Rede mista: espaço transversal à construção do conhecimento e produção de práticas de saúde mental

Rede mista: a cross-sectional place to the construction of knowledge and production of mental health practices

Juliana Hespanhol Dorigan Solange L'Abbate Sobre os autores

Resumos

Rede Mista é a denominação do espaço das reuniões mensais da rede de saúde mental de um dos distritos de saúde de Campinas - SP. Compõe-se de profissionais da rede de saúde mental, da rede de atenção básica e dos serviços de referência, e constitui-se em estratégia para construir e acompanhar projetos da área. Analisou-se o espaço como elemento de identificação de processos transversais para a construção dos saberes e das práticas de cuidado em saúde mental. As informações obtidas confirmam o importante papel assumido pela Rede Mista na organização do trabalho em saúde mental, bem como no fortalecimento da reflexão autônoma dos trabalhadores sobre suas práticas nas equipes das unidades de saúde.

Saúde mental; Equipe de assistência ao paciente; Fóruns de discussão


'Rede Mista' is the name given to ​​monthly meetings of the mental health network in one of the health districts of the city of Campinas - SP. The participants are professionals of the mental health network, basic assistance network and reference services, consisting in a strategy to develop and follow projects in the field. This study analyses the meetings as element of identification of cross-sectional processes as a tool to create knowledge and practices in mental health care. Informations demonstrate the important place taken on by Rede Mista meetings in the organization of the mental health work as well as on the strengthening of workers' autonomous thinking on their practices in health care teams.

Mental health; Patient care team; Discussion forums


Introdução

É conhecida a existência de fóruns de discussão dos trabalhadores de saúde em Campinas-SP para a construção da rede de cuidados em saúde mental. Trata-se de uma experiência singular no Brasil, pois, nesses espaços, o planejamento da rede de cuidados em saúde mental se faz de maneira coletiva e participativa por parte dos trabalhadores de saúde, o que tem permitido a formação e o empoderamento dos trabalhadores em relação à prática das ações de saúde em rede.

O estudo desses espaços, com o objetivo de demonstrar sua relevância, será desenvolvido neste artigo a partir de três aspectos: o planejamento coletivo das ações, o fortalecimento da rede de cuidado e a abordagem da interdisciplinaridade para a construção dos saberes e sustentação das práticas cotidianas nos serviços de saúde.

No campo do planejamento em saúde, há vários autores que discorrem sobre o assunto, dentre os quais Onocko Campos (2001; 2003), Testa (1995), Merhy (1997). Entretanto, neste estudo, a intenção é destacar o grupo enquanto espaço coletivo, aproximando-o do entendimento de Campos (2003), como a construção de lugares e de tempos, por meio dos quais as equipes, de fato, possam interferir nos sistemas produtivos, no caso, na própria produção de práticas em saúde. Na análise dos resultados deste estudo, retomar-se-á este aspecto a partir de outros elementos.

O fortalecimento da rede de cuidados é um aspecto destacado desde a Política Nacional de Humanização do SUS de 2006, que implica construir redes solidárias e comprometidas com a dupla tarefa de produção de saúde e produção de sujeitos (BRASIL, 2006). Segundo Onocko Campos e Campos (2007), os objetivos essenciais do trabalho em saúde seriam a própria produção de saúde e também a construção conjunta da capacidade de reflexão e de ação autônomas dos sujeitos envolvidos nesses processos: trabalhadores, usuários e incluem-se os gestores. Dessa maneira, valoriza-se a construção de diferentes espaços de encontros entre sujeitos, a troca e construção de saberes e o trabalho em rede, com equipe transdisciplinares, características estas encontradas nos encontros da Rede Mista.

Ressalta-se, ainda, no contexto da operacionalização do Pacto pela Saúde (BRASIL, 2006), a configuração das Redes de Atenção à Saúde e sua articulação com o modelo de atenção. Segundo Silva e Magalhães Junior (2008, P.82), o modelo "é uma espécie de paradigma que define o que são necessidades assistenciais, como deve ser organizada a oferta, como se compreende, enfim, o processo saúde/doença e as formas de intervenção".

No campo da saúde mental, especificamente em relação à política de saúde mental, a Rede de Atenção Psicossocial foi escolhida como uma das prioritárias. A Portaria GM nº 3088, de 23 de dezembro de 2011, instituiu a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) por meio da criação, ampliação e articulação dos pontos de atenção à saúde de pessoas em sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de substâncias psicoativas e álcool (BRASIL, 2012).

É possível apoiar-se nessa definição para construir as redes de cuidado em saúde mental, visando articular mais efetivamente a ação dos profissionais às necessidades de saúde da população do território. A noção de território, por sua vez, é a de constituir um espaço vivo, que, além das condições objetivas que oferece, apresenta também dimensões subjetivas decorrentes das relações entre os sujeitos que nele convivem (SACARDO; GONÇALVES, 2007). E, sem dúvida, os profissionais das Equipes de Saúde da Família (ESF) que constituem a Atenção Primária à Saúde (APS) são os que estão mais próximos desses sujeitos. A APS deve assumir, então, posição estruturante na hierarquização da atenção à saúde e na organização dessas equipes, privilegiando as necessidades de saúde dos usuários de cada área de abrangência dos territórios (BRASIL, 2007).

Destaca-se, em Campinas, a existência, desde a década de 1970, de profissionais de saúde mental compondo as equipes de Atenção Básica (BRAGA CAMPOS, 2000). Esses profissionais inserem-se nas equipes segundo a lógica de apoiadores matriciais11Com a formulação do Método Paidéia, Campos (2003; 2007) desenvolveu uma metodologia de trabalho para lidar com o fluxo entre as especialidades em saúde, denominada Apoio Matricial. Trata-se de uma metodologia para promover o trânsito dos profissionais por áreas externas às suas especialidades, onde estes, organizados por campo de atuação - saúde mental, saúde bucal, ortopedia etc - transitariam pelos territórios em apoio às suas equipes de referências, no caso, em apoio às ESF. Atribui-se ainda ao Apoio Matricial um caráter técnico-pedagógico, bem como de retaguarda assistencial, permitindo a corresponsabilização dos casos, redesenhando a lógica dos encaminhamentos. em saúde mental, e tal estratégia deveria permitir maior aproximação dos profissionais com as necessidades de saúde dos usuários que frequentam as Unidades Básicas de Saúde.

Porém, em seu estudo sobre as interrelações entre a ESF e o CAPS no cuidado a sujeitos com transtornos mentais em Campinas, Amorim (2008) constatou a existência de uma desarticulação entre os especialistas dos dois serviços no processo de construção de projetos terapêuticos singulares, visando à prevenção, assistência e promoção de saúde. Por isso, propôs a construção de ações pautadas na integralidade que pudessem contribuir para a construção de espaços de troca entre os trabalhadores dos dois serviços a fim de articular estratégias de cuidado clínico e psiquiátrico dirigidas aos usuários.

Finalmente, o terceiro aspecto a ser considerado neste trabalho é a perspectiva da interdisciplinaridade, envolvendo também a intersetorialidade para a construção dos saberes e das práticas a partir do espaço da Rede Mista. Para Mendes e Akerman (2007), a intersetorialidade não deve ser buscada apenas como um princípio, mas como uma prática concreta a ser estabelecida. E mais, "a intersetorialidade tem no campo do fazer significação semelhante à interdisciplinaridade no campo do saber" (MENDES, 1996, P.252).

Essa possibilidade propiciada pelos encontros da Rede Mista é coerente com as recentes perspectivas da política de saúde mental, que salienta a perspectiva intersetorial para o campo, reafirmada, ainda, no próprio tema da IV Conferência Nacional de Saúde Mental Intersetorial de 2010 (BRASIL, 2010).

Rede Mista: breve apresentação

O espaço de reuniões denominado Rede Mista começou a ser organizado por iniciativa dos gestores e trabalhadores em saúde mental de um dos distritos de saúde de Campinas em junho 2005. Até o início de 2007, tal reunião era denominada Eixo da Mental. O propósito era reunir os serviços que oferecem atendimentos em saúde mental, tendo como expectativas e objetivos a discussão de casos, a troca de conhecimentos a partir das experiências e o aprofundamento de temas de interesse levantados pelos participantes.

Atualmente, o distrito em questão possui doze Unidades Básicas de Saúde e oito equipes de saúde mental para apoiar essas unidades e suas Equipes de Saúde da Família. Possui dois CAPS III, um CAPS AD, um CAPSi22De acordo com a Portaria no. 336 de 19 de fevereiro de 2002, os Centros de Atenção Psicossocial poderão constituir-se nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III definidos por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional, conforme disposto em tal Portaria. Destes, somente o CAPS III conta com leitos para acolhimento noturno. Nesta mesma Portaria, estabelecem-se os CAPS i II (infantil) e CAPS ad II (álcool e drogas), ambos funcionando das 8h as 18h de segunda a sexta-feira, podendo comportar um terceiro período até as 21h. , estes dois últimos são também referências para outros distritos, um Centro de Convivência e Cooperativa, um hospital universitário com enfermaria psiquiátrica e um hospital municipal de referência com enfermaria psiquiátrica. Além disso, a retaguarda de internação municipal possui leitos em dois núcleos de atenção no Serviço de Saúde Dr Cândido Ferreira.

O grupo da Rede Mista é formado por profissionais que lidam na prática com as questões de saúde mental. Em sua maioria, são profissionais que trabalham nos CAPS e que compõem as equipes matriciais em saúde mental das Unidades Básicas de Saúde do distrito de saúde analisado. Quanto à formação ou função, são psicólogos, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, psiquiatras, residentes e aprimorandos de variadas formações, gestores locais, agentes comunitários de saúde, dentre outros. Estes últimos tiveram participação menos freqüente no período analisado.

Os serviços de referência da rede de atenção à saúde mental convidados a participar são: Serviço de Atenção à Dificuldade de Aprendizagem (SADA), centros de convivência e outros equipamentos não vinculados à saúde, a depender do tema proposto ou do caso a ser discutido, por exemplo, Conselho Tutelar, Vara da Infância, Juventude e Idoso, abrigos da assistência social etc.

Os encontros acontecem mensalmente, em locais diferentes a cada reunião, a fim de permitir maior proximidade entre os equipamentos e facilitar os contatos, além de favorecer a participação dos coordenadores locais. As datas são combinadas a cada reunião, pois, assim, os profissionais têm aproximadamente um mês para organizar as agendas e garantir a participação nos encontros.

As reuniões da Rede Mista preveem momentos de troca entre os profissionais sobre:

  • Atendimentos de saúde mental demandados para os funcionários das unidades.

  • Projetos das unidades em áreas específicas como o uso de substâncias psicoativas, atendimento da violência doméstica, área da criança etc..;

  • Discussões sobre o matriciamento em saúde mental.

  • Organização das equipes de Apoio Matricial de saúde mental junto às Equipes de Saúde da Família.

  • Supervisão clínico-institucional.

A partir de 2010, essas reuniões passaram a se configurar por eixos territoriais para discussão de casos, contando com supervisão clínico-institucional num mês e reunião ampliada, englobando todos os eixos territoriais, da Rede Mista no mês subsequente.

Metodologia

Trata-se de estudo descritivo, com análise das informações por meio da abordagem qualitativa, que

se aplica ao estudo da história, das relações, das representações, das crenças, das percepções e das opiniões, produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, sentem, pensam, constroem seus artefatos e a si mesmos (MINAYO, 2008, P.17).

Para Minayo (2006), a pesquisa qualitativa torna-se importante para:

(...) a) compreender os valores culturais e as representações de determinado grupo sobre temas específicos; b) para compreender as relações que se dão entre atores sociais tanto no âmbito das instituições como dos movimentos sociais; c) para avaliação das políticas públicas e sociais tanto do ponto de vista de sua formulação, aplicação técnica, como dos usuários a quem se destina (MINAYO, 2006, P.134).

No período analisado - junho de 2005 a outubro de 2008 - ocorreram cerca de 30 reuniões da Rede Mista, com duração aproximada de 3h30min cada. O único registro desses encontros foram as atas, todas elaboradas pela mesma profissional, apoiadora institucional33O apoio institucional nos distritos está ordenado por meio de duas lógicas principais: o Apoio como referência para os serviços do território, construindo ações para os processos de gestão e trabalho em saúde (intervindo nos processos locais, com os gestores e com os trabalhadores, reconstruindo o diálogo com movimentos sociais e equipamentos, por meio de processos pedagógicos e de construção do conhecimento); e, por outro lado, o Apoio para as atividades e programas da Secretaria Municipal de Saúde (normalmente está dividido por áreas do conhecimento: saúde da criança, saúde mental, assistência farmacêutica etc.). (CAMPOS, 2007, p.164) , que participou da totalidade das reuniões. Tal fato garantiu, a nosso ver, maior consistência e fidedignidade das informações. Ressalte-se que, após o período analisado, não há registros sistemáticos das reuniões. Assim, a análise dos conteúdos dos encontros foi realizada com base no material dessas atas, com ênfase nas informações sobre os temas discutidos e identificação das ações e propostas construídas nesse espaço como demanda do próprio grupo, ou seja, pactuadas de acordo com as necessidades e possibilidades locais.

Em outras palavras, na perspectiva da abordagem qualitativa, realizou-se análise temática dessas atas (MINAYO, 2006; L'ABBATE, 2010).

Rede Mista, um espaço transversal: a relevância do conceito de transversalidade

Dada a pluralidade de sua composição - diversos profissionais de diferentes organizações-, a Rede Mista é considerada um espaço transversal. Por isso, antes da análise das atas, é importante referir-se a um conceito teórico que permita compreender melhor o sentido e significado desse espaço transversal, que é o conceito de transversalidade (GUATTARI, 1987, P.88-105).

Esse conceito, desenvolvido por Guattari no âmbito da psicoterapia institucional e considerado por Lourau como um dos mais importantes da análise institucional (LOURAU, 1975; L'ABBATE, 2012), diz respeito aos múltiplos vínculos que todos os que pertencem a determinado grupo possuem com as mais diversas organizações e situações.

Em sua análise, Guattari elabora a ideia segundo a qual cada grupo comporta movimentos opostos ou complementares, ora no sentido da verticalidade, configurando hierarquia rígida e fixa de papeis, como numa pirâmide, ora no da horizontalidade relacionada às vinculações mais informais, nas quais "as pessoas se ajeitam como podem" (GUATTARI, 1987, P.95-96).

Quanto mais as pessoas de determinado grupo identificam esses diferentes pertencimentos, maior é o seu coeficiente de transversalidade, o que lhe permitirá tornar-se mais sujeito; contrariamente, quanto menor essa percepção mais o grupo tem possibilidade de tornar-se sujeitado (GUATTARI, 1987, P.96). Assim, "o grupo sujeito enuncia alguma coisa, enquanto que do grupo sujeitado se diria que 'sua causa é ouvida'." (GUATTARI, 1987, P.92). O grupo sujeitado possui uma estrutura rígida e hierarquizada, feita para impedir qualquer corte criativo, para "assegurar os mecanismos de autoconservação fundados sobre a exclusão dos outros grupos; seu centralismo opera por estruturação, totalização, unificação (...)" (GUATTARI, 1987, P.104-105).

Os conceitos de grupo sujeito e grupo sujeitado são de grande relevância para este estudo, pois, a partir deles, pode-se perceber, ao analisar os produtos das reuniões da Rede Mista, até que ponto o grupo de profissionais pode fugir dos 'especialismos', estabelecendo relações mais coletivas e trabalhando na perspectiva da interdisciplinaridade, influenciando, assim, a qualidade das suas propostas. Mas é importante assinalar que grupo sujeito e grupo sujeitado não são instâncias polares: um mesmo grupo pode passar de um 'estado' de grupo sujeito, autônomo, para um 'estado' de grupo sujeitado, portanto heterônomo (GUATTARI, 1987).

Análise das atas

A tabela 1 apresenta os cinco temas que, com maior frequência, pautaram as reuniões, perfazendo cerca de 60% do total das pautas do período. Na última coluna, apresentam-se as demandas que surgiram a partir das reuniões, seja como tarefa ou eventos.

Tabela 1.
Frequência dos principais temas e suas demandas (respostas múltiplas)

Constatou-se que os temas das reuniões não seguem uma linearidade, sendo discutidos e retomados em momentos distintos. Ao todo, há uma variedade de temas produzidos, destaca-se o fato de a presença dos participantes manter-se praticamente constante em todos os encontros, com os mesmos representantes nas reuniões. Esse fato, acredita-se, revela que os profissionais se comprometeram com as reuniões e que os temas tratados eram do seu interesse.

De modo particular, verifica-se que o tema mais frequentemente abordado nas reuniões é o do Apoio Matricial. Esse dado vem justamente demonstrar o papel assumido pelo espaço da Rede Mista na construção da organização do trabalho na saúde mental, bem como de suas práticas nas equipes das unidades de saúde.

É com base nas discussões de Campos (1999; 2003) que o Apoio Matricial em saúde mental na atenção primária de Campinas é desenvolvido junto às equipes de referência de saúde da família: em discussões de casos, atendimentos conjuntos ou em atendimentos específicos aos casos de maior complexidade. Tal estratégia explora, além da capacidade de retaguarda assistencial, o caráter de ser apoio técnico-pedagógico, que constitui função estruturante desse arranjo organizacional junto aos profissionais da APS.

A persistência do grupo em discutir o Apoio Matricial reforça a necessidade de se analisarem as questões norteadoras dessa prática. Primeiramente, considera-se que discutir tal questão relaciona-se à concepção de saúde adotada e seu objeto, ou seja, os sujeitos concretos adoecidos. E, para ser coerente com essa diretriz, deve-se buscar a construção conjunta de autonomia tanto para os usuários como para os profissionais; há que se proceder a uma ampla reorganização da clínica e da saúde coletiva, e, em decorrência, dos modelos de gestão e atenção (ONOCKO CAMPOS; CAMPOS, 2007).

Ainda que se possam tecer inúmeras críticas ao modelo da clínica tradicional, não se pode descartar sua capacidade de evitar e aliviar a dor e o sofrimento, ao curar e reabilitar, prolongando a vida das pessoas. Entretanto, trata-se de ultrapassar os limites desse modelo, no intuito de qualificar a intervenção sobre o sofrimento e a doença, valorizando o encontro trabalhador/usuário como um espaço de produção de relações (CARVALHO; CUNHA, 2006).

Segundo Onocko Campos e Campos (2007), os objetivos essenciais do trabalho em saúde, seriam, portanto, a própria produção de saúde e a construção conjunta de capacidade de reflexão e de ação autônomas para os sujeitos envolvidos nesses processos: os trabalhadores e os usuários. Essa afirmação esclarece um dos motivos para a existência do espaço da Rede Mista e de sua sustentação ao longo do tempo. Esses mesmos autores afirmam que é preciso trilhar a mudança, partindo de nós e estimulando o exercício de graus maiores de autonomia no outro; isso se refere justamente ao fato de como os processos de mudança são capturados pelo que já está instituído e é hegemônico (LOURAU, 1975; KAËS, 1991).

É a partir de Campos (2003) que se pode perceber a concretização de uma prática aqui considerada instituinte. Com a formulação do Método Paidéia, o autor desenvolve metodologia de trabalho para lidar com o fluxo entre as especialidades em saúde denominada Apoio Matricial, ou seja, metodologia para promover o trânsito dos profissionais por áreas externas a suas especialidades, onde esses, organizados por campo de atuação - saúde mental, saúde bucal, ortopedia etc - transitariam pelos territórios em apoio às suas equipes de referência. Mas de nada adiantaria tal arranjo se os preceitos da horizontalidade e integralidade da atenção não fossem levados em conta. Aí tender-se-ia novamente a uma atuação compartimentalizada e hierarquizada, ainda que realizada no território.

De acordo com Campos e Domitti (2007), as noções de Apoio Matricial e equipe de referência são quase indissociáveis, unidas por uma interação dialógica, mas cada qual com suas especificidades no trabalho. Seriam diretrizes das equipes de referência à adscrição de clientela de acordo com o território e a construção de vínculo com a mesma, a relação longitudinal no tempo e a condução dos casos referenciados, sobre os quais as equipes teriam maior responsabilidade.

Mas, contrariamente ao caráter impessoal dos encaminhamentos e à subsequente impossibilidade de responsabilização pelos casos, propõe-se a articulação entre equipe de referência e apoiador matricial para a construção conjunta e personalizada do fluxo interinstitucional dos usuários. Por isso, o Apoio Matricial é um arranjo que depende fundamentalmente de espaços coletivos e horizontalizados de discussão e deliberação para se efetivar, bem como dos contatos pessoais entre os profissionais envolvidos.

E é justamente no fortalecimento de tais contatos com os equipamentos de referência do distrito, mas também pela possibilidade de dialogar com estes e de trocar conhecimento sobre as diferentes experiências de práticas de saúde mental e de apoio matricial às equipes de referência, que a Rede Mista se coloca. Evidenciando-se esse fato, o segundo tema mais discutido nas reuniões é justamente a troca de experiências entre as unidades.

Esse momento de troca é proposto, sobretudo, no compartilhamento de estratégias de trabalho junto às equipes e seus modos de produção cotidiana, pois é evidente a dificuldade de 'convencer' as equipes de referência a apropriar-se dos casos de saúde mental ou, inversamente, a própria equipe da mental permear e ser permeada pelos profissionais das ESF, por exemplo, participação da mental em grupos de hipertensos e diabéticos e, em contrapartida, de enfermeiros em grupos de psicóticos ou de pessoas que cometeram tentativa de suicídio.

Por conseguinte, esses dois temas mais frequentemente abordados, e sua análise, vêm ao encontro do fortalecimento da rede de cuidados, possibilitando a articulação entre os trabalhadores para atender aos casos e às necessidades de saúde. O mesmo ocorre com o quarto tema, que são as discussões sobre os serviços de referência, pois é a partir da rede de cuidado que se pode garantir a efetiva atenção integral aos casos acompanhados.

Com respeito à participação dos serviços de referência para a discussão de temas ou casos, terceiro assunto com maior frequência nas pautas, cabe destacar seu papel na perspectiva da intersetorialidade, uma vez que vários atores são convidados a participar, especialmente os equipamentos da assistência social e jurídicos. Segundo Mendes e Akerman (2007), não é apenas a complexidade dos problemas que impõe a necessidade de ações intersetoriais, a busca de "uma unidade do fazer e está associada à vinculação, à reciprocidade e complementariedade na ação humana" (MENDES; AKERMAN, 2007, P.91).

A função da Rede Mista se traduz no sentido de fazer avançar uma proposta pouco comum na prática do trabalho em saúde, ou mesmo do trabalho em geral, pois, na prática, o que se percebe é que a maioria dos projetos e programas tem forte conotação disciplinar e setorial, refletindo a contínua divisão social do trabalho e do conhecimento entre as especialidades (MENDES; AKERMAN, 2007, P.91).

Outro aspecto importante a ser destacado é o papel da Rede Mista na produção do conhecimento e sua contribuição para a formação dos profissionais de saúde. A própria função de Apoio Matricial exercido pelo próprio espaço de reuniões para os profissionais, por meio de seu caráter técnico-pedagógico, contribui para a ampliação da clínica, para a formação e para a construção do conhecimento.

O que faz o espaço da Rede Mista transversal?

Ao relacionar o que se passa com o grupo da Rede Mista, percebe-se que há uma aproximação desse grupo com o que Guattari define como grupo sujeito, no sentido que sua prática se encaminha na direção de atuar de acordo com o seu próprio desejo e suas próprias regras, sempre colocadas em discussão, e de poder encarar sua própria finitude. Para Lourau (1975), na prática do grupo sujeito, a transversalidade é o fundamento da ação instituinte dos grupamentos. Enfim, é o próprio objeto de busca de um grupo sujeito (GUATTARI, 1987).

Assim, o que deve ficar explicito é principalmente que o processo de transversalização não caminha no sentido da igualdade, mas, ao contrário, prevê que o grupo comporte a diferença, o embate e até as opiniões diversas sem que isso seja tomado como erro, dissidência política ou brigas pessoais. Destaca-se, então, a sustentação do dissenso, sem que isso signifique uma dissidência, caminhando para que o grupo seja cada vez mais sujeito de suas ações e de seu destino.

É conhecido o fato de que as formações das pessoas que compõem o grupo da Rede Mista são diversificadas, assim como diversas e variadas são as experiências vividas na prática dos atendimentos realizados de maneira singular e subjetiva, circulando ainda em diferentes espaços, com diferentes pessoas das equipes de referência. Tudo somado gera uma conformação grupal diferenciada, que se encerra sobre o tema da saúde mental, que, por si só, já é efeito de algo ainda maior, que são políticas e programas de ações que contemplam várias diretrizes.

Ao encontro das pessoas, vislumbra-se a vontade eminentemente interna de estar presente no grupo para as discussões, porque essas se colocam dispostas a discutir problemas comuns por parte do grupo, buscando ainda subsídios para construir e sustentar suas próprias práticas cotidianas, muito desafiadas pelos princípios da superação dos ainda resquícios das práticas assistenciais manicomiais e de uma cultura que, mesmo em tempos atuais, prega a segregação e o preconceito.

Também merece destaque a valorização do espaço, pois, com a análise das atas, percebe-se que, como existem participantes que estão desde o princípio da construção das reuniões, o grupo consegue se colocar sobre suas necessidades e desejos; consegue refletir, a partir do micro, as questões da macro política e as dimensões que influenciam na prática. Além disso, compreende e consegue lidar com os limites que encontram na prática, por exemplo, quando não se tem sequer a equipe de saúde da família funcionando na unidade como deveria; ou, os casos atendidos não se encerram na dimensão da saúde, tendo, em sua grande maioria, parcelas da precariedade econômica vivida pelo desemprego ou pela situação de vulnerabilidade social, exploração sexual, uso e abuso de álcool e outras drogas ilícitas, violência doméstica etc.; ou, ainda, pelo não empoderamento da gestão local pelas discussões da mental, dentre vários outros.

Entretanto, reconhecer os próprios limites e os processos que se passam na prática não é algo simples. Exige defrontar-se com as subjetividades, angústias e desejos particulares e profissionais, com os papéis que a equipe de saúde mental assume nas unidades.

Além disso, a Rede Mista se propõe ao encontro dos profissionais que cuidam, também produzindo relações e tecendo caminhos para a organização do trabalho e das propostas vinculadas ao modelo de atenção, devendo ser ainda mais vislumbrada e valorizada por suas construções e perspectivas desde sua criação.

Algumas considerações finais

O fato de a Rede Mista constituir um espaço transversal possibilita aos profissionais a construção dos saberes e sustentação das práticas cotidianas nos serviços de saúde. Mais ainda, o grupo pode consolidar-se depois das obrigações formais, com vistas à produção coletiva de um espaço fomentador de discussões e de fortalecimento dos profissionais, numa perspectiva da interdisciplinaridade.

Percebe-se que, nesse contexto, o fortalecimento do espaço da Rede Mista vem ao encontro das necessidades de um território que apresenta grande contingente em situação de vulnerabilidade social, tensionando, assim, a ampliação da concepção de cuidado em saúde, em especial ao trabalho em rede. A tessitura da rede se faz de maneira coletiva e os trabalhadores discutem e assumem as responsabilidades no cuidado de maneira pactuada.

As reuniões da Rede Mista fazem parte de um modelo assistencial pautado no compartilhamento dos casos, baseando-se na ampliação da clínica e das concepções de saúde e doença. Além disso, o espaço tem propiciado a ampliação da concepção de saúde, em especial, desmistificando e construindo saberes no cuidado ao transtorno mental. Trata-se, ainda, de um importante e privilegiado espaço para a construção de redes de cuidado. Ressalta-se, assim, a importância do trabalho em rede para a atenção em saúde mental e para a aproximação entre os diferentes equipamentos que o realizam.

As informações prestadas neste artigo constituem parte do estudo de mestrado da primeira autora, que pretende ampliar a análise para os demais fóruns distritais de saúde mental de Campinas no sentido de compreender os papéis assumidos por esses espaços na constituição dos modelos de atenção em saúde mental e nas práticas de atenção e cuidado aos usuários.

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  • TESTA, M. Pensamento estratégico e lógica de programação: o caso da saúde. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1995.

  • Suporte financeiro: não houve
  • 1
    Com a formulação do Método Paidéia, Campos (2003; 2007) desenvolveu uma metodologia de trabalho para lidar com o fluxo entre as especialidades em saúde, denominada Apoio Matricial. Trata-se de uma metodologia para promover o trânsito dos profissionais por áreas externas às suas especialidades, onde estes, organizados por campo de atuação - saúde mental, saúde bucal, ortopedia etc - transitariam pelos territórios em apoio às suas equipes de referências, no caso, em apoio às ESF. Atribui-se ainda ao Apoio Matricial um caráter técnico-pedagógico, bem como de retaguarda assistencial, permitindo a corresponsabilização dos casos, redesenhando a lógica dos encaminhamentos.
  • 2
    De acordo com a Portaria no. 336 de 19 de fevereiro de 2002, os Centros de Atenção Psicossocial poderão constituir-se nas seguintes modalidades de serviços: CAPS I, CAPS II e CAPS III definidos por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional, conforme disposto em tal Portaria. Destes, somente o CAPS III conta com leitos para acolhimento noturno. Nesta mesma Portaria, estabelecem-se os CAPS i II (infantil) e CAPS ad II (álcool e drogas), ambos funcionando das 8h as 18h de segunda a sexta-feira, podendo comportar um terceiro período até as 21h.
  • 3
    O apoio institucional nos distritos está ordenado por meio de duas lógicas principais: o Apoio como referência para os serviços do território, construindo ações para os processos de gestão e trabalho em saúde (intervindo nos processos locais, com os gestores e com os trabalhadores, reconstruindo o diálogo com movimentos sociais e equipamentos, por meio de processos pedagógicos e de construção do conhecimento); e, por outro lado, o Apoio para as atividades e programas da Secretaria Municipal de Saúde (normalmente está dividido por áreas do conhecimento: saúde da criança, saúde mental, assistência farmacêutica etc.). (CAMPOS, 2007, p.164)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    Dez 2012
  • Aceito
    Dez 2013
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