Crack, a pedra lançada no SUS: desafios para uma atenção necessária

Crack, the stone thrown at the SUS (Unified Health System): challenges for attention required

Renata Barreto de Almeida Marcus Túlio Caldas Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque Alda Roberta Campos Sobre os autores

RESUMO

Com o objetivo de cartografar a experiência de usuários de crack em Recife, este estudo foi desenvolvido com usuários de crack em tratamento, totalizando 12 entrevistas. A pesquisa foi qualitativa de inspiração fenomenológica pautada no pensamento de Husserl e1 no método de Giorgi. Este método inclui 04 passos: O sentido do todo; Discriminação de Unidades de Significados; Compreensão psicológica das Unidades de Significados; Composição de sínteses especificas e gerais. As Unidades de Significado apontaram diversos aspectos e nesse artigo destacaremos 04: O crack como experiência de ser dependente; As marcas do início de um caminho. O significado do encontro com a pedra; e a sensação do consumo do crack. Diante da complexidade das questões, grandes desafios estão postos para o cuidado aos usuários de crack. Torna-se fundamental uma reflexão contínua sobre essa prática.

PALAVRAS-CHAVES
Pesquisa qualitativa; Cocaína; Crack; Saúde Pública

ABSTRACT

In order to map the experience of crack users in Recife, this study was developed with crack users in treatment, totaling 12 interviews. The research was qualitative phenomenological inspired by Husserl's theory and Giorgi's method. This method includes 04 steps: The sense of the whole; Discrimination Unit Meanings; Psychological comprehension of the Units Meanings; composition syntheses specific and general. Units of Meaning pointed several aspects and in this article we will highlight 04: The crack as the experience of being dependent; The marks of the beginning of a path; The significance of the encounter with the stone; and feeling the consumption of crack. Given the complexity of the issues, major challenges facing the care of crack users. It is fundamentally a continuous reflection on this practice

KEYWORDS:
Qualitative research; Cocaine; Crack; Public Health

Introdução

Consumir drogas, segundo Bucher e Lucchini (1992)BUCHER, R.; LUCCHINI. R. Drogas e Drogadição no Brasil. Porto Alegre, Artes Médicas, 1992., corresponde a uma prática milenar e universal. Desde os primórdios da humanidade, o consumo de drogas está presente em todas as sociedades, porém, esse consumo varia de acordo com o modo de uso, seus objetivos e seu alcance. Portanto, o uso de drogas data de tempos remotos e envolve questões culturais, religiosas, econômicas, políticas e sociais.

Simões (2008)SIMÕES, J.A. Prefácio. In: DROGAS E CULTURA: novas perspectivaso Salvador, EDUFBA, 2008. afirma que o consumo de substâncias psicoativas popularmente chamadas como “drogas” é um fenômeno recorrente e disseminado nas sociedades humanas, em diferentes momentos de suas histórias. “Drogas” não são somente compostos dotados de propriedades farmacológicas determinadas, que possam ser natural e definitivamente classificadas como boas ou más. Sua existência e seus usos envolvem questões complexas de liberdade e disciplina, sofrimento e prazer, devoção e aventura, transcendência e conhecimento, sociabilidade e crime, moralidade e violência, comércio e guerra.

Várias são as substâncias que no decorrer de nossa história foram utilizadas de diversas formas e para diferentes fins. Poderíamos dedicar todo este trabalho para uma análise geral do consumo de drogas em nossa sociedade, mas essa não é a temática que nos inquieta. Diante de nossos estudos, ficou muito claro que o uso de substâncias psicoativas, para tirar o ser humano de seu estado de consciência, sempre pertenceu à história da humanidade, sempre fez parte das experiências individuais e coletivas da nossa sociedade em suas diferentes culturas.

Apesar de ter claro todo esse contexto histórico do uso das drogas pelos seres humanos, uma substância, em especial, nos provocou maior curiosidade, tanto de conhecer a sua história de consumo, quanto como chegou à atualidade de forma tão devastadora. Na verdade, sentíamos a necessidade de conhecer o caminho traçado pelo homem para chegar ao uso do crack, um derivado da cocaína, planta utilizada há tempos remotos para diferentes finalidades. Essa curiosidade surgiu a partir do momento em que nos questionávamos a respeito das pessoas que utilizam essa droga. O que existe de diferente em sua composição que traz tamanha compulsão? Para isso foi preciso conhecer a fundo de que substância estávamos falando e porque, hoje, o crack se transformou numa grande preocupação para a saúde pública.

Assim, da folha à pasta, da pasta ao pó, do pó à pedra foi se constituindo o caminho farmacológico do crack, substância tão utilizada na atualidade que vem ganhando a conotação de destruição, devastação, compulsão.

Segundo Ferreira e Martini (2001)FERREIRA, P. E. M.; MARTINI, R. K. Cocaína: lendas, história e abuso. Revista Brasileira de Psiquiatria, v.23, n. 2. 96-99. São Paulo, 2001. o envolvimento humano com substâncias psicoativas, em especial a cocaína, remontam a um passado longínquo. O abuso de cocaína tem suas raízes nas grandes civilizações pré-colombianas dos Andes que, há mais de 4500 anos, já conheciam e utilizavam a folha extraída da planta Erythroxylon coca ou coca boliviana. Para Bucher (1992)BUCHER, R.; LUCCHINI. R. Drogas e Drogadição no Brasil. Porto Alegre, Artes Médicas, 1992. esses vestígios antigos demonstram o valor cultural, religioso e também alimentício da planta.

Bucher e Lucchini (1992)BUCHER, R.; LUCCHINI. R. Drogas e Drogadição no Brasil. Porto Alegre, Artes Médicas, 1992. acrescentam que, além do valor cultural e religioso da coca, expresso nos rituais das celebrações indígenas, cabe mencionar dois aspectos importantes para compreender melhor a presença contínua da planta no cotidiano dos andinos: os valores medicinais e alimentícios. Enquanto valor medicinal as folhas da coca constituem, hoje como antigamente, uma das peças chave da farmacopeia andina. Elas são usadas contra distúrbios intestinais e diarreias, para curar reumatismos, luxações e contusões, dores de dente e convulsões entre outras; enquanto valor alimentício as folhas secas da planta contém mais calorias do que a maioria dos alimentos sul-americanos, como milho, mandioca e feijão; elas são ricas em proteínas, glicídios, cálcio, fósforo e ferro, e contém numerosos microelementos e vitaminas indispensáveis para a alimentação humana.

Ferreira e Martini (2001)FERREIRA, P. E. M.; MARTINI, R. K. Cocaína: lendas, história e abuso. Revista Brasileira de Psiquiatria, v.23, n. 2. 96-99. São Paulo, 2001. comentam, ainda, que os primeiros relatos europeus sobre esse vegetal são de autoria de Américo Vespúcio (1499), publicados em 1507, nos quais descreve a coca sendo mastigada com cinzas. A sua ação farmacológica, quando mascada, é semelhante ao estímulo provocado pela ingestão de doses elevadas de cafeína, não sendo, no entanto, acompanhada de euforia. Os hispânicos não reconheceram esse valor cultural, e, em 1551, o Conselho Eclesiástico de Lima declarou ser a coca “uma planta enviada pelo demônio para destruir os nativos”; ela seria um obstáculo para a difusão do cristianismo, explicando o insucesso de muitas campanhas de conversão. A proibição não durou muito tempo, pois os espanhóis constataram que os índios não conseguiam fazer o trabalho pesado sem o uso de coca. Em 1569, O Rei Felipe II da Espanha declarou o ato de mascar a coca como um hábito essencial à saúde do índio.

Segundo Nappo (1996)NAPPO, S.A. “Baquêros” e “Craquêros: um estudo sobre o consumo de cocaína na cidade de São Paulo. 1996. Tese (doutorado). Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina, 1996.; Ferreira e Martini (2001)FERREIRA, P. E. M.; MARTINI, R. K. Cocaína: lendas, história e abuso. Revista Brasileira de Psiquiatria, v.23, n. 2. 96-99. São Paulo, 2001.; Oliveira (2007)OLIVEIRA, L. R. Avaliação da cultura do uso de crack após uma década de introdução da droga na cidade de São Paulo. 2007. Tese (doutorado). Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2007., entre os anos de 1859 e 1860, o químico Albert Niemann isolou, pela primeira vez, o alcaloide principal das folhas de coca, denominando-o por cocaína, sendo que em 1898 foi descoberta a fórmula exata de sua estrutura química. Em 1902, Willstatt (prêmio Nobel) produziu cocaína sintética em laboratório. Sob a forma de cloridrato de cocaína, a cocaína forma um pó branco cristalino (FERREIRA; MARTINI, 2001FERREIRA, P. E. M.; MARTINI, R. K. Cocaína: lendas, história e abuso. Revista Brasileira de Psiquiatria, v.23, n. 2. 96-99. São Paulo, 2001.).

A cocaína, de nome químico benzoylmethylecgonina, é anestésico local com propriedade simpatomimética, que produz resposta estimulatória sobre o Sistema Nervoso Central (SNC) pela qual é comumente empregada como fármaco de abuso ou com fins recreativos. A capacidade de produzir reforço positivo é atribuída à ação sobre as vias dopaminérgicas mesocortical e mesolímbica, comumente envolvidas nos mecanismos de euforia (OLIVEIRA, 2007OLIVEIRA, L. R. Avaliação da cultura do uso de crack após uma década de introdução da droga na cidade de São Paulo. 2007. Tese (doutorado). Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2007.).

Segundo Nappo (1996)NAPPO, S.A. “Baquêros” e “Craquêros: um estudo sobre o consumo de cocaína na cidade de São Paulo. 1996. Tese (doutorado). Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina, 1996., a latência para o início dos efeitos da cocaína e a intensidade dos mesmos depende da via utilizada. As vias endovenosas e pulmonares dão curvas praticamente indistinguíveis no pico de concentração plasmática e na dissipação destes níveis. As vias orais e nasais também se equivalem nos tempos para atingir os valores de concentração e dissipação plasmática, tempos esses que são maiores do que para aqueles das outras duas vias.

Apesar do pico de concentração plasmática ocorrer imediatamente após a injeção de cocaína, não é através dessa via que os efeitos centrais dessa droga dão-se mais rapidamente. Enquanto que pela via venosa os efeitos surgem em 3 a 5 minutos, pela pulmonar, a droga alcança o cérebro em 10 a 15 segundos.

O crack, segundo Nappo (1996)NAPPO, S.A. “Baquêros” e “Craquêros: um estudo sobre o consumo de cocaína na cidade de São Paulo. 1996. Tese (doutorado). Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina, 1996., é absorvido através da árvore brônquica, alcançando os alvéolos, região muito vascularizada e extensa levando a uma absorção instantânea. Por esta via há um “desvio” do sistema nervoso porque o fluxo venoso sanguíneo dos pulmões ao coração é impulsionado diretamente através da veia pulmonar e desta à aorta, indo para a circulação cerebral, encurtando o caminho para o SNC. Por outro lado, a via intravenosa é mais longa que a anterior por seguir o sistema de retorno do sangue venoso através da veia cava para o lado direito do coração, daí pata os pulmões, antes de retornar ao lado esquerdo do coração para a distribuição ao cérebro.

Segundo Oliveira (2007)OLIVEIRA, L. R. Avaliação da cultura do uso de crack após uma década de introdução da droga na cidade de São Paulo. 2007. Tese (doutorado). Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2007., a influência no poder de decisão e adesão a uma droga depende não só dos aspectos farmacocinéticos e farmacodinâmicos, acima descritos, como também de fatores ambientais e sociais. Destaca a facilidade de acesso (em termos de preço e distribuição) que possibilita que pequenas quantidades de cocaína de alta qualidade se tornem disponíveis a pessoas de baixa condição socioeconômica e a estudantes de ensino médio. A facilidade do uso também deve ser considerada. Como o crack é fumado em cachimbos ou cigarros, o uso da parafernália e da variedade de reagentes químicos então empregados ao uso de injetáveis tornou-se desnecessária, facilitando assim o uso e a adesão ao crack. Além disso, socialmente, o ato de fumar é amplamente aceito e os riscos associados ao crack, no que se refere ao contágio e transmissão por HIV, tem sido compreendidos como consideravelmente menores.

Segundo os estudos de Ribeiro & Perrenoud (2010), o crack surgiu entre 1984 e 1985 nos bairros pobres e marginalizados de Los Angeles, Nova York e Miami. A droga era obtida através de um processo caseiro e utilizada em grupos, dentro de casas com graus variados de abandono e precariedade (crack houses). Os cristais eram fumados em cachimbos e estralavam quando expostos ao fogo, característica que lhe deu o nome. A utilização dessa substancia produzia uma euforia de grande magnitude e de curta duração, seguida de imensa fissura e desejo de repetir a dose.

Estudos de Duailibi, Ribeiro, e Laranjeira (2008)DUAILIBI, L.B.; RIBEIRO, M.; LARANJEIRA, R. Profile of cocaine and crack users in Brazil. Cadernos de Saúde Pública, v. 24, suppl.4. 545-557. São Paulo, 2008. mostram que o perfil dos usuários de crack são de jovens, desempregados, baixa escolaridade, baixo poder aquisitivo, proveniente de famílias desestruturadas, com antecedentes de uso de múltiplas drogas e comportamento sexual de risco. Entre os usuários de crack, o padrão compulsivo de consumo é o mais recorrente, com duração de vários dias e múltiplos episódios, intercalados, muitas vezes, por crimes aquisitivos pela falta de dinheiro para comprar mais droga e interrupção condicionada à exaustão física e psicológica (OLIVEIRA; NAPPO, 2008OLIVEIRA, L.R.; NAPPO, A.S. Crack na Cidade de São Paulo: acessibilidade, estratégias de mercado e formas de uso. Revista de Psiquiatria Clínica, v. 35, n. 6, p. 212-218, 2008.).

Diante da magnitude do problema, estudar as implicações do consumo do crack em nossa sociedade é de fundamental importância para a Saúde Pública, uma vez que, na atualidade, o tema vem sendo amplamente discutido em todos os segmentos sociais e o consumo desta droga continua crescendo na população como um todo. Várias são as pesquisas epidemiológicas sobre o tema, porém, pouco se sabe sobre questões mais subjetivas desse usuário, principalmente: como se sentem como dependentes do crack? Como foi o percurso de uso até chegar à dependência química? Qual o significado do crack na vida do usuário? E qual a sensação descrita por eles? Enfim, vários são os questionamentos elencados para justificar o tema escolhido nesta pesquisa.

Metodologia

Esse trabalho foi desenvolvido a partir de um método qualitativo numa perspectiva fenomenológica. Para Dencker (2001)DENCKER, A.F.M. Pesquisa empírica em ciências humanas (como ênfase em comunicação). São Paulo: Futura, 2001., na pesquisa qualitativa, a preocupação com o processo é muito maior do que com o produto; o interesse do pesquisador é verificar como, e de que maneira, o problema se manifesta no cotidiano.

De acordo com Moreira (2004)MOREIRA, D. A. O Método Fenomenológico na Pesquisa. São Paulo: Pioneira Thomsom Learning, 2004., a pesquisa qualitativa envolve a obtenção de dados descritivos, provenientes do contato direto do pesquisador com a situação estudada, enfatizando a perspectiva dos participantes e seus significados. O foco é no ser humano, enquanto agente, e sua visão do mundo é o que se busca. Não há uma busca pela generalização, porque são os fenômenos individuais ou experimentados na amplitude social que são estudados no campo das Ciências do Homem. Obviamente, não são reproduzíveis, e o que se quer na pesquisa qualitativa é, de modo deliberado, conhecer cientificamente o particular.

Nesse contexto, o principal objetivo da pesquisa fenomenológica é apreender o sentido da vivência imediata para uma pessoa em uma determinada situação (FORGHIERI, 2002FORGHIERI, Y. C. Psicologia Fenomenológica:fundamentos, método e pesquisa. 2. ed. São Paulo: Pioneira Thomsom Learning, 2002.). Há uma preocupação com o vivido e a aproximação do que nele está contido como significado potencial frente a uma problemática trazida pelo pesquisador. É diante dessa indagação que o vivido se manifesta. Segundo Amatuzzi (2001)AMATUZZI, M.M. Por uma psicologia humana. Campinas: editora Alínea, 2001. o vivido, então, é a nossa reação interior imediata àquilo que nos acontece, considerada anteriormente a qualquer reflexão e elaboração posterior por parte do sujeito. Essa definição traz consigo a possibilidade de denominar o vivido como experiência imediata ou sentimento primeiro. É esse vivido que se manifesta ao pesquisador como resposta a uma pergunta que ele traz.

Holanda (2002)HOLANDA. A. F. O resgate da fenomenologia de Husserl e a pesquisa em psicologia. 2002. Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade Católica, Campinas, 2002., afirma que com a fenomenologia, Husserl sugere o “retorno as coisas mesmas”, à essência dos fenômenos, e isso só se tornou possível por meio do seu método de investigação filosófica, o qual foi chamado de redução fenomenológica.

A redução fenomenológica é o método básico da pesquisa fenomenológica. Nesta, o pesquisador não duvida da existência do mundo, mas a coloca entre parênteses, pois o mundo existente não é o tema verdadeiro, e sim a forma como O conhecimento do mundo se revela. O pesquisador suspende suas crenças acerca da existência externa dos objetos da consciência e também suas opiniões. Examina os conteúdos da consciência, não para determinar quais são reais ou não, mas para vê-los como tal e descrevê-los puramente (MOREIRA, 2004MOREIRA, D. A. O Método Fenomenológico na Pesquisa. São Paulo: Pioneira Thomsom Learning, 2004.).

Segundo Giorgi (2008)GIORGI. A. Sobre o método fenomenológico utilizado como modo de pesquisa qualitativa nas ciências humanas: teoria, prática e avaliação. In: POUPART, J. et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 386-409. adotar a redução fenomenológica leva, de um lado, a excluir os acontecimentos passados relativos a um fenômeno, a fim de apreendê-lo em toda a inocência e descrevê-lo exatamente tal como se tem dele a experiência; e, de outro, a reter todo o indício existencial, ou seja, a considerar aquilo que é dado, unicamente tal como é dado, a saber, uma presença ou um fenômeno. É por meio da análise fenomenológica que se torna possível retornar ao vivido e ao sentido que nele está contido, sempre diante das indagações do pesquisador.

Retomando os conceitos de Husserl, que propôs a redução fenomenológica como método para se chegar à essência do fenômeno, alguns pesquisadores da psicologia transpuseram tal compreensão para a área da pesquisa (HOLANDA, 2002HOLANDA. A. F. O resgate da fenomenologia de Husserl e a pesquisa em psicologia. 2002. Tese (Doutorado). Pontifícia Universidade Católica, Campinas, 2002.). Um exemplo disso são os passos de análise propostos por Giorgi (2008)GIORGI. A. Sobre o método fenomenológico utilizado como modo de pesquisa qualitativa nas ciências humanas: teoria, prática e avaliação. In: POUPART, J. et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 386-409. os quais foram escolhidos para a elaboração dessa pesquisa, pois permitem que expenências potenciais importantes possam ser trazidas à luz, desvelando o fenômeno que se deseja apreender a partir de uma pergunta disparadora.

Segundo a proposta de Giorgi (1985GIORGI, A. Sketch of psychological methodology. Phenomenology and psychological Research 8-22. Pittsburg: Duquesne University Press, 1985., 2008GIORGI. A. Sobre o método fenomenológico utilizado como modo de pesquisa qualitativa nas ciências humanas: teoria, prática e avaliação. In: POUPART, J. et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 386-409.) os dados podem provir de uma simples descrição ou de uma entrevista, ou da combinação das duas. As questôes são amplas e abertas, a fim de deixar o sujeito exprimir abundantemente seu ponto de vista. O que se pretende obter é uma descrição concreta e detalhada da experiência e dos atos do sujeito, que seja tão fiel quanto possível ao que ocorreu, tal como ele o viveu. Após a coleta dos dados, alguns passos são seguidos, para que o método proposto seja corretamente desenvolvido:

1° passo - deverá buscar-se o sentido do todo, a partir da leitura do depoimento do sujeito. Teremos a visão global das descrições, visando captar seu sentido diante dos objetivos da pesquisa. O pesquisador deve fazer a leitura das descrições quantas vezes forem necessárias. Não se buscará tematizar cada um dos aspectos da descrição com base na leitura global. Nesse momento, se evitará tematizar cada um dos aspectos da descrição e se buscará o sentido do todo.

2° passo - haverá a discriminação das Unidades de Significado (US). Para a divisão do texto em US, o pesquisador volta a recorrer ao texto transcrito, na íntegra, para sensitiva e espontaneamente perceber os momentos em que ocorreram mudanças na temática estudada, procedendo a uma quebra do texto. Cada vez que o pesquisador percebe uma mudança de sentido, ele posiciona a direção e, depois, prossegue sua leitura até a US seguinte e, assim, sucessivamente. As US não existem como tais “nas descrições”, mas resultam da atitude e da atividade do pesquisador.

3° passo - se dá no sentido da compreensão psicológica de cada US através da transcrição de cada uma delas em linguagem psicológica. Esse item é conseguido através de um processo de reflexão e variação imaginativa. Interessa, ao pesquisador, a profundidade adequada para o entendimento das vivências. Uma vez constituídas as US, elas são examinadas, exploradas e descritas novamente, de modo a tornar mais explícito o valor de cada unidade em relação à disciplina.

4° passo - se dá no sentido da interpretação das descrições, através da composição de sínteses específicas e gerais, extraindo-se daí a estrutura do vivido. Essa etapa é obtida através de informações das US em declarações consistentes da estrutura do fenômeno. Na síntese final, que permitirá ao pesquisador integrar as compreensões contidas no processo, todas as US transformadas devem ser levadas em consideração.

A coleta de dados

A pesquisa foi desenvolvida em unidades de tratamento para a dependência química no município de Recife. Na rede pública os seis CAPSad do Município foram contemplados na pesquisa, e o Instituto RAID representando a rede privada de tratamento.

Todas as entrevistas foram feitas em espaço adequado quanto à ventilação e ao isolamento acústico para que o usuário sentisse conforto e segurança com relação ao sigilo do que era descrito em sua experiência com o crack.

Considerando o método qualitativo, foi decidido, pela seleção intencional da amostra, escolher aqueles participantes que estivessem vivenciando o fenômeno sob estudo, os denominados casos ricos em informação. Buscou-se a maior variedade possível de casos, de maneira a contemplar as diferentes formas de viver o fenômeno.

Assim, a pesquisa foi realizada com 12 usuários de crack indicados pelas equipes técnicas das instituições que participaram da pesquisa, sendo 10 do sexo masculino e dois do sexo feminino, com idades que variaram entre 19 e 39 anos. Os critérios de inclusão dos participantes foram: ser maior de 18 anos, estar em qualquer modalidade de tratamento nas instituições escolhidas para o desenvolvimento da pesquisa e ter a capacidade de responder a pergunta disparadora formulada na entrevista, de uma forma organizada e coerente, para que sua experiência diante do consumo de crack pudesse ser compreendida sem muita interferência do pesquisador.

Os nomes dos entrevistados, nesta pesquisa, foram substituídos por uma pedra preciosa, a fim de que o sigilo pudesse ser preservado. Os participantes da pesquisa distribuíram-se quanto idade, sexo e pedra preciosa.

Resultados

Antes de analisar as Unidades de Significado (US) referentes às experiências dos usuários, acreditamos que seja importante algumas reflexões acerca das entrevistas e dos usuários que participaram da pesquisa. Na metodologia, a opção foi por desenvolver o trabalho de campo em instituições públicas, CAPSad, e no Instituto RAID, uma instituição privada. Apesar dessa distinção, não houve a pretensão de fazer nenhum estudo comparativo. Apenas a busca pela escuta das experiências de usuários em contextos diferentes.

O tempo de uso da droga entre os usuários entrevistados variou entre 3 e 19 anos. Dos 12 entrevistados apenas 4 tinham menos de 5 anos de uso do crack, o que, de certa forma, vai de encontro ao que é divulgado na mídia: os usuários de crack têm pouquíssimo tempo de vida. Alguns relataram um tempo significativo de controle no uso do crack, outros trazem a compulsão precocemente. Em seus relatos, é nítido um uso prejudicial do crack, mas não, necessariamente, um uso que leve à morte. Isso nos faz questionar: é possível que algumas pessoas consigam estabelecer estratégias para que o consumo do crack possa existir sem o estigma da morte tão presente? Claro que, como dito anteriormente, todos trazem, ao final de suas experiências, uma compulsão muito grande, um uso prejudicial intenso, que os levaram a procurar ajuda, tendo aderido a um tratamento. Neste trabalho, não pudemos tirar conclusões mais detalhadas diante dos tipos de usuários de crack, uma vez que esse não era o objetivo da pesquisa, mas esse questionamento despertou uma curiosidade que pode ser foco de um outro trabalho científico junto a essa população.

Outro ponto a ser destacado é que todos os usuários participantes da pesquisa já tinham experiências com outras drogas, sejam lícitas ou ilícitas, onde o álcool sempre foi a mais citada. Essa característica já foi apontada anteriormente por um estudo desenvolvido por Sanchez e Nappo (2002)SANCHEZ, Z. V. D. M; NAPPO, A.S. Sequencia de drogas consumidas por usuários de crack e fatores interferentes. Revista de Saúde Pública, v. 36, n. 4. p. 420-430. São Paulo, 2002.. No presente trabalho, além do álcool ser a droga mais citada, vários usuários o referem como uma substância gatilho para o uso do crack, isto é, após o uso do álcool, a compulsão ou a falta de controle diante do crack aumenta bastante.

Enfim, depois dessas considerações, partiremos para a compreensão das US referentes às experiências de ser dependente; as marcas do início de um caminho e o significado do encontro com a pedra - a descoberta de uma pedra preciosa e a sensação do consumo do crack. As Unidades de Significado são as temáticas mais importantes das experiências de cada usuário.

O crack como experiência de ser dependente

Esta Unidade de Significado (US) retrata como os usuários conseguiram descrever o que é estar dependente do crack. A grande maioria retrata esta experiência de uma forma bem significativa e intensa. A falta de controle sobre a substância é algo marcante nesse momento. São frequentes as internações hospitalares como consequência desse uso intenso. Os usuários relatam outras ‘internações’ que podem ser em diversos locais, onde durante dias consomem crack praticamente sem intervalo e sem envolvimento em outras atividades. Dos 12 usuários entrevistados, 8 trouxeram esta US como uma experiência característica do uso do crack, nenhuma outra droga traz tanta dependência e compulsividade. Alguns trechos retratam essa experiência.

“Quando eu começava não queria parar não ... depois que eu tive um ataque de convulsão, quase que eu morria... Eu tive um ataque porque usei 50 gramas em 3 dias, sozinho, ai fui parar no hospital morrendo, os caras me internaram porque eu estava fraco demais, estava com 40 quilos. Fui internado no Getúlio e passei 6 meses lá, fiz um bocado de exame pra ver se eu tinha alguma coisa, mas não deu nada não. Eu saí, ainda fiz uso e depois vim pra cá.” (Rubi, M, 19a.).

“É muito difícil parar e quando tinha muita, porque eu sempre só fumava de muito, eu ficava lá, não saia não, só saia quando acabava, passava a noite todinha e o dia. Cheguei a passar 2 dias direto sem dormir. E tomo fumando, via a hora dá uma overdose mesmo. Já caí uma vez no chão batendo por causa do crack, começo de overdose. E ai, continuei direto, na mesma hora quando eu levantei assustado, continuei fumando, não tive aquela sensação de parar na hora, já que eu cai batendo ali, continuei fumando direto. Eu sou viciado mesmo”. (Quartzo, M, 20a.).

“Me viciei e o corpo começou a pedir a droga ... todo dia tinha que ter a minha pedra por que eu não conseguia dormir, eu não conseguia comer se eu não tivesse usado ela pelo menos uma vez ao dia é... o corpo pedia, o corpo já estava pedindo aquela pedra. Tinha vez que eu sentia muita tontura, tinha alucinações ... A adrenalina era tanta que era um desejo de não parar mais, de morrer, se a pessoa morre ali se tiver, vamos dizer um quilo ele fuma aquilo tudo”. (Água-marinha, M, 32a.).

“Nunca consegui me prender a nada disso, como me prendi ao crack de passar 2, 3 dias no mesmo lugar, com a mesma roupa, sem tomar um banho e fumando, fumando e fumando... Nunca, nunca aconteceu isso.”(Topázio, M, 29a.).

“Na primeira internação minha eu passei 8 horas vomitando, por conta da abstinência sem o uso da droga, o corpo pedindo. Isso é o fisico. O psicológico é a irritação, irritabilidade, você se tornar agressivo, não ter paciência com ninguém, você nem se aguentava. Você não pode nem olhar para o espelho. O fisico chegou a um ponto de eu até vomitar antes de usar, com a ânsia de fazer o uso, de ter o prazer daquele momento e esse prazer de eu ter antes era quase fatal, eu buscava esse prazer sempre, sempre e sempre, podia ter todos os dias, todos os dias.” (Turquesa, M, 23a.).

“... só via a pedra e a maconha, a pedra e a maconha. Minha mãe, meu pai, minha família todos ficam pra depois, tudo fica pra depois. Enquanto eu não terminar eu não vou, é um exemplo de quem usa o crack ou o mesclado, o isolamento de sair nervoso quando acaba sai nervoso procurando em tudo quanto é canto pede dinheiro emprestado. ” (Pérola, F, 21a.). “O crack você sonha com o crack, você sonha fumando, você sonha comprando, você sonha e você acorda e você vai atrás e ele começa a fazer parte de grande parte do seu cotidiano se volta para o uso ou a recuperação ou a compra do crack, ou seja ele chega e domina, domina mesmo.” (Diamante, M, 30a.).

Na dramaticidade das Unidades de Significado acima podemos observar o quanto o corpo de cada um sente a falta da substância. Água-marinha, Turquesa e Diamante retratam bem esse contexto. São sensações de insônia, inapetência, sonhos, compulsão. É muito difícil controlar o uso nessa fase de descontrole da droga. Tudo leva ao consumo, tudo pede a droga.

A experiência de internações também é outro aspecto bem significativo na vida desses usuários quando referem a consciência da dependência. Rubi e Turquesa retratam esse aspecto como o final do túnel. Não existia outra opção a não ser a internação. São convulsões, fraqueza, incapacidade de controlar o uso que beira a overdose. Ou a internação ou correr o risco de morrer usando o crack.

Descrever essa experiência é descrever a compulsão, a falta de controle. É ter a certeza de que não consegue viver sem consumir aquela substância, a liberdade de escolha desaparece e dá lugar a dependência, a falta. de escolha, como afirma Pérola, ‘tudo fica pra depois’. São horas, dias a fio consumindo sem parar por mais que o limite do corpo aponte para o insuportável. É a dependência!

Quartzo e Topázio falam do uso compulsivo e ininterrupto por dias. O crack passa a ser a única atividade nesse período, sem alimentação ou qualquer outro cuidado com o corpo, consigo mesmo. Quartzo refere, inclusive, uma experiência de convulsão que não o impediu de retomar o uso assim que voltou ao seu estado de consciência. Todos têm a certeza que se tornaram dependentes dessa pedra.

As marcas do início de um caminho

Esta Unidade de Significado traz o que levou os usuários a experimentarem o crack. Quais as principais motivações na experiência de cada um que fez com que o crack entrasse em suas vidas. Assim:

“Eu comecei a usar o crack porque a turma falou que era bom, eu vi a turma usando...” (Ágata, M, 34a.).

“Eu entrei no crack no momento que eu estava trabalhando, com muito dinheiro, já tinha me envolvido com cocaína que é uma droga estimulante, e pela falta do uso da cocaína eu experimentei o crack com um amigo”. (Turquesa, M, 23a.).

“Veio substituindo a cocaína que eu era dependente de cocaína, ai como a cocaína era um material muito caro aqui, ai me foi apresentado ao crack.” (Turmalina, M, 37a.).

“Eu conheci o crack quando eu ia pra uma confraternização toda quarta-feira com os amigos em Aldeia, jogar futebol e tinha sempre o ritual: o pessoal bebia, cheirava lança, fumava maconha, tinha o uso de drogas até que apareceu o crack. E ai eu experimentei sem saber na maconha, senti uma sensação diferente, uma euforia e gostei do primeiro momento do efeito, perguntei o que era e me disseram.” (Ametista, M, 37a.).

“É as pessoas começaram a deixar de fumar a maconha pra começar a fumar o mesclado que era a maconha misturado com o crack e eu comecei a experimentar também de uma maneira bem inconsequente e irresponsável.” (Diamante, M, 30a.).

“O crack você fuma a princípio, da minha parte e acredito da parte de todos por curiosidade.” (Safira, M, 30a.).

Nessa Unidade de Significado podemos perceber a influência dos amigos como fator que mais levou esses usuários a consumirem o crack pela primeira vez, seguido da curiosidade em saber qual a sensação diante daquela droga tão falada. O ambiente é um fator facilitador para esse consumo inicial, o que se contrasta com o experimentado no momento da compulsividade em que o uso passa a ser bem individualizado. Na compulsão os usuários optam pelo isolamento pata evitar sensações maiores na paranoia. Quanto mais gente ao redor, maiores os delírios de perseguição.

Turquesa e Turmalina trazem a falta ou o alto valor da cocaína como fator decisivo para o início do uso de crack. Ambos faziam uso da substância em pó, da forma intranasal e pela dificuldade de continuar este uso elegem o crack para substituir esse consumo. Percebem um efeito mais intenso e optam pelo uso do crack a partir de então.

Ametista traz um fato interessante, iniciou o uso do crack sem saber que o estava consumindo. Era usuário frequente de maconha e, como sempre fumou esta droga, se deparou com uma sensação diferente. Quando procurou saber, descobriu que na verdade estava fumando o mesclado (maconha e crack). Gostou da nova sensação e deu continuidade ao uso até à compulsão.

Vários são os fatores que levam as pessoas a usarem essa ou aquela substância. É curioso que no senso comum o consumo de drogas ditas ‘pesadas’ é sempre apontado como algo negativo, isto é, que aquela pessoa está passando por muitos problemas e que a droga chega para resolvê-los. Nas experiências desses usuários, o crack aparece de uma forma muito tranquila, por curiosidade, para se sentir pertencendo a um determinado grupo de amigos, enfim, como em qualquer outra droga se busca as sensações que a mesma traz, o fato de sair daquele determinado estado de consciência, movimento tão característico do ser humano.

Ter a curiosidade para experimentar novas sensações e ao mesmo tempo o desafio de controlar o uso da substância, o que muitos não conseguem, é um fato que acompanha o início do uso do crack. As pessoas até sabem que é uma droga que pode levar rápido à compulsão, mas sempre pensam que consigo será diferente.

O significado do encontro com a pedra -a descoberta de uma pedra preciosa

Neste momento os usuários trazem a experiência simbólica do que o crack representa na vida deles. Tentam comparar o uso com algo mais palpável em um esforço para explicar o que se sente quando do uso da substância. São comparações surpreendentes, várias relacionadas a um prazer muito grande.

“Eu achei a droga um... como uma libertação, eu estava usando ela pra me libertar dos meus problemas.”[...] Depois que eu usava o crack eu me sentia uma pessoa intocável, eu me escondia, o povo não me via, me sentia invisível para o mundo depois que eu usava ele eu me sentia mais forte, mais animado... porque a sensação do crack é como se fosse ... a pessoa tivesse fazendo sexo e tivesse vários prazeres juntos é como se diz um atrás do outro. E eu procurei o crack já por isso na minha solidão.” (Água-marinha, M, 32a.).

“ ... aí pra mim já começou a ser assim , uma válvula de escape, porque qualquer problema que eu tinha, eu já ia procurar a substância, eu já ia procurar me drogar.” (Topázio, M, 29a.). “O poder da droga do crack é um ... pronto, não tem o super homem, é igualzinho a criptonita, ele não pode chegar perto da criptonita. O poder do crack é isso, você não pode nem ver.” (Turquesa, M, 23a.).

“... então te dá uma sensação de alívio, você tira um peso das suas costas na hora que você, naquela sensação, naquela primeira sensação que você tá usando, ai você fica nas nuvens.” (Turmalina, M, 37a.).

“Eu costumo falar aqui que o primeiro, que chamam de tiro, pra mim é como se fosse um orgasmo, pra mim é comparável a um orgasmo não tem uma coisa assim que se compare não.” (Ametista, M, 37a.).

“Um orgasmo, êxtase, intensidade e é aquela coisa de intensidade da forma que você quer, na hora que você quer, quando você quer, ou seja, tudo aquilo que o dependente tem dificuldade de lidar com a frustração, com o não.” (Diamante, M, 30a.).

É bem interessante a experiência de prazer trazida por alguns usuários. Água-marinha, Ametista e Diamante comparam o uso do crack com sexo, orgasmo e Diamante ainda acrescente que o prazer é intenso da forma e na hora que você quer. Água-marinha comenta que, além desse prazer comparável ao sexo ainda traz uma sensação de libertação, relacionada aos problemas vividos no momento. Se sente intocável, invisível diante do mundo que, naquele momento, não quer estar inserido.

Topázio e Turmalina já trazem em suas experiências o crack como uma válvula de escape, um alívio imediato para o enfrentamento dos problemas vividos e Turquesa ainda traz o crack como uma criptonita, isto é, objeto pelo qual não é possível se aproximar por perda total do controle. É fantástica essa comparação feita por Turquesa porque na história do Super-homem a criptonita fazia parte de sua vida, do seu planeta, lhe dava poderes e depois a possibilidade de se aproximar desse objeto era algo que tirava todas as suas forças, todo o seu controle de super-herói. O crack, no início, também traz um poder muito grande, mas depois a compulsão e a falta de controle o tornam impossível de sequer uma aproximação.

O sentido figurado trazido pelos usuários diante do crack nos faz perceber o quanto de prazer a substância proporciona a cada um deles e o quanto é difícil abrir mão desse prazer tão intenso e imediato. Podemos pensar no crack como paradigmático da experiência de prazer.

A sensação do consumo do crack

Na experiência de cada usuário a descrição da sensação trazida pelo uso do crack vem de uma forma bem singular. São sensações positivas, prazerosas ou até negativas, angustiantes. Cada um retrata o seu sentimento diante do consumo de uma forma diferente dependendo da vivência de cada um, o que não deixa de ser curioso.

“Pronto, 5 doses de whisky é o equivalente a, digamos, um tiro na pedra, é como se você tivesse tomado, tivesse tomado 5 doses de uma vez só e ter subido pra cabeça, as 5, de uma vez só... Então é justamente isso, esse prazer momentâneo que o crack proporciona e é muito forte, é muito forte, realmente muito forte.” (Topázio, M, 29a.).

“Essa droga causou em mim assim um prazer rápido, instantâneo, rápido e destruidor, porque no outro dia tinha que ter mais ou até no mesmo dia, ou até nem virava o dia e eu estava acordado assim, eu vivia pra droga, eu vivia pra droga.” (Turquesa, M, 23a.).

“Em relação a sensação do crack depende do momento, porque quem usa crack, usa crack em lugar fechado, se for lugar aberto tem deles que ficam só agitado, tem outros que ficam com paranoias, tipo: alguém está me perseguindo na rua, estão falando de mim, estão olhando pra mim. Eu me senti cada parte dessas que eu falei.” (Pérola, F, 21a.).

“É uma droga que traz uma paranóia muito grande eu tinha medo de sair, de ir em bando, tirar dinheiro, medo de assalto, medo de tiro...” (Ametista, M, 37a.).

“Antes de eu me reconhecer, de eu aceitar o meu problema de dependência eu tinha muito prazer, porém o crack em si me trazia uma paranoia fortíssima, muito forte. Com o tempo o prazer foi dando lugar, não dando lugar, mas foi andando paralelo com a paranoia, eu sentia o prazer, mas ao mesmo tempo uma paranoia muito forte, eu fazia uso e apagava as luzes da casa, ficava olhando por debaixo da porta cerca de 10 minutos assim com a cabeça no chão pra ver se ouvia passos. ” (Diamante, M, 30a.).

“Eu não gosto da sensação, eu uso ele como um veneno. A sensação dele é horrível você fica agoniada, eu não tenho essa agonia toda, a maioria das pessoas tem, mas eu não tenho, eu ao contrário, eu me isolo, eu fico em casa, em não fico olhando porta, não fico catando o chão, eu fico até calma demais.” (Esmeralda, M, 39a.).

É marcante a ambivalência dos relatos acima. Percebe-se a princípio a descrição de um prazer intenso, porém seguido por sensações de angústia, paranoia e delírios que não trazem efeitos positivos para os usuários. Essa ambivalência é nítida quando Diamante descreve a sensação de usar o crack. Em um momento, ele descreve que a paranoia assume o lugar do prazer e, em outro, que anda paralelo. O conflito diante da sensação é bem claro.

Topázio e Turquesa evidenciam o prazer trazido pela droga. Sempre o descrevem como muito intenso e rápido o que leva a compulsão de consumo imediato. A necessidade de consumir mais está atrelada ao desejo de sentir mais prazer. Em algumas situações o consumo pode estar relacionado a tentativa de evitar os sintomas da abstinência.

A paranoia é descrita por Pérola e Ametista como uma sensação muito desagradável. Sempre com delírios de perseguição, onde o medo de ser encontrado usando crack, ou sofrendo algum tipo de violência, está presente de maneira bem evidente em seus relatos.

A agitação diante do consumo também é uma sensação muito presente no uso do crack. O relato de ficar “nervoso” retrata a modificação nas reações do sistema nervoso central que acelera todo o funcionamento de quem está consumindo uma droga estimulante como o crack.

Esmeralda traz uma sensação bem singular em sua experiência. Relata que não gosta de usar o crack, uma agonia muito grande é percebida por esta usuária que compara o crack a veneno, que afirma usar esta droga como veneno. O isolamento se faz presente, principalmente devido a intenção de uso desta substância, o uso para a morte.

É fascinante como cada usuário percebe a sensação do uso de forma diferente. A intensidade do relato, a forma de atuação dentro do organismo, os aspectos positivos e negativos desse consumo é relatado segundo a singularidade de cada um. A descrição do uso cada vez aparece de forma diferente para as pessoas que o consomem. Quanto maior a compulsão, mais efeitos desagradáveis são percebidos pelos usuários dessa substância.

Considerações finais

Acreditamos que as pesquisas relacionadas ao consumo de crack no Brasil ainda são insuficientes, para que políticas públicas de atenção aos seus usuários possam ser pensadas e elaboradas, no intuito de atender a todas as particularidades relacionadas à prevenção e tratamento dessa substância. Por outro lado, acreditamos que, nos últimos vinte anos, observa-se uma produção crescente de conhecimento acerca do tema, o que nos mostra uma grande preocupação científica diante da complexidade dessa problemática.

A realização dessa pesquisa teve como objetivo fundamental compreender o fenômeno de consumo do crack, para que as intervenções possam ser repensadas a partir das experiências dos usuários aqui entrevistados. Não houve, porém, nenhuma intenção de que essas experiências pudessem ser generalizadas; contudo, acreditamos que a singularidade possa relacionar-se com outros envolvidos na mesma problemática. Assim, compreendemos que a experiência desses usuários, ainda que singular, possa produzir ressonância para profissionais que atuam nessa área.

Grandes desafios estão postos para as equipes que trabalham no tratamento dos usuários de crack. Torna-se fundamental uma reflexão contínua sobre essa prática, para que ela não se torne automatizada e massificante. A singularidade precisa ser percebida a cada intervenção. Esse é um desafio a ser enfrentado por todos que trabalham com usuários de drogas, principalmente, o crack, no sentido de garantir a esses um cuidado adequado para suas demandas.

Acreditamos que novas pesquisas qualitativas, que objetivem uma melhor compreensão desses usuários, devam ser desenvolvidas. É preciso compreender a experiência, não só de usuários em tratamento, mas também de usuários que fazem diferentes usos do crack além do uso compulsivo. Assim, políticas públicas podem ser direcionadas para os diferentes tipos de usuários dessa droga.

Finalmente, por meio dessa cartografia, finalizamos este trabalho, com a certeza de que pudemos contribuir um pouco, de forma singular, na compreensão dos usuários de crack diante da experiência vivida por eles, frente as suas trajetórias de vida diante dessa pedra.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Dez 2013

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2013
  • Aceito
    01 Maio 2013
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