De 13 a 22 de junho de 2012, a Organização das Nações Unidas (ONU) realizará, no Rio de Janeiro, a Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável – Rio + 20. Presidida pelo Governo Brasileiro, a Conferencia, de acordo com a ONU, representa uma necessidade de reafirmar os compromissos assumidos na Rio92 e identificar caminhos em face aos desafios globais que se apresentam à humanidade, tendo como referência suas dimensões econômicas, ambientais e sociais.
Na perspectiva da saúde, a agenda do desenvolvimento sustentável apresentou, em suas teses de origem e em seus instrumentos operacionais, a necessidade de avançar sobre os conceitos da saúde, enquanto direito universal, e a ação sobre os determinantes sociais da saúde, materializados no conjunto de compromissos estabelecidos no Capítulo 6 da Agenda 21. À época, tal agenda abordava a necessidade de ter acesso à atenção primária à saúde, expandir o controle de doenças transmissíveis, ampliar o acesso à saúde dos grupos populacionais mais vulneráveis, ter acesso aos serviços urbanos básicos de infraestrutura e saneamento e ter ação sobre os efeitos resultantes das contaminações ambientais e das mudanças ambientais globais.
No Brasil, a partir das lutas sociais pelo reestabelecimento da democracia nas décadas de 1970 e 1980, emergiu, no campo da saúde, uma forte crítica à política de saúde excludente que foi consolidada no ciclo militar. A luta dos movimentos sociais e dos profissionais de saúde, associada à construção de um pensamento acadêmico alternativo – a Saúde Coletiva – possibilitaram, na expressão orgânica do Movimento da Reforma Sanitária, a construção do Sistema Único de Saúde (SUS): saúde enquanto direito de cidadania e dever do Estado, estabelecido na Constituição Federal de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde de 1990.
Quando os caminhos do SUS são aproximados, à luz de sua emancipação após 21 anos de sua existência, que, digno de nota, foi construído na contramão da onda neoliberal que ocupou o cenário internacional de desmonte do estado, com a agenda da sustentabilidade, observa-se alguns significativos progressos, a saber: cobertura exponencial da atenção primária à saúde, via o Programa de Agentes Comunitários de Saúde/ Programa Saúde da Família (PACS/PSF), que migrou de um residual de população assistida a mais de 60% da população total, resultando no acesso de mais de 100 milhões de pessoas à atenção primária à saúde; ampliação significativa do controle e da prevenção de doenças infecciosas e transmissíveis; instituição de políticas de saúde para um conjunto relevante de grupos e povos não assistidos (trabalhadores, promoção da saúde, índios, negros, lésbicas, gays, travestis, bissexuais, adolescentes, idosos, homens, campo e floresta, entre outros); estabelecimento de programas de vigilância em saúde relacionados ao meio ambiente, tais como água para consumo humano, poluição do ar, exposição química, desastres, saúde e mudança do clima; expansão do saneamento básico para populações rurais; estruturação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), estabelecendo e fortalecendo um conjunto de marcos regulatórios de interesse sanitário; estruturação de uma importante agenda de Ciência e Tecnologia em Saúde, incluindo o fomento ao Complexo Industrial da Saúde, entre diversas outras iniciativas que integram o Plano Nacional de Saúde para o período de 2012 a 2015. Do ponto de vista dos resultados sanitários, a mortalidade infantil apresentou uma redução de 60% entre 1990 a 2010, e a esperança de vida ao nascer migrou de 65 para 73 anos no mesmo período, não obstante as profundas desigualdades regionais que tais indicadores ainda apresentam.
Na perspectiva das políticas públicas, é possível afirmar que a estruturação do SUS, norteado por seus princípios e diretrizes, é uma enorme contribuição ao desenvolvimento sustentável do Brasil, à medida em que promove e protege a saúde ao mesmo tempo em que integra, por meio dos conselhos e das conferências de saúde, a perspectiva da participação e o controle da sociedade no planejamento e na avaliação da política de saúde nos âmbitos federal, estadual e municipal.
A Rio + 20 traz como eixos a economia verde e a governança global. Entende-se que a economia verde não deva ser reduzida a pacotes inovadores de soluções tecnológicas, com processos produtivos mais limpos, podendo trazer em sua lógica a ameaça da mercantilização da natureza e resultar na ampliação dos processos geradores de concentração de renda e de aprofundamento da iniquidade em escala global. A governança global, ou estrutura institucional do desenvolvimento sustentável, expressa, cm síntese, a necessidade de realizar a reforma das Nações Unidas e das organizações a ela vinculadas, de forma que as profundas assimetrias entre as organizações representantes dos interesses dos pilares econômico, ambiental e social, atualmente sob a hegemonia do primeiro pilar, apontem um novo modelo que mostre a atual conjuntura dos interesses da geopolítica internacional, em franca transformação, e, ainda, incorpore em seus mecanismos políticos e de gestão as múltiplas manifestações da sociedade civil internacional, as quais não têm um claro espaço definido para este fim.
Para além destes dois eixos, a Rio + 20 abordará sete questões críticas, a saber: emprego, energia, cidades, alimentação, água, oceanos e desastres, as quais integram o conjunto da determinação social da saúde e contribuem para o atual perfil sanitário da saúde em escala global. Esse perfil é expresso nas transições demográfica, epidemiológica e nutricional, que, diferentemente do cenário da década de 1990, resultam na majoritária prevalência das doenças crônicas não transmissíveis e na violência, aos dias atuais.
A atualização da agenda da saúde no contexto da Rio + 20 deve estar norteada por alguns elementos-chave. Primeiro, a reafirmação de que os modelos universais de saúde são a alternativa mais eficaz para promover saúde em escala global; segundo, que os sistemas e a política de saúde devem privilegiar a atuação sobre os determinantes sociais da saúde, estabelecendo canais de correspondência com os resultados oficiais e não oficiais da Conferência Mundial sobre os Determinantes Sociais da Saúde realizada no Rio de Janeiro, em dezembro de 2011; terceiro, que a agenda da saúde deve integrar as políticas e medidas do Estado em prol da equidade, tendo como referência a Conferência Internacional sobre Sistemas de Seguridade Social, realizada também no Rio de Janeiro, em dezembro de 2010.
Atualmente, o Brasil é uma realidade muito distinta daquela enfrentada nas últimas décadas. Notadamente, de uma profunda estagnação econômica que prevaleceu de meados da década de 1970 ao início da década de 2000, vive-se um novo ciclo de crescimento econômico, materializado nas induções e nos fomentos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC e PAC II), voltado à ampliação da matriz energética, da infraestrutura urbana, da malha rodoviária e de polos industriais que resultam na aplicação de cerca de R$1,5 trilhão entre investimentos públicos e privados de 2011 a 2014.
Associa-se a isso um conjunto relevante de políticas e programas sociais e ambientais, os quais têm possibilitado a inclusão econômica e social de uma parcela significativa da população, estimada em cerca de 25 milhões de pessoas, que até pouco vivia no limite da miséria absoluta. Por meio do programa ‘Brasil sem Miséria’, estima-se que outros 16 milhões de brasileiros serão também beneficiados.
Essas transformações, em escala possivelmente nunca experimentada no Brasil, embora apresentem um cenário absolutamente distinto do quadro de estagnação anterior, apresentam novos questionamentos sobre o paradigma de desenvolvimento em vigor e particularmente à saúde publica, gerando novos desafios decorrentes das vulnerabilidades e riscos à saúde produzidos pelos processos em que as populações, de forma direta c/ou indireta, estarão submetidas e influenciadas.
O debate na saúde sobre a sustentabilidade deve fortalecer a orientação de que os sistemas e as políticas de saúde, nos âmbitos internacional, nacional e local, sejam baseados em modelos universais, atuem sobre os determinantes sociais da saúde e integrem a agenda da equidade.
Este debate deve ser considerado enquanto oportunidade para que se estabeleça um mapa da determinação da saúde, a partir das induções e dos investimentos que estão sendo concretamente feitos de acordo com a multiplicidade de iniciativas, políticas e programas econômicos, ambientais e sociais, que estão concretamente interferindo nos processos de produção e consumo dos territórios. Dessa forma, será possível identificar, estudar e agir, sob a perspectiva da saúde coletiva, sobre as forças e as vulnerabilidades que interagem na dinâmica dos processos de produção de saúde-doença.
Esta reflexão deve ser também motivadora para que a saúde identifique instrumentos que estabeleçam compromissos com os representantes dos processos e das cadeias produtivas de interesse à saúde pública, tais como as indústrias do tabaco, do álcool, da alimentação, da comunicação, da construção civil, do petróleo, da petroquímica e química fina, da automobilística, do agronegócio, entre outras, A internalização no âmbito nacional das diretrizes de convenção do quadro do tabaco; a regulamentação da propaganda do tabaco, a internalização no âmbito nacional do Protocolo de Montreal, visando à redução da eliminação da Camada de Ozônio, que resultou na eliminação do uso de produtos contendo clorofluorcarbono nos dispositivos de tratamento do broncoespasmo e o acordo com a indústria de alimentos processados, visando à redução do teor de sal, são experiências exitosas que servem como referência.
Por fim, deve-se também despertar o interesse do setor saúde em fortalecer a sua representação nos fóruns colegiados intersetoriais estratégicos em todas as esferas de governo, em especial, construir uma estratégia que resulte num assento permanente no Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.
A Rio +20 se desenvolve numa conjuntura de profund as tensões, decorrentes da crise econômica motivada pela ação desregulada do capital especulativo originada nos países desenvolvidos, o que traz incertezas sobre a adoção de compromissos concretos e reais para o enfrentamento deste complexo cenário, cujas dimensões repercutem em todas as escalas do planeta.
A participação do campo da saúde na Rio + 20, representada pelos atores do movimento social, da academia, de profissionais de saúde e gestores, nos diversos espaços em que ocorrerão as suas atividades entre 13 e 22 de junho de 2012, no Rio de Janeiro, oportunizarão o debate de forma que a saúde influencie a agenda de mobilização resultante da conferência.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
14 Ago 2023 - Data do Fascículo
Jun 2012