Resumos
O artigo discute as dimensões do cuidado a partir da experiência das autoras na docência em obstetrícia. Apresentam-se as estratégias utilizadas na supervisão de estágio relativas a duas dimensões do cuidado humanizado: a relação profissional-usuário e a organização dos serviços em dois hospitais. Inicialmente, faz-se uma breve leitura sobre a humanização do cuidado e a configuração de um novo paradigma de atenção à saúde. A seguir, problematiza-se a incorporação dessa dimensão nos processos de ensino-aprendizagem a partir de duas situações-problema vivenciadas durante os estágios. Observou-se que alguns profissionais dos hospitais onde os estágios são realizados incorporam as práticas desenvolvidas, e, gradativamente, a organização do serviço e as relações de cuidado em saúde vão se transformando.
Obstetricía; Humanização da Assistência; Ensino; Obstetrizes
This paper discusses care dimensions from the authors' experiences on obstetrics teaching. It presents the strategies applied in the traineeship supervision as for two dimensions of humanized care: the dealing professionals-women and the organization of services in two hospitals. Initially, a brief reading is made on Health Humanization Police and on the shape of a new health care paradigm. Hence, it discusses the absorption of this dimension in the teaching-learning processes from two situations experienced during the traineeships. The analysis showed that some hospital professionals where traineeships are held absorbed the practices developed, and that service organization and health care practices are gradually being transformed.
Obstetrics; Humanization of Assistance; Teaching; Midwives
Introdução
A humanização do cuidado em saúde, de conceituação e abrangência amplas, tem sido discutida há mais de cinco décadas. Deslandes (2006), ao analisar o debate sobre humanização, toma como marco o simpósio norte-americano Humanizing Health Care (Humanizando o Cuidado em Saúde), ocorrido em São Francisco (EUA) em 1972, demonstrando a influência nesse debate de diversos teóricos da sociologia, que, em décadas anteriores, já haviam apontado a necessidade de humanização na saúde.
Desde o início, o foco do debate foram as práticas desumanizadoras oriundas do modelo biomédico de atenção à saúde, que considera a doença um problema somente do 'corpo físico', uma vez que parte do princípio cartesiano de que a mente e o corpo devem ser tratados como entidades separadas, ignorando as dimensões psicossociais da pessoa. Desse modo, terapêuticas são dirigidas para os aspectos orgânicos sem o dimensionamento dos seus efeitos na vida. Nesse modo de pensar, os processos saúde-doença têm muitos efeitos, como, por exemplo, a medicalização da vida (TRAVERSO-YEPEZ, 2007).
Outro aspecto dessa discussão são as relações de poder entre profissionais de saúde e usuários:
De qualquer modo, tende-se a qualificar de desumanas relações sociais em que há um grande desequilíbrio de poder e o lado poderoso se aproveita desta vantagem para desconsiderar interesses e desejos do outro, reduzindo-o a situação de objeto que poderia ser manipulado em função de interesses e desejos do dominante. Partindo deste pressuposto, não há como haver projeto de Humanização sem que se leve em conta o tema da democratização das relações interpessoais (...) a Humanização depende, portanto, do aperfeiçoamento do sistema de gestão compartilhada, de sua extensão para cada distrito, serviço e para as relações cotidianas. (CAMPOS, 2005, P.399).
O autor enfatiza a necessidade de empoderamento dos usuários dos serviços, em detrimento do poder abusivo do saber-poder profissional. Defende a implementação de mecanismos preventivos para o abuso de poder tais como a valorização da presença do acompanhante nos processos de tratamento e a flexibilização das regras de funcionamento das instituições de saúde, como condições que viabilizam o exercício dos direitos dos usuários.
A discussão sobre cuidado está intimamente articulada à busca de diálogo o mais simétrico possível entre usuários e profissionais e a uma leitura compartilhada das queixas e das possíveis soluções para as demandas dos usuários (AYRES, 2004).
O governo brasileiro tem procurado incorporar as discussões sobre humanização e cuidado nas políticas de saúde. Em 2000, o Ministério da Saúde lançou o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH) com o objetivo de transformar as práticas de atendimento à saúde na rede hospitalar. Em 2003, o programa foi substituído pela Política Nacional de Humanização da Gestão e da Atenção à Saúde, cujo objetivo é melhorar o acesso, o acolhimento e a qualidade dos serviços no Sistema Único de Saúde como um todo. Essa política está orientada pelos princípios da inseparabilidade da gestão dos processos de produção de saúde; da transversalidade da humanização nos dispositivos e concepções que permeiam todos os programas e políticas de saúde; e da autonomia e protagonismo dos trabalhadores e usuários no processo de cogestão do sistema de saúde (BRASIL, 2009).
Assim, a política de humanização propõe um novo modelo de atenção à saúde, pautado no reconhecimento dos usuários e dos profissionais como cidadãos com direitos e desejos e no estabelecimento de relações de cuidado que não anulem as subjetividades e as socialidades. Essa perspectiva implica, necessariamente, investir na reorganização do sistema e na formação profissional em saúde (BENEVIDES; PASSOS, 2005).
Nesse contexto, o estágio sobre o qual tratar-se-á neste artigo configura-se como uma estratégia facilitadora de ensino, por meio da qual estudantes e professores constroem o saber a partir das situações vividas no cotidiano das instituições de saúde. Entende-se que é na reflexão e na teorização das ações da prática profissional, preferencialmente realizadas em situações reais do trabalho, que estudantes e docentes constroem e desenvolvem capacidades (LIMA, 2005). O que define o sentido da formação profissional é, predominantemente, a relação que se estabelece nos espaços em que se materializa a educação (FAGUNDES; BURNHAM, 2005).
A perspectiva da integralidade no cuidado em saúde exige abordagem transdisciplinar, daí a importância de articular conhecimentos das ciências sociais, humanas e biológicas, de modo a possibilitar a reflexão sobre o cuidado em saúde não somente como conceito, mas como práticas relacionais entre pessoas sensíveis e que produzem novos modos de ser no mundo. Nesse sentido, o curso de Obstetrícia tem como modelo orientador a integralidade em saúde e a humanização do cuidado.
Assim, ao assumir a tarefa de formar profissionais de saúde nesse modelo, assume-se, também, a posição de combate às desigualdades e, ao mesmo tempo, de promoção da inserção das múltiplas dimensões do humano nos processos de saúde. Isso, porque acreditamos que não é possível ser neutro na docência:
...não posso ser professor se não percebo cada vez melhor que, por não poder ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma tomada de posição. Decisão. Ruptura. Exige de mim que escolha entre isto ou aquilo. (FREIRE, 1996, P.115).
Além disso, todos nos posicionamos, também, como aprendizes quando partimos dos princípios de uma educação dialógica e nos abrimos para as múltiplas aprendizagens que as atividades docentes nos possibilitam:
Desta maneira, o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa. Ambos, assim, se tornam sujeitos do processo em que crescem juntos e em que os 'argumentos de autoridade' já não valem. Em que, para ser-se, funcionalmente, autoridade, se necessita de estar sendo com as liberdades e não contra elas (FREIRE, 2005, P. 79).
Sob essa perspectiva, este artigo tem como objetivo discutir as estratégias utilizadas no processo de ensino-aprendizagem no cotidiano das ações do estágio curricular realizado em dois hospitais públicos situados na cidade de São Paulo, na área de assistência ao parto. Focalizar-se-ão duas dimensões do cuidado humanizado: a relação profissional-usuário no cuidado das parturientes realizado pelos estagiários e o modo como os serviços estão organizados nos dois hospitais.
Metodologia
Este artigo foi escrito a partir da experiência docente na supervisão de estágios de alunos do oitavo semestre do curso de obstetrícia. Buscou-se demonstrar as estratégias metodológicas utilizadas para desenvolver a atitude cuidadora em estudantes que atuam como estagiários no cuidado à mulher durante o trabalho de parto e no parto. Procurou-se, também, demonstrar a importância da organização dos serviços para o cuidado em saúde.
As atividades de estágio são realizadas em hospitais da rede pública de saúde, nos quais a gestão das rotinas de trabalho é de responsabilidade única da direção dos serviços, sem que os docentes participem do processo. No cotidiano das ações, esse é um desafio a ser superado, já que, muitas vezes, impossibilita intervenções diretas na organização dos serviços, como ver-se-á a seguir.
O estágio que se descreve aqui foi realizado com um grupo de cinco estudantes sob a supervisão direta de um docente. O objetivo do estágio é possibilitar que os alunos realizem práticas humanizadas de cuidado à mulher, à familia e ao recém-nascido, no momento do parto e no puerpério imediato. As atividades são organizadas a partir do princípio de que a aprendizagem e a produção de conhecimentos estão intimamente relacionadas à experiências de troca que possibilitam articular vivências significativas com conteúdos teóricos. O estágio é o momento em que os estudantes realizam o cuidado direto à mulher, ao bebê e à família.
Utlizou-se como recurso metodológico a descricão de duas situações-problemas que ocorrreram no cenário de prática. Por meio dessa discussão, foi possivel demonstrar as estratégias desenvolvidas pelos estudantes e docente no cotidiano dos campos de prática. A discussão norteou-se pelos pressupostos da integralidade e da humanização do cuidado em saúde; as estratégias utilizadas são o foco para que esses desafios auxiliem no processo ensino-aprendizagem sobre a potencialidade do cuidado humanizado.
A relação estagiário-usuário nos serviços de saúde
O parto e o nascimento são eventos extremamente significativos na vida da mulher e da família e podem ser vividos respeitando-se o ritmo do corpo feminino, bem como seus desejos. Assim, o acolhimento é fundamental. Nos estágios, desde o primeiro contato com os usuários dos serviços, procura-se conversar e discutir com a mulher como será o trabalho em conjunto, enfatizando sempre que o parto é dela e que a sua participação é fundamental. Às vezes, as mulheres chegavam ao hospital assustadas e receosas em função dos diversos mitos difundidos sobre o parto; era preciso acolhê-las e mostrar-lhes que não estavam sozinhas. Fazia-se isso esclarecendo o processo, desenvolvendo um plano de parto, conversando tanto com a gestante como com seu acompanhante, na tentativa de estabelecer vínculos de confiança.
Muitas vezes, os estudantes ficavam confusos diante das mudanças de comportamento das mulheres ao longo do processo. Algumas parturientes tinham momentos de irritação e revolta, noutros, assumiam uma posição passiva de "eu quero ser cuidada e, por favor, tirem essa dor de mim".
Vale lembrar que, para a maioria das pessoas, lidar com a dor do outro não é uma tarefa fácil e acompanhar o processo de parto pode gerar muita ansiedade. Assim, se conversava sobre os modos de lidar com esses diversos sentimentos, nossos e do outro. Tentava-se encontrar, juntos, algumas estratégias para lidar com essas emoções, sugeria-se que caminhar poderia facilitar o processo nos momentos de raiva e irritação. O simples ato de ficar ao lado da mulher, ouvindo-a, também pode ser terapêutico. O vínculo estabelecido propiciava às mulheres a aceitação do cuidado. Então, ofereciam-se massagens, porque o contato físico auxilia não só na diminuição da dor e no relaxamento como também na ampliação da sensação de estar acompanhada. Sempre que possível, o companheiro ou acompanhante também era convidado a participar do cuidado.
Outros recursos que se utilizava eram o estímulo à mudança de posição, deambulação e caminhada, balanço pélvico, bola de Bobat, agachamento, estimulo à respiração ritmada e confortável, banhos quentes. Muitas dessas práticas são recomendadas como facilitadoras para o controle da dor e ansiedade durante o trabalho de parto (MACEDO ET AL., 2005).
Ao realizar essas práticas, todos estavam totalmente presentes e se colocando ao lado da mulher, acolhendo e compartilhando suas dores, seus medos e suas angústias. Às vezes, durante esse processo, algumas contavam histórias de momentos significativos de suas vidas e falavam das expectativas em relação ao bebê. Esse modo de estar junto e auxiliar a mulher na vivência do processo de parto está orientada pela perspectiva de que o parto é um evento que envolve a mulher como um todo, e que mente e corpo são indissociáveis. Acredita-se que, nesse processo, a mulher também tenha a possibilidade de resgatar a noção do seu corpo como um todo. O foco do cuidado não está na região da bacia materna e na cabeça fetal. Está na mulher e no bebê (BRIGAGÃO; GONÇALVES, 2010). A noção clássica da obstetrícia de que o parto significa o equilíbrio perfeito entre trajeto (pelve) e objeto (feto) passa a ser desconstruída, e entram em cena a mulher e o bebê como sujeitos centrais do cuidado. Para tanto, torna-se essencial a sua participação ativa, assumindo o controle da situação de tal forma que haja a apropriação de seu corpo durante o parto e o nascimento (DAVIS-FLOYD ET AL., 2010).
Situação-problema 1: a história do cuidado com Maria
Maria estava na sua primeira experiência de gestação e parto e havia sido internada na fase ativa do trabalho de parto, com contrações regulares, ritmadas e efetivas, bem como dilatação cervical adiantada. No período final, já com dilatação total e necessidade de descida do feto pela pelve, estava começando a se desesperar e dizia: "Eu não vou conseguir". Estava ficando visivelmente irritada com as dores e repetia que não ia conseguir. A aluna perguntava: "Você quer conseguir?" Ela assentia que sim com a cabeça sem muita convicção. A aluna continuava: "Se você quer conseguir vamos fazer juntas um exercício". E, então, demonstrou como abaixava e levantava. Solicitava à mulher que ela fizesse os movimentos junto. Gradativamente, ela foi fazendo o exercício e, à medida que o fazia, foi adquirindo entusiasmo e energia. Em aproximadamente 30 minutos o bebê nasceu. A aluna que a acompanhava ao final do parto disse: "Hoje, finalmente, compreendi o que é o empoderamento sobre o qual as professoras tanto falam... é exatamente o que aconteceu com a Maria quando ela aprendeu o exercício e passou a ter mais controle sobre seu próprio corpo".
Essa experiência motivou muitas reflexões entre o grupo de estudantes sobre o poder exercido pelos profissionais de saúde, sobre os corpos dos individuos, usuários dos serviços e, ao mesmo tempo, sobre a impotência que, muitas vezes, os levam a se submeterem passivamente às tecnologias e intervenções implementadas nos serviços, sem que isso implique sua participação direta como sujeito ativo do processo. Brigagão (2010) comenta que, apesar de o parto ser da mulher, ao longo do tempo, os processos de hospitalização e de medicalização retiraram dela o protagonismo, deslocando-o para os profissionais de saúde que assistem ao parto. Revisitando a história, percebe-se que, à medida que os corpos das mulheres tornam-se um lugar privilegiado de exercício do poder-saber da medicina, gradativamente aprimoram-se e desenvolvem-se intervenções e tecnologias oriundas do saber biomédico, que, no cotidiano das práticas em saúde, configuram-se como estratégias de exercício do poder dos profissionais de saúde e de controle e sujeição das mulheres por parte destes (BRIGAGÃO; GONÇALVES, 2010).
No cotidiano da formação profissional, a promoção da integralidade no cuidar em saúde apresenta-se como um desafio, uma vez que propicia, em determinado tempo e lugar, que grupos e indivíduos, denominados por Merhy (2006, P.98) de
(...) portadores de futuro, envolvam-se com a construção social de um 'com-viver' solidário e igualitário, por meio das práticas em saúde ... maneiras de se poder criar e recriar os desejos e suas concretizações, com a aposta de que (...) somos responsáveis pelo que construímos e estamos profundamente implicados com a produção da igualdade como a aceitação da singularidade do outro.
Concorda-se com a premissa de Merhy (2006) de que as práticas de saúde são espaços privilegiados de construção de novas formas de convivência e de relações de respeito às multiplas singularidades presentes no contexto das instituições de saúde. Assumir e ensinar essa postura nem sempre é uma tarefa fácil: há muitas resistências em aceitar as diferenças e tendência em acreditar que os saberes importantes para o cuidado em saúde são apenas os dos profissionais. Ou seja, os usuários ainda são entendidos como 'pacientes' submetidos aos saberes e intervenções dos profissionais.
Kennedy, Rousseau e Low (2003), discutindo o cuidado prestado por obstetrizes, ressaltam a importância de compartilhar as decisões com as mulheres e suas famílias. O cuidado da obstetriz, segundo os autores, é adequado para atender às necessidades individuais da mulher e de sua família. Há o objetivo de ajudar a mulher a se sentir segura e satisfeita com o cuidado, sobretudo por meio da tomada de decisão compartilhada entre a profissional e a mulher ou sua família.
A organização dos serviços e a relação de cuidado
O fato de os estágios serem realizados em hospitais da rede pública é vantajoso, porque possibilita aos alunos um contato com a realidade dos serviços no Brasil. Por outro lado, por não se tratarem de hospitais-escola, o modelo de gestão não permite aos docentes fazer intervenções diretas no ambiente e no modo de organizar os serviços. Porém, como se está comprometido com o modelo de humanização do cuidado, busca-se, nos diversos contextos da assistência, humanizar as práticas e sensibilizar os outros profissionais para esses modos de ação.
Situação-problema 2: o cotidiano do cuidado num dia de estágio
No centro obstétrico onde se realiza o estágio, havia um espaço denominado pré-parto: um amplo quarto coletivo com seis leitos, todos ocupados por mulheres em trabalho de parto. Os estudantes assumiram as atribuições designadas pela docente e começaram o dia de trabalho. Nesse serviço, o acompanhante não era autorizado a permanecer no pré-parto. Assim que chegamos, observamos que as mulheres estavam todas com um semblante de dor, parecia ser algo contagiante, pois os lamentos e gemidos eram reproduzidos, às vezes, em uníssono. A rotina do estágio é que cada aluno assuma o cuidado de uma mulher e inicie as atividades tomando ciência do histórico de internação, do cartão e exames do pré-natal, bem como da evolução registrada no decorrer do trabalho de parto. Fazem os exames referentes à avaliação da atividade uterina, vitalidade materna e fetal e propõem as estratégias de cuidado para aquela mulher. Como se disse anteriormente, as recomendações quanto à mudança de posição e deambulação, assim como a oferta de banhos quentes e massagens fazem parte de um elenco de procedimentos e tecnologias usualmente implementado. Nesse local, o modo de cuidar desenvolvido pelos alunos e pela docente gerava especulações por parte dos profissionais, que questionavam: "Por que vocês deixam essas mulheres andando para lá e para cá? Por que colocam as mulheres de cócoras ou em quatro apoios sobre as camas?". Ou ainda: "Por que ocupam a área do banho por tanto tempo? Por que este arrasta-arrasta de biombos para lá e para cá?"
Nesse hospital, o fluxo de atendimento estava organizado para que o parto fosse realizado em área restrita, onde as mulheres passavam a maior parte do trabalho de parto nas camas. Uma das argumentações para não permitir a presença do acompanhante era a falta de espaço físico. Os banheiros eram de uso coletivo e as mesas ginecológicas, com perneiras para o momento do parto. Com essas características, o ambiente não é acolhedor nem facilita o processo do parto e do nascimento. A equipe de saúde que atua no setor, além de ser reduzida, segue as rotinas e os protocolos instituídos.
Nesse cenário, o desafio é duplo. Por um lado, auxiliar os estudantes a construir estratégias de cuidado humanizado em um ambiente pouco facilitador e, por outro, realizar, por meio de ações dos docentes, micropolítica que gradativamente vai demonstrando novas formas de fazer e de cuidar que rompem com o instituído.
A micropolítica opõe-se à política das vigências disciplinares, das racionalidades hegemônicas, é a política do minoritário, das forças minoritárias, resistência aos instituídos, resistência ao saber-poder-desejo hegemônico, disputa por outros modos de ser-existir-agir, inventivos, criativos, em ato. A noção esvaziada da micropolítica refere-se à análise das decisões ideológicas, dos modos culturais locais, das regras de exercício da profissão ou do trabalho, onde as diferenças quase individualizantes teriam um peso mais significativo. A micropolítica não é local/individual, é força instituinte, transversalidade de processos e projetos, luta contra-hegemônica e anti-hegemônica (CECIM; MERHY 2009, P.532).
No estágio, ao mesmo tempo em que se implementam as tecnologias e práticas humanizadoras, estabelece-se diálogo interdisciplinar com a equipe que atua no contexto institucional. Aos poucos, percebe-se que as evidências científicas que fundamentam a atuação dos docentes vão sendo apreciadas com menor resistência e pode-se vislumbrar um campo fértil para a instituição da micropolítica descrita anteriormente por Cecim e Merhy (2009).
Pode-se observar que essa micropolítica tem tido alguns efeitos e, com o passar do tempo, os comentários feitos pelos profissionais tornaram-se mais amenos, arrefecendo a inquietação inicial. Foi possivel observar que alguns profissionais da equipe daquele centro obstétrico passaram a sugerir algumas das práticas realizadas por nós no cotidiano dos estágios. Em determinado dia, chegando ao serviço, havia duas mulheres apoiadas sobre os membros, em quatro apoios sobre a cama, exatamente como a equipe faz. Uma auxiliar de enfermagem explicou que havia presenciado o cuidado prestado pela equipe em outros momentos e aprendeu esse novo modo para ajudar a mulher a lidar com a dor. Nesse sentido, entende-se que:
(...) a humanização depende ainda de mudanças das pessoas, da ênfase em valores ligados à defesa da vida, da possibilidade de redução do grau de alienação e da transformação do trabalho em processo criativo e prazeroso (CAMPOS, 2005, P.406).
Dessa forma, no contexto dos estágios, fica evidente que o processo de ensino-aprendizagem é um trabalho que envolve muitos atores: docentes, estudantes, profissionais de saúde, gestores de instituições de ensino e de assistência e usuários dos serviços, dentre outros. Nesse processo, há a oportunidade de discutir, argumentar, fazer perguntas, construir conhecimentos relevantes para sua experiência e para desafiar e desenvolver a prática.
A experiência com os estágios tem demonstrado que é possível, mesmo em hospitais públicos sem estrutura fisica adequada (espaço para os acompanhantes, espaços individualizados para o trabalho de parto e parto, banheiras etc), incorporar um modelo de cuidado em saúde baseado nos pressupostos da humanização a partir de um diálogo constante com os diversos atores envolvidos no processo. Ou seja, trata-se de reconhecer a importância da transformação das práticas e da organização dos serviços com base no princípio da integralidade do SUS (MATTOS, 2009).
Considerações finais
As vivências durante o estágio possibilitaram muitas discussões sobre o papel dos profissionais de saúde, especificamente dos obstetrizes. Ou seja, o quanto é importante ouvir e acolher as mulheres e os seus acompanhantes no momento do parto, possibilitando que elas assumam o seu protagonismo. Ao mesmo tempo, é imprescindível que tanto as mulheres como os acompanhantes sintam-se seguros ao serem acompanhados por profissionais competentes que utilizam os seus saberes para auxiliá-los nessa experiência singular, empoderadora e rica em sentidos para todos os envolvidos.
Lidar com as rotinas das instituições de saúde onde ocorrem os estágios, que, na maioria das vezes, estão organizadas e impregnadas de práticas que conflitam com as diretrizes das políticas públicas de saúde para o parto normal e com os princípios da humanização do parto, configura-se, para os docentes e discentes, um grande desafio no processo de ensino-aprendizagem. Os profissionais de saúde muitas vezes se identificam com os modelos instituídos e, frequentemente, adotam atitudes irrefletidas, manifestam resistências em ver o parto como evento da mulher e da família e insistem em assumir posturas intervencionistas e de desrespeito aos direitos das mulheres. A superação dessas resistências para a transformação do cotidiano exige esforços contínuos de todos os envolvidos. As práticas desenvolvidas nos estágios têm contribuído nesse processo, porque possibilitam negociações e diálogos com os profissionais que atuam nos hospitais e favorecem a observação de práticas em obstetrícia que incluem as múltiplas dimensões do humano.
Assim, uma das principais lições que se apreende nos contextos hospitalares com assistência obstétrica é que, para a plena implementação dos princípios do SUS, faz-se necessária a abertura para uma nova maneira de se apresentar ao outro e ao mundo. Na condição de profissionais, é preciso lutar e acreditar no potencial que se tem para transformar modelos de cuidado em saúde massificados e despersonificados em espaços edificantes que valorizem, sobretudo, a pessoa acima de rotinas e protocolos.
Referências
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- Suporte financeiro: Não houve
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2014
Histórico
- Recebido
Nov 2012 - Aceito
Dez 2013