Ciência, política e reforma sanitária nas páginas da revista Saúde em Debate (1970-1980)

Science, policy and sanitary reform in the pages of Saúde em Debate journal (1970-1980)

Daniela Carvalho Sophia Luiz Antonio Teixeira Sobre os autores

Resumos

Em 1976, surge o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), tendo como principais objetivos, incentivar pesquisas sobre saúde e divulgá-las. A partir de sua criação, a instituição passa a defender mudanças nas políticas de saúde e apresenta um projeto para uma reforma na saúde pública brasileira. O estudo analisa a revista Saúde em Debate, periódico publicado pelo Cebes, examinando suas principais características, seu funcionamento como um veículo de disseminação de conhecimentos acadêmicos e a forma pela qual seus articulistas defendiam o projeto de uma reforma sanitária. O trabalho examina os primeiros 12 anos da revista, tendo como ponto de chegada a consagração do Sistema Único de Saúde.

História; Publicações periódicas; Publicações científicas e técnicas; Sociedades


In 1976, emerges the Brazilian Center of Health Studies, having as its main objectives, to encourage researches about health and to promote them. Since its creation, the institution stands up for changes in health politics and presents a project to a reformation in the Brazilian public health. The study analyses the Saúde em Debate, journal published by the Center, examining its main features, its running as a dissemination vehicle of academic knowledge and the form in which its columnists had safeguarded the project of a sanitation reform. This paper examines the first 12 years of the magazine, having as point of arrival the consecration of the Health Unified System.

History; Periodical publications; Scientific and technical publications; Societies


Introdução

No Brasil, durante a segunda metade da década de 1970, na esteira dos movimentos políticos pelo retorno ao regime democrático, surge uma inquietação social visando à viabilidade legal e pública da luta política em âmbito nacional, por transformação das práticas e políticas de saúde: trata-se do Movimento de Reforma Sanitária (MRS) (ESCOREL, 1998ESCOREL, S. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998.; GERSCHMAN, 2004GERSCHMAN, S. V. A democracia inconclusa: um estudo da reforma sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2004.; PAIM, 2008PAIM, J. S. Reforma sanitária brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: Edufba; Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2008.).

A reforma sanitária é definida por Sarah Escorel (1998)ESCOREL, S. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998. como um movimento de pessoas e grupos em direção à conquista de um projeto maior de democracia; e, setorial, de transformação da política de saúde. Esse movimento possuía quatro postulados principais: democratização da saúde, o que implicava elevar a consciência sanitária sobre saúde e seus determinantes; o reconhecimento do direito à saúde que garantisse o acesso universal e igualitário ao sistema; a participação social no processo de formulação e implementação de políticas; e, o comprometimento integral do Estado com a saúde. É preciso lembrar que, naquele momento, as políticas públicas na área da saúde se dividiam entre a assistência dada aos segurados da previdência social e a saúde pública, sob a responsabilidade do Ministério da Saúde. No comando da previdência, estava a aliança entre interesses privados e a burocracia estatal e, a partir dessa aliança, ocorria naquele momento uma crescente privatização dos serviços médicos. Tal contexto criou um panorama de crise institucional e contribuiu para alavancar um movimento que teria como carro-chefe a defesa da responsabilização do Estado pela prestação dos serviços de saúde (ESCOREL, 1998ESCOREL, S. Reviravolta na saúde: origem e articulação do movimento sanitário. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998.).

No contexto de tal movimento, um número expressivo de entidades surgiu para discutir mudanças no quadro sanitário do País, dentre elas, o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), instituição que se constituiu no ponto de encontro de médicos e sanitaristas. Em 1976, o Cebes iniciou a edição de sua revista, chamada Saúde em Debate (RSD), a qual constitui o foco deste trabalho. A revista passou a circular no segundo semestre daquele ano como um dos produtos da entidade, e com o perfil de uma revista institucional, no sentido de que se constituía na memória das atividades da entidade recém-criada.

No presente trabalho, examinamos as principais características do periódico, seu funcionamento como um veículo de divulgação e disseminação de conhecimentos científicos e a forma pela qual seus articulistas defendiam o projeto de uma reforma sanitária. No que tange às escolhas metodológicas, este artigo vincula-se ao conjunto de trabalhos que analisam a trajetória e o papel social de periódicos específicos. O estudo desses periódicos - como verdadeiras instituições produtoras de conhecimentos, normas e práticas sociais - tem atraído a atenção de pesquisadores interessados no conhecimento da produção intelectual e na avaliação de seu legado para determinados períodos da história. Nessa linha de investigações, tomamos como base aquelas que delineiam uma abordagem que faz do periódico, a um só tempo, fonte e objeto de pesquisa histórica (FERREIRA, 1996FERREIRA, L. A. O nascimento de uma instituição científica: o periódico médico brasileiro da primeira metade do século XIX. 1996. 290 f. Tese (Doutorado em História). - Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996.; LUCA, 1999LUCA, T. R. A revista do Brasil: um diagnóstico para a nação. São Paulo: Editora Unesp, 1999.; VERGARA, 2003VERGARA, M. R. A Revista Brasileira: vulgarização científica e construção da identidade nacional na passagem da Monarquia para a República. 2003. 234 f. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde). - Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2008.; DUTRA, 2005DUTRA, E. F. Rebeldes literários da república: história e identidade nacional no Almanaque Garnier. Belo Horizonte: Humanitas, 2005.; WELTMAN, 2008WELTMAN, W. L. A educação do jeca: ciência, divulgação científica e agropecuária na revista Chácaras e Quintais. 2008. 243 f. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde). - Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2008.).

O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde

O Cebes é uma entidade organizada, originalmente, por um grupo de alunos do I Curso de Especialização em Saúde Pública para Nível Local, da Universidade de São Paulo (USP). O curso destinava-se à formação de gestores para as unidades de saúde vinculadas à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, contudo, vários de seus egressos foram muito além, se tornando lideranças no campo da saúde pública brasileira. Os elementos agregadores de tal grupo eram o fato de irem de encontro à mercantilização da saúde e o de defenderem a responsabilidade do Estado na prestação dos serviços de saúde. Progressivamente, os membros fundadores foram ocupando cargos importantes na gestão de políticas públicas, atuando na linha de frente em áreas como planejamento e gestão de serviços e políticas, de órgãos vinculados à administração pública.

O trabalho do Cebes foi organizado em torno de algumas atividades principais, como a edição da revista Saúde em Debate e a organização de mesas-redondas, simpósios e encontros. Com o objetivo de reunir médicos, outros profissionais de saúde, estudantes de medicina, de outras áreas médicas e militantes, o Cebes passou a atuar em direção a promover um aumento no número de sócios e assinantes da revista. Para se ter uma ideia do tamanho da instituição, o quadro de sócios do Centro alcançou 1.750 membros, no ano de 1980. Dessa forma, o Cebes tornou-se um órgão de formação de opinião da categoria médica, de outros profissionais da saúde, de prestação de serviços a seus associados e de consulta.

A instituição recém-criada foi registrada por José Ruben de Alcântara Bonfim, no 3º Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas, na data de 08 de setembro de 1976, como "Centro Brasileiro de Estudos da Saúde, abreviadamente Cebes, uma entidade civil, sem fins lucrativos, de duração indeterminada, com sede e foro na cidade de São Paulo" (CEBES, 1976). De acordo com o primeiro estatuto da entidade, a instituição foi criada com uma dupla função: a primeira, de natureza político-ideológica, visava concorrer para o aprimoramento das instituições democráticas, aquelas empenhadas em pugnar pela adoção de medidas que promovam o bem-estar físico e mental; e a segunda, de natureza técnica/científica, refere-se à promoção e ao incentivo da pesquisa sobre os fatores determinantes da saúde do homem (CEBES, 1976a______. Estatuto do Cebes. São Paulo, 1976a.).

Tais objetivos seriam estampados no veículo de divulgação da entidade, a revista Saúde em Debate, que, a partir de 1977, traria a seguinte informação: "O Cebes - Centro Brasileiro de Estudos da Saúde -, fundado em 1976, é uma entidade sem fins lucrativos, cuja finalidade é promover e incentivar o estudo de fatores que determinam a saúde do homem" (CEBES, 1977b______. [Diretrizes]. Saúde em Debate, São Paulo, n.3, abr/jun. 1977b., p.77). Esse compromisso iria ser repetido nos demais números publicados, demonstrando, dessa forma, a preocupação dos editores em manter uma publicação que representasse o caráter da entidade, a saber, de se constituir em um centro de estudos e pesquisa na área da saúde.

O trabalho de divulgação do Cebes, ao longo do ano de 1977, estendeu-se por vários estados e, para proporcionar a participação de todos, foram criados os núcleos regionais do Cebes inicialmente nos estados de Pernambuco, Paraíba, Bahia, Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Destacam-se os estados de Minas Gerais - com a presença de núcleos em Ponte Nova, Montes Claros e Belo Horizonte - e São Paulo - com a presença de um núcleo na cidade de Campinas. Em 1978, núcleos foram criados e consolidados no Distrito Federal, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Com isso, após dois anos de funcionamento, o Cebes possuía 14 núcleos regionais espalhados por quase todos os estados brasileiros, incluindo-se o núcleo de Niterói, no Rio de Janeiro (SOPHIA, 2012SOPHIA, D. C. Notas de participação do Cebes na organização da 8ªConferência Nacional de Saúde: o papel da revista Saúde em Debate. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v.36, n.95, p.554-561, 2012.).

Os núcleos funcionavam, na maior parte das localidades, na casa dos próprios coordenadores, que tinham como papel organizar eventos de interesse do Cebes, divulgar o periódico e angariar sócios para a entidade. Eles operavam a partir de comissões de trabalho, criadas em torno dos aspectos mais relevantes no quadro geral da saúde. comissões de políticas de saúde, política demográfica, saúde ambiental e do trabalho, saúde mental, saúde bucal, nutrição e alimentação, medicina comunitária, entre outras, fizeram parte da rotina de funcionamento desses núcleos (CEBES, 1981CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES). [Apresentação]. Saúde em Debate, São Paulo, n. 13, p. 2, 1981.; CEBES, 1982______. [Apresentação]. Saúde em Debate, São Paulo, n. 14, p. 2, 1982.). Na primeira assembleia do Centro, realizada em 1977, foi aprovada a linha de trabalho que iria dar o tom dos debates: os núcleos regionais teriam por essência a função de

unir as lutas que estariam sendo promovidas pelo setor saúde por melhores condições de vida e saúde para o povo, àquelas pela democratização geral do país e pelas liberdades democráticas (CEBES, 1978b______. Programa de Trabalho do Cebes para 1978/79. Saúde em Debate, São Paulo, n. 6, p. 5-6, jan./mar. 1978b., p. 6).

É relevante ressaltar que a atuação do Cebes pode ser entendida - pelo menos, em parte, à luz da atuação do Partido Comunista Brasileiro (PCB) naquele período, centrado que estava na conquista progressiva da democracia por meio de reformas, aproveitando-se das brechas oferecidas pelo regime militar. Assim é que, apesar de não ser um braço do partido, o Centro atuava, por meio da revista, no quadro da busca por uma política democrática proposta pelo PCB. As discussões realizadas no Cebes eram levadas às reuniões do PCB e vice-versa. Naquele momento, o partido defendia a democratização da saúde, tendo como ponto de partida um processo político por dentro do Estado e, sob essa orientação, o Cebes passava a pautar suas atividades (ABREU, 2009ABREU, R. M. R. M. et al. Arouca, meu irmão, uma trajetória a favor da saúde coletiva. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009. v. 1.).

Dessa forma, com o Cebes, nasce e se desenvolve um projeto sociopolítico que irá ganhar materialidade na revista Saúde em Debate. Veículo oficial de divulgação do Centro, a revista se tornou o principal instrumento de promoção das propostas e políticas apoiadas por seus sócios, divulgando os objetivos e metas da entidade.

A revista Saúde em Debate

Conforme afirmava em seu primeiro editorial, Saúde em Debate visava "ampliar a análise do setor saúde como componente do processo histórico-social" (CEBES, 1976, p.3). Com a Saúde em Debate, os editorialistas diziam pretender "preencher uma lacuna existente no mercado editorial, a saber, uma publicação periódica que tivesse como foco a análise dos problemas de saúde em uma perspectiva ampla" (CEBES, 1976, p.3).

Para viabilizar tais objetivos, o periódico apresentaria seção permanente de informação sobre congressos realizados, livros e periódicos lançados, e mesmo artigos já publicados em outros veículos de comunicação. Os trabalhos e as informações veiculadas pela revista não deveriam ser necessariamente subordinados a uma única linha de pensamento: "Somente a discussão em termos de diferentes posições possibilitará o encontro de propostas mais adequadas à nossa realidade" (CEBES, 1976, p. 3).

Com base na análise dos vários fascículos do periódico, percebe-se que ele possuía algumas seções permanentes, entre elas: Editorial, Especial, Informes, Acontecimentos, Resenhas e Registro. Verifica-se, entretanto, que algumas seções eram publicadas com mais regularidade, como Editorial, Acontecimentos e Registro. Entre os anos de 1976 e 1986, a revista tinha uma seção de comunicação com o público, chamada 'Cartas à Redação', em que os leitores e membros do Cebes escreviam cartas visando discutir algum acontecimento relacionado à conjuntura política, e tiravam dúvidas sobre determinados assuntos ou mesmo apresentavam opiniões e comentários sobre os artigos publicados na revista. Os editores do periódico selecionavam, publicavam e respondiam as comunicações enviadas.

No primeiro número da revista, encontra-se a informação de que esta teria periodicidade trimestral e que, portanto, aquele fascículo cobriria os meses de outubro, novembro e dezembro de 1976. A trimestralidade seria mantida entre os anos 1976 e 1980. No entanto, a periodicidade não se manteve regular durante o período estudado. Em 1978, apenas dois números foram publicados e, em 1979, em decorrência da paralisação das atividades do Cebes, a revista deixou de ser produzida. A instituição, naquele momento, passava por uma crise financeira e administrativa. Entre os anos de 1976 e 1980 foram editados, portanto, nove fascículos.

A revista apresentava-se como uma iniciativa comercial. As primeiras contribuições financeiras aconteceram durante o período de divulgação, em junho de 1977, pelos membros fundadores do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. Os sócios do Cebes tornavam-se, de imediato, assinantes da revista e a divulgação era feita de boca em boca, em diferentes eventos na área de saúde pública. No início, a venda de espaço publicitário não era objetivo da entidade. Dessa forma, o sustento de suas atividades editoriais era garantido exclusivamente por meio da venda de exemplares, atividade na qual os núcleos regionais tiveram relevante papel.

As dificuldades de gestão tornam-se uma marca do Cebes desde a sua fundação. O controle da venda e cadastramento de cotas e de assinaturas, a distribuição da revista e o recebimento de correspondências eram realizados pela equipe administrativa do Centro. A dedicação às atividades de gestão da entidade - que incluía, principalmente, a gerência das diferentes fases de produção da revista - era feita por profissionais em suas horas vagas - horários de refeição, à noite, nos fins de semana e feriados. Por isso, em decorrência da falta de profissionais dedicados exclusivamente à função administrativa, o Centro enfrentara, nos primeiros tempos, dificuldades que geravam problemas na distribuição da revista e acúmulo de dívidas (SOPHIA, 2012SOPHIA, D. C. Notas de participação do Cebes na organização da 8ªConferência Nacional de Saúde: o papel da revista Saúde em Debate. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v.36, n.95, p.554-561, 2012.).

A partir de 1977, a circulação e a venda da revista foram feitas em núcleos regionais do Cebes, que passaram a assumir a função de centros de divulgação das atividades da entidade e de distribuição das revistas nas regiões. A comunicação com os 24 núcleos registrados na edição de julho de 1977 contribuiu para a divulgação da revista nos estados. Concomitantemente, a Diretoria Nacional formou a comissão de vendas e contatos, composta por membros do Cebes, quando a comunicação com os núcleos regionais passou a realizar-se de forma mais regular e sistemática. O próprio evento de lançamento foi o primeiro movimento do Centro para ampliar os sócios e novos leitores. O evento aconteceu no Teatro Paulo Eiró, em São Paulo (SP), com um público de 400 pessoas. A mesa-redonda de lançamento foi composta por Sérgio Arouca, que, à época, coordenava o Programa de Estudos Sócio-Econômicos em Saúde (Peses), subsidiado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e executado pela Escola de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz); pelo Superintendente das Cooperativas Médicas Brasileiras, Dr. Leon da Silva Lobo; e, pelo jornalista Bernardo Kucinski. Dentro da temática geral sobre Comercialização da Saúde, foram discutidos aspectos relacionados à indústria farmacêutica, ao trabalho médico e às cooperativas médicas.

A Saúde em Debate, a partir de sua segunda edição, passa a publicar anúncios que versavam, em sua totalidade, sobre lançamento e venda de livros relacionados à saúde pública. Em julho de 1977, a primeira publicidade da revista informava sobre o lançamento de livros dedicados a promover um debate profundo e amplo a respeito dos problemas de saúde. Nessa linha, os editores publicam anúncio do livro Saúde e assistência médica no Brasil, de Carlos Gentille de Melo;Ensaios médicos sociais, de Samuel Pessoa; Medicina e política, de Giovanni Berlinguer; e A medicina do capital, de Jean Claude Polack. A partir de 1977, a manutenção dos custos de produção da revista Saúde em Debate esteve relacionada com a parceria que o Cebes manteve com diferentes editoras científicas, especialmente com a Editora Hucitec. Assim que, os livros anunciados pela revista poderiam ser adquiridos no próprio Cebes(SOPHIA, 2012SOPHIA, D. C. Notas de participação do Cebes na organização da 8ªConferência Nacional de Saúde: o papel da revista Saúde em Debate. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v.36, n.95, p.554-561, 2012.).

A redação da revista, nos primeiros anos, foi levada a cabo pelo grupo fundador da entidade, composto por Emerson Merhy, Ana Maria Segall Correa, Dalmo Herrera Feitoza, Sandra Roncalli Mafezolli, Aguinaldo Gonçalves e David Capistrano Filho. Eles cuidavam de sensibilizar possíveis colaboradores para que enviassem artigos, selecionavam os textos que seriam publicados, providenciavam a contratação da gráfica responsável e faziam a divulgação do impresso. As reuniões do conselho editorial da revista ocorriam, inicialmente, em uma pequena sala alugada na Rua Nazaré Paulista, nº 308, na Vila Madalena, São Paulo (SP). Após um ano de atividades, o grupo se mudaria para a Rua Teodoro Sampaio, nº 1441, no bairro de Pinheiros, na mesma cidade. Para a instalação da sede, foi arrecadado um fundo por meio de um livro de ouro. Com essa arrecadação, foram compradas mesas, cadeiras, estante e arquivo de aço, assim como material de escritório. Além disso, o montante arrecadado possibilitou o aluguel da sala por quatro meses, de outubro a dezembro de 1976 e janeiro de 1977. Com o crescimento das atividades e a instalação de sua sede, em outubro de 1976, o Cebes registrou a contratação de uma secretária em caráter provisório - sem vínculo empregatício - com o objetivo de realizar as atividades administrativas, e a de um contador.

Em seus primeiros anos, a revista Saúde em Debate contou com poucos textos escritos por membros do corpo editorial. A maior parte dos artigos era assinada por colaboradores: professores, médicos, gestores, estudantes, pesquisadores e qualquer interessado cujo texto fosse submetido e aprovado pelos editores da revista. Os colaboradores com o maior número de artigos publicados no periódico nos quatro primeiros anos são: Carlos Gentille de Mello (4), médico, jornalista e diretor na Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro; Ana Cecília Lins Sucupira (3), médica; Eric Jenner Rosas (2), membro do Cebes e médico; e a professora de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais Sônia Maria Fleury Teixeira (2).

A revista Saúde em Debate era um importante instrumento de divulgação dos projetos do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde. A existência de inúmeros documentos sem assinatura mostra tal característica, como por exemplo, o documento A questão democrática na área da saúde (CEBES, 1980a______. A questão da democrática na área da saúde. Saúde em Debate, São Paulo, n. 9, p. 11-13, 1980a.). O documento foi apresentado pelo Centro no I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, na Câmara Federal, em 1979, e veiculado na edição de nº 9 da revista. Nele, a entidade posiciona-se a favor de uma reforma como solução para sanar a crise sanitária. Os documentos técnicos produzidos no âmbito das comissões de trabalho do Centro também eram veiculados pelo periódico, como o texto elaborado pelo Núcleo do Cebes de Campinas (SP) intitulado Atenção Primária à Saúde. Nele, os autores ressaltam a incapacidade do sistema de saúde de estender a cobertura dos serviços a toda a população e destacam a criação de uma rede de atenção primária como uma alternativa para a resolução do problema. Era intuito de seus autores não apenas divulgar o debate ao público leitor da revista, mas, sobretudo, promover a discussão em outros núcleos do Centro (CEBES, 1980bCENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES). Núcleo CEBES Campinas. Atenção Primária à Saúde. Saúde em Debate, São Paulo, n. 9, p. 14-20, 1980b.).

Na seção Acontecimentos, os editorialistas publicavam eventos e informações pertinentes aos membros da entidade. Um exemplo encontra-se na publicação, na referida seção, do programa de trabalho do Centro aprovado pela I Assembleia Nacional de Delegados do Cebes, para os anos de 1978 e 1979. No texto, são elencados os pontos a serem seguidos pela entidade, como a menção à importância de que seus membros desenvolvam um pensamento crítico na área da saúde e contribuam para o fortalecimento das diversas formas de organização do povo (CEBES, 1978a______. Profissionais de saúde unem-se pela democracia. Saúde em Debate, São Paulo, n. 5, p. 8, out./dez. 1978a.).

É possível destacar, ainda, os editoriais como outro exemplo da forma pela qual as demandas dos membros do Centro ganhavam espaço no periódico. Nos editoriais, também sem identificação de autoria, foram apresentadas a importância da reforma sanitária e a necessidade de realizar encontros, congressos e simpósios que divulgassem a plataforma política do Centro e, assim, incentivar mudanças nas políticas públicas. Os articulistas da Saúde em Debate passam a defender, desse modo, a formação de um sanitarista que, consciente de suas funções, posicionar-se-ia pela unificação da política de saúde sob a responsabilidade de um único ministério.

O periódico abordava diferentes assuntos, como a questão do Planejamento em Saúde, Recursos Humanos, Medicina Preventiva, Medicina Comunitária, etc. Além disso, a Saúde em Debate dava, também, grande atenção ao processo de formação médica, defendendo frequentemente a realização de uma reforma nas grades curriculares dos cursos de medicina. Para o Cebes, a formação médica era considerada inadequada e desvinculada da realidade social e sanitária. Figurava como problema central a questão da especialização precoce do aluno em detrimento de uma formação que oferecesse a capacitação clínica necessária para o diagnóstico das principais patologias presentes na população brasileira. Os colaboradores do periódico acreditavam que o sistema deveria focar na formação de médicos generalistas capacitados, no período de seis anos, a atenderem as necessidades básicas de saúde da população. Nas universidades deveriam ser lecionadas noções de ciências sociais e técnicas de medicina preventiva, entre outras (SOPHIA, 2012SOPHIA, D. C. Notas de participação do Cebes na organização da 8ªConferência Nacional de Saúde: o papel da revista Saúde em Debate. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v.36, n.95, p.554-561, 2012.).

Assim, eram frequentes os artigos publicados sobre o funcionamento do ensino médico no Brasil e em outros países. Como exemplo, é significativa a publicação do texto do médico Nelson Rodrigues dos Santos, intitulado Contribuição ao entendimento do novo médico geral ou de família (SANTOS, 1978SANTOS, N. R. Contribuição ao entendimento do novo médico geral ou de família. Saúde em Debate, São Paulo, n.7-8, p. abr./jun. 1978b.). Com um tom de humor, os editorialistas publicam, ao lado do artigo, uma tirinha onde a imagem de um usuário, ao lado de um doente, interpela o profissional médico: "Doutor... ele está tendo um ataque. O senhor não vai socorrê-lo?". E o médico responde: "Ai, Jesus! Eu sou um simples dermatologista" (SANTOS, 1978SANTOS, N. R. Contribuição ao entendimento do novo médico geral ou de família. Saúde em Debate, São Paulo, n.7-8, p. abr./jun. 1978b., p.44). O que essa imagem mostra, associada ao artigo, é a importância da formação de um profissional capaz de atender nos diferentes níveis de atenção e complexidade e, dessa forma, suprir a demanda de profissionais capacitados para o atendimento integral ao paciente, formação necessária em um país marcado pela iniquidade em termos de acesso aos diversos níveis de atendimento à saúde.

Saúde em Debate também pode ser compreendida como um instrumento de disseminação da ciência, na medida em que publicava artigos e investigações feitas no âmbito das faculdades médicas. Os artigos científicos publicados, voltados para instituições acadêmicas, pesquisadores e docentes a elas associados, traziam resultados de pesquisas em andamento, experiências nos serviços e reflexões teóricas empreendidas nesse âmbito.

O exame da estrutura dos artigos da revista Saúde em Debate muito revela sobre seu perfil. Percebe-se que esses artigos gradativamente passaram a obedecer a um formato acadêmico, sendo estruturados com introdução, objetivo seguido de apresentação, metodologia, desenvolvimento e conclusão. Além disso, era significativo que Saúde em Debate contivesse, na contracapa, normas para publicação de artigos. O próprio Conselho Editorial recomendava aos autores que observassem, para a redação de seus trabalhos, as recomendações contidas no livro Como redigir trabalhos científicos, de autoria de Luiz Rey, Editora Blücher e USP, São Paulo, 1972 (CEBES, 1977, p.62).

A revista publicou, por exemplo, inúmeros textos que versavam sobre os conhecimentos científicos úteis à formação médica, novas pesquisas e, inclusive, a pedido da própria diretoria do Centro, resultados de experiências inovadoras nos serviços de saúde, de forma a poderem ser aplicados no cotidiano da gestão pública nos diferentes municípios. Tal fato pode ser ilustrado com o artigo publicado na edição do primeiro trimestre de 1978, pela equipe do Departamento de Medicina Geral e Comunitária do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Londrina, sob o título Uma experiência de assistência sanitária primária. Nesse texto, foram explicitados o histórico, as áreas de atuação, o papel do profissional médico, os programas implementados e a avaliação da experiência de Londrina (PR) no campo da assistência sanitária primária (TORNERO ., 1978TORNERO, N. L. et al. Uma experiência de assistência sanitária. Saúde em Debate, São Paulo, n. 6, p. 21-26, jan./mar. 1978.).

Além disso, publicava artigos contendo resultados de pesquisas em andamento no âmbito de instituições acadêmicas, como é o caso do artigo A prática da saúde e da educação, de Joaquim Alberto Cardoso de Mello (1976). O texto trata das conclusões de sua tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em que discute a evolução da educação e da saúde no Brasil nos 50 anos que antecederam a elaboração da tese.

A preocupação em dar publicidade a pesquisas que pudessem orientar gestores na melhoria da rede assistencial pode igualmente ser percebida em Propostas de modelos de saúde, de Alberto Pellegrini Filho et al. (1978). Pellegrini escrevia como integrante, no período, de um projeto de investigação sobre Medicina Comunitária, quando se procurou estudar a participação da população nesses programas. Por fim, em janeiro de 1980, um dos documentos de trabalho apresentado pelo Núcleo do Cebes de Campinas (SP), publicado na revista, chama-se Atenção Primária à Saúde. No texto, são apresentados os diferentes interesses da proposta, o papel do Estado na divulgação da assistência primária e os modelos alternativos da Atenção Primária à Saúde (CEBES, 1980bCENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES). Núcleo CEBES Campinas. Atenção Primária à Saúde. Saúde em Debate, São Paulo, n. 9, p. 14-20, 1980b.).

Além de veículo de disseminação científica, também se constituía a revista em um instrumento de formação de recursos humanos para a área de saúde, já que parte de seus artigos visava capacitar os gestores no entendimento dos métodos e das técnicas mais adequadas para a reformulação de políticas e ações em saúde. Em Modelos de salud: las condiciones para su desarrollo (TESTA, 1976TESTA, M. Modelos de salud: las condiciones para su desarrollo. Saúde em Debate, n. 1, p. 24-26, out./dez. 1976.), a título de exemplo, pode-se perceber que o objetivo do autor, Mário Testa, era informar aos leitores da revista sobre a inter-relação dos fenômenos da saúde, o uso e a formação de recursos humanos, o papel do usuário e a utilização de modelo por ele apresentado a partir de um método de trabalho desenvolvido pela Organização Pan-Americana da Saúde. Este consistia, basicamente, na otimização dos ganhos econômicos obtidos com saúde e na diminuição do custo da atenção.

A divulgação política nas páginas da revista Saúde em Debate

Saúde em Debate não era apenas um instrumento de disseminação científica e divulgação de conhecimentos. O periódico possuía outra característica relevante: ao representar os interesses, objetivos e metas do Cebes, também se constituía em um instrumento de divulgação política da entidade. Uma característica marcante da revista que começa a ser esboçada no período 1976-1980, tendo ganhado força na década seguinte, foi o espaço reservado para defender a ideia de que a extensão do acesso aos serviços e a participação da população seriam inseparáveis da conquista dos direitos democráticos: o movimento era orientado pela percepção de que as soluções para os problemas do País passavam pelo enfrentamento mais amplo do regime ditatorial e, nesse panorama, pela ideia do retorno às instituições democráticas.

Dentre os que escreveram sobre a relação entre saúde e democracia no periódico Saúde em Debate destaca-se Emerson Merhy, professor da Faculdade de Medicina de Campinas. No primeiro artigo sobre o tema, em julho de 1977, a revista publica texto intitulado Democracia e saúde, no qual reconhece que o setor saúde só poderia cumprir seu papel após a conquista das liberdades democráticas. Afirma categoricamente o autor, sobre a relação entre saúde e democracia:

Basta um pouco de bom-senso para se perceber que as soluções para o problema de saúde do povo brasileiro não serão encontradas nos esquemas técnicos e racionalizadores, se estiverem desvinculadas da problemática mais ampla da sociedade. Hoje, isso fica mais claro porque as situações de crise iluminam muito o caminho e provam que qualquer solução técnica é política, e que qualquer solução política no Brasil atual, passa pela questão democrática (MERHY, 1977MERHY, E. Democracia e saúde. Saúde em Debate, São Paulo, n. 4, p. 7-13, jul./set. 1977., p.7).

Muitas perguntas colocadas pelo autor eram, em seu conjunto, representativas do desenho institucional e político almejado pelo Cebes: Que democracia nascerá da atual conjuntura? Quais as instituições existentes, e quais deveriam ser criadas para o exercício democrático? Que significado tem isto junto à questão da saúde? Qual o campo de ação destas instituições no setor saúde? E a uma das principais questões: afinal, o que faz com que uma dada população que trabalha e compõe o maior contingente do País venha deteriorando seu modo de vida, enquanto indicadores gerais de produção no Brasil melhoram? (MERHY, 1977MERHY, E. Democracia e saúde. Saúde em Debate, São Paulo, n. 4, p. 7-13, jul./set. 1977., p.7).

Todas essas inquietudes contribuíram para a revista construir o arcabouço institucional e político que iria começar a ganhar forma em suas páginas. Na relação estabelecida, a população se encontraria dividida: de um lado, os proprietários dos meios de produção - ou donos do capital -, leia-se, das empresas médicas - e, de outro, os proprietários da força de trabalho - ou os médicos assalariados. A partir da dualidade entre os donos do capital e a força de trabalho, se reconhece que a busca das soluções para a melhoria das condições de saúde teria que passar pela transformação das relações sociais que determinam as condições de vida. Nessa linha inicial de artigos, marcados claramente pelo referencial marxista-estruturalista, a luta pelas liberdades democráticas passaria pela atuação permanente de todos - neste caso, das assim chamadas classes dominantes e classes dominadas - que desejam um Estado de Direito. Nesse entendimento, é sob tal bandeira que seriam organizadas as lutas no interior da sociedade civil que determinariam, por fim, o novo modelo da sociedade brasileira: a melhoria das condições de saúde só ocorreria pela participação que os diferentes grupos pudessem ter no processo de democratização (MERHY, 1977MERHY, E. Democracia e saúde. Saúde em Debate, São Paulo, n. 4, p. 7-13, jul./set. 1977.).

Percebe-se que, nos anos iniciais, a linha editorial da revista se inscreve nas ideias de inspiração marxista então em voga. Propagado nos diversos espaços da saúde pública - gestão, universidades e serviço, entre outros - o conceito de democracia como signo, incorporado na ideia de transformação da política de saúde, começava a ganhar alcance com a divulgação feita na revista Saúde em Debate. O fato mesmo de o movimento ter sido considerado uma reforma, contribuiu para que o conceito de democracia deixasse de se referir a uma realidade abstrata, remota, e se ligasse a uma experiência concreta próxima. Na esteira do movimento pela democratização, fazia-se necessária uma ampla 'reforma' do setor saúde como condição para o desenvolvimento sanitário do País, como já visto, ainda insuficiente para atender os principais problemas que se apresentavam. Dessa forma, a partir do editorial da terceira edição da Saúde em Debate, em abril de 1977, o termo Reforma Sanitária passa a ser utilizado pela revista para materializar as propostas de mudança na política. Na linha que se pretendia, a Reforma Sanitária deveria ter como um dos marcos a unificação dos serviços de saúde, com a participação dos usuários estimulada, possibilitando sua influência nos níveis decisórios. Os principais obstáculos estariam na exploração das atividades ligadas à saúde com fins lucrativos, relacionadas à prestação de serviços de saúde por empresas e cooperativas, e as atividades prejudiciais das indústrias farmacêuticas, entre outros. Compõe-se, assim, a linha editorial da Saúde em Debate, que, para se consolidar no período, atribui peso crescente e decisivo ao movimento pela redemocratização como um projeto mais geral e, mais especificamente, à transformação do quadro político-sanitário brasileiro por meio de mudanças na política (SOPHIA, 2012SOPHIA, D. C. Notas de participação do Cebes na organização da 8ªConferência Nacional de Saúde: o papel da revista Saúde em Debate. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v.36, n.95, p.554-561, 2012.).

Sob o signo da luta pela redemocratização, é significativo que a revista tenha inaugurado uma série de artigos enfatizando a relação entre saúde e democracia. São muitos os artigos que destacam essa relação, como, por exemplo, o texto intitulado Estudantes e profissionais pela democratização da saúde, elaborado por Eric Jenner Rosas e Francisco Eduardo Campos (1977).

Em outubro de 1977, em sintonia com o movimento pela democratização que começa a ser esboçado no periódico, na seção Acontecimentos, Saúde em Debatepublica nota intitulada Profissionais de saúde unem-se pela democratização. O texto informa sobre a realização do Dia Nacional de Saúde e Democracia, do qual participaram 22 entidades ligadas a diversos setores sociais, com o objetivo de lançar a semente de um amplo movimento em torno das questões de Saúde Pública. A revista Saúde em Debate publica na mesma nota o pronunciamento do então presidente do Cebes, José Ruben de Alcântara Bonfim. Dizia ele:

Este ato público representa uma manifestação dos profissionais de saúde na reorientação da abordagem da saúde para seus determinantes políticos e sociais, pois acreditamos que a solução profunda da problemática, entre nós, hoje, implica na necessidade de redemocratização do País (CEBES, 1978a______. Profissionais de saúde unem-se pela democracia. Saúde em Debate, São Paulo, n. 5, p. 8, out./dez. 1978a., p.8).

Em outro artigo da revista intitulado Saúde e democracia: notas para um debate, o professor da Faculdade de Medicina da USP, Ricardo Lafetá Novaes, reconhece que estaria na ordem do dia a questão da democratização da saúde: "o debate orienta-se na busca de soluções para os problemas médicos-sanitários da população no contexto de uma política geral" (NOVAES, 1977NOVAES, R. L. Saúde e democracia. Saúde em Debate, São Paulo, n. 5, p. 72-73, out./dez. 1977., p.72).

Por fim, imediatamente após o artigo de Emerson Merhy, a relação entre saúde e democracia aparece enfatizada na aula de despedida para os doutorandos de 1976, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia, proferida pelo médico Zilon A. de Andrade, então professor titular do Departamento de Patologia daquela instituição. Com o tema Ricos e pobres perante a medicina, o professor constata a divisão entre "os que têm muito e os que nada têm" (ANDRADE, 1977ANDRADE, Z. A. Ricos e pobres perante a medicina. Saúde em Debate, São Paulo, n. 4, p. 14-20, jul./set. 1977., p. 15). Ao recomendar aos alunos que reconheçam a existência de doentes ricos e doentes pobres, ressalta que "as soluções para tais problemas são, sobretudo, difíceis ou impossíveis de serem esquematizadas na ausência de liberdades democráticas" (ANDRADE, 1977ANDRADE, Z. A. Ricos e pobres perante a medicina. Saúde em Debate, São Paulo, n. 4, p. 14-20, jul./set. 1977., p. 20). A aula é publicada na íntegra no periódico (ANDRADE, 1977ANDRADE, Z. A. Ricos e pobres perante a medicina. Saúde em Debate, São Paulo, n. 4, p. 14-20, jul./set. 1977.).

Nesse contexto, em 1979, o Cebes organiza, juntamente com outras entidades e partidos, o I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde na Câmara Federal, em outubro daquele ano. O documento A questão democrática na área da saúde, apresentado pelo Cebes durante o evento, foi publicado na edição da revista Saúde em Debate de março de 1980 (CEBES, 1980). Nele consta que, para uma saúde autenticamente democrática, seria necessário reconhecer o direito universal à preservação da saúde e à unificação do sistema de saúde como bases para a viabilização da proposta de um sistema de saúde. É importante ressaltar que, pela primeira vez, o termo Sistema Único de Saúde é empregado na revista para designar uma política democrática no setor saúde. O documento colocava o reconhecimento do direito universal à saúde, da responsabilidade médica e da responsabilidade do Estado na prestação dos serviços como os fatores formadores do tripé por meio do qual a democracia na saúde deveria ser exercida. Para que a democracia na saúde fosse efetivada, seria necessária a transformação dos atos médicos e a atribuição ao Estado da responsabilidade pela administração do sistema, orientações que ganhariam materialidade com a criação do Sistema Único de Saúde. O que essas passagens parecem mostrar é que a relação estabelecida entre a melhoria das condições de vida e saúde passaria pela construção de uma esfera democrática, plural e participativa, abordagem que o Cebes parece ter assumido a partir de então sob o signo do retorno à democracia. Os editorialistas da revista acreditavam que os problemas sanitários do País poderiam ser resolvidos se o Estado se ocupasse das questões relativas à saúde.

Percebe-se que, na revista, é garantido um espaço de debate sobre a relação entre saúde e democracia. O que se pode pensar, ainda, é que no período que o debate passou a ocorrer na revista, a partir de 1977, o processo de abertura democrática ainda não era uma ideia plenamente reconhecida pelos grupos sociais, a Saúde Coletiva ainda estava se institucionalizando e os cientistas buscavam a legitimação de seu saber e da sua prática no recém-criado campo. Nesse sentido, Saúde em Debateseria um espaço privilegiado para fazê-lo, por se tratar de um periódico de razoável circulação no meio acadêmico e político. Ao publicarem na revista Saúde em Debate, os pesquisadores tinham a possibilidade de falar para um público mais amplo e com demandas específicas em áreas às quais as universidades, os institutos de pesquisa e as fundações poderiam atender.

Considerações finais

Neste trabalho, procura-se mostrar a existência de estreita relação e compromisso do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), por meio de sua revista, com a promoção de uma reforma sanitária e com os instrumentos necessários para viabilizar tal mudança. O periódico tinha como um de seus objetivos capacitar os médicos e profissionais da saúde, chamando a atenção para a relevância de se aplicar conceitos da área do planejamento no processo de formulação e implementação de políticas e programas, informando-os sobre as experiências que poderiam ser aplicadas no dia a dia dos serviços de saúde. Os textos da Saúde em Debate, destinados a profissionais da área da saúde, privilegiavam relatos sobre experiências municipais, estaduais e federais em curso, sobre os mais diferentes temas de política pública.

Nos textos publicados, criticavam a mercantilização da medicina, valorizavam iniciativas que buscavam restituir ao Estado a responsabilidade pela prestação dos serviços de saúde, apontavam os possíveis desdobramentos da crescente participação da iniciativa privada na oferta de serviços de saúde e clamavam pela criação de políticas que ampliassem o acesso da população aos serviços.

Considera-se, por fim, que Saúde em Debate, além de ser um órgão divulgador de conhecimento científico, se constituiu em um órgão divulgador de conhecimento político, pois focava na divulgação de uma ampla reforma sanitária. Além disso, defende-se que a revista funcionava como um dos meios de difusão dos projetos e propostas do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, pois publicava, em seu cerne, artigos que visavam dar publicidade aos interesses de seus membros.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2014

Histórico

  • Recebido
    Mar 2014
  • Aceito
    Jul 2014
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