Cidadania ambiental e participação: o diálogo e articulação entre distintos saberes-poderes

Environmental citizenship and participation: dialogue and coordination between different knowledge and power

Fatima Alves Maria José Araújo Ulisses Azeiteiro Sobre os autores

RESUMO

Nas últimas décadas, a biodiversidade tem estado no centro do debate da crise ecológica. Esta discussão mobiliza cientistas, políticos, sociedade civil e as populações em todo o mundo, apelando à necessidade de criar estratégias sustentáveis para a sua preservação e enfatizando abordagens mais holísticas entre natureza, sociedade e cultura para a sua promoção. Nesta análise, consideramos fundamental partir da desconstrução do desenvolvimento social e ambiental, dando especial relevância aos aspetos estruturais que o condicionam, nas suas relações e manifestações sociais, culturais e ambientais, mas, sobretudo, à agência dos indivíduos, evidenciando os conhecimentos plurais que veiculam e os espaços de emancipação e democracia participativa que requerem.

PALAVRAS-CHAVES
Participação Cidadã; Cidadania; Sustentabilidade; Meio Ambiente; Racionalidades Leigas

ABSTRACT

In the last decades, biodiversity has been at the center of the debate of the ecological crisis. This discussion has mobilized scientists, politicians, civil society and people around the world appealing to the need to develop sustainable strategies for their preservation emphasizing more holistic approaches between nature, society and culture. In this analysis, we consider that it is essential the deconstruction of social and environmental development, giving priority to the structural aspects that have a close influence on social, cultural and environmental factors, but, especially, to the agency of individuals, demonstrating the plural knowledge they convey and spaces of empowerment and participatory democracy that they require..

KEYWORDS
Citizen Participation; Citizenship; Sustainabililty; Environment; Lay Rationalities

Introdução

Os fenômenos ecológicos importantes que marcam o século XXI têm indicado, suficientemente, que um pensamento ecologizado se torna necessário na organização global da Terra, A natureza está impondo os seus limites ao nosso desgoverno e mostrando que a solução não passa unicamente por uma maior preocupação econômica pelo ambiente, mas também pela legisiação, mais eficácia da escola ou das aprendizagens cívicas formais e por tecnologias mais dinâmicas, O ‘’sobressalto salvador”, de que nos fala Morin (1994)14 MORIN, E. As grandes questões do nosso tempo. Lisboa: Editorial Noticias, 1994., só parece possívei com uma profunda mudança das relações entre natureza, sociedade e cultura. Impõe-se dar ênfase a uma consciência de solidariedade que valorize os diferentes saberes plurais e formas não convencionais de conhecimento e participação social, por oposição à cultura da competição e agressão que têm regido as relações mundiais.

O caráter abstrato dos fenômenos ambientais que representam ameaças não palpáveis ou imediatamente situadas no tempo, por mais assustadoras que sejam ou mais difíceis que esses cenários, desenhados pelos peritos, se apresentem no futuro, não tem ajudado a se chegar a condutas cotidianas efetivas para resolver a questão. Podemos saber, mas isso não é suficiente: há sempre uma distância entre o saber e o agir, Estamos sempre à espera de traços mais visíveis, adiamos a mudança para mais tarde, o que faz do paradoxo de Giddens (1989)11 GIDDENS, A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1989. um indicador do limite crítico do fenômeno da confiança em termos de desencaixe espaço-temporal. Paralelamente a esta questão, a verdadeira tomada de decisões não contempla a soberania popular, na medida em que, segundo a perspectiva liberal das elites dominantes, as camadas populares cedem a impulsos irracionais, A ideia da incapacidade do povo e da inoperância de formas de cidadania ativa assenta no poder atribuído à burocracia que, em nome da complexidade social, sobrevaloriza e exige procedimentos dos decisores políticos. Trata-se, como se refere Estanque (2006)6 ESTANQUE, E. A questão social e a democracia no início do sé culo XXI: participação cívica, desigualdades sociais e sindicalismo. Revista Finisterra, Lisboa, v. 55-56-57, jan-dez 2006, p. 77-99)., de uma ‘lei de bronze’ que remete o povo para a sua inelutável condição submissa e conformista, o que nos obriga a repensar o funcionamento da democracia, procurando novas soluções para o exercício da prática cidadã, mas não apenas eia como direito, também como solução, pelas suas possibilidades criativas e plurais, evidenciadas pelo conhecimento e experiência do cotidiano.

Assim, nos propomo a sujeitar ao crivo analítico a participação e envolvimento das populações, que têm sido equacionadas como uma panaceia universal e com uma estratégia cujos limites e entendimento precisam ser discutidos de forma mais ampla. Na verdade, o que acontece atualmente é que a discussão e envolvimento conquistados não têm comprometido os atores e discursos da mesma maneira. Por um lado, estamos perante a ideia de que existe uma hierarquia de conhecimento e, por outro temos o poder de reforçar e implementá-la. Neste caso, o conceito de participação está sendo usado para se referir à participação na tomada de decisões e integrar os processos de mudança, uma interpretação redutora na medida em que as formas não convencionais de conhecimento e de participação social podem oferecer alternativas significativas.

Levando isso em conta, defendemos a participação cidadã como tônico necessário para reverter um ‘agir justo’11Conceito desenvolvido por Habermas utilizado por Estanque (2006) para explicitar o agir comunicativo. que possa ultrapassar os constrangimentos e relações de poder habituais, em que os sujeitos suspendem constantemente os seus interesses para aceitar tirar do papel ideias e compromissos defasados dos seus conhecimentos e práticas. O sujeito social ativo só o pode ser se conquistar capacidade reflexiva que questione e interpele os poderes instalados. Deste modo, a cidadania ambiental/social que precisamos construir para o “século XXI terá de ser mais do que uma síntese entre cidadania cívica do século XIX e a cidadania politica do século XX. Terá de ser uma cidadania que seja simultaneamente social e política” (ESTANQUE, 20066 ESTANQUE, E. A questão social e a democracia no início do sé culo XXI: participação cívica, desigualdades sociais e sindicalismo. Revista Finisterra, Lisboa, v. 55-56-57, jan-dez 2006, p. 77-99).).

Começamos este texto com uma abordagem sobre o fenômeno da biodiversidade, apelando para a necessidade de se refletir sobre a forma como a sociedade se apropria dos conceitos a ela inerentes. Desenvolvemos o conceito de aprendizagem transformativa, chamando um pouco a atenção para a necessidade de se valorizarem os níveis e processos de educação informai como essenciais para desenvolver a capacidade de reflexão e participação cidadã, uma prática que tem sido bem explorada nos movimentos sociais e nas comunidades virtuais (por meio de blogs, sites, etc.) de forma sistemática e tem ajudado a dar visibilidade a muitas das questões que consideramos essenciais para o diálogo entre diferentes saberes.

Biodiversidade, epistemologia e sociedade

O Ano Internacional da Biodiversidade (2010) assinalou um importante marco no que se refere a objetivos globais de monitorização, valorização e conservação da biodiversidade num contexto de desenvolvimento sustentável (DS), Isto, numa altura em que os ecossistemas e a biodiversidade ocupam o centro de importantes discussões, desde a conservação da natureza, desenvolvimento territorial (em diversas escalas), participação/ governância e gestão participativa, cidadania ambiental, definição de territórios saudáveis, saúde ambiental e sustentabilidade.

A compreensão das dinâmicas de biodiversidade e potenciais impactos no funcionamento dos ecossistemas e dos serviços é fundamental no sentido de ir ao encontro das diretivas europeias, bem como das Convenções Internacionais sobre Biodiversidade (CBD). A crescente perda de biodiversidade, degradação dos serviços de ecossistema e dos recursos naturais, associadas ao não cumprimento das metas globais de biodiversidade para 2010, colocam desafios maiores ao nível científico e societal.

As principais causas identificadas como promotoras do declínio da biodiversidade são a modificação/ fragmentação e destruição dos habitats, as alterações climáticas, as espécies exóticas invasoras, a sobre-exploração dos recursos e a poluição.

Torna-se necessário refletir sobre a forma como a sociedade se apropriou da biodiversidade e sustentabilidade e do seu alcance socioeconomicoambiental no contexto das estratégias locais, regionais, nacionais e internacionais de DS e sustentabilidade ambiental e social. Neste contexto, quais as implicações dos fatores sociais e culturais? Qual a sua importância?

A natureza, transformada em recurso natural (como algo exterior à sociedade), serviu ao desenvolvimento de uma ordem econômica mundial apoiada na ciência moderna e nas tecnologias de exploração desses recursos, de forma extensiva e intensiva. O processo permitiu a continuidade e o aprofundamento de novas formas de dominação econômica, social, cultural, política e geográfica.

Os impactos mais visíveis e preocupantes referemse à redução da diversidade natural (o seu esgotamento e extinção). De acordo com os valores apresentados pelo Relatório de Síntese do Millennium Ecosystem Assessment, estima-se que entre 10 e 50% das espécies estão atualmente ameaçadas de extinção, segundo critérios estabelecidos pela União Internacional para a Conservação da Natureza. Mas também se referem à desvalorização de outras formas de conhecimento consideradas menores face à ciência moderna, designadas muitas vezes por locais, alternativas, tradicionais, relegadas ao estatuto de crenças, inferiores e que urge substituir pelos ‘verdadeiros conhecimentos’ que trarão desenvolvimento às comunidades. Num movimento contraditório, assistimos simultaneamente a expropriação destes conhecimentos (biopirataria), muitos deles milenares, apropriando-os e incorporando-os à exploração capitalista global.

Ao contrário do que poderíamos pensar, a globalização trouxe novas formas de exploração e dominação à escala mundial. Este debate tem mobilizado cientistas, políticos, sociedade civil e populações a nível mundial. Mas este envolvimento não tem comprometido de igual forma os agentes, os saberes e os discursos produzidos. Eventualmente será nestes desequilíbrios e campos de luta, reflexos de desequilíbrios sociais mais amplos, que devemos centrar a nossa atenção de forma a produzir leituras mais próximas e contextuais e a criar estratégias de enfrentamento que partam desses lugares concretos, vividos por agentes concretos, portadores de interpretações, conceções e de ações, de micropoderes, como Foucault (2002)8 FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. tão bem nos revelou.

A reflexão sobre biodiversidade e sobre a sustentabilidade ambiental e social exige a construção de uma leitura integradora e interdependente entre as perspetivas biológicas e as das ciências sociais por um lado, e entre estas e os conhecimentos locais por outro. Essa leitura procura desmistificar as tradicionais dicotomias que têm imposto fronteiras epistemológicas e morais redutoras entre natureza e cultura, entre físico e social e, consequentemente, impossibilitando a identificação do valor heurístico e explicativo do social e do cultural no fenômeno globalmente reconhecido de perda de biodiversidade, o que exige reconhecer a importância da pluralidade de saberes para compreender as concepções, as explicações e as formas de ação, quer ao nível individual, grupai, comunitário, local, regional, nacional ou internacional.

Efetivamente, o conhecimento das ciências sociais é importante para compreender, por um lado, os fatores sociais e culturais presentes na perda de biodiversidade e, por outro, o impacto da perda de biodiversidade no bem-estar humano e na ordem social. É também importante para compreender o efeito das conceções dominantes sobre biodiversidade nas políticas (nos programas e nas organizações que as implementam), na economia (transformando saberes e recursos locais em mercadorias) e na investigação financiada (privilegiando a visão conservacionista e de contagem das espécies), instaurando novas formas de dominação, exploração e regulação global em detrimento da autonomia participativa, da democracia e da emancipação das populações e contextos que atingem.

Com isso, é fundamental colocar a biodiversidade na ordem do mundo e das sociedades, apelando à história como testemunho fundamental desta construção social e das suas consequências sobre a natureza, apelando à sociologia na desmistificação da biodiversidade, encarando-a enquanto território de racionalidades plurais que urge pôr nesta ordem do mundo enquanto condição da sua construção e implementação,

O discurso sobre a biodiversidade não é monolítico nem homogêneo e é fundamental partir dessa evidência. O que encontramos são discursos sobre a biodiversidade que cruzam simultaneamente olhares diferentes, conhecimentos diferentes, posições e estratégias políticas diferentes, culturas diferentes, Todas elas concorrem para a explicação e compreensão da diminuição da biodiversidade no planeta bem como para a sua superação ou aumento. Apesar desta pluralidade que permeia o fenômeno, há olhares dominantes, relações de poder sobre essas diferentes posições, o que é necessário conhecer e compreender. A biodiversidade é um campo permeado por tensões múltiplas que se instalam entre conhecimentos plurais dentro da própria ciência e entre estes e os conhecimentos ‘locais’ (com menor visibilidade e que urge conhecer), trazendo para a arena de debate a conflitualidade entre as pluralidades em termos científicos, técnicos, econômicos, sociais, políticos e culturais.

A biodiversidade é, neste contexto, não uma propriedade das comunidades ou de grupos de interesse, mas um bem público (RANDS 201017 RANDS, M. et al. Biodiversity conservation: challenges beyond 2010. Science, Nova York, v. 329, n. 5997, set 2010, p. 1298-1303.), procurando a sua conservação por meio das políticas globais promovidas pelas autoridades mundiais que buscam regular a produção de recursos e o consumo, centrando-se nas mudanças societais. Do mesmo modo, estas políticas globais devem definir incentivos que atuem na mudança de comportamentos e integrar a biodiversidade nos processos de tomada de decisão públicos e privados, ao nível dos estados, do mercado e da comunidade (sociedade civil). Estas atuações exigem a criação de condições efetivas que permitam a implementação das políticas, o que só se consegue com a criação de políticas ajustadas aos contextos e integradoras dos conhecimentos, interesses e preocupações locais, mas também com a integração das próprias populações locais nestes processos de produção de conhecimento e tomada de decisão, condição sem a qual qualquer política ou organismo estará voltado ao fracasso considerando o fenômeno da biodiversidade enquanto não apenas biológico e físico, mas, sobretudo, contextual, societal e, simultaneamente, cultural.

Desigualdades, vulnerabilidades e desenvolvimento sustentável

O aumento populacional a que temos assistido mundialmente permite-nos constatar as pressões demográficas cada vez mais fortes, à medida em que os ‘recursos naturais’ estão cada vez menos disponíveis no planeta, o que acresce as perdas de biodiversidade acima relatadas. Esquecendo as variações internas referentes aos diversos países, que nos colocam questões de diferentes ordens que não vamos aqui aprofundar, é um fato que se estima que a população mundial, atualmente de 7 bilhões de pessoas, chegará aos 9 bilhões em 2050. A necessidade de recursos aumenta ao mesmo tempo em que a sua disponibilidade diminui efetivamente.

As desigualdades no acesso a essess recursos são conhecidas e tendem a ampliar o fosso que separa os ricos dos pobres. O esgotamento da natureza (de água e alimento), agravado pela frequência de desastres naturais e mudanças climáticas, conduz, sem dúvida, a consequências para as quais são necessárias soluções estruturais que não excluam as especificidades e necessidades singulares e contextuais. Neste contexto, como todos podemos viver bem, com bem-estar, sem comprometer o futuro das gerações que virão? Como podemos continuar a explorar a agricultura para combater a fome e acabar com a pobreza sem esgotar os solos? A consumir espécies sem as extinguir? A criar condições de vida dignas, providenciando acesso a saneamento básico, por exemplo, sem aumentar os níveis de poluição? A produzir mais energia para que todos possam ter eletricidade, a criar mais empregos, sem aumentar os níveis de emissão de carbono?

Os dilemas são imensos, os paradoxos também, O debate está lançado em diversas frentes e é imprescindível alcançar novas respostas, mais sustentáveis e que dignifiquem a vida humana. Não há dúvida de que a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), a ser realizada em 2012, trará contribuições e novas soluções para a compreensão global da situação, na sua complexidade, visto que focará as questões econômicas, a green economy, a coordenação internacional, necessárias à promoção do desenvolvimento sustentável e à luta contra a pobreza e se projeta na definição de patamares para um futuro sustentável, com mais emprego, mais energias limpas, maior segurança e padrões de vida decentes para todos. Será um momento histórico para que se equacionem as fragilidades e potencialidades dessa discussão mundial, dando voz a todas as populações, a todos os sujeitos, a todas as ‘verdades’. Vejamos alguns desses desafios.

O DS procura harmonizar a conservação ambiental e a utilização racional dos recursos naturais com o crescimento econômico, a justiça, o bem-estar e equidade social, Com processos dinâmicos e multidimensionais, simultaneamente políticos, científicos, ambientais e culturais, o desenvolvimento sustentável exige, como vimos, um posicionamento epistemológico interdisciplinar, democratizando o conhecimento (científico e local) e destacando as racionalidades leigas (SILVA; ALVES, 201123 SILVA, L. F.; ALVES, F. Compreender as racionalidades leigas sobre saúde e doença. Physis, Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, out-dez 2011, p, 1207-1229.) e as populações locais, não apenas ao conhecimento como também ao nível da definição das políticas, da gestão e implementação de estratégias adaptativas e mitigadoras dos impactos decorrentes do aumento populacional, da urbanização, crescimento econômico, desigualdades sociais e ambientais, variabilidade climática, perda da biodiversidade e saúde ambiental e humana, Esta implicação na produção de estratégias social e ambientalmente sustentáveis, procurando gerir a apropriação dos recursos naturais, procura proteger a biodiversidade e assegurar os serviços do ecossistema, equacionando mudanças nos padrões de consumo societário e nos de produção, bem como nos comportamentos sociais que prejudicam o ambiente, A sua complexidade exige abordagem socioecológica holística, e não apenas econômica ou conservacionista, que esteja atenta à justiça social, à universalização do acesso à educação e à saúde, à melhoria na qualidade de vida de toda a população e à equidade de gênero em contextos interculturais (étnicos, sociais e religiosos) diversos e que se comprometa e preocupe com as condições de vida das próximas gerações, Que futuro desejamos inscrever na história do século XXI?

Esta necessidade de responder de forma equitativa e universal às necessidades, exige reconhecer os processos territoriais holísticos como promotores de novas articulações e diálogos entre comunidade, mercado e estado.

Neste contexto, é fundamental dar especial relevância não apenas aos aspetos estruturais que condicionam a sustentabilidade, nas suas relações e manifestações sociais, culturais e ambientais, mas também à agência dos indivíduos, evidenciando os conhecimentos plurais que veiculam e os espaços de emancipação e democracia participativa que requerem.

Trata-se de um processo dinâmico e multidimensional que sugere que se tenha em conta a história das comunidades, as suas instituições, interações e a capacidade de construir o próprio destino, mobilizando o capital social para alcançar as metas comuns, segundo Fukuyama (1996)10 FUKUYAMA, F. Confiança: valores sociais e criação de prosperidade. Lisboa: Gradiva, 1996. e Putnam (1996).

Os documentos formais dos planos nacionais e internacionais têm integrado o envolvimento e participação das populações diretamente afetadas, não apenas para conseguir a sua adesão aos programas definidos, mas também recolher informação e, ao mesmo tempo, conhecer os seus saberes enquanto condição imprescindível para a promoção do desenvolvimento sustentável que produz mais e melhor bem-estar junto às populações locais, contribuindo, desta forma, para o sucesso desses tipos de governo, No entanto, são pouco conhecidos e debatidos os estudos que analisam a forma como se utiliza efetivamente a participação das populações e quais os seus impactos na promoção da sustentabilidade, São pouco valorizadas e aprofundadas as metodologias participativas que efetivamente confiram protagonismo e reconheçam a autoria dos processos de mudança transformadora. Não há lugar para mudanças de comportamentos, de atitudes, de práticas se elas não forem vistas como um processo em que todos os saberes, poderes e fazeres têm o seu lugar, em respeito às diferenças e às interculturalidades.

Aprender fazendo: democracia participativa e educação na cidadania

No contexto das chamadas ‘sociedades de risco’ (BECK, 19921 BECK, U. Risk Society: towards a new modernity. London: Sage, 1992.), a biodiversidade, tal como já referido mais acima neste texto, é campo complexo e exige estratégias complexas que podem passar, também, por uma valorização das situações de aprendizagem por meio da experiência. Para compreender e interpretar os desafios da biodiversidade, em primeiro lugar é necessário considerar as perspetivas científicas e especialistas (SANTOS, 1987, 2000; LATOUR, 198712 LATOUR, B. Science in action: how to follow scientists and engineers through society. Milton Keynes: Open University Press, 1987.). Em segundo, é fundamental para a sua compreensão, interpretação e promoção estar ciente da pluralidade externa do conhecimento, considerando o conhecimento leigo, tradicionalmente rejeitado por alguns setores da comunidade científica como essencial (SANTOS 200420 SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. G.; NUNES, J. A. Introdução - Para ampliar o cânone da ciência: a diversidade epistemológica do mundo. In: SANTOS, B. S. (Org). Semear Outras Soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Edições Afrontamento, 2004.), Como já explicitamos ao longo deste texto, no cruzamento da aprendizagem experiencial com o saber técnico-científico poderemos ter avanços significativos.

Esta constatação leva-nos a duas questões essenciais: a participação como direito construído a partir das possibilidades de cada um; e a valorização das aprendizagens informais que consideram a educação na cidadania e não somente para a cidadania. No primeiro caso, os estudos mostram que os mecanismos e esforços legais, que nas sociedades democráticas podem ajudar a garantir o direito à participação, têm mostrado que não basta ter direitos, é preciso ter condições para o seu exercício, A perspectiva precisa ir muito além da mera discussão legal para se tornar uma realidade, essencial na medida em que é, na prática, efetiva dos direitos legais, civis, políticos, culturais e econômicos nos quais consiste o exercício da cidadania.

No segundo caso, a aquisição e a capacidade reflexiva sobre o conhecimento é um processo complexo que começa na nascença e se apoia em todas as situações de aprendizagem ao longo da vida. Há numerosas instâncias de socialização que permitem o desenvolvimento da cidadania, ajudando a ter competências políticas e sociais. A família, a mídia, as associações locais e outras instituições, os locais de trabalho e estudo, os movimentos sociais, entre outras; de uma maneira geral, no discurso educativo, os mecanismos de educação informal, que encorajam a responsabilidade e o comportamento social nas atividades do cotidiano, não são compreendidos nem valorizados. Quando se fala de aprendizagem liga-se, sobretudo, à escolar, compreendida como escola. Designamos por educação formal um curso numa instituição escolar, o ensino básico até ao ensino superior, e por educação não formal todas as atividades organizadas e desenvolvidas para além da escolarização, mas que a ela se referem. Neste quadro, a aprendizagem informal aparece como uma categoria difusa, uma ‘caixa negra’22No sentido em que não se conhecem nem avaliam os efeitos e os processos deste nível de educação. um pouco à margem de quase todas as teorias educativas.

Em Portugal, como em outros países europeus, os programas de educação formal para a cidadania e ambiente contribuem, sobretudo, para o reconhecimento da capacidade deste nível de educação (cívica e ambiental), para favorecer aprendizagens escolares e democratizar as instituições, na medida em que são discutidos por várias instâncias, submetidos a consulta pelos sindicatos de professores e pais para melhorar o ensino e considerar o aluno um cidadão integrado e responsável, enfatizando aprendizagem individual: desenvolvimento pessoal, preparação para o futuro, atualização de conhecimentos; e subestimando as aprendizagens informais, cujos efeitos e processos são muito pouco conhecidos. Como afirma Pain (1990)15 PAIN, A. Éducation informelle: les effets formateurs dans le quotidien. Paris: L’Harmattan, 1990., as pessoas não aprendem somente nos espaços considerados e concebidos para serem educativos, mas em todas as idades, situações e lugares. Contudo, o cotidiano não e um espaço de rotina, mas uma fonte na qual se estruturam as aprendizagens ilustradas pela participação.

Neste texto, propomos o conceito de aprendizagem transformativa – aprender fazendo –, uma aprendizagem que não se desenvolve de forma linear e contínua, uma aprendizagem pela experiência, a partir de formas de participação desordenada e complexa em que se valorizam os conhecimentos, atitudes, competências, valores e práticas como essenciais para se compreender os significados da mudança para a qualidade de vida das pessoas ao longo de sua existência. Este conceito parece-nos particularmente importante no domínio da participação cidadã e democrática na medida em que a qualidade da participação baseia-se na dos seus participantes e a participação democrática alimenta-se da cidadã, ao mesmo tempo em que a aprendizagem cidadã melhora o processo de participação democrática. Promovendo e valorizando uma relação recíproca entre aprendizagem cidadã e participação democrática contribuímos para o desenvolvimento de cidadãos democratas e de democracias mais saudáveis, que contribuam para o DS.

Como comenta Schugurensky (2009)22 SCHUGURENSKY, D. Apprendre en faisant: démocratie participative et éducation à la citoyenneté. In: BROUGÈRE G; ULMANN A. L. Aprendre de la vie quotidienne. Paris: Puf, 2009., desde os trabalhos de Vygotsky, Dewey, Bandura e Eraut, entre outros, sobre a aprendizagem social, a aprendizagem não pode ser estudada sem levar em conta as atividades do cotidiano, a cultura e o contexto em que são produzidas. Berger e Luckmann (1976)2 BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade, Petrópolis: Vozes, 1976. contam que todo o conhecimento e construído socialmente e a maioria das aprendizagens ocorre nas interações sociais. A literatura, neste domínio, mostra que as aprendizagens situadas (informais) não são intencionais, mas frequentes incidentes não deliberados de grande intensidade subestimados pelos discursos educativos, Foley (1999)7 FOLEY, G. Learning in social action: a contribution to understanding informal education. New York: Zed Books, 1999., no seu trabalho sobre aprendizagem informal na ação social, sustenta que as aprendizagens mais interessantes e significativas são as que se desenvolvem em situação informal, evidenciando conhecimentos plurais que ajudam a criar espaços de emancipação e participação. Trata-se, neste caso, de compreender a relação entre a aprendizagem e a luta social pelo desenvolvimento sustentável. Os momentos de discussão e luta são particularmente formativos, na medida em que se trata de lutar para dar sentido ao que descobrimos e arranjar soluções para fazer alguma coisa. Neste caso, a aprendizagem é largamente informal e fortuita, desenvolvida na ação. São situações de resistência a visões ideológicas hegemônicas, O trabalho de Foley é muito interessante, pois explora e visibiliza diferentes exemplos ocorridos na Austrália em defesa da floresta. Os participantes adquiriram conhecimentos sobre ecologia, desenvolveram competências relativamente à complexidade da questão e organizaram-se de forma democrática para agir diretamente. Estamos perante o que Freire (1976)9 FREIRE, R Educação com prática de Liberdade. Lisboa: Dinalivro. 1976. chamava de conscientização, e Mezirow (1997)13 MEZIROW, J. Transformative learning: theory to practice. In: CRANTON, P (Ed.). New directions for adult and continuing education. San Francisco: Jossey-Bass, 1997. de tranformative learning. Os movimentos feministas, as lutas contra a violência doméstica e os movimentos sociais em defesa do ambiente, das cidades sustentáveis (cities for a small planet) são exemplos disso.

A experiência é efetivamente uma das mais importantes fontes e metodologias de aprendizagem, e mesmo considerando que toda a verdadeira educação se baseia na experiência, isso não significa, como se refere Dewey (1968)5 DEWEY, J. Experience et education. Paris: Armand Colin, 1968., que todas as experiências sejam igualmente educação. Diferentes pensadores, como Aristóteles, Rousseau, Tocqueville, Stuart Mill, Dewey e Paulo Freire, sustentam que a participação cidadã produz cidadãos responsáveis preparados para se envolverem na ação pública. A valorização das aprendizagens informais que levam à participação das populações nos assuntos que lhes dizem respeito é a chave para produzir intervenções mais eficazes e eficientes em matéria de conservação, incorporando as formas de vida local na formulação de políticas, elaboração de programas e sua gestão e implementação.

Apesar de serem já bastante divulgados, os estudos sobre a perda acelerada da biodiversidade não têm sido suficientes: há sempre uma distância entre o saber e o agir, como se refere Giddens (1989)11 GIDDENS, A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1989.. A ação depende da capacidade do indivíduo de criar uma diferença em relação ao estado das coisas ou curso de eventos pré-existentes, Um agente deixa de o ser se não tem poder para exercer a mudança. Por mais assustador que sejam os cenários futuros desenhados pelo saber perito (ou pela formação escolar), a conduta dos indivíduos segue marcada pela falta de participação e ação. São esperados os traços mais visíveis da mudança, mas muitas vezes com atraso para desencadear trajetórias de reversão, o que faz do paradoxo de Giddens (1989)11 GIDDENS, A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1989. um indicador do limite crítico do fenômeno da confiança em tempos de desencaixe espaço-temporal.

É neste sentido que o conceito de participação é aqui apresentado, não apenas como conceito, mas uma estratégia comum de diálogo entre todos os atores envolvidos na defesa da biodiversidade, O papel da pesquisa científica na informação política já é suficientemente reconhecido, mas a apropriação desse conhecimento pela política e decisores ainda é problemática. Um estudo realizado por Danielsen (2010)3 DANIELSEN, F. et al. Environmental monitoring: the scale and speed of implementation varies according to the degree of people’s involvement. Journal of Applied Ecology, London, v. 47, n. 6, dez 2010, p. 1166-1168., que analisa mais de 100 sistemas de monitorização dos recursos naturais, prova que a participação das comunidades locais é fundamental para o sucesso. Esta pesquisa mostra que a cidadania activa e a promoção de novas formas de democracia e governo é a estratégia central na luta pela biodiversidade. Valorizando os processos participativos para enfrentar estes desafios, reconhecendo a pluralidade de formas de cidadania, a pluralidade de linguagens e repertórios de ação apresentadas nos debates, compreenderemos o potencial da democracia participativa no desenvolvimento socioecológico do conhecimento.

Em síntese

Neste artigo tentamos mostrar que a pesquisa da biodiversidade deve integrar novas perspetivas e contributos das ciências biológicas, ciências sociais e do conhecimento local. A justificativa para esta abordagem é a necessidade de aceitar que a biodiversidade é um campo dominado por múltiplas tensões entre o conhecimento plural dentro da própria ciência e do conhecimento local, cuja compreensão é fundamental para responder aos desafios que enfrentamos em relação à biodiversidade. Neste sentido, parece ser necessário o desenvolvimento de metodologias/ferramentas e a aquisição de competências participativas, assim como a capacitação (empowering methods) para cumprir objetivos de conservação da biodiversidade e sustentabilidade.

Uma cultura da sustentabilidade pressupõe compreender que os maiores problemas ambientais, como, aliás, os maiores problemas sociais, só poderão ser resolvidos por meio de novas formas de gerir e conduzir a vida e de uma forte participação pública cidadã na tomada de decisões; não basta mobilizar; é preciso participar ativamente. E é aceitando o desafio das diferentes ciências e saberes plurais, compreendendo a ligação entre elas, que chegaremos a um consenso que nos permite uma ação mais contextualizada, evitando os desencontros temporais de que nos fala Giddens (1989)11 GIDDENS, A. A constituição da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1989..

Para haver mudança é, no entanto, necessária uma relação proveitosa entre a aprendizagem e a ação. Nesse sentido, propomos que se valorizem os projetos de educação informal, desenvolvendo o conceito de aprendizagem transformativa, a par de outras formas de aprendizagem pela experiência.

Na medida em que a aquisição de competências participativas vai além da mera discussão legal para se tornar questão essencial, enquanto, na prática, é efetiva dos direitos legais, civis, políticos, culturais e econômicos, é necessário construir para o século XXI uma cidadania simultaneamente social e política, uma cidadania ambiental que encoraje a participação e valorize o diálogo e articulação entre distintos saberes-poderes.

  • 1
    Conceito desenvolvido por Habermas utilizado por Estanque (2006)6 ESTANQUE, E. A questão social e a democracia no início do sé culo XXI: participação cívica, desigualdades sociais e sindicalismo. Revista Finisterra, Lisboa, v. 55-56-57, jan-dez 2006, p. 77-99). para explicitar o agir comunicativo.
  • 2
    No sentido em que não se conhecem nem avaliam os efeitos e os processos deste nível de educação.

Referências

  • 1
    BECK, U. Risk Society: towards a new modernity. London: Sage, 1992.
  • 2
    BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade, Petrópolis: Vozes, 1976.
  • 3
    DANIELSEN, F. et al. Environmental monitoring: the scale and speed of implementation varies according to the degree of people’s involvement. Journal of Applied Ecology, London, v. 47, n. 6, dez 2010, p. 1166-1168.
  • 4
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  • 5
    DEWEY, J. Experience et education. Paris: Armand Colin, 1968.
  • 6
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jun 2012
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