O debate sobre as relações entre saúde, ambiente e desenvolvimento pressupõe a necessidade do levantamento de um conjunto de novos elementos, os quais sejam relevantes para revisão do tratamento dado aos temas que tradicionalmente mobilizam os atores envolvidos na construção dos sistemas de saúde no Brasil e no mundo. Ao mesmo tempo em que coexistem agendas para o enfrentamento de questões apresentadas como problemas planetários, que colocam em risco a sobrevivência de espécies, inclusive a humana, observa-se a permanência de situações que desafiam os formuladores e executores das políticas públicas, principalmente aquelas relacionadas à profunda desigualdade de acesso às de saúde, educação, cultura, entre tantas ações de estado, em países onde a importância da intervenção dos governos é essencial para a redução de iniquidades.
A questão ambiental se tornou uma das principais pautas do início do século 21, porém, considerando seu aspecto multifacetado, necessita de um conjunto de metodologias que permitam a análise sistêmica dessas relações de forma a superar a atual abordagem, ainda muito fragmentada, acerca do tema. É certo que esse desafio está associado ao modelo formador e de produção acadêmica, ainda sob departamentos, que oferece limites para um pensamento integrado, criativo, autônomo e mobilizador para o enfrentamento de problemas socioambientais e de saúde.
A busca por evidências quanto às relações entre mudanças climáticas e saúde; a geração de alternativas para promover a redução dos impactos não previsíveis e indesejáveis da instalação de empreendimentos e dos novos modos de produção e consumo sobre a saúde humana, o aprimoramento da compreensão acerca das relações entre o impacto das intervenções antrópicas na biodiversidade e suas implicações na ocorrência de doenças, representam alguns dos temas relevantes a serem incluídos em tal debate. As variadas possibilidades de abordagens que se colocam no horizonte nesse momento de incertezas, somadas a ingredientes econômicos, sociais e ambientais, remetem a uma proposição elaborada por Edgar Morin, segundo o qual: “A fórmula complexa da antropolítica (política de humanidade em escala planetária) não se limita ao ‘pensar global, agir local’; ela se expressa pela interação: pensar global/agir local; pensar local/agir global”. A partir dessa perspectiva, é possível avaliar a real agenda que deve ser induzida e fomentada.
Ao pensar na saúde como um processo determinado socialmente, elementos importantes são adicionados nesta agenda, tanto com relação à construção de novas formas de intervenção, a partir de políticas públicas, quanto na revisão necessária dos modelos hegemônicos de produção e de consumo no mundo ocidentalizado, em que a noção de natureza é atravessada por uma construção de imagens historicamente determinadas.
Von Stein, citado por Sergio Buarque de Holanda, observa que “ao ouvir a palavra ‘natureza’ o homem dos séculos 17 e 18 pensa imediatamente no firmamento; o do século 19 pensa numa paisagem”. Cabe debater como a natureza está sendo analisada atualmente. Ao serem trazidos novos conceitos, como por exemplo, do desenvolvimento sustentável, da economia verde, da exploração da biodiversidade, do aquecimento global e de tantas outras expressões, recentemente incorporadas, as quais, ao mesmo tempo em que trazem para a cena contemporânea novas semânticas e novos conhecimentos, também tentam estabelecer, pautadas na lógica hegemônica, consensos e pressupostos universais que se institucionalizam por meio de artigos científicos, publicações de grande mídia e agendas políticas, as quais ganham consistência a partir do estabelecimento de uma massificação de definições, permeadas de interesses políticos e econômicos. Sendo esse debate uma via de mão dupla, seriam estas as proposições adequadas?
O esforço da organização e da mobilização de governos, de movimentos sociais, de organizações não governamentais, de instituições acadêmicas, de organismos internacionais e de outras instâncias de representação social, voltadas para o debate da crise ambiental, é mais do que visível, tanto pelo deslocamento de delegações para a Conferência Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável – Rio + 20, quanto para a Cúpula dos Povos, que são realizados paralelamente e tratam de assuntos de vital importância às nações. Entretanto, a despeito dessa mobilização, a ausência da saúde como tema na pauta da Conferência, demonstrada nos documentos preparatórios, ressalta que essa conferência deve ser observada com reservas, uma vez que esse fato compromete o debate mais geral sobre o desenvolvimento e a inclusão social, que foi proposto para os chefes de estado, presentes no evento. É indubitável que o contexto da crise econômica, da persistência de guerras e de grandes contingentes populacionais excluídos, principalmente nos países da África, América Latina e regiões da Ásia, compromete as formulações, bem como a tomada de decisão, por parte dos dirigentes das nações, das lideranças acadêmicas e dos movimentos sociais.
No Brasil, ao discutir-se a saúde nesta conjuntura de incertezas, torna-se imprescindível a redução das lacunas existentes entre as concepções que orientam a formulação da determinação social da saúde e da vida, assim como dos elementos ambientais destacados nesse processo. O esforço para consolidar o Sistema Único de Saúde (SUS), que atualmente está ‘aprisionado’ ou, no mínimo, pautado pela agenda de aperfeiçoamento dos dispositivos de atenção à saúde, está expresso na formatação das redes de atenção à saúde e na expansão e qualificação da atenção primária. Portanto, ainda permanece em segundo plano a agenda de promoção à saúde e de desenvolvimento da gestão de políticas intersetoriais, apesar da existência de ações voltadas à melhoria de qualidade dos alimentos industrializados, à política de antitabagismo e aos programas de indução à atividade física, que são exemplos da ação sobre determinantes sociais.
No plano nacional, iniciativas geradas no campo da seguridade social têm sido eficazes na redução dos fossos sociais, por meio da implementação de programas, como o ‘Bolsa Família’ e do plano ‘Brasil Sem Miséria’, promovendo a redução da pobreza e a inclusão social, e constituem-se como estratégias relevantes na superação da fragmentação das políticas sociais e econômicas, além de serem inspiradoras no que se refere às relações entre o atual modelo de desenvolvimento e seus impactos socioambientais e na saúde.
Nesse sentido, vale ressaltar que o processo de desenvolvimento na sociedade capitalista e no Brasil, em particular, produz benefícios inegáveis, progressos científicos, avanços técnicos na Medicina, inovações tecnológicas, e se depara com suas contradições, ao gerar novas desigualdades, destruição ambiental, perdas culturais e novos modos de exploração humana. Não há como garantir que o simples fato de agregar a palavra sustentável ao conceito de desenvolvimento seja suficiente para mudar o curso dos modos de produção e consumo. Esse debate deve mostrar as contradições postas para a construção de outras formas de articular o desenvolvimento à inclusão social. Para isso, deve-se levar em conta o atual contexto das desigualdades expressas na injustiça social, nas diferenças da expectativa de vida existentes entre povos e populações ricas e pobres, assim como nos impactos de eventos extremos, naturais ou não, sobre as populações mais pobres, que sofrem mais as consequências da poluição, das secas e chuvas e das contaminações das águas.
A redução das distâncias entre a formulação de políticas, pautadas pelos preceitos da determinação social da saúde e sua materialização em iniciativas intersetoriais, com a produção de efeitos sobre as iniquidades e, por conseguinte, sobre a crise ambiental, deverá passar pela criação de espaços de atuação diferenciados em âmbito local, regional e nacional. Portanto, é necessário abordar temas relevantes, tais como: a ocupação do espaço urbano, a mobilidade urbana e a violência nas cidades, a construção de modelos de produção de alimentos saudáveis, enfrentamento da questão dos agrotóxicos, aliada a políticas de segurança alimentar, a priorização do saneamento básico e a garantia de qualidade da água para consumo humano. Essas temáticas, entre outras, devem ser discutidas e analisadas em instâncias intersetoriais, de forma a permitir a proposição de políticas civilizatórias orientadas à reversão das desigualdades no Brasil.
É necessário promover induções junto às instâncias de fomento dos desenvolvimentos econômico e social; romper isolamentos do setor saúde; propor a inclusão dos indicadores de saúde na definição de prioridades das políticas econômicas; tratar dos grandes empreendimentos e seus entornos como espaços para observação de processos acelerados de desenvolvimento local e prevenir os impactos perversos e, muitas vezes, previsíveis; aumentar a interação entre a agenda ambiental e o SUS, integrando a vigilância em saúde à ambiental e incluindo a saúde do trabalhador como um elemento central para a avaliação de impactos, permitindo ação de controle sobre riscos e o exercício da gestão ambiental nesses novos espaços criados pelo processo acelerado de crescimento econômico; incrementar, de forma articulada, processos de utilização de
tecnologias de menor impacto ambiental no complexo produtivo da saúde, nas fábricas ou nos serviços. Dessa forma, será possível preencher lacunas existentes para a atualização da agenda do sistema público de saúde brasileiro, alinhado ao desenvolvimento do campo da ciência, tecnologia e inovação em saúde e da agenda de formação para o SUS.
O SUS possui elementos inerentes a seu processo de amadurecimento, que trazem desafios importantes para sua atualização como política inclusiva e exige um chamamento dos agentes de política econômica, para uma releitura deste sistema como um verdadeiro processo de indução de desenvolvimento regional integrado e, portanto, vinculado diretamente a sustentabilidade econômica e social do país, com impactos diretos na produção de efeitos sobre incertezas do presente e do futuro, referentes à questão ambiental. Este sistema precisa receber um tratamento diferenciado, por parte dos tomadores de decisão, para além da visão de um sistema de serviços assistenciais de alcance universal, que tem problemas de financiamento e gestão. Se a interação com outras políticas de crescimento e desenvolvimento for incipiente, o ideário da promoção da saúde não estará sendo efetivado de forma radical, e o SUS continuará padecendo do ‘mal’ de tratar coletivamente das doenças, como se estivesse enxugando uma geleira que permanece em constante derretimento.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
14 Ago 2023 - Data do Fascículo
Jun 2012