RESUMO
Esta pesquisa foi realizada com 20 moradores das ruas do Plano Piloto, Brasília, com o objetivo de conhecer seu perfil socioepidemiológico, bem como o acesso aos serviços de atenção à saúde. Pretendeu-se, com este trabalho, dar visibilidade ao cotidiano desse segmento historicamente excluído dos benefícios estatais, bem como para o indivíduo que vivencia a vida na rua, em sua dimensão biopsicossocial. Em adição, argumentar, sob o ponto de vista da Bioética, as persistentes situações de vulnerabilidade que afetam os moradores de rua, em processos discriminatórios excludentes e que violam direitos conquistados. Confirma-se, na pesquisa, a heterogeneidade desse segmento que, em sua maioria, vive em família e comunidade, constatação essa que deve ser considerada no desenvolvimento de programas e ações inclusivas e eficazes para essa população.
PALAVRAS-CHAVE:
População em situação de rua; Discriminação; Direito à saúde; Equidade; Bioética
ABSTRACT
This survey was carried out among 20 homeless people living in the Pilot Plan, Brasília, identifying their social and epidemiological profile, as well as their access to health care services. The aim of our work was to provide visibility to this segment of the population, which has been historically excluded from the benefits provided by the State, as well as the bio-psycho-social dimension of the lives of homeless individuals. This paper also aimed to expose, from the perspective of Bioethics, the persistent vulnerability faced by the homeless, the consequence of discriminatory and excluding processes that violate human rights. The survey has confirmed the heterogeneity of this population segment, the majority of which lives with their families andas a community, a finding that must be considered in the design of inclusive and effective programs and actions for this population.
KEYWORDS:
Homeless persons; Discrimination; Right to health; Equity; Bioethics
Introdução
As graves desigualdades na distribuição de riqueza no Brasil geram altos índices de pobreza que, por sua vez, levam à falta de acesso a condições e bens essenciais à saúde, à falta de oportunidades e de possibilidades de opção, à baixa participação e mobilização social, e à alta vulnerabilidade frente às adversidades, O desenvolvimento das capacidades humanas está diretamente ligado às oportunidades, e essas às condições socioeconômicas de indivíduos e grupos populacionais inteiros.
A discussão, e construção, da equidade em saúde, passa pela superação das desigualdades sociais, culturais e regionais, em sua relação com as condições de vida dos diferentes segmentos populacionais, com o processo saúde-doença vivenciado por indivíduos e coletividades, e a absorção, pelo Poder Público, das crescentes demandas de grupos populacionais específicos, dentre esses a população em situação de rua. As políticas públicas intersetoriais e intrasetoriais necessitam de espaços de governabilidade que busquem a solução dos problemas de saúde nos níveis locais e regionais, com identificação das iniquidades existentes e definição de estratégias para combatê-Ias, Isso inclui fortalecer políticas e práticas existentes, especialmente aquelas fundamentadas em ampla participação social, popular ou comunitária (BRASIL, 2005BRASIL. Lei n.º 11.258 de 30/12/2005. Dispõe sobre a organização da assistência social acrescentando o serviço de atendimento a pessoas que vivem em situação de rua.).
As políricas de saúde vêm gradativamente incorporando componentes inclusivos na prática de atenção à saúde da população, principalmente a partir das demandas oriundas dos movimentos sociais, Embora sejam visíveis os avanços alcançados nas políticas sociais no âmbito federal, muitas Unidades Federadas ainda não incorporaram tais políticas em sua gestão, deixando parcela da população distante dos benefícios estatais. É o caso da população em situação de rua, segmento em condições de extrema vulnerabilidade, que apresenta um maior grau de exposição aos riscos de adoecer e morrer e às diversas formas de violência (BRASIL, 2009BRASIL. Presidência da República. Decreto n.º 7053, de 23 de dezembro de 2009. Diário Ofcial da República Federativa do Brasil. Brasília (DF), n.º 246, secção 1, p. 16, 24 dez. 2009.).
A população em situação de rua, mesmo com reivindicações matricial mente semelhantes aos outros segmentos, como inclusão social e acesso a benefícios estatais, requer atenção a suas especificidades. Trata-se de uma população historicamente excluída e estigmatizada, que tem como realidade central a vida em pobreza, condição da qual decorre inúmeras violações de seus direitos de ‘pessoa’ como saúde, educação e liberdade de ir e vir (VARANDA; ADORNO, 2004VARANDA, W.; ADORNO, R.C.F. Descartáveis urbanos: discutindo a complexidade da população de rua e o desafio para políticas públicas de saúde. Saúde & Sociedade, São Paulo, v. 13, n. 1, jan./abr. 2004, p. 56-67.), Nesse sentido, movimentos locais, centralizados no Movimento Nacional da População de Rua, têm atuado em conjunto com setores do Governo Federal com o objetivo de definir estratégias e ações estruturantes para o segmento.
De acordo com a Instrução Operacional n.º 20 da Secretaria Nacional de Renda e Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome:
[...] família em situação de rua é aquela cujos vínculos familiares foram interrompidos ou fragilizados e que não possuem moradia convencional regular, habitando logradouros públicos (ruas, praças, jardins, canteiros, marquises e baixos de viadutos) e áreas degradadas (prédios abandonados, ruínas, cemitérios e carcaças de veículos), fazendo destes locais seu espaço de moradia e sustento, temporária ou permanentemente, podendo utilizar albergues para pernoitar, abrigos, casas de acolhida ou moradias provisórias. (BRASIL, 2007BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Instrução Normativa n.º 20. Brasília: SENARC/MDS, 14 dez. 2007.).
No universo trabalhado na pesquisa estima-se haver muito mais do que o número referido na Pesquisa Nacional para o Distrito Federal, necessitando um maior e melhor detalhamento da quantidade, demandas e necessidades não percebidas dessa população por parte do poder público local Por esse quadro desafiador de múltiplas origens do fenômeno, bem como das condições de superação diária de inúmeras dificuldades inerentes à condição de rua, interessaram-se os autores, Foram objetivos da pesquisa a caracterização das condições de vida dos moradores de rua do Plano Piloto e o acesso aos serviços de saúde disponíveis em Brasília.
Método
A forma de condução do presente trabalho se deu em duas etapas, sendo que na primeira foi realizado um levantamento e estudo da bibliografia e da legislação referente ao assunto, bem como de informações e demandas desse segmento populacional para o setor saúde. Isso possibilitou uma análise da evolução da participação ativa institucionalizada desse segmento e da implementação de políticas inclusivas nas três esferas de gestão do setor saúde. Em uma segunda etapa, foram coletados dados com a utilização de instrumento elaborado para tal finalidade. Para tanto, o instrumento constou de questões do tipo semiabertas visando responder aos objetivos do estudo. As entrevistas foram realizadas pelos pesquisadores e abordaram aspectos biopsicossociais dos sujeitos relativos à sua condição social e familiar, além de questões relativas ao atendimento disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) na atenção básica e nos níveis de média e alta complexidade. Durante as entrevistas foram observadas e registradas em diário de campo as respostas e expressões corporais, comportamentais e gestuais das pessoas entrevistadas,
A metodologia de análise dos dados foi feita por meio de gravação. As observações mais importantes foram classificadas em categorias de análise, segundo Minayo (1996)MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 1996, 269 p.. Os pressupostos teóricos da bioética de intervenção, contidos em Garrafa (2005b)GARRAFA, V. Da bioética de princípios a uma bioética interventiva. Bioética, Brasilia, v. 13, n. 1, jan./jun. 2005b, p. 125-134., são fundamentais neste estudo. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, sob registro n.° 014/11. Os sujeitos da pesquisa foram orientados sobre os objetivos da mesma e convidados a participar em caráter voluntário e, uma vez obtida anuência, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) garantindo-se a confidencialidade das informações contidas nas entrevistas. Foi dado ao Movimento Nacional de Pessoas de Rua (MNPR) conhecimento sobre a realização da pesquisa.
O estudo qualiquantitativo foi realizado na região central de Brasília, no Plano Piloto, em locais onde estavam instalados grupos de moradores de rua. O Plano Piloto tem 8,1% da área total do Distrito Federal (472,12 km2) e integra a Região Administrativa I – Brasília – e é composto pela Asa Sul e Asa Norte, onde habitam 198.422 pessoas (9,6% do total de habitantes do Distrito Federal). Para execução das entrevistas, a pesquisadora fez um trabalho de busca ativa de grupos de moradores de rua a partir do contato com os próprios moradores sobre as ocupações – ou ‘invasões’, como os próprios moradores de rua costumam chamar – existentes no território circunscrito. Tais ‘invasões’ constam de barracos armados em locais públicos. São áreas de cerrado, próximas a instituições e órgãos como a Universidade de Brasília e o Senado Federal, e à margem de vias.
Assim foram contatados seis grupos por local de moradia, a seguir descritos: Diretoria Regional de Ensino Plano Piloto e Cruzeiro; Garagem do Senado; Estação Experimental de Biologia da Universidade de Brasília; Carrefour Norte (Setor Noroeste); Final do Eixo L Norte; e Setor de Abastecimento da Asa Norte (SAAN). A pesquisa foi realizada no período de 02 de junho a 12 de julho de 2011 e os entrevistados tinham, na ocasião, idade entre 19 e 52 anos.
A amostra foi escolhida com base na Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua (BRASIL, 2008) que refere existência de 1.734 pessoas em situação de rua na cidade de Brasília. Decidiu-se entrevistar 20 pessoas, o que corresponde a 1,153% do total da população de moradores de rua, considerandose que esse número é suficiente para um levantamento das condições de vida e de acesso aos serviços de saúde. Para tanto, foi utilizada a Técnica de Conveniência (VIEIRA, 1980VIEIRA, S. Bioestatística. Rio de Janeiro: Campus, 1980.).
O questionário foi dividido em duas partes: a) dados de identificação e b) perfil epidemiológicosocial. A análise dos dados foi realizada em duas etapas distintas: a primeira constou de dados quantitativos e a segunda discorreu sobre a análise qualitativa dos dados. Foram analisadas as variáveis: sexo, cor declarada, origem e procedência, motivo que o levou a morar na rua e tempo de moradia na rua, processos discriminatórios, ocupação produtiva, prováveis problemas de saúde, procura de serviços (atenção básica, média e alta complexidade), qualidade da assistência e percepção de direitos. Estabeleceu-se como critérios de inclusão a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, após leitura e explicações necessárias; ter idade igual ou superior a 18 anos e morar na rua. Considerou-se ‘morar na rua’ as situações de ter a rua como local de abrigo, de trabalho e de maior tempo de permanência. O critério de exclusão foi não ser alfabetizado.
Resultados
A amostra pesquisada envolveu 20 pessoas, 10 homens e 10 mulheres, que moravam nas ruas no Plano Piloto, em Brasília, Distrito Federal. As pessoas entrevistadas tinham por origem diversos estados brasileiros, sendo a maioria da Região Nordeste, com predominância do estado do Ceará. Todas as pessoas entrevistadas relataram histórias de sofrimento e superação, na esperança de dias melhores, principalmente no que concerne às condições de estudo e novas perspectivas de vida para seus filhos.
Na Tabela 1 é apresentada a distribuição dos moradores de acordo com a cor declarada, na qual se verifica que a maioria dos moradores declarou-se parda, seguida por negra e branca.
Com relação ao estado civil, a maioria dos entrevistados vive em relação conjugal, sendo oito em união estável, quatro casados e dois que se disseram amasiados; cinco estão solteiros, Uma mulher é viúva e cuida, sozinha, de seus dois filhos.
A escolaridade dos moradores de rua é mostrada na Tabela 2, Verifica-se que a maioria apresenta um elementar grau de instrução.
Observa-se que 75,0 % das pessoas entrevistadas têm o primário incompleto (15), seguidas por 10,0% que possuem o primeiro grau completo (2), enquanto 5,0% são alfabetizadas e apresentam o secundário incompleto e completo (uma pessoa cada, somando três entrevistados). Ressalte-se que nenhum dos entrevistados alcançou o grau universitário, sendo também baixa a incursão no ensino médio e mesmo a finalização do ensino fundamental.
Várias foram as ocupações referidas, embora a maioria trabalhe com catação de material reciclável. Esse processo inclui a catação e seleção de material retirados dos lixos de prédios, escolas, supermercados, instituições e órgãos públicos, próximos do local de moradia. Atentese que o local de moradia é escolhido exatamente por ser propício à garantia de meios de sobrevivência relacionados a essa atividade. Outras atividades principais no período de realização das entrevistas foram de guardador e lavador de carro, serviços gerais, ajudantes de oficina mecânica e dona de casa. Na Tabela 3 é mostrada a distribuição das ocupações dos moradores.
Os casos referidos de ‘serviços gerais’ são de moradores do final do Eixo L norte, os quais não têm ocupação fixa. Esses fazem serviço de jardineiro, vigia de carro na superquadra próxima e de reciclagem esporadicamente. A maioria tem, em comum, a percepção de que o trabalho com reciclagem é livre. É uma atividade sem patrão, da qual eles são os donos; donos de seu horário e de seu tempo. É um trabalho árduo realizado com a própria força, sendo o corpo o motor principal. Alguns, com melhores condições utilizam bicicletas ou cavalos, o que não exime o valor e o significado de uma atividade informal em que ele – o trabalhador – é o principal protagonista.
Dos 20 entrevistados sobre religião, 9 (45,0%), 3 homens e 6 mulheres referiram ser católicos, 5 (25,0%), 3 homens e 2 mulheres relataram ser evangélicos, enquanto que 6 (30,0%), 4 homens e 2 mulheres relataram não possuir religião formal. As religiões de origem cristã, católica e evangélica, predominaram entre os entrevistados e todos revelaram “ter fé em Deus” e acreditar em uma força suprema.
A origem do local das pessoas fornece subsídios para compreensão de sua forma de viver na rua e, a esse fator, juntem-se o tempo de moradia na rua e o motivo que a levou a adotar a rua como moradia. Dentre os estados de origem dos moradores de rua, destacou-se o estado do Ceará com 9 moradores (45%), seguidos pela Bahia com 3 (15%), Distrito Federal, Paraíba e Pernambuco tiveram 2 (10%) cada e São Paulo e Tocantins com 1 (5%) cada.
O estigma e a discriminação acompanham o cotidiano dos moradores de rua. A pobreza é a condição mais autopercebida que deflagra a discriminação vivenciada pelos entrevistados. Com relação aos processos discriminatórios vinculados ao trabalho informal de catador de material reciclável, ressalte-se que esses, assim como a moradia irregular, trajes e condições de limpeza, estão diretamente ligado à situação de pobreza. Dessa forma, a condição socioeconômica caracterizada pela pobreza e suas formas consequentes de trabalho, moradia e falta de acesso a bens e serviços, conduz à discriminação tanto quanto é a pobreza construída e consolidada historicamente (SILVA, 2009SILVA, M.L.L. Trabalho e população em situação de rua no Brasil. São Paulo: Cortez, 2009.). Vejamos as frases que seguem quando perguntados sobre qual o tipo de discriminação que sentem:
Por ser pobre, morar no cerrado, pela roupa, a (falta de) limpeza no corpo [...] a gente só pode andar limpo de noite (E1).
Porque tou catando lixo, sou pobre, tou com a roupa suja, boné na cabeça. Tem gente que xinga, outros mangam (E2).
Dessa forma, expressões e frases pejorativas acompanham o cotidiano dessas pessoas e interferem diretamente na percepção de si como sujeito de direitos do ponto de vista legal e constitucional. A discriminação e desvalorização quanto ao trabalho de catação de material reciclável se apresenta nas seguintes frases: “Lá vai o lixeiro!”; “Sai daí sebosa! Procura outro emprego! Está fazendo isso porque gosta!”.
Reflexões sobre o valor do tipo de trabalho realizado, também se apresentaram: “Sou discriminado pelo tipo de trabalho... não temos proteção de nada... é como se a gente não existisse”; “Tem muitas pessoas que não consideram o trabalho da gente, acham o seu superior”.
Representações sociais das questões de gênero, também se apresentam nas falas dos desconhecidos frente a uma moradora de rua: “Mulher nova, bonita, boa de trabalhar fica por aí pedindo... Vai ligar (as trompas) em vez de ficar fazendo menino!”.
As formas de discriminação se mesclam com a condição de pobreza e de escassez de recursos, inclusive de acesso à água, pois muitos têm de recorrer a comércios, escolas ou córregos, nem sempre perto de seu local de moradia, contando com a boa vontade de terceiros para conseguir água para beber, se banhar e se alimentar.
Questionados com relação a seus hábitos de vida, os registros são focados no trabalho com reciclagem e vigília de carros. Aqui percebemos as manifestações das relações sociais de gênero, que se perpetua em todas as classes sociais, nas atividades desenvolvidas por mulheres e homens. Alguns homens, além do trabalho, citaram ‘jogar bola’, ‘jogar sinuca’, ‘ouvir música’, ‘fumar’, ‘beber’ e ‘pescar’, como atividades de lazer, enquanto que, as mulheres, parecem não diferenciar lazer de trabalho, tendo incorporado nos seus hábitos o trabalho na reciclagem – coleta e/ou seleção; o cuidado com filhos, sobrinhos e netos – alimentação, higiene e escola; cuidados com a casa – lavagem de roupas, limpeza do barraco e terreiro; entre outras atividades.
Em relação aos processos saúde-doença, 12 entrevistados (60%) referiram ter algum problema de saúde na ocasião da entrevista, em sua maioria crônico. Alguns inicialmente relatavam não ter nenhum tipo de problema de saúde, mas com a continuação da entrevista acabavam por se lembrar de condições de adoecimento, algumas, inclusive, sérias, como o vírus da imunodeficiência humana (HIV), depressão e hipertensão. O diagnóstico positivo para o HIV foi motivo de separação conjugal, migração e inserção nas ruas de Brasília. Seu sentimento e condição estão expressos na frase: “Quando descobri o HIV fiquei louco, deprimido, vontade de não fazer nada. Minha família não sabe”.
Os entrevistados que referiram problemas de saúde citaram casos crônicos ou persistentes, como dor de cabeça e dor muscular, hérnia abdominal, HIV, gastrite nervosa, hipertensão, dores e problemas articulares, deficiência decorrente de traumatismo, tabagismo, cravo nos pés.
Oito dos entrevistados (40%) afirmam não ter nenhum problema de saúde, embora 5 tenham usado os serviços de saúde em processos agudos de adoecimento. Do total de entrevistados, 16 (80%) precisaram e buscaram o serviço público de saúde para solução de problemas agudos ou crônicos, recorrendo principalmente ao nível de média complexidade. Os casos relatados foram dor de dente, gripe, diarreia, dengue, dor imobilizante nas costas, dor de cabeça, pico hipertensivo, infecção intestinal, infecção renal, hemorragia uterina, estresse agudo, pré-natal e parto.
As unidades de saúde mais procuradas para atendimento foram: Hospital Universitário de Brasília (HUB), Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF) e Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), embora também tenham recorrido aos Hospitais Regionais das cidades do Paranoá, Ceilândia, São Sebastião e de Planaltina. A principal motivação é vacinação dos filhos, embora também sejam procurados para tratamento odontológico, de hipertensão e tabagismo. As dificuldades encontradas referem-se à acessibilidade aos serviços de saúde, à falta de profissional e às grandes filas de espera em busca de assistência. Uma vez atendidas, 95% das pessoas registraram bom atendimento com encaminhamentos, exames e medicação realizados no serviço. Dois homens não foram atendidos, sendo que um deles procurou atendimento em dois postos de saúde não conseguindo assistência, por falta de documento e moradia fixa; ele revela que “nunca mais buscou atendimento médico”.
No posto não tinha médico e no hospital tinha fila de espera. Na farmácia do SUS não tinha o medicamento (E1).
No HRAN tem que dormir, passar o dia todo. No posto tem que chegar 4 ou 5 horas pra pegar ficha pra manhã e 10h pra pegar ficha pra tarde (E2).
É triste [...] levei meu filho no HRAN 7h da manhã e 22h voltamos pra casa. Como a febre aumentou, voltamos e ele foi atendido meianoite com a ficha da manhã (o filho é portador de necessidades especiais) (F3).
A comunidade do SAAN informou que o SAMU não entra onde os barracos estão localizados e que, nas vezes em que precisaram do serviço, tiveram de se locomover até a via mais próxima onde a ambulância os aguardava. Um homem que refere nunca ter tido dificuldades para conseguir atendimento conta: “Toda vez fui atendido. Primeiro Deus, segundo o doutor e o SUS que deu a vida”.
O uso de medicamentos foi referido por 50% dos entrevistados. Dentre aqueles que referiram o uso, os motivos são dor de coluna, dor de garganta, gripe, hipertensão, estresse, e os remédios utilizados têm finalidade calmante, analgésica, anti-inflamatória, anti-infecciosa e de controle de hipertensão arterial. As informações contidas nas entrevistas expuseram as dificuldades de acesso à assistência farmacêutica da Secretaria de Saúde do Governo do Distrito Federal. O medicamento prescrito pelo médico nem sempre é encontrado na farmácia do SUS, necessitando ser adquirido com seus próprios recursos.
Questionados quanto ao conhecimento sobre o SUS, observamos um total desconhecimento da rede de serviços públicos de saúde, embora muitos deles se utilizem dos serviços, mesmo que de forma precária. Frases, como ‘nada’, ‘já ouvi falar’, ‘não estou bem informado’, ‘não sei dizer’ e ‘sinceramente, não entendo’, demonstram a dissociação entre o que é vivido e as informações disponíveis. Dessa forma, algumas respostas ficam confusas quando mesclam o tipo de atendimento vivenciado no SUS, em grande parte sentido como ‘bom’, e a percepção difundida pelos jornais televisivos os quais demonstram, por vezes, experiências contrárias, ou confirmam o vivido no cotidiano do SUS traduzido nas falas descritas a seguir:
Só soube que existia (o SUS) no programa Zorra Total (E1).
Nada. Só vejo falando mal na TV. Quando vou pro serviço vejo os comentários. Eu mesma passo por isso (E2).
Eu acho muito fraco. Eu fui bem atendida, mas a gente vê cada caso passando na mídia. O que eu acho fraco é o que eu vejo na mídia (E3).
O conhecimento do SUS, quando visível, vem acompanhado de uma percepção positivada e, às vezes, até endeusada. s possivelmente se deve ao fato dos atendimentos de emergência estarem relacionados a experiências de quase morte: “Sei pouca coisa: se pedem exame, é o SUS que cobre”; “Acho que é uma coisa assim: praticamente um santo [...] se a pessoa tiver morrendo ele salva. É quase um anjo”.
Questionados com relação as suas expectativas quanto ao Sistema de Saúde do Distrito Federal, os entrevistados apresentaram desejos de universalidade e equanimidade na atenção à saúde, com assistência de qualidade e imediata para todas as pessoas sem distinção de classe social, com redução ou eliminação das filas, e aumento do quadro de profissionais. Descontentamento e descrédito com relação ao uso apropriado dos recursos públicos também apareceram, assim como uma comparação com a atuação da segurança pública. Entendemos esse fato como uma compreensão de que todas essas ações partem do Poder Público, sendo, portanto, uma ação do Estado. Eis os relatos:
Que melhore [...] para a população toda [...] pobre, rico, feio, bonito. O problema é o dinheiro. Esse povo gosta é de dinheiro (E1).
Força de vontade dos profissionais. Melhorar na mudança de plantão que é deficiente (E2).
No posto os medicamentos só são liberados com ficha. Era bom outro jeito pra pegar medicamento, pois precisa de receita médica toda vez que vai (E3).
Ser atendida quando chegar com as crianças, independente de ser pobre (E4).
Médico. Na maioria das vezes falta médico (E5).
Não ter fila de espera. Isso é um descaso [...] estar numa fila de espera sofrendo pra ganhar neném. Tem as prioridades que são: idosos, gestantes, mas aqui não teve, que foi o caso de minha amiga que eu levei pra ter neném (E6).
Discussão
Os movimentos sociais têm apresentado demandas e reivindicações, que, absorvidas, transformam-se em ações, políticas e programas de Governo. Dado relevante tem sido a crescente pressão de diversos setores da sociedade para que o poder público implemente soluções concretas para reduzir as iniquidades. É importante ressaltar que é no âmbito local, principalmente, que se pode elaborar e implementar políticas capazes de melhorar a qualidade de vida dos cidadãos.
A visão da equidade para pessoas e grupos é uma construção em que todos os sujeitos sociais participam. A equidade configura-se como pedra fundamental para a igualdade e pressupõe autonomia, responsabilidade e empoderamento. Isso implica um novo olhar sobre a realidade, um olhar solidário que busque a equidade para além da superação das desigualdades locais e regionais quando da distribuição dos recursos. Um olhar que busque desenhar estratégias para o enfrentamento de problemas históricos e conjunturais vividos por pessoas e coletividades de forma sistemática e excludente. Um olhar que priorize os mais desfavorecidos e promova o empoderamento de pessoas e comunidades, mas que, também, conduza à responsabilidade, sobre si e outros, o todo que nos cerca. Pois gerar poder, é ter responsabilidade e autonomia, e, assim como a desigualdade é socialmente construída, também o é a igualdade (GARRAFA, 2005aGARRAFA, V. Bioética e política. Revista Brasileíra de Bioética, Brasília, v. 1, n. 2, abr./jun. 2005a, p. 122-132.).
A população em situação de rua é um dos segmentos enraizados na histórica exclusão. São resistentes e vivem na invisibilidade sem a proteção do Estado. Os grupos pesquisados do Plano Piloto, em Brasília, em sua maioria, tem sua origem direta no mundo rural do sertão nordestino. De condição rural à situação de rua, transitam entre população latente e estagnada, que, sem atrativos para inserção no mercado formal, desenvolvem formas de ocupação e renda heterogêneas, cuja organização não assume características tipicamente capitalistas. Integram o trabalho informal de catador de material reciclável, vigia e lavador de carro, entre outros, compondo uma fonte de reserva da força de trabalho (POCHMANN, 2002POCHMANN, M. O trabalho sob fogo cruzado. São Paulo: Contexto, 2002. p. 65.).
Na história de vida do povo de rua, o fator persistente é o empobrecimento que, muitas vezes, deriva de gerações anteriores. A perda de emprego, de vínculos familiares, alcoolismo e drogadição, e processos de adoecimento, são fatores recorrentes. Todos esses fatores têm características subjetivas que se mesclam aos processos que levam à pobreza e exclusão, pois a exclusão é um processo dinâmico no qual “os indivíduos transitam da integração à vulnerabilidade, ou deslizam da vulnerabilidade para a inexistência social” (SOUZA; SILVA; CAR1CARI, 2007SOUZA, E.S.; SILVA, S.R.V.; CARICARI, A. M. Redesocial e promoção da saúde dos “descartáveis urbanos”. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 41, n. esp, 2007, p. 810-814.).
Minayo (apudSOUZA; SILVA; CAR1CAR1, 2007SOUZA, E.S.; SILVA, S.R.V.; CARICARI, A. M. Redesocial e promoção da saúde dos “descartáveis urbanos”. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 41, n. esp, 2007, p. 810-814.) nos indica que o fenômeno da pobreza, assim como a exclusão social, é resultado do desenvolvimento centrado no mercado, que desagrega sujeitos e coletividades, e influência na representação dos mesmos na sociedade:
A exclusão pode ser definida como um processo múltiplo de separação de grupos e sujeitos presente e combinado nas relações econômicas, sociais, culturais e politicas, resultando disso a pobreza, discriminação, não acessibilidade ao mundo do trabalho e do consumo e a não representação social e pública. (SOUZA; SILVA; CARICARI, 2007SOUZA, E.S.; SILVA, S.R.V.; CARICARI, A. M. Redesocial e promoção da saúde dos “descartáveis urbanos”. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Paulo, v. 41, n. esp, 2007, p. 810-814.).
Mattos e Ferreira (2004)MATTOS, R.M.; FERREIRA, R.F. Quem vocês pensam que (elas) são? Representações sobre as pessoas em situação de rua. Revista Psicologia e Sociedade, Belo Horizonte, v. 16, n. 2, mai/ago. 2004, p. 47-58. esclarecem, ainda, que o conjunto dessas ‘tipificações’ forma o conceito de si mesmo, pois a personalidade individual interage com o meio, a sociedade; ou seja, é modelada pela sociedade, ao mesmo tempo em que pode influenciá-la. Na rua, tentam criar elos que pela sua condição intrínseca são rebuscados e/ou frágeis. No entanto, as
representações sociais organizam as condutas e as comunicações sociais e intervêm na difusão e na assimilação dos conhecimentos, além de participar na definição das identidades pessoais (p 48).
Esses estigmas e discriminações têm um impacto tão forte sobre a personalidade que elas vivem em um estado permanente de humilhação. Esse estado associado ao peso das tipificações reforça a construção de identidades articuladas com valores negativamente afirmados, pois “quando acontece uma ruptura as concepções de si mesmo em torno das quais foi construída sua personalidade podem ficar desacreditadas”.
A Bioética de Intervenção, desenvolvida por pensadores latino-americanos, busca a aplicação da ética voltada para as questões de justiça social e de responsabilidade pública do Estado para com os cidadãos, considerando a influência dos movimentos sociais como instâncias de reivindicações politizadas. Alerta para a necessidade de incorporar os interesses coletivos, trazendo outros referenciais na busca de diretrizes e formulação de normas ampliadas que incluam, entre outros, temas referentes à equidade no atendimento sanitário e universalidade do acesso aos benefícios do desenvolvimento na priorização, alocação, distribuição e controle dos recursos (PORTO; GARRAFA, 2005PORTO, D., GARRAFA, V. Bioética de intervenção – considerações sobre a economia de mercado. Bioética, Brasília, v. 13, n. 1, p. 111-123, 2005.). Nesse sentido,
a Bioética defende a ideia de que o corpo é a materialização da pessoa, a totalidade somática na qual estão articuladas as dimensões física e psíquica que se manifestam de maneira integrada nas inter-relações sociais e nas relações com o meio. A escolha da corporeidade como marco das intervenções éticas se deve ao fato do corpo físico ser inequivocamente a estrutura que sustém a vida social, em toda e qualquer sociedade. Não há outra concretude social: uma sociedade estará nos corpos de seus membros ou não residirá em parte alguma. (PORTO; GARRAFA, 2005PORTO, D., GARRAFA, V. Bioética de intervenção – considerações sobre a economia de mercado. Bioética, Brasília, v. 13, n. 1, p. 111-123, 2005.).
De qualquer forma, a temática da exclusão e da pobreza, ainda que tomada por um escopo acadêmico e científico, não deixa de ser influenciada pelas posições políticas que a permeiam. É perceptível uma postura que desencadeia um processo de desresponsabilização, tanto do Estado, como da sociedade, caracterizando a situação como algo presente desde tempos imemoráveis, herança arrastada de épocas lusas. No entanto, a pobreza não é uma realidade estanque, como o destino ou carma, prédeterminada. “A pobreza, longe de ser um resquício histórico, é constantemente recriada por processos econômicos e políticos” (CATTANI, 2007CATTANI, A.D. Riqueza; totem e tabu. Sociologias – riqueza e desigualdades, Porto Alegre, v. 9, n. 18, jul./dez. 2007, p. 14-21.). Dessa forma, a pobreza persiste não por uma inércia histórica, mas por renovados métodos alimentados por interesses dominantes.
No entanto, é preciso retomar o aspecto de retroalimentação para delimitar o problema. Dessa forma, se a pobreza e a doença dançam em círculos eternos, para atuar nas iniquidades em saúde, seria necessário muito mais do que o SUS, ou se exigiria mais do SUS do que somente a atenção em saúde, mas a atenção à renda, à educação, à qualidade de vida, à capacitação humana para o exercício da liberdade.
Conclusão
Confirmamos, na pesquisa, a heterogeneidade da população que mora e trabalha nas ruas do Plano Piloto, em Brasília, como grupos que mantêm seus vínculos familiares e afetivos, além de uma vida em comunidade, fato esse configurado como elemento surpresa, visto que a literatura aborda, inclusive em documentos oficiais, a população em situação de rua dos grandes centros urbanos caracterizados pela perda de vínculos afetivos e familiares, resultante de drogadição e alcoolismo. Essa interpretação reducionista homogeneiza as diferenças existentes dentro do próprio segmento e pode deixar lacunas na abordagem e desenvolvimento de políticas, programas e ações inclusivas, Na maioria, os entrevistados emigraram da Região Nordeste para a capital do País, na esperança de conseguir trabalho e renda. São, em sua maioria, pardos, seguidos por negros e brancos, e apresentam baixíssimo grau de escolaridade. Possuem como ocupação principal o trabalho com reciclagem, seguido de vigília e guarda de carro. As mulheres, além do trabalho com reciclagem, são responsáveis pelas tarefas domésticas. A grande maioria dos moradores sente-se discriminada e isso pode afetar sua representação social de cidadão, implicando em sua autopercepção enquanto sujeito de direitos. O acesso aos serviços de saúde é precário, principalmente no que concerne a falta de documentação e moradia fixa, além d a ausência de profissionais tanto na atenção básica quanto na média e alta complexidade.
- Suporte financeiro: Não houve
Referências
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
11 Ago 2023 - Data do Fascículo
Jan-Mar 2012
Histórico
- Recebido
Dez 2011 - Aceito
Fev 2012