulado ‘Fundamentos básicos para a atuação do Ministério Público Federal (MPF) contra a terceirização da gestão dos serviços prestados nos estabelecimentos públicos de saúde’22O inteiro teor do documento está disponíbílízado em: http://pfdc.pgr.mpf.gov.br/institucuonal/grupos-de-trabalho/saude/temas-tra balhados/financia me nto-a-saud e/atuacao-do-gt/Relatorio-Terceirizacao-GTSaude.. Sob a perspectiva do arcabouço jurídico-sanitário, tal Grupo de Trabalho corrobora o posicionamento do Ministério Público de Contas do Distrito Federal, ao afirmar que o modelo da organização social aplicado aos serviços de saúde viola o preceito constitucional, que determina a prestação direta dos serviços de saúde pelo Poder Público, bem como o papel acessório da iniciativa privada no SUS.

Segundo as diretrizes constantes do documento, o modelo das organizações sociais é endossado pela concepção de Estado Mínimo, que é sustentada pela corrente neoliberal33Segundo Sader (2005), o neoliberalismo, retomada atualizada das teses clássicas do pensamento liberal, implica privatização de em presas estatais, flexibilização dos direitos laborais e cortes nos recursos públicos, deteriorando a presença de serviços públicos pelo Estado..

Conforme tal visão de Estado, a transferência para o setor privado de serviços essencialmente públicos, como a saúde, conduziria à redução dos gastos públicos, o que vai ao encontro das políticas de controle de gastos do Estado, propugnadas pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial (ZIEGLER, 2002ZIEGLER, J. Los nuevos amos del mundo. Barcelona: Destino, 2002.), e ao suposto incremento da eficiência da gestão e da prestação de serviços. Entretanto, na prática, segundo aponta o documento, o modelo apresenta incorreções intrínsecas à sua própria concepção, como, por exemplo, a ausência de mecanismos eficazes para assegurar o controle finalístico dos serviços prestados, bem como de meios de responsabilização dos dirigentes das organizações sociais.

Ainda, como não há procedimento licitatório, as organizações sociais não concorrem, objetivando-se apresentar melhor serviço à população, o que contraria a tese de que tal modelo responderia às demandas por eficiência dos serviços de saúde de forma mais acertada (BRASIL, 2009, p. 3). Acresce-se que, do ponto de vista jurídico, o modelo das organizações sociais não tem coerência com os princípios basilares do ordenamento jurídico vigente, tal como:

os princípios da obrigação de licitar, obrigação de promover concurso público, controle externo por tribunal de contas e mecanismos de controle interno. (BRASIL, 2009, p. 3).

Sob a perspectiva do movimento sanitário, há, no mesmo sentido, um elevado grau de insatisfação quanto à adoção do modelo das organizações sociais. O Conselho Nacional de Saúde deliberou, contrariamente à terceirização dos serviços públicos de saúde (BRASIL, 2009, p. 5). Registra-se, ainda, a crítica feita por Fleury e Scheffer (2009)FLEURY, S.; SCHEFFER, M. A verdadeira reforma sanitária. Rede HumanizaSUS, 2009. Disponível em: <http://www.redehumanizasus.net/7122-a-verdadeira-reforma-sanitaria>. Acesso em: 23 jun. 2011.
http://www.redehumanizasus.net/7122-a-ve...
quanto à adoção das organizações sociais no SUS, como modelo de gestão.

Embora reconheça-se que há posicionamentos favoráveis ao modelo das organizações sociais em saúde (BARATA, 2009BARATA, L.R. A segunda reforma sanitária. 2009. Vilhena Silva Advogados. Disponivel em: <http:/www.gestospe.org.br/web/noticias/conteudo1/?conteudo=243565295&autenticacao=0,2778>. Acesso em: 20 abr. 2011.
http:/www.gestospe.org.br/web/noticias/c...
), este artigo se ancorou no entendimento de que o modelo apontado é inconstitucional e violador dos preceitos fundamentais sustentantes do edifício normativo-axiológico do SUS. Sendo assim, parte-se do pressuposto de que o modelo em si não encontra guarita na ordem jurídica pátrio, o que, por consequência, conduz de antemão ao enquadramento dos desdobramentos de sua adoção na quadratura dos atos eivados de inconstitucionalidade. Com fulcro em tal premissa, poder-se-ia afirmar que a previsão relativa à possibilidade das unidades de saúde, geridas por organização social, de destinar parte de sua capacidade operacional a pacientes particulares ou usuários de planos privados de saúde por si só é inconstitucional, visto que se insere no modelo criticado. Entretanto, assume-se que se é grave, sob o ponto de vista da estruturação constitucional do SUS e do acesso da população a serviços públicos de qualidade a adoção do referido modelo, com muito mais inquietação, observase a destinação dos serviços públicos de saúde a parcelas restritas da sociedade44De acordo com o IBGE (2012), o percentual dos brasileiros cobertos por planos privados de assistência à saúde é de 26,3..

Sendo assim, tem-se como escopo neste artigo analisar a Lei Complementar n.º 1.131, de 27 de dezembro de 2010, do Estado de São Paulo, que permite a destinação de 25% da capacidade operacional das organizações sociais prestadoras de serviço público de saúde a pacientes particulares ou usuários de planos de saúde privados. Tal dispositivo legal foi escolhido como objeto de estudo em virtude de consistir ofensa explícita aos princípios demarcadores do SUS, bem como aos compromissos internacionais do Estado brasileiro, os quais tendem à promoção do direito de toda pessoa desfrutar do mais elevado nível possível de saúde física e mental55O Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, determinou a execução e o cumprimento do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que prevê em seu artigo 12 o reconhecimento pelos Estados Partes do aludido Pacto do diráto de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde fisica e mental..

Desse modo, teve o objetivo de demonstrar que a mencionada Lei Complementar do Estado de São Paulo não apenas é um desdobramento inconstitucional do modelo da organização social em saúde, mas como também consiste num passo a frente na direção da privatização do sistema público de saúde brasileiro. Assim, neste artigo, realizou-se uma análise do dispositivo que possibilita a destinação de parte da capacidade operacional das unidades de saúde, que são geridas por organização social, a pacientes particulares ou usuários de planos de saúde à luz do direito humano à saúde e do princípio do acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.

Partindo-se de construção argumentativa de natureza dedutiva, este trabalho se encontra dividido em duas partes. A primeira tem como foco o estudo da Lei do Estado de São Paulo, que introduziu a organização social no sistema normativo estadual, com ênfase na Lei Complementar n.º 1.131, de 27 de dezembro de 2010. Esta previu a possibilidade de destinação de 25% da capacidade operacional dos serviços de saúde a pacientes particulares e usuários de plano privado de assistência à saúde. Na segunda, a ênfase recai sobre a análise da compatibilidade jurídica entre o dispositivo da Lei de São Paulo apontado e o parâmetro constitucional pátrio referente ao campo da saúde pública, quais sejam o princípio do acesso universal e igualitário do SUS e o direito humano à saúde. Tendo em conta a estruturação do estudo apontado, a seguir, serão abordados aspectos jurídicos relativos à organização social com base na legislação federal e na Lei do Estado de São Paulo.

Lei complementar n.º 846, de 4 de junho de 1998: o marco legislativo do Estado de São Paulo

Após a entrada em vigor da Legislação Federal, que versa sobre as organizações sociais. Lei n.º 9.637, de 15 de maio de 1998, o Estado de São Paulo promulgou em 4 de junho de 1998 a Lei Complementar n.º 846. Conforme preceitua a lei paulista, o Poder Executivo poderá qualificar como organizações sociais pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas à saúde e cultura. Sendo assim, assinala-se que o modelo paulista cinge as organizações sociais às áreas da cultura e saúde, distintamente do modelo federal, cujo campo de atuação é mais amplo.

Por outro lado, de modo similar à discricionariedade da Administração Pública Federal, que atravessa o processo de qualificação de determinada pessoa jurídica como organização social, o Secretário de Estado da Pasta correspondente a atividade e o Secretário da Administração e Modernização do Serviço Público deverão emitir parecer quanto a conveniência e oportunidade de qualificar a entidade privada como organização social. Quanto à formalização do vínculo entre a entidade previamente qualificada e o Poder Público, o contrato de gestão é o instrumento jurídico adotado. A execução do contrato de gestão é fiscalizada pela Secretaria de Estado de Saúde ou pela Secretaria de Estado da Cultura, a depender do objeto.

Na seção da lei paulista que trata do fomento às atividades sociais a serem desempenhadas pela entidade, há previsão da destinação de recursos orçamentários e bens públicos às organizações sociais, bem como do afastamento do servidor público para tais entidades, enquanto faculdade do Poder Público, com ônus para o órgão de origem.

Caso a entidade descumpra as disposições contidas no contrato de gestão, o Poder Executivo poderá proceder à desqualificação da organização social após a instauração de processo administrativo.

No que diz respeito às regras específicas para as organizações sociais que atuam na área da saúde, a Lei Complementar n.º 846, de 1998, estabelece que apenas a entidade que, efetivamente, comprovar possuir serviços próprios de assistência à saúde, há mais de cinco anos poderá ser classificada como organização social O artigo 5º da mesma lei prevê a proibição dos conselheiros, administradores e dirigentes das organizações sociais da saúde de exercerem cargo de chefia ou função de confiança no SUS.

Ainda, a lei determina que a organização social da saúde observe as diretrizes e os princípios do SUS, que estão expressos no artigo 198 da Constituição Federal e no artigo 7º da Lei n.º 8080, de 19 de setembro de 1990.

Quanto ao dispositivo normativo objeto desta análise, o inciso IV do artigo 8º da Lei Complementar n.º 846, de 1998, previa que, ao se elaborar o contrato de gestão, algumas proposições prescritivas deviam ser consideradas, dentre elas, o atendimento exclusivo aos usuários do SUS, no caso das organizações da saúde. Com a alteração da Lei Complementar n.º 1.131, de 27 de dezembro de 2010, a redação do inciso IV, do artigo 8º da Lei Complementar n.º 846, de 1998, passou a compreender, como regra, o atendimento exclusivo aos usuários do SUS e do Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (1AMSPE), e, excepcionalmente, previu que, quando a

unidade de saúde for única detentora de mais de 50% da oferta de serviços de saúde na sua região de inserção; e quando a unidade de saúde prestar serviços de saúde especializados e de alta complexidade ela poderá ofertar seus serviços a pacientes particulares ou usuários de planos de saúde privados, em quantitativo de, no máximo, 25% de sua capacidade operacional total

Conforme o preceito que foi introduzido pela Lei Complementar n.º 1.131, de 2010, caberá à Secretaria da Saúde definir as unidades que poderão ofertar seus serviços a pacientes particulares ou usuários de planos de saúde privados. O contrato de gestão deverá assegurar o tratamento igualitário entre os usuários do SUS e do IAMSPE e os pacientes particulares ou usuários de plano privado de assistência à saúde.

A redação original da Lei Complementar n.º 846, de 1998, ao precisar que as organizações sociais da saúde iriam reservar seu atendimento aos usuários do SUS apenas se submetia ao quadro normativo constitucional, uma vez que o serviço de saúde prestado por organização social é de natureza pública, a despeito de ser efetuado por entidade privada. Portanto, tendo em conta que o serviço público de saúde consubstancia concreção do direito humano à saúde, qualquer brasileiro ou estrangeiro residente é titular do direito de acessar aos serviços prestados por organização social.

Tratando-se da disciplina legal inserta pela normativa de 2010, há a permissão do direcionamento de 25% da capacidade operacional dos serviços a pacientes particulares ou usuários de planos de saúde, isto é, inova mediante a positivação da cobrança do particular ou de operadoras de plano privado de assistência à saúde, alterando-se, desse modo, a sistemática normativa antecedente.

Na Mensagem 98/2010 do Governador do Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2010SÃO PAULO (Estado). Projeto de Lei Complementar n.º 4, de 2010. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo – SP, 30 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2010/iels.nov.10/lels226/E_PLC-45_2010.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2011.
http://www.ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftp...
), a qual acompanhou o Projeto de Lei n.º 45, de 2010, atual Lei Complementar n.º 1.131, de 2010, consta, como justificativa para o novo regramento, de pagamento pelos serviços prestados por entidades especializadas de saúde de referência terciária. Alguns exemplos podem ser o Instituto do Câncer de São Paulo Octavio Frias de Oliveira, do Hospital de Transplantes, do Instituto do Coração (INCOR) e do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia (SÃO PAULO, 2010SÃO PAULO (Estado). Projeto de Lei Complementar n.º 4, de 2010. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo – SP, 30 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2010/iels.nov.10/lels226/E_PLC-45_2010.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2011.
http://www.ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftp...
). Além disso, consoante o texto da mensagem, aproximadamente 40% da população do Estado de São Paulo possui plano privado de assistência à saúde, por conseguinte se revelaria indispensável para o incremento dos recursos das entidades aludidas à cobrança pelos serviços usufruídos por aqueles que se encontram vinculados juridicamente a plano privado ou pelos considerados ‘pacientes particulares’ (SÃO PAULO, 2010SÃO PAULO (Estado). Projeto de Lei Complementar n.º 4, de 2010. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo – SP, 30 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2010/iels.nov.10/lels226/E_PLC-45_2010.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2011.
http://www.ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftp...
).

Dessa forma, nota-se que a Lei Complementar n.º 1.131, de 2010, ao introduzir a cobrança pelos serviços de saúde especializados e de alta complexidade por organizações sociais, tem como finalidade manifesta ampliar sua fonte orçamentária, por meio do pagamento direto a ser efetivado por ‘pacientes privados’ ou cobrança via operadoras de plano privado de saúde.

Com efeito, o escopo da inovação legislativa foi alterar o quadro normativo concernente às entidades privadas que se inserem no SUS, já que, seguindo o preceituado na Constituição Federal, assim como na Lei Orgânica da Saúde, não é admissível a cobrança por serviços públicos de saúde nas três esferas de gestão: federal, estadual e municipal. A legislação do Estado de São Paulo, assim, distancia-se da quadratura constitucional e federal, ao prever que os usuários dos serviços de saúde de natureza pública sejam compelidos a apresentar contrapartida por recebê-los de entidade qualificada como organização social, a qual faz jus a uma série de benefícios legais. Logo, considerando-se que é patente o descompasso entre a ordem jurídica vigente e o regramento atual do Estado de São Paulo, concernente à cobrança no âmbito do SUS, no próximo item, desenvolver-se-á argumentação de cunho jurídico com o fito de demonstrar a incompatibilidade apontada, de modo a patentear o prejuízo que tal previsão legislativa acarreta para o desfrute do direito à saúde da população brasileira, notadamente a parcela que faz uso de serviços de saúde no Estado de São Paulo.

Inconstitucionalidade da possibilidade de cobrança por serviços de saúde prestados por organização social

Ao se esquadrinhar a inovação legislativa inserida pela Lei Complementar n.º 1.131, de 2010, constata-se que há duas violações significativas à Constituição Federal de 1988. Estas dizem respeito singularmente ao campo da saúde pública, quais sejam: princípio do acesso universal e igualitário e obrigação estatal de realizar o direito humano à saúde, assegurando sua acessibilidade e disponibilidade. Desse modo, ambas as violações serão objetos de análise, num primeiro momento será delineado o conteúdo do princípio do acesso universal e igualitário, para, após, demonstrar sua inobservância no caso da cobrança de serviços na esfera do SUS a seus usuários. Num segundo momento, tendo como ponto de partida os dois elementos do direito humano à saúde, acessibilidade e disponibilidade, será evidenciado que a referida cobrança viola tal direito.

O princípio do acesso universal e igualitário

O princípio do acesso universal e igualitário se encontra expresso no artigo 196 da Constituição Federal, o qual preceitua a saúde como direito de todos e dever do Estado, assegurado por meio de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. Nessa esteira, o inciso I do artigo 7º da Lei n.º 8.080, de 1990, insere no elenco de princípios do SUS a universalidade do acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência e à igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie.

Desse modo, não obstante a Constituição Federal conectar a universalidade e a igualdade ao acesso, a Lei Orgânica da Saúde lhes confere tratamento diferenciado em incisos próprios, vinculando a universalidade ao acesso a serviço de saúde e a igualdade à assistência à saúde. Sendo assim, embora a igualdade esteja em conexão com a assistência no texto da Lei, neste parecer, o princípio da igualdade será tratado à luz do acesso a ações e serviços de saúde, nos termos do preceito constitucional.

Iniciando pela abordagem do acesso universal, a caracterização de um ‘sistema público de acesso universal’ ocorre com fulcro na gratuidade do acesso por qualquer indivíduo, sem contrapartida (RODRIGUES; SANTOS, 2009RODRIGUES, P.H.A.; SANTOS, I.S. Saúde e cidadania: uma visão histórica e comparada do SUS. São Paulo: Atheneu, 2009.). Esse tipo de sistema “é financiado por toda a população, mediante tributos, e administrado pelo Estado” (RODRIGUES; SANTOS, 2009, p. 15RODRIGUES, P.H.A.; SANTOS, I.S. Saúde e cidadania: uma visão histórica e comparada do SUS. São Paulo: Atheneu, 2009.). Com efeito, a universalidade consiste no acesso a qualquer ação e serviço público de saúde sem contraprestação por parte do seu usuário, decorrendo-se da incorporação do direito à saúde à ordem jurídica interna, acarretando para o Estado o dever de efetivar tal direito mediante a assunção da prestação positiva sanitária. Embora a existência de serviços privados não inviabilize o cumprimento do direito à saúde por parte do Estado (CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL, 2000CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL. Cuestiones sustantivas que se plantean en la aplicación del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General n.º 14 (2000). [S.I.]: United Nations, 2000. Disponível em: <http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2011
http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-...
), a instituição do sistema de acesso universal traduz o reconhecimento de que, independentemente de qualquer precondição, cabe ao Estado assegurar ao indivíduo o desf rute do direto à saúde. Portanto, há correlação entre o reconhecimento constitucional do direito humano à saúde e a instituição do sistema de acesso universal, o qual exprime a ideia de que o Estado tem o dever de prestar atendimento a toda população por meios nãodiscriminatórios (PONTES 2009PONTES, A.P.M.; OLIVEIRA, D.C.; CESSO, R.G.D.; GOMES, A.M.T., O princípio de universalidade do acesso aos serviços de saúde: o que pensam os usuários? Revista de Enfermagem da Escola Ana Nery, v. 13, n. 3, jul./set., 2009, p. 500-507.).

O atual sistema público de saúde universal se contrapõe ao securitário, que se distingue pelo fato de ser voltado para grupos específicos de pessoas organizados por categoria profissional (RODRIGUES; SANTOS, 2009RODRIGUES, P.H.A.; SANTOS, I.S. Saúde e cidadania: uma visão histórica e comparada do SUS. São Paulo: Atheneu, 2009.). Na conformação securitária, têm acesso aos serviços de saúde tão somente aqueles que contribuem para o seguro social. O sistema antecedente à instituição do SUS era demarcado pela imperiosidade de contribuição para se ter direito a serviços de assistência à saúde. Por isso, o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, o qual, por meio do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), prestava serviços públicos de saúde a trabalhadores urbanos e rurais e servidores do Estado, ou seja, tão somente àqueles que se encontravam vinculados ao Instituto Nacional de Previdência Social como segurado ou seu respectivo dependente. Com o advento da Constituição Federal, os serviços de saúde, que eram limitados a uma parcela da população que contribuía, passaram a ser universais, isto é, de acesso irrestrito por qualquer brasileiro e estrangeiro residente. Conforme pontuam Santos e Carvalho (2006)SANTOS, L.; CARVALHO, G.I. SUS: comenrários à Lei Orgânica da Saúde. Campinas: Unicamp, 2006., “a saúde no texto constitucional não é mais um ‘seguro social’ a ser satisfeito mediante contribuição especial do cidadão”, diferindo-se do tratamento conferido pelo poder constituinte originário à previdência social, que se particulariza pelo seu regime de caráter contributivo e de filiação obrigatória.

O acesso universal a ações e serviços sanitários impõe ao Estado a oferta de atenção à saúde sem qualquer obrigação correlata por parte dos seus jurisdicionados, conseguintemente a instituição de pagamento como condição para prestar serviço de saúde viola flagrantemente a universalidade do acesso, princípio basilar e fundamental do SUS.

Ao se passar para a análise do acesso igualitário a ações e serviços de saúde, vale assinalar que igualdade implica a assunção da assertiva de que o sistema público de saúde deve se alicerçar em bases não-discriminatórias. Segundo Dworkin (2001, p. 305)DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2001., “a igualdade considera fundamental que o governo trate seus cidadãos como iguais”. Ainda, conforme Dworkin (2002)DWORKIN, R. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2002., em última instância, cada pessoa humana tem o direito de ser tratada com igualdade, o que impõe direito à igual consideração e respeito por parte dos governos. Desse modo, o acesso igualitário a serviços de saúde implica a vedação de medidas de ordem legislativa, jurisdicional ou administrativa, as quais impeçam determinada parcela da sociedade de fazer uso de serviços públicos de saúde, pois, ao apartar grupo social específico do desfrute de atividade destinada à coletividade66Bandeir a de Mello (2009, p. 611) define serviço público como “atividades (consistentes na prestação de utilidade ou comodidade material) destinadas a satisfazer a coletividade em geral”., não se estaria tratando-o com igual respeito e consideração. Com efeito, cabe ao Estado garantir que o sistema público de saúde seja acessível a todos sem qualquer tipo de discriminação (HUNT; BACKMAN, 2009HUNT P.; BACKMAN, G. Health Systems and the Right to Highest Attainable Standard of Health. In: CLAPMAN, A.; ROBISON, M. (Org.). Realizing theright to health. Zurique: Ebener & Spiegel, 2009. p. 40-59.), do que se depreende o comando no sentido de que haja igualdade de satisfação das necessidades sanitárias dos jurisdicionados, e da proibição de regra que torne impraticável ou dificulte em concreto o atendimento da demanda em individual em saúde.

Portanto, acesso igualitário na esfera do SUS significa que os jurisdicionados têm o direito de acessar ações e serviços de saúde sem discriminação por parte do Estado, que é detentor da obrigação de assegurar a atenção à saúde e proporcionar serviços de modo isonômico, sem diferenças (AITH, 2008AITH, F. Curso de Direito Sanitário: a proteção do direito à saúde no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2008.). Todos os brasileiros e estrangeiros residentes se encontram em situação de igualdade no que tange ao direito de ser destinatário de ações e serviços de saúde, portanto, ao se conferir tratamento diferenciado e obstativo de acesso à parte da população, tem-se a presença de discriminação não-autorizada (SILVA, 2008SILVA, J.A. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008.).

Neste caso, o tratamento discriminatório pode ser abordado a partir de dois vieses: um sob a perspectiva do paciente particular ou usuário de plano privado de assistência à saúde e o outro considerando o paciente que não se enquadra nas modalidades antecedentes. Tendo em conta a primeira perspectiva, aquele que recorre a atendimento em unidades de saúde especializadas e de alta complexidade deverá ser atendido em qualquer situação, independentemente de ser considerado um ‘paciente particular’ ou um ‘detentor de plano privado de saúde’77Quanto ao paciente atendido pela organização social que possui plano privado de saúde, os serviços prestados por instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS, serão ressarcidos pelas operadoras, conforme o disposto no artigo 32 da Lei n.º 9.656, de 3 de junho de 1998.. Isso significa que, ao se identificar no caso concreto que o paciente pode arcar com os custos do atendimento ou possui plano privado de saúde e caso ele não detenha os meios efetivos de pagar ou de acionar seu plano de saúde, o serviço de saúde deverá ser prestado, pois, na esfera do SUS, todos, sem discriminação, têm o direito de ter acesso às ações e serviços de saúde. De outra monta, a destinação de porcentagem da capacidade operacional total de unidades de saúde ao atendimento de pacientes ‘particulares’ e de usuários de plano privado de saúde pode acarretar a denominada ‘dupla porta’ ou ‘segunda porta’88Pinotti (2003) assinala, que a ‘segunda porta’ nos hospit tarem os recursos escassos, passam a destinar parte de sua capacidade para atendimentos remunerados., ou seja,

cidadãos de duas categorias disputando o mesmo serviço: um pagante (particular) e outro não-pagante (SUS). Será muito difícil evitar que os nãopagantes não acabem preteridos. (AZEVEDO JÚNIOR apudCAPRIGLIONE, 2011CAPRIGLIONE, L. Medida ajudará paciente do SUS, diz HC. Folha de São Paulo, Sâo Paulo, 4 de maio de 2011, Cotidiano, p. C3.).

Levando em conta que a principal justificativa para a inserção da cobrança por serviços de saúde é angariar mais receita para as organizações sociais, assim como considerando-se a escassez de recursos sanitários, quando houver a necessidade de se realizar escolhas, infere-se a elevada probabilidade de que haja a opção pelo paciente que irá trazer recursos diretos para a organização social, em detrimento do paciente cujo atendimento é arcado pelas formas de financiamento do SUS. O quadro apresentado expõe a situação de vulnerabilidade social incrementada que estará o paciente ‘não-pagante e não-usuário de plano privado de saúde’.

Portanto, seja sob o enfoque do paciente ‘pagante ou usuário de plano privado de saúde’ ou daquele que não se enquadre nessa hipótese, ambos poderão ser discriminados, caso haja o direcionamento de parcela dos serviços de saúde à categoria específica de paciente fundado na capacidade econômica individual ou da sua potencialidade em trazer proveitos financeiros para a entidade de saúde inserta no SUS.

A realização do direito humano à saúde: acessibilidade e disponibilidade

A Constituição Federal de 1988, de modo inovador, conferiu o direito à saúde status de direito fundamental, bem como a ratificação e internalização do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, adotado no âmbito das Nações Unidas, no mesmo sentido, reconheceu-lhe a condição de direito humano. Nesse sentido, o direito à saúde é, à luz do direito doméstico e do internacional, direito fundamental e humano99Neste estudo, serão adotadas indiscriminadamente ambas as denominações, direito fundamental à saúde edireito humano à saúde.. Com o fito de atribuir conteúdo ao direito humano à saúde, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas editou o Comentário Geral n.º 14, em 2000CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL. Cuestiones sustantivas que se plantean en la aplicación del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General n.º 14 (2000). [S.I.]: United Nations, 2000. Disponível em: <http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2011
http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-...
. Nos termos do referido Comentário (CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL, 2000CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL. Cuestiones sustantivas que se plantean en la aplicación del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General n.º 14 (2000). [S.I.]: United Nations, 2000. Disponível em: <http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2011
http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-...
), o direito humano à saúde apresenta quatro elementos essenciais e inter-relacionados: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade. A disponibilidade diz respeito ao dever do Estado de contar com número suficiente de estabelecimentos, bens e serviços de saúde e, particularmente, centros de atenção à saúde, assim como programas e políticas (CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL, 2000CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL. Cuestiones sustantivas que se plantean en la aplicación del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General n.º 14 (2000). [S.I.]: United Nations, 2000. Disponível em: <http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2011
http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-...
). A acessibilidade concerne à obrigação estatal de assegurar que os estabelecimentos, bens e serviços de saúde estejam acessíveis a todos, sem discriminação, dentro da sua jurisdição. A acessibilidade apresenta quatro dimensões: não-discriminação; acessibilidade física; acessibilidade econômica e acesso à informação (CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL, 2000CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL. Cuestiones sustantivas que se plantean en la aplicación del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General n.º 14 (2000). [S.I.]: United Nations, 2000. Disponível em: <http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2011
http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-...
), A acessibilidade não-discriminação implica a assunção pelo Estado e por terceiros de abster-se de discriminar os setores mais vulneráveis e marginalizados da população do acesso, de fato e de direito, a estabelecimentos, bens e serviços de saúde (CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL, 2000CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL. Cuestiones sustantivas que se plantean en la aplicación del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General n.º 14 (2000). [S.I.]: United Nations, 2000. Disponível em: <http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2011
http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-...
).

De fato, o cumprimento do direito fundamental à saúde por parte do Estado brasileiro implica a observância dos seus elementos, consequentemente, deve haver a of erta satisf atória de serviços de saúde, bem como o acesso deve ser explicitamente não-discriminatório e estar ao alcance de todos, ou seja, cabe ao Estado abster-se de adotar medidas restritivas que dificultem ou inviabilizem o acesso a serviços de saúde.

Ainda, no que tange ao direito humano à saúde, esse gera para o Estado as obrigações de respeito, proteção e realização. A obrigação de respeitar o direito humano à saúde impõe o dever negativo ao Estado de se abster, de impedir ou cercear o acesso igual das pessoas a bens, serviços e estabelecimentos de saúde (CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL, 2000CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL. Cuestiones sustantivas que se plantean en la aplicación del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General n.º 14 (2000). [S.I.]: United Nations, 2000. Disponível em: <http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2011
http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-...
). A obrigação de proteger pressupõe a adoção por parte do Estado de medidas que zelem pelo acesso igual aos serviços prestados por terceiros, isto é, mesmo tratando-se do setor privado, a disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade dos serviços devem estar asseguradas pelo Estado (CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL, 2000CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL. Cuestiones sustantivas que se plantean en la aplicación del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General n.º 14 (2000). [S.I.]: United Nations, 2000. Disponível em: <http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2011
http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-...
). Quanto à obrigação de realizar, o Estado deve garantir a atenção à saúde, mediante, dentre outras ações, o estabelecimento de um sistema de saúde público, privado ou misto, o qual seja acessível a todos. Por fim, o Estado deve prover número suficiente de hospitais, clínicas e outros centros de saúde (CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL, 2000CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL. Cuestiones sustantivas que se plantean en la aplicación del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General n.º 14 (2000). [S.I.]: United Nations, 2000. Disponível em: <http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2011
http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-...
).

Em conclusão, a previsão legislativa do Estado de São Paulo se mostra violadora do direito humano à saúde, na medida em que se contradiz com seus elementos, quais sejam, a disponibilidade e acesso não-discriminatório a bens e serviços de saúde. Quanto à disponibilidade, o direcionamento de bens e serviços a usuários pagantes ou segurados de planos irá reduzir a oferta, como se vem demonstrando1010Pinotti (2003) relatou que a oferta de condições especiais e ambientes próprios ou entrada diferenciada a pacientes pagantes ou portadores de plano de privado de saúde diminui a oferta de serviços aos usuários do SUS, que não se enquadram naquelas modalidades., aos que recorrem às unidades de saúde geridas por organizações sociais com o fim de serem atendidos sem contrapartida. Desse modo, a população social e economicamente vulnerável sofrerá a redução dos serviços e bens sanitários, o que torna sua condição de fragilidade agravada, aumentando-se o tempo de espera em filas, em consequência, mitigando as chances de reverter o quadro de saúde1111Na reportagem de Capriglione e Rossi (2011), os autores narram a discrepância entre o tempo de espera na fila para o acesso a consultas e procedimentos relativo a pacientes pagantes e segurados e aqueles que são ‘exclusivamente’ do SUS. No mesmo sentido, Gaspari (2011), ao criticar a privatização do Hospital da Clínicas de São Paulo, afirma que, pelo atendimento exdusivo do SUS, os de baixa renda devem cumprir uma série de etapas e consultas para se chegar a um exame e para os segurados é suficiente um pedido médico..

Tratando-se da acessibilidade em sua vertente da não-discriminação, caracteriza-se de modo variado, podendo, na prática, consistir em políticas de saúde não-orientadas a destinatários adequados, assim como no acesso restrito a serviços de saúde (WHO, 2002WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Veinticinco preguntas y respuestas sobre salud y derechos humanos. [S.l.]: World Health Organization, 2002. Disponível em: <http://apps.who.int/bookorders/anglais/detart1.jsp?sesslan=2&codlan=3&codcol=15&codcch=496>. Acesso em: 4 jan. 2011.
http://apps.who.int/bookorders/anglais/d...
). No caso da oferta de serviços de saúde particularizados a usuários pagantes ou segurados pelas organizações sociais, tem-se a adoção de medida legislativa discriminatória, porquanto os que não possuem plano de saúde ou não possam arcar com dispêndios médicos irão ser direcionados a serviços diferenciados, com acesso a exames e outros procedimentos distintamente. Portanto, determinados serviços e bens serão direcionados apenas a uma parcela prefixada, sendo a população vulnerável alijada do acesso àquilo que se entender adequado a usuários que contribuem diretamente para o orçamento da organização. Sendo assim, tem-se no caso da lei paulista normativa que acarreta, de direito e de fato, a discriminação da população vulnerável a bens e serviços de saúde de qualidade e no tempo oportuno1212Nesse sentido, Cohn e Elias (2002) pontuam que “a ‘dupla porta’ ou ‘dupla fila’ impacta sobremaneira o acesso de qualidade da população de baixa renda a bens e serviços de saúde, pois acarreta a ‘discriminação’ quando da partilha de espaços mais privativos (os quartos) em que os pobres são condenados a conviver no mesmo espaço com até quatro pessoas, enquanto os dos não-pobres são partilhados por até duas pessoas”..

Considerações finais

Como visto neste estudo, a prestação dos serviços de saúde por organização social não é assunto pacífico. Há consideráveis críticas ao modelo da organização social de saúde, provenientes de instâncias jurídicas e da ambiência sanitária. A despeito do intuito deste trabalho não ter sido a contestação jurídica do modelo apontado, vale salientar que, o objeto desta análise, a cobrança de serviços de saúde por organização social e destinação de parte de sua capacidade operacional à parcela da população brasileira, insere-se num modelo cuja essência se apresenta controversa.

Considerando o foco desta investigação, a Lei Complementar n.º 1.131, de 27 de dezembro de 2010, ao estabelecer a possibilidade de as organizações sociais da saúde destinarem 25% de sua capacidade operacional a pacientes particulares ou usuários de planos de saúde privados, aparta-se da estrutura ‘principiológica’ constituinte do SUS. O SUS foi instituído pela Constituição Fedcral de 1988, com o objetivo precípuo de materializar as obrigações estatais concernentes ao direito humano à saúde. As ações e os serviços sanitários, conformadores do referido Sistema, a despeito de serem prestados por entidades privadas, submetem-se incondicionalmente ao comando do princípio do acesso universal e igualitário.

Igualmente, a deferência ao marco conceitual-normativo dos direitos humanos é compromisso internacional do Estado brasileiro e comando constitucionalmente assentado do que se depreende o dever indiscutível da União, dos Estados e do Município de efetivar o direito humano à saúde. Sendo assim, tendo em conta o princípio do acesso universal e igualitário, bem como os elementos e a tipologia obrigacional dos direitos humanos, o direcionamento do montante de atendimentos especializados e de alta complexidade à certa fração da população é manifestamente descompassado com o atual patamar em que o Estado brasileiro se encontra, quanto ao seu comprometimento declarado com o Estado de Direito, o que impõe o respeito de normas federais, estaduais e municipais ao parâmetro constitucional e com a cultura dos direitos humanos.

Por fim, ao se confluir o acesso universal e igualitário com o conteúdo do direito humano à saúde, concluiu-se que, criar barreiras para o desfrute de serviços de saúde, consiste em impedir certas camadas da população brasileira de serem tratadas com igual respeito e consideração por parte do Poder Público. Portanto, a Lei do Estado de São Paulo sobre o tema é medida legislativa de caráter discriminatório, a qual deve ser afastada da ordem jurídica vigente.

  • Suporte financeiro: Não houve
  • 1
    Informações detal hadas sobre a Representação 07/2009 do Ministério Público de Contas do Distrito Federal se encontram em: http:/www.tcdf.gov.br/MpjTcdf/MPjTCDF.htm
  • 2
  • 3
    Segundo Sader (2005)SADER, E. Os porquês da desordem mundial. Perspectivas. São Paulo: Record, 2005., o neoliberalismo, retomada atualizada das teses clássicas do pensamento liberal, implica privatização de em presas estatais, flexibilização dos direitos laborais e cortes nos recursos públicos, deteriorando a presença de serviços públicos pelo Estado.
  • 4
    De acordo com o IBGE (2012), o percentual dos brasileiros cobertos por planos privados de assistência à saúde é de 26,3.
  • 5
    O Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992, determinou a execução e o cumprimento do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que prevê em seu artigo 12 o reconhecimento pelos Estados Partes do aludido Pacto do diráto de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível possível de saúde fisica e mental.
  • 6
    Bandeir a de Mello (2009, p. 611)BANDEIRA DE MELLO, C.A. Curso de Direito Administrativo. Sâo Paulo: Malheiros, 2009. define serviço público como “atividades (consistentes na prestação de utilidade ou comodidade material) destinadas a satisfazer a coletividade em geral”.
  • 7
    Quanto ao paciente atendido pela organização social que possui plano privado de saúde, os serviços prestados por instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do SUS, serão ressarcidos pelas operadoras, conforme o disposto no artigo 32 da Lei n.º 9.656, de 3 de junho de 1998.
  • 8
    Pinotti (2003)PINOTTI, J.A. Prioridade X Escassez em saúde – visão política. Revista de Bioética do CFM, v. 5, 2003, p. 1-11. assinala, que a ‘segunda porta’ nos hospit tarem os recursos escassos, passam a destinar parte de sua capacidade para atendimentos remunerados.
  • 9
    Neste estudo, serão adotadas indiscriminadamente ambas as denominações, direito fundamental à saúde edireito humano à saúde.
  • 10
    Pinotti (2003)PINOTTI, J.A. Prioridade X Escassez em saúde – visão política. Revista de Bioética do CFM, v. 5, 2003, p. 1-11. relatou que a oferta de condições especiais e ambientes próprios ou entrada diferenciada a pacientes pagantes ou portadores de plano de privado de saúde diminui a oferta de serviços aos usuários do SUS, que não se enquadram naquelas modalidades.
  • 11
    Na reportagem de Capriglione e Rossi (2011)CAPRIGLIONE, L.; ROSSI, L. No HC, paciente com plano de saúde é VIP. Folha de São Paulo, Sâo Paulo, 7 de maio de 2011, Cotidiano, p. C3., os autores narram a discrepância entre o tempo de espera na fila para o acesso a consultas e procedimentos relativo a pacientes pagantes e segurados e aqueles que são ‘exclusivamente’ do SUS. No mesmo sentido, Gaspari (2011)GASPARI, E. A privataria está de olho no HC. Folha de São Paulo, São Paulo, 8 de maio de 2011, Caderno 1, p. A12., ao criticar a privatização do Hospital da Clínicas de São Paulo, afirma que, pelo atendimento exdusivo do SUS, os de baixa renda devem cumprir uma série de etapas e consultas para se chegar a um exame e para os segurados é suficiente um pedido médico.
  • 12
    Nesse sentido, Cohn e Elias (2002)COHEN, A.; ELIAS, P.E.M. Equidade e reformas na saúde nos anos 90. Cadernosde Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2002000700017>. Acesso em: 25 jun. 2011.
    http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
    pontuam que “a ‘dupla porta’ ou ‘dupla fila’ impacta sobremaneira o acesso de qualidade da população de baixa renda a bens e serviços de saúde, pois acarreta a ‘discriminação’ quando da partilha de espaços mais privativos (os quartos) em que os pobres são condenados a conviver no mesmo espaço com até quatro pessoas, enquanto os dos não-pobres são partilhados por até duas pessoas”.

Referências

  • AITH, F. Curso de Direito Sanitário: a proteção do direito à saúde no Brasil. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
  • BANDEIRA DE MELLO, C.A. Curso de Direito Administrativo. Sâo Paulo: Malheiros, 2009.
  • BARATA, L.R. A segunda reforma sanitária. 2009. Vilhena Silva Advogados. Disponivel em: <http:/www.gestospe.org.br/web/noticias/conteudo1/?conteudo=243565295&autenticacao=0,2778>. Acesso em: 20 abr. 2011.
    » http:/www.gestospe.org.br/web/noticias/conteudo1/?conteudo=243565295&autenticacao=0,2778
  • BRASIL. Ministério Público Federal. Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Fundamentos básicos para a atuação do Ministério Público Federal contra a terceirização da gestão dos serviços prestados nos estabelecimentos públicos de saúde. s/d. Disponível em: <http//pfdc.pgr.mpf.gov.br/institucionat/grupos-de-trabalho/saude/temas-trabalhados/financiamento-a-saude/atuacao-do-gt/Relatorio-Terceirizacao-GTSaude>. Acesso em: 21 abr. 2011.
    » http//pfdc.pgr.mpf.gov.br/institucionat/grupos-de-trabalho/saude/temas-trabalhados/financiamento-a-saude/atuacao-do-gt/Relatorio-Terceirizacao-GTSaude
  • CAPRIGLIONE, L. Medida ajudará paciente do SUS, diz HC. Folha de São Paulo, Sâo Paulo, 4 de maio de 2011, Cotidiano, p. C3.
  • CAPRIGLIONE, L.; ROSSI, L. No HC, paciente com plano de saúde é VIP. Folha de São Paulo, Sâo Paulo, 7 de maio de 2011, Cotidiano, p. C3.
  • COHEN, A.; ELIAS, P.E.M. Equidade e reformas na saúde nos anos 90. Cadernosde Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2002000700017>. Acesso em: 25 jun. 2011.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2002000700017
  • CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL. Cuestiones sustantivas que se plantean en la aplicación del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales. Observación General n.º 14 (2000). [S.I.]: United Nations, 2000. Disponível em: <http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2011
    » http://www.cetim.ch/es/documents/codesc-2000-4-esp.pdf
  • DWORKIN, R. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
  • DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
  • FLEURY, S.; SCHEFFER, M. A verdadeira reforma sanitária. Rede HumanizaSUS, 2009. Disponível em: <http://www.redehumanizasus.net/7122-a-verdadeira-reforma-sanitaria>. Acesso em: 23 jun. 2011.
    » http://www.redehumanizasus.net/7122-a-verdadeira-reforma-sanitaria
  • GASPARI, E. A privataria está de olho no HC. Folha de São Paulo, São Paulo, 8 de maio de 2011, Caderno 1, p. A12.
  • HUNT P.; BACKMAN, G. Health Systems and the Right to Highest Attainable Standard of Health. In: CLAPMAN, A.; ROBISON, M. (Org.). Realizing theright to health. Zurique: Ebener & Spiegel, 2009. p. 40-59.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). De 2003 a 2008, foi de 42,5% para 54,8% o percentual de mulheres que já haviam feito mamografia. 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1580&id_pagina=1>. Acesso em: 24 abr. 2011.
    » http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1580&id_pagina=1
  • PINOTTI, J.A. Prioridade X Escassez em saúde – visão política. Revista de Bioética do CFM, v. 5, 2003, p. 1-11.
  • PONTES, A.P.M.; OLIVEIRA, D.C.; CESSO, R.G.D.; GOMES, A.M.T., O princípio de universalidade do acesso aos serviços de saúde: o que pensam os usuários? Revista de Enfermagem da Escola Ana Nery, v. 13, n. 3, jul./set., 2009, p. 500-507.
  • RODRIGUES, P.H.A.; SANTOS, I.S. Saúde e cidadania: uma visão histórica e comparada do SUS. São Paulo: Atheneu, 2009.
  • SÃO PAULO (Estado). Projeto de Lei Complementar n.º 4, de 2010. Diário Oficial do Estado de São Paulo, São Paulo – SP, 30 de novembro de 2010. Disponível em: <http://www.ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2010/iels.nov.10/lels226/E_PLC-45_2010.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2011.
    » http://www.ftp://ftp.saude.sp.gov.br/ftpsessp/bibliote/informe_eletronico/2010/iels.nov.10/lels226/E_PLC-45_2010.pdf
  • SADER, E. Os porquês da desordem mundial. Perspectivas. São Paulo: Record, 2005.
  • SANTOS, L.; CARVALHO, G.I. SUS: comenrários à Lei Orgânica da Saúde. Campinas: Unicamp, 2006.
  • SILVA, J.A. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008.
  • WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Veinticinco preguntas y respuestas sobre salud y derechos humanos. [S.l.]: World Health Organization, 2002. Disponível em: <http://apps.who.int/bookorders/anglais/detart1.jsp?sesslan=2&codlan=3&codcol=15&codcch=496>. Acesso em: 4 jan. 2011.
    » http://apps.who.int/bookorders/anglais/detart1.jsp?sesslan=2&codlan=3&codcol=15&codcch=496
  • ZIEGLER, J. Los nuevos amos del mundo. Barcelona: Destino, 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2012

Histórico

  • Recebido
    Ago 2011
  • Aceito
    Dez 2011
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br