RESUMO
Este artigo relata a experiência de três encontros com usuários de um Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPS ad), onde o tema discutido foi o conceito de crise dentro do contexto do uso de álcool e outras drogas. Este relato traz como possibilidade a problematização do conceito de crise, ressaltando que a leitura desse fenômeno se faz imprescindível para o tratamento de usuários de substâncias psicoativas. Pôde-se perceber que os usuários consideram a crise como algo distinto da reincidência do uso. Eles atribuem sua origem às condiçôes materiais da existência e aos afetos e, diante da crise, tendem a colocar a unidade de saúde no lugar de 'salvadora'.
PALAVRAS-CHAVE:
Intervenção na Crise; Transtornos Relacionados ao Uso de Substâncias; Terapêutica; Serviços de Saúde Mental
ABSTRACT
This article reports the experience of three meetings with users of o Psychosocial Care Centers (CAPS ad), where the topic discussed was the concept of crisis within the context of alcohol and other drugs. This report provides a possibility questioning the concept of crisis, noting that the reading of this phenomenon is indispensable for the treatment of drug users. It was noticed that users consider the crisis as something distinct form recurrence of use. They attribute their origin to the material condition of existence and the affections, and after the crisis, tend to pul the health unit in place of 'saving'
KEYWORDS:
Crisis Intervention; Substance Related Disorders; Therapeutics; Mental Health Services
Introdução
[...] olho meus companheiros, estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças [...] O presente é tão grande, não nos afastemos. Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas. (ANDRADE, 2009, p. 99ANDRADE, C.D. Sentimentos do mundo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.).
As políticas voltadas para o tratamento do uso de álcool e outras drogas vêm demonstrando, de maneira inequívoca, a importância do processo de cuidado ao usuário, especialmente nas dimensões da prevenção e da promoção da saúde. O exercício do cuidado em um Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e outras drogas (CAPS ad) requer lidar com singularidades, sendo que as intervenções desenvolvidas devem promover as potencialidades e a autonomia dos usuários diante da vida, numa negociação permanente entre os diferentes temas, inclusive o conceito de 'crise', o qual acreditamos ser capaz de produzir novas possibilidades de atenção.
A escolha das situações de crise como tema de uma atividade dirigida na Oficina de Redução de Danos nos ofereceu um caminho promissor e desafiador, pois colocou no centro da discussão a direção do tratamento, o grau de liberdade, de corresponsabilidade daquele que está se tratando. Essa discussão implicou na necessidade de repensar o vínculo dos usuários com os profissionais que conduzem as estratégias de cuidado no CAPS ad, que são corresponsáveis pelo tratamento.
A palavra crise em seu sentido etimológico é carregada de elementos que trazem um amplo sentido, referentes à mudança, desequilíbrio, separação, que podem conduzir à construção de rearranjos inéditos e pode remeter a aspectos sociais, históricos, familiares e pessoais. Esse conceito é amplamente usado cm diversas áreas do conhecimento, como na sociologia, economia, política, psicologia, psicopatologia, etc.
Contudo, conforme Ferigato, Campos e Ballarin (2007)FERIGATO, H.; CAMPOS, O.; BALLARIN, L O atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Revista de Psicologia da UNESP, São Paulo, v. 6, n. 1, 2007, p. 31 -44., quando tentamos especificar a crise dentro do próprio campo da saúde mental, encontramos diferentes teorias sobre a caracterização desse episódio. Não há, portanto, uma perspectiva inabalável do que seja esse momento e das vicissitudes que permeiam essa experiência. Nesse sentido:
[...] a crise pode ser designada como uma experiência em que há algo insuportável, no sentido literal de não haver suporte, experiência que nos habita como um abismo de perda de sentido, em que se perdem as principais ligações. Este abismo se manifesta como um excesso de força pulsional que rompe a capacidade de simbolização, mas, ao mesmo tempo, instaura uma eminente exigência de ligações até então inexistentes. (KNOBLOCH, 1998, p. 35KNOBLOCH, F. O tempo do traumático. São Paulo: Escuta, 1998. 33 p.).
O interesse em trabalhar o tema da crise dentro do grupo de Redução de Danos surgiu a partir de questionamentos que nós levantamos sobre a ausência de debates acerca desse conceito, no que se refere à literatura e à clínica voltadas para usuários de álcool e outras drogas. Questionamos o motivo pelo qual, aparentemente, essa noção está sendo usada apenas na clínica com psicóticos ou neuróticos graves, além da ausência de produções sobre essa temática dentro do contexto de uso de substâncias psicoativas.
Nesse sentido, o intuito deste trabalho é compartilhar essa experiência e, a partir das discussões suscitadas, apontar para a potencialidade do conceito de crise na atenção ao usuário de drogas, aventando sobre quais seriam as interlocuções possíveis entre esse conceito e essa clínica.
O caminho percorrido
A atividade que iremos relatar foi realizada durante o mes de janeiro de 2011, em um CAPS ad localizado no distrito sanitário Cabula-Beiru, em Salvador (BA). Nós, enquanto psicólogas residentes, propusemos a 'crise' como temática a ser trabalhada na Oficina de Redução de Danos, a qual é conduzida por um técnico do referido serviço. As atividades desenvolvidas aconteceram uma vez por semana, com duração de duas horas cada encontro, contando com um total aproximado de 70 usuários.
O serviço supracitado foi escolhido como cenário por apresentar sintonia com os pressupostos da Reforma Psiquiátrica e do Sistema Único de Saúde (SUS). Inaugurado cm 2004, o CAPS ad funciona como dispositivo de saúde mental que tem por objetivo possibilitar a convivência e resgatar a cidadania do usuário de substâncias psicoativas, através de um universo múltiplo de atividades, oficinas, vivências do cotidiano e grupos terapêuticos.
Essa oficina de Redução de Danos segue a linha ideológica do Ministério da Saúde (BRASIL, 2003BRASIL. Ministério da Saúde. Político de álcool e outras drogas. Brasília; Ministério da Saúde, 2003.) e oferece uma via próspera, porque reconhece cada usuário em suas singularidades, traça com ele estratégias voltadas não para a abstinência, mas para a defesa da vida.
A perspectiva de desenvolver um trabalho em defesa da vida nos levou a conduzir uma discussão sobre a crise. Procuramos construir um lugar de participação no grupo, de tal modo que a nossa presença fosse aceita e pudéssemos mergulhar em um universo tão singular e discutir um tema pouco explorado.
Nosso primeiro encontro
Durante nosso primeiro encontro na Oficina de redução de danos, adotamos como metodologia de trabalho a discussão participativa sobre a temática. Sugerimos o tema 'crise' para discussão e ficamos com a sensação de que se criou uma fresta na ordem da oficina, uma instância que pareceu caótica, pois todos nos olhavam e pareciam não ter entendido o que estávamos propondo. Durante alguns minutos, houve silêncio, até que o depoimento de um usuário associou 'crise' à 'crise mundial', 'crise econômica'. Acreditamos ter sido uma tentativa de criar arranjos de significação diante de um tema que não se compreendia ao certo e que, portanto, exigia a circunscrição da palavra na materialidade de uma nova discussão.
Nesse momento, esclarecemos aos usuários que, quando propusemos esse tema, estávamos na verdade nos referindo à nossa crise pessoal, aos momentos mais difíceis pelos quais passamos. Diante dessa observação no grupo, o primeiro passo desencadeado com o tema foi a construção de significados com o encadeamento de significantes. A crise pessoal, segundo os usuários, era referida como os momentos em que 'o bicho pegou'. Para o uso de substâncias psicoativas (SPA) empregaram diversas nomenclaturas, mas nenhuma as colocava enquanto situação de crise. Esses momentos de recaída ou reincidência foram chamados de 'desceu a ladeira', 'já era', etc. Muitas foram as terminologias apresentadas entre sorrisos e piadas, e nessas falas o que estava presente era que o consumo exacerbado ocorria no fim, era como se fosse o desfecho daquela situação de crise, situação na qual 'o bicho pegou'. Nesse sentido, a crise e a reincidência do uso eram consideradas como situações diferentes, que poderiam ou não ser sequenciais.
Sobre o que provocaria essa crise, um elemento importante a ser considerado é que muitos usuários tenderam a dar como justificativa as condições materiais de existência, como a falta de emprego, a falta de dinheiro ou, ainda, ao rompimento de vínculos afetivos. Sobre esse ponto, Sterian (2001)STERIAN, A. Emergências psiquiátricas: uma abordagem psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. 100 p., elucida que uma leitura possível é considerar que aquilo que abre as portas para que determinado evento se torne traumático na vida de alguém não é apenas sua intensidade ou eficácia patogênica, mas esse evento precisa encontrar inserção em uma dada organização psíquica que apresente pontos de ruptura específicos.
Nesse sentido, não é a perda de emprego, por exemplo, enquanto fato objetivo, que produz a crise, mas sim a forma como perder o emprego ressoa em uma determinada subjetividade. Chamamos a atenção para a forma como o que é externo é também interno e ressaltamos com isso que não pretendemos desconsiderar os efeitos que as condições materiais de existência têm na vida dos sujeitos, mas sim problematizar o modo pelo qual a relação com a precariedade ocorre de forma tão variada. Um exemplo disso seria que tanto a falta, como o excesso de dinheiro, foram apontados pelos usuários como elementos que provocariam uma crise. Assim, não se trata do dinheiro em si, mas do modo como cada um se relaciona com ele.
Nosso segundo encontro
Durante o segundo encontro, objetivamos trabalhar o tema 'por que a crise acontece?'. É importante ressaltar que nosso objetivo não foi o de desvendar o motivo pelo qual os sujeitos entram em crise, muito menos cogitamos que esses usuários conseguiriam entrar em contato com seus conteúdos mais recalcados para nos relatar de forma cursiva o motivo pelo qual isso ocorre. Buscamos apenas identificar quais as leituras que eles faziam sobre esse momento.
Essa segunda atividade foi operacionalizada utilizando o recurso da música interpretada pelo grupo Ira, intitulada Flerte Fatal, por entender que a música possui uma dimensão lúdica que favorece a expressão:
São Paulo 5:03 da manhã sinto a ferrugem, telefone continua calado. Chego em casa tomo meu whisky e alimento mais a minha solidão. O gosto amargo insiste em permanecer no meu corpo Corpo...corpo...está nú... Gelado com o peito ardendo, gritando por socorro, preste a cair do 14° andar... A sacada é curta, o grito é inevitável.. Eu vou acordar o vizinho, eu vou riscar os corpos, eu vou te telefonar.., E dizer que eu só preciso dormir... Tanta gente hoje descansa em paz. Um rock star agora é lenda. Esse flerte é um flerte fatal Esse flerte é um flerte fatal. Que vai te consumir. Em busca de um prazer individual. Esse flerte é um flerte fatal. É sempre gente muito especial. Muita gente já ultrapassou. A linha entre o prazer e a dependência. E a loucura que faz. O cara dar um tiro na cabeça. Quando chegam além. E os pés não tocam mais no chão. Esse flerte é um flerte fatal (SCANDURRA, 2004SCANDURRA, E. Flerte fatal. In: Ira Acústico MTV. Sony BMG Brasil, 2004 1 Disco Sonoro. Faixa 3 (3min 26s).).
Outra tecnologia utilizada foi a apresentação de duas gravuras com personagens fictícios e a seguinte questão: por que eles usam drogas? Com a utilização desses recursos, intencionamos que os usuários pudessem se aprofundar na discussão sobre aqueles momentos cm que 'o bicho pegava'.
Durante boa parte da atividade, alguns usuários fizeram piadas sobre o personagem do clipe, fazendo referências que sugeriam que o mesmo estava 'doidão', que tinha uma Vida muito louca'. É importante acrescentar que tantas piadas e brincadeiras provavelmente tinham a função de diluir o sofrimento que aquelas lembranças provocavam. Poderia se tratar, também, de um recurso para a negação, que possibilitava não entrar plenamente em contato com aqueles conteúdos.
Enquanto alguns brincavam, outros falavam também de suas vidas, contavam experiências dolorosas de dias seguidos sem se alimentar devido ao uso extremamente intenso de alguma substância. Relatavam situações de violência domestica que cometeram cm decorrência desse uso, alguns apresentando remorso pela família perdida, principalmente pelo amor que também se perdeu.
Nesse momento do grupo, os usuários demonstraram pesar e saudosismo, acompanhados de um questionamento acerca da causa de tudo isso. Alguém questionou qual teria sido o motivo pelo qual começara a usar drogas. A partir desse instante, falaram sobre a solidão, sobre como chegaram até ali'. Outro usuário colocou que tudo está no 'porquê' das coisas, mas que ninguém sabe explicá-lo. Surgiu finalmente a interrogação dentro do grupo.
Diante das perguntas postas, emergiram as tentativas de explicá-las, de dar um nome e uma resposta a isso que não se sabe: 'terá sido o corno que ele levou da mulher e aí deu um desespero na vida?', 'Será que é por que mora sozinho?', 'É por que é poeta?', 'Por que o pai morreu quando ele ainda era criança?', 'Por que ele tem dinheiro?', 'Por que ele precisa ficar alegre?', 'Para ter coragem para enfrentar o pai?'. É importante salientar que os conteúdos levantados relacionavam elementos afetivos a situações críticas.
No momento seguinte, outro usuário fala que é em um momento específico que 'tudo muda', algo aconteceu na sua vida e você fez finalmente a 'curva do rio'. Sobre essa reflexão, observa-se a referencia à presença de um nó crítico, um momento decisivo na vida do sujeito, onde ele ou faz a curva, ou consegue se resgatar. Aparentemente, uma vez feita a curva do rio, não há como retornar ao mesmo ponto de partida.
Muito importante foi a leitura de outra usuária, que colocou que 'o equilíbrio vem depois', como a bonança após a tempestade. Sobre isso, é importante acrescentar que essa observação reflete bem a noção de crise endossada nesse artigo, onde o desequilíbrio é seguido por um equilíbrio possível.
Nosso terceiro encontro
A atenção à crise nos mostra a necessidade de dialogar com diversos atores presentes na vida do usuário: a vizinhança, a família, a escola. Todas as pessoas que habitam o território e que, de algum modo, fazem parte da rede relacional devem ser incluídas no manejo clínico. O papel da equipe seria o de realizar as mediações necessárias a fim de que os projetos terapêuticos sejam efetivados.
Dessa forma, nesse terceiro encontro buscamos propor algumas reflexões a respeito de quais as estratégias e recursos utilizados pelos usuários diante do enfrentamento das situações de intenso sofrimento e fragilidade. Para tal, usamos como ponto de partida a seguinte pergunta norteadora: 'O que fazer quando o bicho pega?' Essa pergunta teve como objetivo a identificação do problema, das repercussões desse no indivíduo, na sua vida, nas suas relações, bem como as estratégias utilizadas e as lições que a crise pode ofertar.
De modo geral, os participantes pontuaram o papel do CAPS ad em suas vidas enquanto espaço físico e subjetivo de suporte. Relataram o quanto se sentiam acolhidos e protegidos, referendando os profissionais como 'aqueles que salvaram suas vidas'.
Percebemos que a gran de maioria dos participantes colocava a instituição e até os profissionais como seus salvadores, em detrimento de toda a sua rede social e de todas as possibilidades que poderiam surgir a partir da circulação pela cidade e do estabelecimento ou fortalecimento de vínculos sociais.
Durante o manejo das discussões, tentou-se interpelar os usuários a respeito de outras possibilidades de suporte, outros caminhos simbólicos e concretos para o exercício do autocuidado, como a família, amigos, religião, etc. Alguns usuários mais novos na instituição e que apresentavam maior adesão ao tratamento conseguiram pontuar a descoberta de outras possibilidades de recursos para o enfrentamento da crise, e a manutenção da abstinência ou alteração do padrão de consumo, quando era o caso.
Dentre as possibilidades sinalizadas por alguns usuários para o cuidado durante as situações de sofrimento intenso, estava a retomada de laços afetivos ou a descoberta de novos hábitos, como 'escrever poesia', 'sair para caminhar quando a cabeça não para de rodar', 'dormir', etc. Mas, de forma geral, a maioria dos usuários não conseguiu apontar, além do CAPS ad, outras vias para o acolhimento dos sinais que a crise apresenta ou para lidar com a recaída, a reincidência ou a abstinência. É necessário salientar que os usuários mais graves, no que se refere à intensidade do uso da substância, que referendaram o CAPS ad como único local de cuidado, são os que apresentam uma maior precariedade de recursos materiais e rede de suporte externa.
O uso de drogas pode estar diretamente relacionado a uma 'impossibilidade do sujeito em responder as interpelações que o viver lhe apresenta, configurando-se, nesse momento, como única forma de expressão possível. A intensidade de tal experiência subjetiva é mais dramática quando diz respeito a
quem é mais sozinho, com menores recursos, com menores meios cognitivos e de relação com o mundo externo. (DELL' ACQUA; MEZZINA, 1991, p. 60DELL' ACQUA, G.; MEZZINA, R. Resposta à crise. In: DELGADO, I (Org.). A loucura na sala de jantar. São Paulo: Resenha, 1991.).
Reflexões sobre o percurso
Os conteúdos apresentados por esses usuários nos fizeram chegar a algumas reflexões mais gerais sobre a crise. Para os mesmos, ela é outra coisa diferente da reincidência ou mesmo da recaída. A crise é quando 'o bicho tá pegando', a reincidência é quando 'já era', 'já desceu a ladeira'. Sendo que, na ordem das experiências, primeiro 'o bicho pega', podendo ser seguida daquilo denominado como 'já era'.
Isso pode nos levar a crer que o momento mais importante de manejo seria aquele que antecede a reincidência. A perspectiva apresentada pelos usuários aponta para a necessidade de atuar, de intervir no momento cm que 'o bicho tá pegando', para que suas consequências sejam menos danosas e para que se possa talvez evitar esse 'já era' como desfecho.
Outro ponto importante é que, na tentativa de dar sentido, de achar um motivo para esse uso, ocorreu uma tendência a atribuí-lo sempre a um elemento objetivo. Isso se constitui em uma falácia na medida em que aos sujeitos não é possível, a partir da perspectiva psicanalítica, o acesso direto aos seus conteúdos recalcados. Por outro lado, não se pode deixar de considerar a influência importante desses elementos externos, O engodo é concluir que esses são os motivos pelos quais se usam drogas, acreditar que a caixa de Pandora foi finalmente aberta. Há que se considerar que tais elementos externos podem reverberar em uma dada subjetividade, e desse encontro pode surgir a desorganização.
Por fim, consideramos extremamente preocupante quando os usuários colocam o serviço ou os profissionais que nele trabalham na condição de 'salvadores'. Essa perspectiva endossa o exercício de uma 'tutela humanizada', especialmente quando os profissionais não conseguem fazer essa leitura e deixam de investir na rede social desses usuários, passando a ocupar esse lugar de 'salvação'. Quando isso acontece, o serviço deixa de ser para aquele usuário uma unidade de portas abertas, e passa a ser um serviço que, por 'salvá-lo', o aprisiona, porque sem esse serviço ele estará perdido.
O percurso em nós
Reflexões e afetos diversos foram os resultantes dos encontros com esses sujeitos que vivenciam de forma muito particular e intensa o uso de SPA. Iniciamos essa atividade com muita curiosidade acerca do que a 'crise' significava dentro da clínica voltada para usuários de álcool e outras drogas, uma vez que os trabalhos encontrados não faziam referência a esse conceito, mas sim a conceitos como 'reincidência' e 'recaída', usando essas nomenclaturas quase como sinônimas à crise.
Estávamos, nesses encontros, buscando efetivamente descobrir o que significava a crise para os usuários do serviço, e nos angustiávamos diante da possibilidade desse conceito não ter aplicabilidade dentro dessa clínica.
O contato com os usuários, nessa oficina, nos permitiu compreender, por meio de seus questionamentos, olhares e discursos, que a vivência da crise compreende uma experiência complexa que não se reduz ao uso de uma substância, mas que é, antes de tudo, marcada por dor e sofrimento, que muitas vezes leva esses usuários a situações limite, nas quais a própria vida está em jogo, seja em seus aspectos materiais, subjetivos ou físicos.
Compreendemos que a crise, para cada um deles, tem um significado que é próprio de cada realidade psíquica. Todos tentaram, ao seu modo, dar um sentido a essa experiência, explicá-la ou justificá-la, mas foi a noção de que a crise não era o uso mortífero em si, o que mais nos surpreendeu e o que mais nos sinalizou para a importância de ter sensibilidade e disponibilidade para esse encontro e para o cuidado em saúde mental
Percebemos, a partir desses encontros, a necessidade de compreender a crise, a dor e o sofrimento humano com todas as suas vicissitudes, assim como a exigência de uma escuta que nos permita, enquanto profissionais, auxiliar esses sujeitos a avançarem nas suas descobertas, utilizando métodos mais criativos, que encontrem na cidade novas possibilidades de existência, Essas reflexões chamam a atenção para a necessidade de eliminarmos abordagens e atendimentos simplistas, que reduzem os sujeitos ao consumo de uma substância, vulgarizando-os e colocando-os em local pejorativo.
Considerações finais
A concepção de crise, no campo da saúde mental, muitas vezes parece ser exclusiva da clínica voltada aos psicóticos ou neuróticos graves. Entender a crise dessa forma é um equívoco que acaba limitando não só o conceito de saúde mental, como também empobrece as possibilidades de manejo com usuários de drogas,
No caso da clínica com psicóticos, estamos nos referindo a uma noção de crise que é própria da psicose que, dada a sua complexidade, exige manejos sofisticados que possibilitem uma saída para a organização. Entretanto, quando entramos na esfera do uso de substâncias psicoativas, não podemos perder de vista que estamos nos propondo a tratar diversos sujeitos estruturados psiquicamente de maneiras extremamente distintas. Desse modo, dentro da clínica para usuários de álcool e outras drogas, o fenômeno da crise se torna ainda mais complexo, porque suas possibilidades de manifestação se multiplicam.
Em casos onde o uso de drogas se configura como dependência, a crise seria algo da ordem da desorganização, da falta do simbólico, mas que culmina não na produção delirante e alucinatória, mas sim no uso mortífero de substâncias psicoativas, Haveria, também, algo da ordem do insuportável nesse uso. Estamos considerando, portanto, que há algo de subjetivo que se processa antes da reincidência de um uso intenso, isso seria a crise.
Pode-se considerar que, para alguns usuários, entrar na abstinência e não encontrar recursos para lidar com ela acaba por tornar mais possível a reincidência. Nesse sentido, deve ser também dos serviços de saúde o manejo da rede social desses sujeitos, a fim de que eles passem a adquirir algum laço que os sustente, algo que faça gancho e que possibilite arranjos mais saudáveis.
É importante destacar que a crise é própria do ser humano, assim como a dor, a morte, a alegria e outras experiências. Entendê-la dentro de um contexto específico é um desafio e uma obrigação para nós profissionais. A crise deve ser reinscrita no contexto complexo da qual ela emerge, considerá-la como equivalente à reincidência do uso, ainda que esse uso seja extremamente problemático, é limitar esse conceito e estreitar as possibilidades de manejo terapêutico.
Introduzir essa perspectiva no cenário dessa clínica implica em considerar que o principal momento de intervenção é aquele em que o sujeito está desorganizado, momento esse que antecede a reincidência. É nesse período que nosso manejo profissional é posto em xeque, porque essa desorganização não necessariamente vai culminar no uso prejudicial, ela pode ser um ponto de partida para uma nova organização, aquela possível ao sujeito.
É preciso compreender os circuitos da crise, por onde ela caminha. Essa compreensão possibilita ao profissional de saúde mental manejar, de forma ampliada, o tratamento. Perceber os primeiros sinais que são emitidos quando a crise se aproxima possibilita que ela seja manejada antes mesmo de se fazer presente com toda a sua intensidade. Todavia, quando o uso intenso já está presente, um dos manejos seria o de auxiliar o usuário a encontrar estratégias que possibilitassem a saída dessa forma de consumo.
É importante salientar ainda que, de acordo Al varez (2007, apudSOARES, 2009SOARES, J.R. Prevenção da recaída: motivos do alcoolista. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.), as pessoas que atribuem esse deslize à incapacidade de se controlar, são exatamente os que recaem com maior frequência, quando comparadas aos indivíduos que não colocam o motivo do deslize no controle da bebida, e sim na dificuldade do manejo das situações que não conseguem enfrentar. É preciso, no exercício do cuidado, possibilitar outras produções de sentido e afetos relacionados ao lapso ou a recaída que não estejam pautadas em um modelo culpabilizante, centrados em um posicionamento de impotência do sujeito para com a substância.
Mesmo com todas as transformações que esses encontros com os usuários nos possibilitaram no que se refere às nossas concepções sobre o fenômeno da crise, não pretendemos delimitar esse conceito, nem propor a sua transposição para a clínica voltada aos usuários de drogas, sem as devidas ponderações. Consideramos que a abordagem à crise, embora necessite de maior rigor teórico e epistemológico, já se encontra circulando enquanto experiência no cotidiano dos serviços e reverberando nas condutas terapêuticas adotadas, possibilitando uma compreensão mais global do sujeito em sofrimento. Nossa proposta neste trabalho é a de apontar direções, questionamentos e, principalmente, sinalizar a ausência de debates acerca do conceito de crise, dentro e fora dos serviços de saúde mental para usuários de álcool e outras drogas.
- Suporte financeiro: Não houve
Referências
- ANDRADE, C.D. Sentimentos do mundo. Rio de Janeiro: BestBolso, 2009.
- BRASIL. Ministério da Saúde. Político de álcool e outras drogas. Brasília; Ministério da Saúde, 2003.
- DELL' ACQUA, G.; MEZZINA, R. Resposta à crise. In: DELGADO, I (Org.). A loucura na sala de jantar. São Paulo: Resenha, 1991.
- FERIGATO, H.; CAMPOS, O.; BALLARIN, L O atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Revista de Psicologia da UNESP, São Paulo, v. 6, n. 1, 2007, p. 31 -44.
- KNOBLOCH, F. O tempo do traumático. São Paulo: Escuta, 1998. 33 p.
- SCANDURRA, E. Flerte fatal. In: Ira Acústico MTV. Sony BMG Brasil, 2004 1 Disco Sonoro. Faixa 3 (3min 26s).
- SOARES, J.R. Prevenção da recaída: motivos do alcoolista. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009.
- STERIAN, A. Emergências psiquiátricas: uma abordagem psicanalítica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. 100 p.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Ago 2023 - Data do Fascículo
Apr-Jun 2012
Histórico
- Recebido
Nov 2011 - Aceito
Maio 2012