Resumos
Este estudo objetivou identificar a percepção de enfermeiras e assistentes sociais, que realizaram capacitação de ações educativas em contracepção, sobre direitos sexuais e reprodutivos e sua importância na promoção desses direitos. Realizou-se observação participante, com entrevistas e análise documental. Os resultados revelam restrito conhecimento sobre direitos sexuais e reprodutivos, permitindo concluir que a realização de treinamento não garante, necessariamente, a reflexão e a transformação das opiniões e práticas, desafio que se põe aos gestores da atenção à saúde e aos órgãos de formação em saúde.
Direitos sexuais e reprodutivos; Capacitação profissional; Atenção primária à saúde
This study aimed to identify the perceptions of nurses and social assistants, who attended educative action training in contraception, on sexual and reproductive rights and its importance to the promotion of these rights. A participant research was conducted by means of interviews and documentary analysis. The results reveal restricted knowledge of sexual and reproductive rights, allowing to conclude that training does not necessarily assures reflection and transformation of opinions and practices, a challenge posed to health care managers and health training bodies.
Sexual and reproductive rights; Professional training; Primary health care
Introdução
Os direitos sexuais e reprodutivos são parte integrante dos direitos humanos e, basicamente, abrangem o exercício da vivência da sexualidade sem constrangimento, da maternidade voluntária e da contracepção autodecidida.
Petchesky (2000)PETCHESKY, R.P. Rights and needs: rethinking the connections in debates over reproductive and sexual rights. Health and Human Rights, Harvard, v. 4, n. 2. p. 17-29, 2000., discutindo a questão dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos e integrantes das necessidades humanas básicas, afirma que a reprodução, a sexualidade e a saúde têm a mesma importância que os direitos sociais e econômicos. Todos são interdependentes e indivisíveis, e, no âmbito da atenção a saúde, esse reconhecimento é fundamental para a eficaz implementação das diretrizes governamentais (ROSAS, 2005ROSAS, C.F. Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: rompendo velhos preconceitos e construindo novos paradigmas. Jornal da Rede Feminista de Saúde, Florianópolis, n. 27, p.18, set. 2005.).
No Brasil, o conceito de direitos reprodutivos começou a ser formulado a partir da reflexão das mulheres a respeito do exercício de sua função reprodutiva, de seu papel e de suas condições na sociedade (ÁVILA, 1989ÁVILA, M.B. Direitos Reprodutivos: o caos e a ação governamental. In: CORRÊA, S.; ÁVILA, M.B. Os Direitos Reprodutivos e a condição feminina. Recife: SOS Corpo, 1989.). A mudança da terminologia 'saúde da mulher' para a de 'conceito de direitos reprodutivos' passou a ser empregada sistematicamente no início dos anos 1980, quando havia participação ativa de um grupo de feministas brasileiras no I Encontro Internacional de Saúde da Mulher, em Amsterdã. Porém, esse termo só foi consagrado na década de 1990 quando a Organização das Nações Unidas (ONU) realizou reuniões temáticas internacionais, nas quais questões relativas ao gênero, saúde, equidade, autonomia, direitos humanos, dentre outras, foram reafirmadas e reforçadas mutuamente.
O panorama que se tem construído nas últimas décadas é o entendimento de que os direitos sexuais e reprodutivos fazem parte dos direitos humanos. Como nos diz Barsted (2005, P. 15)BARSTED, L.L. Conquistas da sexualidade no campo do direito. Sexualidade - Gênero e Sociedade, Ano XII, n. 23/24/25, p. 160-172, out. 2005.
[...] A vivência da sexualidade importa não apenas a liberdade e a autonomia, mas também todo o conjunto de direitos de cidadania. Na linha de discussões sobre os direitos humanos, o movimento de mulheres tem tido participação importante em debates que transcendem o aspecto da reprodução, sobretudo os diversos aspectos que implicam relações de gênero desiguais.
Pode-se afirmar que os direitos reprodutivos são entendidos como "a capacidade de se reproduzir e a liberdade de decidir-se, quando e com que frequência se reproduzir" (PETCHESKY, 1999, P. 21PETCHESKY, R.P. Direitos sexuais: um novo conceito na prática política internacional. In: BARBOSA, R.M.; PARKER, R. (Org). Sexualidades pelo avesso: direitos, identidades e poder. Rio de Janeiro: IMS/UERJ; São Paulo: Editora 34, 1999.). Além disso, esse conceito é um instrumento de ação política, que permite o deslocamento da discussão de temas como aborto, homossexualidade, concepção, contracepção e mortalidade materna, antes restritos aos aspectos legais e de saúde, para o campo dos direitos humanos (CORRÊA; ÁVILA, 2003CORRÊA, S.; ÁVILA, M.B. Direitos sexuais e reprodutivo: pauta global e percursos brasileiros. In: BERQUÓ, E. (Org). Sexo e vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. Campinas: Unicamp, 2003.). Já o conceito de direitos sexuais, que tem uma história ainda mais contemporânea, origina-se nos movimentos gays e lésbicos interessados na anulação da estigmatização das chamadas sexualidades alternativas, e abrange fundamentalmente o exercício da vivência da sexualidade, da livre escolha de parceiros e práticas sexuais sem constrangimento ou discriminação.
O efetivo exercício dos direitos sexuais e reprodutivos demanda políticas públicas que assegurem a saúde sexual e reprodutiva e que têm na Atenção Primária em Saúde (APS) uma das suas grandes áreas de atuação. Portanto, a exigência de que o Estado garanta esses direitos está intimamente articulada ao trabalho dos profissionais de saúde, de modo que, dependendo de seu posicionamento no atendimento à clientela, tal garantia pode ser comprometida.
A formação profissional em saúde não contempla em seus projetos pedagógicos a discussão sobre atenção à saúde na perspectiva dos direitos sexuais e reprodutivos e tampouco em educação permanente ou continuada nos serviços de saúde. Pesquisa que visou a identificar conteúdos referentes aos Direitos Humanos Sexuais e Reprodutivos (DHSR) nos programas de disciplinas das áreas de saúde da mulher, saúde do adolescente e saúde coletiva dos quatro cursos de graduação em enfermagem e de três de medicina das universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro, descobriu que esse tema foi mencionado apenas no item 'Referência bibliográfica' de um programa do curso de enfermagem (XAVIER ., 2013XAVIER, J.N. et al. Estatuto da criança e do adolescente e direitos humanos sexuais e reprodutivos na formação de enfermeiros e médicos. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 18, n. 1, p. 64-70, jan./mar. 2013.).
No Município do Rio de Janeiro, nos anos de 1990, profissionais de saúde ligadas ao movimento feminista assumiram a Gerência do Programa da Mulher da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (GPM-SMS/RJ), que incluía a capacitação de profissionais de saúde. Destaca-se, à época, a criação de um Centro de Treinamento em Atenção Integral à Saúde da Mulher - Espaço Mulher. Esse centro iniciou suas atividades em 1993 com o objetivo de capacitar profissionais para o trabalho educativo na área da contracepção. A proposta educativa do centro considerava não apenas os aspectos técnicos e biológicos, mas, antes de tudo, as questões relativas ao gênero, à sexualidade, à autonomia e à liberdade da mulher. Foram ministrados 21 cursos regulares para profissionais de nível superior e oito para os de nível médio, com carga horária média de 90 horas. O módulo teórico se desenvolvia por meio de metodologia participativa, com dinâmicas de grupo, leituras e debates. Seu propósito era fomentar a discussão e a troca de experiências sobre temas, como gênero, sexualidade e contracepção. O módulo prático previa a observação de grupos de contracepção e o treinamento em consultório para uso de métodos contraceptivos, como o dispositivo intrauterino (DIU) e o diafragma. Cada profissional optava pela Unidade Básica de Saúde (UBS) em que faria a parte prática (SILVA , 2002SILVA, L. et al. Centro de treinamento em atenção integral a saúde da mulher - Espaço Mulher: uma experiência em educação para a saúde no município do Rio de Janeiro. Saúde em Foco - Informe Epidemiológico em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, n. 23, p. 131-133, jul. 2002.).
No cotidiano dos serviços de APS, os profissionais se deparam com questões relacionadas à sexualidade ou reprodução, demandas como gravidez não planejada, aborto, esterilização, planejamento reprodutivo, contracepção de emergência, enfim, questões diretamente ou indiretamente associadas aos DHSR que estão presentes diariamente. Portanto, práticas pautadas na integralidade da atenção, assim como o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, dentre outros princípios, que devem nortear as práticas profissionais no âmbito da atenção à saúde.
Dessa forma, uma iniciativa de inclusão de tais temas em capacitações específicas, como é o curso tratado neste artigo, é de grande importância, sobretudo por estar voltado aos profissionais que estão na porta de entrada preferencial do sistema de saúde: a atenção básica.
Trata-se de recorte da pesquisa de doutorado que teve como cenário de investigação etnográfica o desenvolvimento do Curso sobre Contracepção. Esse curso, com carga horária de 92 horas distribuídas em módulos teórico e prático, contemplou profissionais de nível superior, inseridos ou que desejavam atuar na área de saúde da mulher, do adolescente ou da família no Município do Rio de Janeiro. Perguntava-se se os profissionais que realizaram o curso reconhecem que suas ações estão no âmbito da promoção e garantia dos DHSR? E o que eles entendem sobre esses direitos?
Entender tais questões na perspectiva dos direitos é um desafio para profissionais de saúde que, por meio de sua prática, têm papel fundamental não só na construção de boas práticas não discriminatórias como também na promoção, proteção e garantia dos DHSR. Dito de outra forma, o objetivo foi identificar a percepção de enfermeiras e assistentes sociais que realizaram capacitação de ações educativas em contracepção sobre direitos sexuais e reprodutivos e sua relação na promoção desses direitos.
Metodologia
Este foi um estudo descritivo com abordagem qualitativa, na perspectiva etnográfica (BECKER, 1993BECKER, H. Método de pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Hucitec, 1993.). O universo empírico e lócus de observação foram o local de realização/desenvolvimento do módulo teórico do Curso Programa de Atenção à Saúde da Mulher-Contracepção (PAISM), os espaços de desenvolvimento do módulo prático (as unidades em que as participantes fizeram a parte prática do Curso, bem como os locais de trabalho das participantes, onde houve o desenvolvimento dos grupos educativos de contracepção). As anotações provindas das observações foram descritas em um diário de campo.
O módulo teórico do Curso de PAISM-Contracepção aconteceu durante dois meses, nas segundas e quartas-feiras, de 8h30 às 17 horas. No primeiro dia do curso, aplicou-se um questionário pré-curso para os 22 participantes inscritos, contendo questões sobre a idade, formação profissional, situação marital, filhos, religião etc., e ainda questões sobre o entendimento dos participantes sobre direitos sexuais e reprodutivos, sexualidade, aborto, além de seus interesses e expectativas quanto ao curso, dentre outras. Somente 20 pessoas o preencheram: 13 enfermeiras, um enfermeiro, cinco assistentes sociais e uma médica.
A observação participante se deu por meio da observação do desenvolvimento do módulo teórico (metodologias utilizadas, temas, postura das participantes e coordenadoras etc.) e ocorreu por dois meses, duas vezes na semana em período integral durante a realização do curso. Aspectos como disposição das cadeiras, materiais e técnicas utilizadas, assim como a descrição de todas as atividades propostas pela coordenação da atividade, variavam conforme o tema a ser trabalhado e realizado pelo grupo. Por exemplo: violência contra mulher, aborto, métodos contraceptivos, práticas educativas.
Após o término do módulo teórico, realizaram-se as entrevistas gravadas por meio de equipamento digital. A seleção das participantes para as entrevistas ocorreu ao longo do trabalho de campo e se pautou na análise das respostas dos 20 questionários preenchidos no início do curso e nas atitudes observadas durante o curso, tais como a ambivalência frente a temáticas consideradas centrais nesta pesquisa, além da disponibilidade pessoal para participação. As entrevistas foram realizadas ao longo de 13 meses e o roteiro de entrevista abordava questões abertas a respeito da opinião sobre o curso, sobre o conteúdo abordado e, sobretudo, sobre temas específicos como direitos sexuais e reprodutivos e sexualidade. Um enfermeiro e uma médica também foram entrevistados, mas o material foi excluído da investigação por questões éticas, já que ele era o único homem do grupo e ela, a única médica. Tal condição possibilitaria a identificação dos dois profissionais quando da apresentação deste estudo.
A não realização do módulo prático e a não implantação e desenvolvimento dos grupos educativos em seus locais de trabalho por algumas treinandas após o curso consistiu em entrave significativo ao processo de composição do grupo de participantes para a realização de mais entrevistas. Por fim, sete enfermeiras e quatro assistentes sociais foram entrevistadas.
As entrevistas e o material da observação participante foram analisados por meio de análise temática (BARDIN, 2006BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2006.). De acordo com essa técnica, por meio de uma matriz de análise, são identificados núcleos de sentido. Esses últimos fazem parte de uma comunicação cuja frequência tem significado na medida em que a presença de determinados temas se relaciona a valores de referência e modelos de comportamento das entrevistadas.
Esta pesquisa foi desenvolvida de acordo com as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas com seres humanos estabelecidas na Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro sob o parecer nº 58A/2006 e protocolo de pesquisa nº 21/2006. As participantes foram apresentadas com nomes fictícios (Amanda, Beatriz, Catarina, Débora, Elza, Fabrícia, Gisele, Helena, Isadora, Júlia e Lívia) e sem identificação de categoria profissional, pois não houve distinção substancial em seus discursos.
Resultados e discussão
Das 11 participantes, seis se auto identificaram como brancas, três como negras, uma como parda e uma como parda/negra. Quanto à idade, quatro tinham entre 28 e 34 anos, cinco entre 41 e 46 anos e duas entre 53 e 60 anos. A orientação religiosa católica foi referida por sete das participantes, a evangélica por três, e o espiritismo por uma. Quanto à situação conjugal, seis são casadas ou vivem em união consensual, três solteiras, uma divorciada e uma não respondeu. Quanto ao número de filhos, quatro não têm filhos. Cinco das participantes moram na zona norte, duas na zona oeste, duas na zona sul e duas na baixada fluminense. A renda familiar variou entre R$ 2.500 e R$ 5.000 para cinco das participantes, entre R$ 7.000 e R$ 11.000 para quatro e duas não informaram. O valor de referência do salário mínimo para o Estado do Rio de Janeiro em 2006 era de R$ 369,45 e em 2007, R$ 424,88. Certamente, se o número de componentes do domicílio fosse identificado, a informação sobre a renda familiar teria sido mais completa. Em relação ao tempo de formação, cinco têm entre cinco e dez anos, duas mais de dez anos, duas mais de 20 e outras duas mais de 30 anos de formadas. Dez participantes têm pós-graduação, seis em áreas afins à saúde pública.
Em todos os dias do curso, ao começar as atividades, algum membro da coordenação iniciava com a avaliação do dia anterior, estimulando as treinandas a comentar o que haviam considerado interessante, importante ou cansativo nas atividades do encontro anterior. A abordagem predominante era realizada por meio de metodologias ativas, como dinâmicas, discussão circular, vídeo, realização de tarefas lúdicas, tais como recorte e colagem, trabalho corporal ou simplesmente comentário sobre frase que remetia ao assunto da ocasião para debate etc., que permitiam às participantes discutir e expor suas vivências.
'Fazer pensar e mudar práticas' foi uma frase citada por duas coordenadoras em dois momentos durante o curso no sentido de justificar o não aprofundamento teórico sobre os temas a serem abordados, ou seja, a mudança a partir da reflexão da prática. Os temas abordados foram: PAISM; promoção da saúde; gênero; raça e etnia; doenças sexualmente transmissíveis (DSTs)-abordagem sindrômica das DSTs; aborto; sexualidade; violência contra a mulher; métodos contraceptivos; mortalidade materna; serviço de contracepção dentre outros.
Na programação do curso, o tema direitos sexuais e direitos reprodutivos não constava como uma aula especifica, sendo abordado na aula que tratava de 'Organização do Serviço de Contracepção'. Foi apresentado de forma contextualizada historicamente, com referência aos marcos internacionais, como as conferências internacionais promovidas pela Organização das Nações Unidas. As coordenadoras davam exemplos do cotidiano do atendimento em saúde, de modo a reforçar a necessidade de atitude do reconhecimento e respeito a tais direitos. O Ministério da Saúde, em parceria com outros ministérios, vem elaborando e implementando políticas que contemplem esses direitos, considerados como direitos humanos (BRASIL, 2005______. Direitos sexuais e direitos reprodutivos: uma prioridade do governo. Brasília: Ministério da Saúde, 2005.; BRASIL, 2010BRASIL. Ministério da Saúde. Saúde sexual e saúde reprodutiva. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.). A materialização dessas políticas se dá nas práticas dos profissionais inseridos em serviços de saúde.
Buscou-se identificar o conhecimento das participantes acerca do tema e a percepção de seu papel na promoção e garantia desses direitos. Três, das 11 participantes, não conheciam esses termos. Todavia, assim como as outras entrevistadas, citaram a autonomia e a liberdade como a eles concernentes. O significado mais recorrente referiu-se à decisão, escolha e opção por métodos contraceptivos e pelo parceiro sexual. O direito à informação ou orientação quanto à prevenção de DSTs ou contracepção também foi mencionado por todas as participantes. A noção majoritária acerca de direitos reprodutivos abrangeu, prioritariamente, o planejamento do número de filhos no que tange à contracepção. Essa visão vai ao encontro dos estudos de Villela e Monteiro (2005)VILLELA, W.; MONTEIRO, S. Atenção à saúde das mulheres: historicizando conceitos e práticas. In: VILLELA, W.; MONTEIRO, S. (Org). Gênero e saúde: programa saúde da família em questão. Rio de Janeiro: ABRASCO; Brasília: UNFPA, 2005. e Lindner, Coelho e Carraro (2006)LINDNER, S.R.; COELHO, E.B.S.; CARRARO, T.E. Direitos reprodutivos: entre o discurso e a prática na atenção à saúde da mulher com foco no planejamento familiar. Cogitare Enfermagem, Curitiba, v. 11, n. 3, p. 197-205, set./dez. 2006., segundo os quais os profissionais de saúde não associam os direitos reprodutivos a temas como concepção, aborto, esterilização, além de desconhecerem a discussão sobre a medicalização do corpo feminino e a utilização abusiva de tecnologia. Duas participantes mencionaram claramente o direito de ter filhos e o papel do Estado em garantir esse direito, numa perspectiva de entendimento de um direito social e não apenas individual (CORRÊA; PETCHESKY, 1994). Para elas, cabe às agências públicas, assegurá-los: "Então, o direito reprodutivo, a gente precisa enfocar também o direito de quem quer ter filhos e não só o de quem não quer ter [...]" (Isadora, católica).
[...] eu acho que tem a ver com a questão de você querer planejar. Quantos filhos você quer ter, se você quer ter, se não quer ter, se você tem esse respaldo na saúde pública [...] (Helena, católica).
Ainda sobre o papel do Estado na questão reprodutiva, Vargas (2006)VARGAS, E.P. Casais inférteis: usos e valores do desejo de filhos entre casais de camadas médias no Rio de Janeiro. 280f. 2006. Tese (doutorado). Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. afirma que decidir-se por não ter filhos tem sido reivindicação das mulheres. Atualmente, elas podem escolher quando terão filhos, mas a opção por não tê-los é complexa. Novas tecnologias reprodutivas são desenvolvidas para 'resolver' a infertilidade, mas as políticas públicas pouco avançaram em relação a essa demanda.
Algumas participantes encontraram dificuldade em definir e distinguir os direitos sexuais dos reprodutivos. Por vezes, utilizavam sinônimos, mas, a partir do estímulo e da abordagem em separado de cada um dos conceitos, demonstraram possuir noção da diferença entre eles, permanecendo essencialmente no âmbito do respeito à orientação sexual.
A qualidade da relação sexual, a liberdade de não querer sexo, a atividade sexual nas distintas fases da vida foram temáticas pouco abordadas. De fato, a noção de direitos sexuais é recente, pois se origina na luta dos movimentos gays e lésbicos contra o preconceito. A consolidação de uma linguagem específica se deu nos anos 1990 com as conferências internacionais do Cairo e de Beijing (VIANNA, 2004VIANNA, A. Direitos e políticas sexuais no Brasil:mapeamento e diagnóstico. Rio de Janeiro: CEPESC, 2004.). Atualmente, parte do movimento feminista considera essa terminologia como elemento de luta contra a desigualdade de gênero (CORRÊA; ÁVILA, 2003CORRÊA, S.; ÁVILA, M.B. Direitos sexuais e reprodutivo: pauta global e percursos brasileiros. In: BERQUÓ, E. (Org). Sexo e vida: panorama da saúde reprodutiva no Brasil. Campinas: Unicamp, 2003.).
As participantes, Isadora e Amanda se referiram ao direito sexual sob a perspectiva de liberdade de escolha, mas também indicaram restrições ao exercício da sexualidade. Vale ressaltar que ambas se declararam católicas, tanto no questionário quanto verbalmente nos debates durante as aulas ou em entrevista. Muitas vezes, uma dessas entrevistadas se distinguia de suas colegas por apresentar postura mais conservadora relativamente aos valores morais e religiosos. As falas são ilustrativas:
[...] Agora a questão do direito sexual, eu acho que a gente precisa avançar nessa discussão é que é direito, não só sexual [...] eu acho que a gente tem que ter limites pra esse querer [...] a gente não pode tá liberando pra todas as praias terem nudismo. Não pode tá liberando pra que as pessoas transem em todos os lugares, eu acho que não, porque a gente também tem que ter o direito de não ver se você não quer ver (Isadora, católica).
[...] eu acho que os direitos sexuais e reprodutivos devem ser assegurados, as pessoas têm o direito de fazer o que bem entendem [...], por exemplo, essa sexualidade que eu acho, assim muito [...] a prática sexual mesmo, de qualquer jeito e com qualquer pessoa... que está na cabeça das pessoas mais atuais, não entrou na minha cabeça, ainda, isso. Agora, lógico, para os outros, cada um, eu acho que tem o seu direito pra fazer o que quiser da sua vida, eu só acho que isso não é a melhor opção, entendeu? As pessoas tenham tanta liberdade sexual, assim, que sexo seja visto como trocar uma roupa, como comer, como uma necessidade básica do ser humano, é uma necessidade como alimento, mas não que você tenha que satisfazer com qualquer um, em qualquer momento, com qualquer pessoa, entendeu? Como as pessoas banalizam, eu acho que banalizam demais! (Amanda, católica).
Ao serem indagadas acerca de como o profissional de saúde poderia contribuir para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, as respostas foram: atender a clientela sem preconceito quanto à sua prática sexual; respeitar a homossexualidade e saber efetuar orientação em torno do método contraceptivo, sem induzir a escolha. As entrevistadas se referiram à orientação ou informação sobre prevenção de DSTs, contracepção, recursos legais para conquista dos direitos, sexualidade e conhecimento do corpo como questões contribuintes para a garantia desses direitos. Como afirmam Ávila e Gouveia (1996)ÁVILA, M.B.; GOUVEIA, T. Notas sobre direitos reprodutivos e direitos sexuais. In: PARKER, R.; BARBOSA, R.M. (Org). Sexualidades brasileiras. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996., ter acesso à informação e à possibilidade de escolha é uma forma de se alcançar o direito.
Lívia exemplifica a garantia do direito sexual com o fato que, algumas vezes, pessoas soropositivas são atendidas de forma discriminatória pelos médicos. Quando isso ocorre, ela as orienta a denunciar à Ouvidoria da Prefeitura ou ao Ministério Público. Conforme citado, o respeito, a ajuda e a compreensão foram palavras recorrentes das participantes no que se refere à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos; como exemplo, a questão do aborto e a homossexualidade.
A gente como profissional e como pessoa tem que estar isenta de qualquer preconceito mesmo se a pessoa for homossexual, e você não admita isso, você não conceba isso, mas tem que saber que existe e você não está ali pra criticar nem pra condenar, muito menos. Você tá ali pra ajudar [...] Orientar, ouvir e não ter uma postura preconceituosa, só nisso em acolher já está uma grande parte da ajuda, ajuda da gente enquanto pessoa (Amanda, católica).
A exigência de que o Estado garanta esses direitos está intimamente articulada ao trabalho dos profissionais de saúde, de modo que, dependendo de seu posicionamento no atendimento à clientela, os direitos podem ser promovidos, garantidos ou até mesmo violados. Os depoimentos revelam a tendência à valorização da liberdade individual e da tolerância como atitude humanitária e, ao mesmo tempo, a ausência de entendimento crítico e político da questão. O fato de o tema dos direitos sexuais e reprodutivos não ter feito parte explícita do conteúdo do curso, ou seja, não ter sido discutido como aspecto importante a ser implantado pelos profissionais, sua participação na garantia e promoção pode ter contribuído para reforçar o sentido religioso e vocacional comum na origem da formação de enfermeiras e, provavelmente, na de assistentes sociais. A tolerância e a possibilidade de 'se abrir para o outro' foram mencionadas por algumas participantes, dentre as quais Fabrícia e Gisele. Quando indagadas se o curso havia mudado sua visão sobre sexualidade, citaram a mudança de postura profissional frente aos usuários, no que tange à prática sexual e ao aborto.
[...] muita coisa eu falava abertamente, achava que você podia dar sua opinião, mas você não pode, não pode direcionar [...] 'Ah! Eu adoro fazer sexo anal', mas não pode, pode ter uma lesão, tem que usar camisinha, não é assim que a gente tem que abordar: 'não pode', 'está errado', pra mim não pode, pra mim está errado, mas pra ela dá prazer, pra ela tá bom, não tem que abordar dessa forma, tentar sim, direcionar o uso da camisinha, a importância de prevenir [...] Aborto, por exemplo, eu via uma mulher que fazia teste de gravidez e dizia que ia tirar, eu ficava o dia inteiro sentada com ela, convencendo a ela não tirar, falava de Deus, falava disso, falava daquilo, eu aprendi lá que eu não posso fazer isso, então não é assim, é respeitar. A gente faz nosso papel: você toma sua decisão, e eu estou aqui de braços abertos te esperando, seja qual for sua decisão. Sem preconceito e nada(Fabrícia, católica).
[...] eu era muito mais enfática, no sentido, tipo assim: Ou você usa o preservativo ou você está morto! E aí eu comecei a entender que há mulheres que não vão usar, porque seus maridos nunca vão admitir isso, então eu comecei a orientar de outra maneira [...] a minha mente já abriu um pouco mais para isso, porque tem gente que nunca vai usar mesmo [...] Então, assim, eu não tenho mais esse tipo de preconceito não [se referindo ao aborto e à homossexualidade], graças a Deus, eu consigo separar bem aquilo que eu penso enquanto pessoa e aquilo que eu acredito que eu deva ser como profissional (Gisele, evangélica).
A atitude tolerante - que poderia também ser aludida como integrante da ética cristã - de despir-se de preconceitos expressa uma postura próxima à de respeito aos direitos. Contudo, quando questionadas sobre os meios de contribuir para a garantia dos direitos reprodutivos, as participantes não se referiram, por exemplo, ao acesso ao aborto legal como um direito da mulher.
O tom dominante nos discursos das participantes restringiu-se ao domínio de ações informativas no âmbito da prevenção de doenças e gravidez e à esfera 'humanitária' do respeito à escolha individual, à compreensão e à tolerância, que, em retórica, parece próxima ao discurso da moral religiosa cristã de acolhimento ao pecador. Esses discursos pressupõem uma prática passível de análise a partir dos marcos religiosos e biomédicos (BONAN, 2005BONAN, C. Reflexividade, sexualidade e reprodução: encruzilhadas das modernidades latino-americanas. Iberoamericana, Madrid, v. 5, n. 18, p. 89-107. 2005.).
Os discursos demonstraram postura contraditória no que se refere aos nexos entre religião e sexualidade. A princípio, essa visão, por um lado, se apresenta por uma representação convencional da religião como dimensão antiquada e, por outro, em sentido diverso para sexualidade, como esfera contemporânea e significativa da subjetividade. Duarte (2005)DUARTE, L.F.D. Ethos privado e justificação religiosa: negociações da reprodução na sociedade brasileira. In: HEILBORN, M.L. et al. (Org). Sexualidade, família e ethos religioso. Rio de Janeiro: Garamond, 2005., ao abordar a complexidade do fenômeno da religião nas sociedades modernas, afirma que o seu sentido se estrutura em três dimensões: 'a da religião' como identidade ou pertencimento; 'a da religiosidade' como adesão, experiência ou crença e a 'do ethos religioso' como uma disposição ética ou comportamental associada a um universo religioso. Não foi possível, neste trabalho, investigar as possíveis esferas estruturantes da acepção religiosa das participantes, mas alguns relatos permitem afirmar que seus discursos se aproximam da dimensão do ethos religioso.
Por meio do material etnográfico, observou-se que a ética cristã de acolhimento e tolerância à liberdade individual, evidenciada nos discursos em torno dos direitos sexuais e reprodutivos, está intimamente vinculada ao ethos religioso, uma vez que ocorreram independentemente das diferentes posições religiosas das participantes. Como hipótese, surge a ideia de que o discurso dos direitos sexuais e reprodutivos são assimilados e interpretados a partir desse ethos. Em outros termos, embora apresentando retórica fundada nos valores cristãos de tolerância, compreensão e acolhimento sem clara posição política na esfera dos direitos, pautada nas discussões dos organismos internacionais e acadêmicos ou até não (re)conhecendo alguns direitos, em geral, as participantes apresentaram um discurso que afirma o respeito às decisões reprodutivas e às escolhas sexuais dos sujeitos.
Direitos sexuais e direitos reprodutivos, reconhecidos como direitos humanos e, portanto, direito social e não somente privado (CORRÊA; PETCHESKY, 1994; PETCHESKY, 2000PETCHESKY, R.P. Rights and needs: rethinking the connections in debates over reproductive and sexual rights. Health and Human Rights, Harvard, v. 4, n. 2. p. 17-29, 2000.), não foram claramente mencionados pelas participantes. De acordo com Rosas (2005, P. 18)ROSAS, C.F. Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: rompendo velhos preconceitos e construindo novos paradigmas. Jornal da Rede Feminista de Saúde, Florianópolis, n. 27, p.18, set. 2005., "parcela importante de médicos(as) e demais profissionais de saúde não reconhecem os direitos reprodutivos como parte integrante dos direitos humanos fundamentais".
Cabe acrescentar que ainda mais difícil é o reconhecimento dos direitos sexuais. Porém, ambos os direitos devem ser assegurados pelo Estado, em última instância, pelos serviços e profissionais de saúde, que são seus representantes frente à população.
Considerações finais
Este estudo revelou restrito conhecimento das participantes sobre direitos sexuais e reprodutivos, mesmo depois da realização do curso. No entanto, a partir de estímulo à expressão durante as entrevistas, os temas de autonomia e liberdade foram insistentemente citados. Os direitos foram entendidos como decisão, escolha por métodos contraceptivos, opção pelo parceiro sexual e acesso à informação ou orientação quanto à prevenção de DSTs ou contracepção. Para a maioria das participantes, no que tange à contracepção, o conteúdo dos direitos reprodutivos abarca prioritariamente o planejamento do número de filhos. Temas como aborto, esterilização, o debate em torno da medicalização do corpo feminino e o uso abusivo de tecnologia não foram contemplados pelas participantes, embora os dois primeiros tenham sido abordados durante o curso.
De forma geral, as entrevistadas compreendem direitos sexuais como sinônimo de direitos reprodutivos. Contudo, a partir da solicitação de separação entre os conceitos, elas demonstraram entendimento da diferença, com ênfase no respeito à opção sexual. Questões como qualidade do sexo, liberdade de não desejar sexo e atividade sexual nas distintas fases da vida quase não foram citadas.
Abrir determinadas discussões ou propiciar o acesso a (e o debate de) certas posições políticas e institucionais, conforme apresentado durante o Curso, não garante necessariamente um processo de reflexão e de transformação das opiniões e práticas. Isso deve ser considerado pelos que estão envolvidos em capacitação de profissionais de saúde. Realizar atividades de educação permanente no próprio local de trabalho a partir de situações cotidianas pode ser uma alternativa para fazer com que o tema direitos sexuais e reprodutivos tenha concretude e reconhecimento pelos profissionais e que assim sejam incorporados às suas práticas de atenção à saúde. Esse desafio está posto aos gestores da atenção à saúde e aos órgãos de formação em saúde.
- ÁVILA, M.B. Direitos Reprodutivos: o caos e a ação governamental. In: CORRÊA, S.; ÁVILA, M.B. Os Direitos Reprodutivos e a condição feminina Recife: SOS Corpo, 1989.
- ÁVILA, M.B.; GOUVEIA, T. Notas sobre direitos reprodutivos e direitos sexuais. In: PARKER, R.; BARBOSA, R.M. (Org). Sexualidades brasileiras Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996.
- BARDIN, L. Análise de conteúdo Lisboa: Edições 70, 2006.
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- Suporte financeiro: não houve
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2014
Histórico
- Recebido
Maio 2013 - Aceito
Abr 2014