A racionalização de gastos no planejamento assistencial: uma análise discursiva das portarias MPAS 3.046/82 e GM/MS 1.101/02

The expenses rationalization in assistance planning: a discursive analysis of the ordinances MPAS 3,046/82 and GM/MS 1,101/02

Fabiana de Oliveira Silva Sousa Itamar Lages Sobre os autores

RESUMO

Neste artigo é apresentada uma análise discursiva das Portarias 3.046/82 e 1.101/02 do Ministério da Saúde. O discurso da racionalização de custos e seus efeitos — a ênfase nos princípios da descentralização, focalização e privatização que orienta o modo neoliberal de organização dos sistemas de saúde e o uso eficiente dos recursos financeiros — foram os achados. Além destes, encontrou-se também que a principal condição para a produção/reprodução deste discurso é dado pela política econômica de ajuste fiscal. Por fim, foi identificada uma tensão: a racionalização de custos guarda relação direta com os modelos residual e meritocrático de proteção social, e os mesmos documentos veiculam o discurso de saúde que se relaciona com o modelo institucional-redistributivo de políticas sociais.

PALAVRAS-CHAVE:
Portarias; Política de saúde; Planejamento Assistencial; Análise de Discurso

ABSTRACT

A discursive analysis of the Ordinances 3.046/82 and 1.101/02 of the Ministry of Health is presented in this article. The discourse of cost rationalization and its effects — the emphasis on the principles of decentralization, focus and privatization that drives the neoliberal way of health systems organization and the efficient use of financial resources — were the findings. In addition, it was also found that the main condition for production/reproduction of this discourse is given by the economic policy of fiscal adjustment. Finally, one tension was identified: the costs rationalization is directly related to the residual and meritocratic models of social protection, and the same documents convey the discourse of health that relates to the institutional-redistributive model of social policies.

KEYWORDS:
Ordinances; Health policy; Assistance Planning; Discourse Analysis

Introdução

Neste trabalho, tomamos como objeto de análise discursiva a permanência das condições de produção, as relações de sentidos de forças do discurso da racionalização de gastos, diretriz que pauta o modelo residual de políticas sociais e orienta os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) a estimar as necessidades de saúde.

Assim, analisamos o discurso da racionalização de gastos no âmbito do SUS nas práticas discursivas exercidas pela Portaria do Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) 3,046/82 e do Gabinete do Ministro do Ministério da Saúde (GM/MS) 1.101/02, que definem parâmetros de necessidades de consultas, procedimentos e internações, buscando dar subsídios para o planejamento assistencial da média e alta complexidade (BRASIL, 1982BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria n° 3.046 de 20 de julho de 1982. Estabelece os parâmetros para credenciamento, contratos e convênios na área de assistência médica da Previdência Social. 3. ed. Brasília: Coordenadoria de Comunicação Social/MPAS, 1983., 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 1.101, de 12 de junho de 2002. Estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Diário Oficial.).

Metodologia

Utilizamos como metodologia a análise de discurso, cujo principal fundador foi Michel Pêcheux (1996PÊCHEUX, M. O mecanismo do (des) conhecimento ideológico. In; ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996., 1997aPÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: UNICAMR 1997a., 1997bPÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 1997b.). Trata-se de uma ciência interpretativa que se apoia no postulado do inconsciente da psicanálise, no materialismo histórico do Marxismo e na estrutura da língua para analisar o discurso, suas condições de produção e os sentidos que produz (ORLANDI, 1987ORLANDI, E.P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes, 1987., 1996ORLANDI, E.P. interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996., 2001ORLANDI, E.P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.).

A análise de discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Nela, procura-se compreender a “língua fazendo sentido” (ORLANDI, 2001ORLANDI, E.P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.).

[...] a Análise

guagem não é transparente. Desse modo ela não procura atravessar o texto para encontrar um sentido do outro lado. A questão que ela coloca é: como este texto significa? Como este texto produz significado? (ORLANDI, 2001ORLANDI, E.P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.).

As Portarias MPAS nº3.046/82 eGM/MS nº 1.101/02 foram tomadas como textos de uma prática discursiva, textos no sentido de uma construção simbólica, com dada materialidade, no interior do qual estão os discursos,

Elas se prestam bem aos procedimentos da análise de discurso pois são constituídas por uma linguagem de um espaço de poder, ou seja, por uma instituição que, segundo Pêcheux (1996)PÊCHEUX, M. O mecanismo do (des) conhecimento ideológico. In; ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. é um lugar no qual se processam as condições ideológicas de reprodução/transformação das relações de produção.

No processo analítico, a leitura sucessiva das portarias foi um procedimento técnico que buscou apreender fragmentos discursivos referentes ao objeto de estudo: a permanência do discurso da racionalização de gastos e os sentidos produzidos. Este procedimento é denominado desuperficialização por Orlandi (2001)ORLANDI, E.P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001..

Assim, identificamos as ideias centrais das portarias e delineamos os fragmentos de texto, cujo dizer, ou não dizer, remete à diretriz de racionalização de gastos.

Os dizeres não são, como dissemos, apenas mensagens a serem decodificadas. São efeitos de sentidos produzidos em condições determinadas e, de alguma forma, presentes no modo como se diz, deixando vestígios que o analista de discurso tem de aprender. São pistas que ele aprende a seguir para compreender os sentidos aí produzidos, pondo em relação o dizer com sua exterioridade, suas condições de produção. Esses sentidos têm a ver com o que é dito ali, mas também com o que poderia ser dito e não foi. Desse modo, as margens do dizer, do texto, também fazem parte dele. (ORLANDI, 2001ORLANDI, E.P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.).

Esses recortes textuais são, na realidade, ‘fatos da linguagem’, que tem memória — posto que evoca outros discursos — e materialidade linguístico-discursiva (ORLANDI, 2001ORLANDI, E.P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.). O conjunto organizado desse material é denominado ‘corpus’ na análise de discurso.

Em seguida, verificamos a temática dos documentos, focando as representações, expectativas e memórias evocadas para focalizar os núcleos de sentido e suas principais categorias. Vale salientar que a análise de discurso não toma o texto como objeto final de sua explicação, mas

[...] como unidade de análise que lhe permite ter acesso ao discurso [...] Uma vez atingido o processo discursivo, responsável pelo modo como o texto significa, o texto ou textos analisados desaparecem como referências específicas para dar lugar à compreensão de todo um processo discursivo do qual elese outros que nem conhecemossão parte. (ORLANDI, 2001ORLANDI, E.P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2001.).

Na última etapa da análise, se teceram as relações críticas entre as ideias, explícitas e implícitas, das portarias com base no referencial teórico adotado. Assim, buscou-se identificar o discurso da racionalização de gastos, seus condicionantes produtivos e sentidos.

Resultados

Flagrantes discursivos da diretriz de racionalização de gastos nas Portarias MPAS nº 3,046/82 e GM/MS nº 1.101 /02

Recortes das portarias que expressam fatos de linguagem concernentes à busca do discurso da racionalização de gastos, as condições objetivas que propiciaram a presença dessa subjetividade ideológica e os sentidos em uma e outra normativa institucional são aqui apresentados na tentativa de se buscar uma descrição integrada e dialética.

Portaria MPAS nº 3.046/82

A Portaria nº 3.046 foi publicada pelo MPAS em julho de 1982, estabelecendo normas para a realização de contratos e convênios de assistência medica, no âmbito da Previdência Social, e parâmetros para subsidiar o planejamento das atividades assistenciais do então Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS).

O principal objetivo desta portaria foi organizar o setor da saúde e, para isso, fazia a seguinte justificativa:

[...] a prestação de serviços de assistência médica a cargo do INAMPS está sujeita a limitações de ordem orçamentária que devem ser rigorosamente obedecidas [...] o sistema atualmente em vigor se ressente de reduzidos índices de produtividade e resolutividade, subtilização de serviços próprios e insatisfatória qualidade de atendimento, além de resultar em numerosas distorções e gastos crescentes e imprevisíveis, dada a inexistência de mecanismos adequados de correção, contenção e fiscalização. (BRASIL, 1982BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria n° 3.046 de 20 de julho de 1982. Estabelece os parâmetros para credenciamento, contratos e convênios na área de assistência médica da Previdência Social. 3. ed. Brasília: Coordenadoria de Comunicação Social/MPAS, 1983.).

Esta portaria foi o primeiro instrumento criado pela principal instância que definia a Política Nacional de Saúde naquele período — o MPAS — para estabelecer parâmetros de referência para o planejamento assistencial. Para tanto, foi utilizada uma metodologia de construção dos parâmetros cujos limites de cálculo foram bastante estreitos e coerentes com a Política de Saúde — o Sistema Nacional de Saúde — praticada pelo Estado na sua relação com a população brasileira, Na formulação desses parâmetros considerou-se:

Os parâmetros internacionalmente recomendados para cobertura assistencial à população em geral nos países em desenvolvimento; o percentual médio de beneficiários da Previdência Social na população urbana; as incidências nacionais médias por especialidade observadas na Previdência nos últimos cinco anos; as necessidades de serviços complementares por especialidade, em área ambulatorial (com base em opiniões de especialistas e experiências nas superintendências Regionais que efetuaram trabalho experimental de racionalização nesta área). (BRASIL, 1982BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria n° 3.046 de 20 de julho de 1982. Estabelece os parâmetros para credenciamento, contratos e convênios na área de assistência médica da Previdência Social. 3. ed. Brasília: Coordenadoria de Comunicação Social/MPAS, 1983.).

Assim, foram estabelecidos parâmetros de cobertura assistencial, cujo objetivo era estimar as necessidades assistenciais da população beneficiária urbana, e parâmetros de produtividade para estimar a capacidade de produção dos recursos assistenciais (serviços de saúde e profissionais). Os valores de referência estabelecidos abrangiam as consultas médicas de urgência e emergência, clínicas básicas (clínica médica, pediatria, ginecologia, obstetrícia e cirurgia geral), consultas médicas especializadas, consultas odontológicas, serviços complemcntares (patologia clínica e radiologia), internações (necessidade de internações e leitos) e capacidade de produção (número de consultas/hora) do profissional médico e do dentista.

A referida portaria salientava, ainda, que no planejamento das atividades assistenciais seriam consideradas, além desses parâmetros, as “peculiaridades locais e regionais” (perfil epidemiológico e acesso aos serviços) e a “limitação dos Recursos Humanos, Físicos e Financeiros disponíveis” (BRASIL, 1982BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria n° 3.046 de 20 de julho de 1982. Estabelece os parâmetros para credenciamento, contratos e convênios na área de assistência médica da Previdência Social. 3. ed. Brasília: Coordenadoria de Comunicação Social/MPAS, 1983.).

O fato é que desde o ano anterior à publicação da Portaria, a economia brasileira estava em recessão e a área da saúde dirigida pelo INAMPS sendo tratada “como um dos focos geradores dos problemas financeiros da previdência social” (MENDES, 1995MENDES, E.V. As políticas de saúde no Brasil nos anos 80: a conformação da reforma sanitária e a construção da hegemonia do projeto neoliberal. In:MENDES, E.V. Distrito sanitário. O processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: HUCITEC, 1995.). Diante deste cenário, a Portaria n° 3.046 salientava explicitamente o discurso da racionalidade de gastos, enquanto diretriz que buscava organizar, por um modelo residual de políticas sociais, o setor público de saúde e os demais subsistemas sob o fundamento da focalização, descentralização e privatização.

[...] a obediência aos limites estabelecidos para o presente exercício exige a adoção imperiosa, a curto prazo, de medidas rigorosas abrangendo a reordenação do fluxo de atendimentos e o controle e racionalização dos gastos. (BRASIL, 1982BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria n° 3.046 de 20 de julho de 1982. Estabelece os parâmetros para credenciamento, contratos e convênios na área de assistência médica da Previdência Social. 3. ed. Brasília: Coordenadoria de Comunicação Social/MPAS, 1983.).

A publicação da portaria n° 3.046 apresentou-se, então, como uma das estratégias, de curto prazo, para viabilizar a contenção de gastos e “representa simbolicamente a consolidação da cultura inampsiana”, caracterizada, principalmente, pelo planejamento, avaliação e controle paramétricos da atenção médica, com objetivos administrativos, contábeis e financeiros, determinados pelo fluxo de caixa da Previdência Social (MENDES, 1995MENDES, E.V. As políticas de saúde no Brasil nos anos 80: a conformação da reforma sanitária e a construção da hegemonia do projeto neoliberal. In:MENDES, E.V. Distrito sanitário. O processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: HUCITEC, 1995.).

Dessa forma, estabeleceu parâmetros que poderiam ser aplicados

[...] aos estudos de programação assistencial desenvolvidos por ocasião da elaboração dos orçamentos programa-anuais; à análise das necessidades de expansão assistencial (criação de novos serviços próprios, convênios, contratos ou credenciamentos); à análise técnica de processos do Fundo de Apoio ao Desenvolvimento Social (FAS). (BRASIL, 1982BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria n° 3.046 de 20 de julho de 1982. Estabelece os parâmetros para credenciamento, contratos e convênios na área de assistência médica da Previdência Social. 3. ed. Brasília: Coordenadoria de Comunicação Social/MPAS, 1983.).

Durante a década de 1980, algumas medidas foram propostas para diminuir a crise financeira e política da Previdência Social, dentre essas a criação de uma instância reguladora da saúde previdenciária. Desta forma, criou-se o Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária (CONASP), o qual era integrado por membros dos ministérios da Previdência Social, Saúde e Educação, e tinha como principal finalidade propor normas mais adequadas para a prestação da assistência à saúde, bem como indicar a alocação de recursos financeiros e propor medidas de avaliação e controle do sistema de atenção médica (MENDES, 1995MENDES, E.V. As políticas de saúde no Brasil nos anos 80: a conformação da reforma sanitária e a construção da hegemonia do projeto neoliberal. In:MENDES, E.V. Distrito sanitário. O processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: HUCITEC, 1995.). Na portaria há uma consideração bastante importante que revela a crise política institucional do modelo assistencial hegemônico naquele período, o médico-assistencial privatista, e apresenta, parcialmente, algumas das medidas que o CONASP havia sugerido.

Considerando que o CONASP, que conta com a participação de todos os setores interessados, já tem praticamente concluída, para exame final deste Ministério, uma proposta de reorientação global dos serviços de assistência médica, a ser implantada progressivamente, com vistas ao estabelecimento de um novo modelo de atendimento que: a) a partir do estabelecimento de uma rede primária de atendimento e da hierarquização e regionalização dos serviços médicos, assegure a melhor utilização dos serviços próprios governamentais, a resolução, a nível ambulatorial, da grande maioria dos atendimentos; b) mediante a racionalização e controle dos encaminhamentos, promova a elevação da produtividade da rede governamental e contratada e reprima a tendência à realização de exames, serviços e internações desnecessárias, assim como ao uso excessivo e dispendioso de procedimentos de alta sofisticação tecnológica [...] (BRASIL, 1982BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria n° 3.046 de 20 de julho de 1982. Estabelece os parâmetros para credenciamento, contratos e convênios na área de assistência médica da Previdência Social. 3. ed. Brasília: Coordenadoria de Comunicação Social/MPAS, 1983.).

No entanto, na mesma Portaria se admitia que até que se efetivassem as ‘correções já estudadas’ era necessário adotar uma política cautelosa no que se referia à expansão da rede assistencial de forma a não comprometer os recursos orçamentários (BRASIL, 1982BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria n° 3.046 de 20 de julho de 1982. Estabelece os parâmetros para credenciamento, contratos e convênios na área de assistência médica da Previdência Social. 3. ed. Brasília: Coordenadoria de Comunicação Social/MPAS, 1983.). Importa fazer aqui uma digressão para dizer que se por um lado esse esforço do CONASP contribui com a consolidação do projeto neoliberal de saúde, por outro criou um mecanismo — as Ações Integradas de Saúde — que favoreceu a criação do SUS,

Há dois aspectos que devem ser retomados para melhor esclarecimento de como a linguagem serve ao discurso, ocultando-o, enquanto subjetividade ideológica, e, por outro, o desvelando, possibilitando, mediante um trabalho analítico, a sua identificação. O primeiro aspecto, um fato de linguagem, refere-se ao texto que justifica a edição da portaria:

[...] o sistema atualmente em vigor se ressente de reduzidos índices de produtividade e resolutividade, subtilizãção de serviços próprios e insatisfatória qualidade de atendimento, além de resultar em numerosas distorções e gastos crescentes e imprevisíveis, dada a inexistência de mecanismos adequados de correção, contenção e fiscalização. (BRASIL, 1982BRASIL. Ministério da Previdência e Assistência Social. Portaria n° 3.046 de 20 de julho de 1982. Estabelece os parâmetros para credenciamento, contratos e convênios na área de assistência médica da Previdência Social. 3. ed. Brasília: Coordenadoria de Comunicação Social/MPAS, 1983.).

O sistema ao qual a portaria se refere é o Sistema Nacional de Saúde (SNS), criado pela Lei n° 6.229 de 1975, cuja direção competia ao Ministério da Saúde, responsável pelas açóes e serviços de saúde pública e ao Ministério da Assistência e Previdência Social, responsável pela assistência médica.

A ênfase que havia sido dada à assistência médica, principalmente com a criação do Instituto Nacional da Previdência Social (INPS) e prosseguiu com o INAMPS, consagrou o modelo médico-assistencial e o modificou no Projeto Neoliberal da Saúde (PNS). O fato empírico é que essa assistência era amplamente prestada por serviços privados, contratados e conveniados ao Sistema Nacional de Saúde, os quais operavam sem controle, avaliação, auditoria pelo INPS, que, ainda assim, os financiava (MENDES, 1995;MENDES, E.V. As políticas de saúde no Brasil nos anos 80: a conformação da reforma sanitária e a construção da hegemonia do projeto neoliberal. In:MENDES, E.V. Distrito sanitário. O processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: HUCITEC, 1995. ESCOREL, 1998ESCOREL, S. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1998.), Isso fez com que o SNS merecesse no relatório final da VIII Conferência Nacional de saúde (CNS), a seguinte crítica:

[...] na área da saúde, verifica-se um acúmulo histórico de vicissitudes, que deram origem a um sistema em que predominam interesses de empresários da área médico-hospitalar. O modelo de organização do setor público é anárquico, pouco eficiente e eficaz, gerando descrédito junto à população. (BRASIL, 1987).

É preciso ressaltar que de 1964 a 1974, ano em que o INAMPS foi criado, a economia brasileira obteve significativo crescimento, seguindo-se, então, uma profunda recessão econômica durante os anos 1980 (SINGER, 1989SINGER, P. A crise do milagre: interpretação crítica da economia brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1989.). Foi neste período que a classe capitalista que opera no setor de saúde se reorganizou, fortalecendo o subsistema de assistência médica supletiva, em substituição aos subsistemas contratados conveniados tradicional e moderno (MENDES, 1995MENDES, E.V. As políticas de saúde no Brasil nos anos 80: a conformação da reforma sanitária e a construção da hegemonia do projeto neoliberal. In:MENDES, E.V. Distrito sanitário. O processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: HUCITEC, 1995.).

O outro aspecto diz respeito ao argumento de que os parâmetros adotados pela portaria são internacionalmente recomendados. Ela não faz referência concreta a quem conduz essa chancela, porém, fica evidente que ao proceder com um estudo da própria realidade de necessidades de assistência à saúde, considerando a diver-sidade típica de um país continental, optou por provocar um efeito de convencimento no leitor, ressaltando a ‘recomendação internacional’. De acordo com a análise de discurso, pode-se afirmar que a redação desvela subjetividade discursiva ideológica colonialista, e, com ela, busca alcançar o consentimento do leitor, um gestor do sistema público de saúde.

Os parâmetros estabelecidos por essa portaria vigoraram durante 20 anos, até serem substituídos, sem alteração de metodologia, em 2002, pela GM/MS n° 1.101.

Portaria GM/MS n° 1.101/02

A Portaria GM/MS n° 1.101/02 foi publicada com o objetivo de ‘atualizar’ os parâmetros assistenciais estabelecidos pela antiga MPAS n° 3.046/82, considerando,

[...] a necessidade, requerida pelos gestores e pela sociedade em geral, da revisão dos parâmetros assistenciais em uso no SUS, datados de mais de 20 anos, face aos avanços verificados em vários níveis de complexidade do sistema de saúde e às necessidades da população; e a necessidade, imediata, apontada pelos gestores dos três níveis de governo, do estabelecimento de parâmetros como instrumentos de planejamento, controle, regulação e avaliação do SUS. (BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 1.101, de 12 de junho de 2002. Estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Diário Oficial.).

Ao estabelecer os novos parâmetros de cobertura assistencial na Portaria 1.101/02, tomou-se como base a composição da tabela do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) — SUS, e apresentaram-se valores de referência para um elenco de consultas e procedimentos bem mais extenso que o da Portaria n° 3.046/82. Foram estabelecidos parâmetros de cobertura das consultas médicas de urgência, especializadas, cirurgias ambulatoriais especializadas, procedimentos traumato-ortopédicos, ações especializadas em odontologia, patologia clínica, anatomopatologia e citopalogia, radiodiagnóstico, exames ultrassonográficos, diagnose, fisioterapia, terapias especializadas, próteses e órteses, anestesia, ressonância magnética, medicina nuclear in vitro, tomografia computadorizada e hemoterapia, entre outros.

Os parâmetros estabelecidos na portaria GM/MS n° 1.101

[...] representam recomendações técnicas ideais, constituindo-se em referências para orientar os gestores do SUS dos três níveis de governo no planejamento, programação e priorização das ações de saúde a serem desenvolvidas, podendo sofrer adequações regionais e/ou locais de acordo com realidades epidemiológicas e financeiras. (BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 1.101, de 12 de junho de 2002. Estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Diário Oficial.).

Nesta portaria, enfatiza-se que os parâmetros “destinam-se a orientar os gestores no aperfeiçoamento da gestão do SUS”, se constituindo em subsídios para analisar a necessidade da oferta de serviços assistenciais, auxiliar na elaboração do planejamento e da programação pactuada e integrada da assistência à saúde e colaborar para o acompanhamento, controle, avaliação e auditoria dos serviços de saúde no âmbito do SUS (BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 1.101, de 12 de junho de 2002. Estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Diário Oficial.).

Antes da publicação desta portaria, o Ministério da Saúde submeteu os parâmetros a um processo de consulta pública que possibilitou a participação de maior número de indivíduos e grupos, ampliando a discussão para além do grupo técnico responsável por este projeto no âmbito da Secretaria de Assistência à Saúde (SAS), o que conferiu mais legitimidade democrática aos parâmetros estabelecidos na 1.101. Nesse sentido, a portaria ressalta que houve

[...] ampla discussão sobre o estabelecimento de parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do SUS, que possibilitou a participação efetiva da comunidade técnico-cientifica, das entidades de classe, dos profissionais de saúde, dos gestores do SUS e da sociedade em geral, na sua formulação, através da Consulta Pública SAS/MS nº 01, 08 de dezembro de 2000 [...] (BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 1.101, de 12 de junho de 2002. Estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Diário Oficial.).

Com exceção desta consulta pública, a metodologia utilizada na construção dos parâmetros estabelecidos na Portaria foi idêntica ao método de elaboração dos parâmetros da 3.046, ou seja, com base nos:

[...] parâmetros assistenciais, internacionalmente reconhecidos, inclusive os baseados em dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Panamericana de Saúde (OPAS), para cobertura e produtividade assistencial nos países em desenvolvimento; nas estatísticas de atendimento prestado aos usuários do SUS, e as incidências nacionais, por especialidade, dos últimos três anos; número de internações hospitalares, de consultas médicas, odontológicas, de enfermagem e outras, de serviços complementares, inclusive de diagnose e terapia, com base em estudos e pareceres de especialistas, parâmetros assistenciais desenvolvidos e praticados em vários Estados da Federação, estudos do Ministério da Saúde, realizados com a participação de técnicos dos demais níveis de gestão do SUS e de várias instituições de saúde do país; e na Portaria MPAS nº 3.046, de 20 de julho de 1982. (BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 1.101, de 12 de junho de 2002. Estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Diário Oficial.).

Observa-se também uma lacuna na metodologia utilizada na construção destes parâmetros, que estimam necessidades assistenciais e se inserem no âmbito da média e alta complexidade do sistema de saúde, Ainda assim, não se considerou a influência da extensão e do perfil da atenção básica de determinado território na demanda por assistência especializada. Esta ausência revela e reforça a dicotomia da constituição das políticas de saúde atuais, pois enquanto o Ministério da Saúde preconiza e incentiva financeiramente a expansão da atenção básica, por meio da Estratégia de Saúde da Família, por outro lado não dá subsídios políticos e financeiros para a expansão da atenção especializada, a fim de que se torne suficiente para atender às demandas suscitadas por este aumento.

Outro aspecto bastante interessante na Portaria GM/MS n° 1.101 é que os valores de alguns parâmetros, por exemplo o de necessidade de consultas especializadas de traumato-ortopedia, oftalmologia, psiquiatria, neurologia, entre outras especialidades, são idênticos nas duas portarias. É o caso do valor estimado de necessidade de consultas psiquiátricas, o que equivale a 2,2% do total tanto na de n° 3.046/82 quanto na 1.101/02. Não há justificativa tecnicamente coerente para a manutenção desses números, pois o contexto da política de saúde vigente na década de 1980 é bem distinto do atual, particularmente no que tange às diretrizes da Política de Saúde Mental, hoje preconizando a desospitalização e o acompanhamento ambulatorial dos usuários com sofrimento psíquico.

As observações apontam para além dos aspectos metodológicos da construção dos parâmetros, registrando, fundamentalmente, incoerência ético-política destes com o objetivo (declarado) da 1.101: dar subsídios para estimar necessidades assistenciais e, assim, aperfeiçoar a gestão do SUS. A semelhança na constituição dos parâmetros das duas portarias, criadas em épocas distintas e com objetivos (aparentemente) diferentes, sugere que haja permanência, ainda que velada, da diretriz política de racionalização de gastos na orientação da portaria nº 1.101/02.

Outro ponto que chama a atenção na 1.101 é o estabelecimento de parâmetros para estimar a ‘capacidade de produção’ de alguns trabalhadores da saúde, conforme mostra oQuadro 1. Tomando como exemplo o profissional fisioterapeuta, cujos recursos terapêuticos são a cinesioterapia (exercícios físicos), clctrotcrmotcrapia (uso de aparelhos que produzem ondas ultrassônicas ou eletromagnéticas que requerem atenção na definição da dose e forma de aplicação), recursos terapêuticos manuais (manipulações vertebrais e massoterapia, quando só é possível atender um paciente por vez), etc, e observando o parâmetro estabelecido nesta portaria (4,4 atendimentos/hora) para medir sua capacidade de produção, é possível concluir que:

  1. a. é pouco provável que atenda usuários com agravos neurológicos, reumatológicos ou, ainda, pacientes pediátricos que, comumente, apresentam maior grau de limitação de movimento e empreender projetos terapêuticos bem-sucedidos para quatro pacientes em apenas uma hora;

  2. b. não é possível, para qualquer profissional da área da saúde, prestar assistência que seja resolutiva a um paciente sem dispor de tempo suficiente para o estabelecimento de vínculo, acolhimento e responsabilidade no processo de circulação de afeto usuário-terapeuta.

Mesmo que o texto da portaria 1.101 acrescente que esses parâmetros possam sofrer adequações regionais e/ou locais de acordo com realidades epidemiológicas e financeiras, ou de acordo com ”convenções sindicais, dissídios coletivos das respectivas categorias profissionais e/ou adoção de políticas de saúde específicas, pelo gestor”, na prática, observa-se que a maioria dos gestores da saúde e técnicos de planejamento se limitam a observar os parâmetros já instituídos pela portaria (BRASIL, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n° 1.101, de 12 de junho de 2002. Estabelece os parâmetros de cobertura assistencial no âmbito do Sistema Único de Saúde – SUS. Brasília: Diário Oficial.).

Neste ponto, é possível reconhecer na orientação da portaria em tela um grave problema que impede de fato a materialização do atendimento das necessidades em saúde, haja vista que para isso há de se atentar para ofertar condições satisfatórias de trabalho. Um exemplo marcante dos problemas gerados pela 1.101 é a definição apenas quantitativa e objetiva, além de desumanizadora, dos parâmetros de produtividade dos profissionais de saúde.

Quadro 1.
Capacidade de produção, em consultas, de alguns recursos humanos da área de saúde

Considerações Finais

Neste estudo, a subjetividade discursiva e ideológica da racionalização de gastos do modelo residual de políticas sociais não precisou ser desvelada na Portaria n° 3.046/82, em que os sentidos produzidos foram de instituir um mecanismo de controle, avaliação e auditoria para verificar a produtividade e resolutividade e evitar desperdícios financeiros; favorecer a consolidação dos princípios de focalização, descentralização e privatização nos subsistemas estatal (que pretendeu implementar um modelo residual de atenção primária), de atenção médica supletiva e alta tecnologia, ou seja, do Projeto Neoliberal da Saúde.

Na Portaria n° 1.101/02, a racionalização de gastos como subjetividade discursiva e ideológica se oculta, de maneira que é preciso um esforço analítico para fazerlhe desvelar, principalmente na conservação do método que estima as necessidades de saúde, e na insistência de desconsiderar toda a população como usuária do SUS, promovendo um silencioso deslize substitutivo da categoria universalidade por duas outras: SUS-dependente e Subsistcma de Atenção Médica Supletiva dependente (SAMS-dependente).

A permanência da diretriz da racionalização de gastos do modelo residual de políticas sociais é condicionada pela política econômica de ajuste fiscal que inicia na década de 1980 e chega até o ano de publicação da Portaria n° 1.101. As medidas econômicas atingem as políticas sociais de modo que, durante todo o tempo, há tensão de sentidos: desenvolver-se de acordo com os pressupostos estabelecidos na Constituição Federal de 1988, os quais se pautam pelo modelo institucional-redistributivo de políticas sociais, ou praticar o mesmo, ou seja, a modalidade residual de políticas sociais.

Por fim, importa dizer que este é um estudo que busca participar, ainda que de maneira incipiente e modesta, no esforço científico, filosófico e ideológico de consolidação do Projeto da Reforma Sanitária, particularmente do campo específico de acesso universal, equânime e integralizado às ações e serviços de média complexidade.

As convocatórias para empreendimentos desse tipo têm sido feitas. E uma delas faz questão de destacar:

[...] mais do que nunca há necessidade de nos metermos em uma empreitada fibsófica, teórica e prática que procurasse responder a esses desafios de maneira inovadora. Como recuperar a vontade dos indivíduos, grupos e coletividades, de maneira a compor-se uma massa crítica apta a construir novos projetos. Projetos críticos e alternativos ao senso comum, ao niilismo e à mixórdia neoliberal [...] (CAMPOS, 1997, p. 29CAMPOS, G.W.S. Considerações sobre a arte e a ciência da mudança: revolução de coisas e reforma das pessoas. O caso da saúde. In: CECÍLIO, L.C.O. (Org). inventando a mudança na saúde. São Paulo: HUCITEC, 1997.).

Neste estudo também se buscou estabelecer um diálogo entre a saúde coletiva e a análise do discurso, e entende-se que isso pode contribuir com a tarefa de consolidação do Projeto da Reforma Sanitária, pois o manejo dos princípios e procedimentos dessa ciência pode ajudar a identificar não apenas o conservadorismo e o reacionário, mas também o que se alia ao novo e à concepção de saúde como direito de cidadania.

  • Suporte financeiro: Não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2012

Histórico

  • Recebido
    Abr 2011
  • Aceito
    Jun 2012
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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