O Movimento da Reforma Sanitária tem como uma de suas características a atuação como 'Partido Sanitário', articulando pessoas e entidades de distintas orientações partidárias e ideológicas em defesa do direito à saúde. Esta frente política democrática permitiu muitas conquistas e está baseada no pensamento convergente de que, para garantir a todos o direito à saúde, a política de saúde tem de ser compreendida e instituída como política de Estado.
A saúde elevada à condição de política de Estado reduz a chance dos retrocessos setoriais em decorrência da rotatividade de partidos ou agrupamentos políticos nos governos. Quando grupos de oposição sucedem seus opositores há uma grande tendência de desmontar as realizações associadas aos governantes anteriores para, então, instalar suas novas marcas. Essa prática ocasiona, na maioria das vezes, importantes prejuízos à saúde da população.
Na realidade atual, todos os partidos que visam à conquista ou à manutenção do poder por meio de eleições se tornam reféns do financiamento privado de campanha, por vezes promíscuo, criando na população uma percepção de descrença na política, já que é 'tudo a mesma coisa'.
As disputas político-partidárias determinaram e vêm determinando os rumos da saúde, impondo marcas na 'política de Estado'. Por ser um Estado colonizado, na República prevalecem os interesses privados, assim como o caráter clientelista e patrimonialista marcado pelo predomínio do poder executivo em todas as esferas.
A História mostra que a conquista dos direitos sociais universais é fruto de lutas democráticas e populares, e nunca foi concessão da elite política ou do Estado. É por isso que o CEBES reafirma a necessidade de construção de uma democracia na qual as instituições possam sobreviver livres do jogo do poder, como espaços reais de efetivação de direitos.
Saúde e democracia: as eleições e os riscos da 'governabilidade'
Efetivar a democracia brasileira é fundamental para concretizar os direitos sociais. Efetivar a democracia implica, necessariamente, compreender que ela transcende e é maior que as disputas eleitorais. Mas também implica repensar o nosso atual modelo eleitoral de forma a torná-lo de fato um instrumento democrático pelo qual a sociedade tenha a prerrogativa de escolher entre os projetos políticos distintos, apresentados pelos candidatos para seu município, Estado ou país.
A política eleitoral é um dos componentes essenciais da democracia, que atualmente está contaminada pela intrusão, no seu seio, da lógica de mercado. Os acordos eleitorais são celebrados para garantir minutos de televisão, e esses acordos costumam incluir a divisão das futuras administrações, loteando a máquina pública numa lógica quase sempre avessa ao interesse público.
Resta aos eleitos como primeira tarefa de seu mandato administrarem as faturas políticas desses acordos. Nesse contexto negocia-se o inegociável, rifam-se os princípios democráticos e o interesse público em nome de um conceito reduzido e reducionista de governabilidade', que passa, novamente, ao largo dos interesses e vontades populares e das instâncias da democracia participativa. Os compromissos de campanha assumidos com os eleitores expostos nos programas de governo passam a ter importância secundária. As secretarias municipais de saúde são tomadas como objeto dessas negociações, e este é o prenúncio da fragilidade e do descompromisso do governante com a saúde, além de constituir uma violência à democracia.
É preciso mudar. Esta mudança deve assumir um compromisso com a democracia participativa em que o cidadão, além de instado a votar a cada dois anos, é convidado a tomar parte da formulação das políticas e do acompanhamento da gestão pública. Essa participação deve ocorrer não apenas nos espaços instituídos de participação, como os conselhos e as conferências. A democracia participativa aqui defendida deve envolver a sociedade no cotidiano do governo, na formulação das políticas públicas preservando o interesse publico. Este caminho parece ser a vacina mais eficaz contra o argumento da 'governabilidade', que acomoda os parceiros de grupos políticos satisfazendo os seus interesses por setores da administração publica obtidas como prêmio.
O CEBES vem defendendo a ideia de que cabe à sociedade civil assumir a tarefa de politizar e qualificar o debate em torno das eleições e dos projetos políticos em jogo. Debater o que cada candidato apresenta como proposta para a saúde, qualificar e comprometer candidatos e partidos políticos e cobrar depois de sua eleição. Os espaços institucionais de participação popular não devem ser compreendidos como concessão dos governos, pois são conquistas sociais. O exercício da participação social não pode ser marcado pelo corporativismo, cooptação, defesa de interesses privados ou de grupos específicos, mas sim pela defesa dos interesses públicos como eixo da ação política.
O município e a saúde
Todas as pesquisas de opinião divulgadas nesse período eleitoral demonstram que a saúde é a principal demanda da sociedade. Por outro lado, a mesma população que indica este tema como prioridade parece estar mais inclinada a adquirir assistência médica no mercado de planos e seguros privados. Isso se explica, em parte, pelo projeto de desenvolvimento em curso, direcionado a construir na sociedade valores que associam a melhoria das condições de vida das pessoas à ampliação do consumo.
Nesse contexto da sociedade de consumo, o direito de consumir se sobrepõe, como valor, aos direitos sociais, esvaziando o sentido coletivo da 'política' na sociedade. Para os integrantes do CEBES vem se consolidando um sentimento de perda de batalha ideológica pelo movimento sanitário, no qual o sentido do direito a saúde fica reduzido ao consumo de tecnologias (exames, consultas, medicamentos, operações, procedimentos etc.) mediado pelo poder de compra do indivíduo, e não pela necessidade de saúde das pessoas e coletividades.
As evidências científicas quanto à determinação social da saúde são inquestionáveis. É por isso que, na base de toda política para a saúde, é fundamental e necessária a correlação entre as políticas sociais, as condições gerais de vida da população e os problemas de saúde. Nessa perspectiva, as políticas intersetoriais articuladas para garantir renda, moradia, meio ambiente, transporte, educação, cultura, lazer e esporte, no seu conjunto, influenciam profundamente a saúde das pessoas, das coletividades e das cidades.
A tendência apresentada pelos governos é a de separar e fragmentar essas políticas sociais em estratégias e metas isoladas, dispersas e ineficazes. Pode ser que falte ao governante uma visão ampliada e estratégica de seus municípios, mas essa fragmentação é conveniente para operar melhor o loteamento entre os partidos apoiadores na lógica da chamada governabilidade. Torna-se particularmente importante e oportuno para a retomada e o fortalecimento da agenda do Movimento Sanitário realizar o debate nesse período, em que toda a sociedade está por fazer opções políticas. A intenção nesse caso é contribuir para politizar o debate em torno da produção da saúde como resultado complexo do processo de sua determinação social, que requer maior democratização do direito à saúde.
Para o CEBES, as eleições que ocorrem nos municípios são particularmente estratégicas. É no município que se lida com as situações cotidianas da execução dos serviços públicos, o que pode facilitar a construção de um diálogo com a população sobre questões que, embora tenham caráter estrutural, apresentam-se na concretude do serviço ofertado no posto de saúde, na fila de espera, na falta de medicamentos, insumos e profissionais de saúde. A qualificação da rede de serviços de saúde do SUS deve ser meta destacada como compromisso para o gestor municipal. Reverter a fantasia popular sobre a melhor qualidade dos serviços prestados pelos planos privados é o que irá fortalecer o valor social para o SUS.
A perspectiva ampliada para a saúde deve ser perseguida por meio das políticas intersetoriais e, nesse sentido, as alternativas de moradia popular e o enfrentamento da especulação imobiliária compõem a pauta municipal em conjunto com as políticas de recolhimento e tratamento de lixo, a garantia de vagas nas creches, a segurança alimentar e todas as necessidades concretas sentidas e vividas pela população. Essas são algumas questões que devem ser respondidas por políticas intersetoriais a partir de uma visão global das necessidades da população, desconstruindo o governo como espaço do fisiologismo e construindo um governo municipal que integre as diversas áreas e setores de governo a serviço dos interesses públicos.
Enquanto sociedade organizada, é importante considerar as diversas vezes nas quais os resultados eleitorais significaram profundos retrocessos nas políticas sociais, como são exemplo as diversas experiências de rifagem dos sistemas municipais de saúde, assim como as ações de profunda violência contra populações faveladas, tal qual a ocorrida recentemente em cidades do Estado de São Paulo a partir de iniciativa do poder público. Em outras ocasiões, a eleição de gestores públicos comprometidos permitiu o desenvolvimento de experiências fantásticas, tanto na abordagem ampliada da saúde derivada das políticas intersetoriais como na construção do SUS.
SUS para todos e em todos os municípios
A população reclama por saúde nas eleições, e o prefeito que tiver ouvidos atentos deve ousar e avançar na consolidação do SUS no seu município. O cenário é complexo, pois, no Brasil, a despeito dos importantes avanços que podem ser identificados no SUS, os desafios persistentes exigem compromisso em solucioná-los. Para isso, na maioria das vezes o gestor municipal deverá articular-se com os municípios vizinhos e estabelecer cooperação em serviços, dispostos na modalidade de redes assistenciais,
O subfinanciamento e o estrangulamento orçamentário não são favoráveis aos municípios que devem prover os serviços ao universo de sua população, O comprometimento da participação municipal no financiamento da saúde é imprescindível
Destaque especial deve ser conferido à ampliação da cobertura populacional e do acesso, garantindo qualidade e atenção em todos os níveis de necessidades e de demandas,
O gestor municipal deve enfrentar a relação quase que promíscua entre a saúde pública e o mercado privado de saúde no seu território municipal, que reflete a fragilidade regulatória e subtrai recursos e chances para que o SUS se consolide sob a ótica dos seus princípios e diretrizes.
Nessa perspectiva, assumir um compromisso com o SUS universal e de qualidade significa;
Assumir o foco principal nos usuários, nas demandas da população e, para tanto, avançar na universalidade de forma a construir um sistema de saúde para todos os brasileiros, e não somente para os desprovidos, ampliando sua capacidade para atender de forma efetiva e com qualidade as demandas de toda a população, em todas as classes sociais;
Construir redes de saúde inspiradas nos territórios vivos ocupados pelas pessoas e populações, para além do município, efetivando laços regionais solidários para garantia do acesso, qualidade e integralidade da assistência;
Priorizar a gestão publica setorial com visão crítica sobre as tendências de privatização da gestão dos serviços de saúde, hoje realizada por diversos instrumentos como OSSs, OSCIPS, 'filantropismos' diversos etc.;
Atuar contra a precarização do trabalho em saúde, instituindo políticas de gestão do trabalho em saúde e valorizando os trabalhadores do SUS.
Levando tudo isso cm conta, o CEBES exorta os candidatos aos poderes municipais que assumam um compromisso concreto e inegociável com a saúde do povo em seu município, para os moradores urbanos e da zona rural Para isso, devem perseguir na sua gestão a Constituição Brasileira, que definiu no Artigo 196:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação
Conjuntamente, o CEBES convoca sua militância e os demais militantes da Reforma Sanitária a acompanharem e aproveitarem esse momento eleitoral de 2012 para intensificar o diálogo com os movimentos sociais, associações, sindicatos, partidos e pessoas do campo progressista e com a sociedade como um todo, reafirmando a defesa da saúde como direito universal de cidadania e a democracia como princípio de uma sociedade justa e solidária.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
18 Ago 2023 - Data do Fascículo
Apr-Jun 2012
Histórico
- Recebido
Ago 2012 - Aceito
Ago 2012