Resumos
O estudo objetiva analisar as percepções de conselheiros de saúde com relação à participação na Estratégia de Saúde da Família. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com realização de entrevistas com representantes de conselhos de Unidades de Saúde da Família. Os resultados evidenciaram que os conselhos são percebidos como instrumento da melhoria da assistência e também como espaço de promoção da saúde. Evidenciou-se existir um sentimento de desinteresse das comunidades pelas práticas participativas. Alguns fatores contribuem para o pouco envolvimento da população, a exemplo das debilidades assistenciais e da percepção da esterilidade do conselho na resolução dos problemas comunitários.
Participação social; Conselhos de saúde; Atenção Primária à Saúde; Saúde da família; Pesquisa qualitativa
This study aims to analyze the health counselors' perceptions with regard to the participation in Family's Health Strategy. This is a qualitative research, with the realization of interviews with the counselors representatives of the Family's Health Units. The results have evidenced that councils are noticed as a tool for the improvement of the assistance and also as a place for health promotion. It has become clear the existence of a community's lack of interest for the participative practices. Some factors contribute to the few engagement of the population, following the example of the healthcare debilities and the council's sterility perception in the resolution of community problems.
Social participation; Health councils; Primary Health Care; Family health; Qualitative research
Introdução
A participação social na área da saúde não tem sentido unívoco, tampouco atinge resultados semelhantes em todos os locais em que é implementada. Fatores sociais, econômicos, políticos e culturais influenciam o processo participativo e podem interferir de maneira positiva ou negativa sobre os seus resultados. Draper, Hewitt e Rifkin (2010) DRAPER, A. K.; HEWITT, G.; RIFKIN, S. Chasing the dragon: developing indicators for the assessment of community participation in health programmes. Social Science and Medicine, Oxford, v. 71, p. 1102-1109, 2010.destacam que as frustrações percebidas nas iniciativas de participação da comunidade são, em parte, decorrentes de expectativas irreais, em que se deposita sobre um modelo biomédico e utilitarista de intervenção participativa a crença na resolução de problemas de saúde decorrentes da pobreza e da desigualdade.
Muitas vezes, a participação social é utilizada como parte integrante da descentralização e ferramenta para ampliação da cobertura e distribuição equitativa de serviços de saúde. Todavia, essa visão é contestada no sentido de que a participação comunitária deve ser entendida como processo social amplo e transformador, e não como mero instrumento de intervenção do Estado para atingir metas específicas (O'MEARA ., 2011O'MEARA, W. P. et al. Community and facility-level engagement in planning and budgeting for the government health sector - A district perspective from Kenya. Health Policy, Amsterdan, v. 99, p. 234-243, 2011.). Segundo Pérez . (2009)PÉREZ, D. et al. Augmenting frameworks for appraising the practices of community-based health interventions. Health Policy and Planning, Oxford, v. 24, p. 335-41, 2009., a participação social deve ter o propósito de empoderar a população para interferir nas decisões que afetam suas vidas e sua saúde.
No Brasil, o processo de transição à democracia trouxe a emergência de novos atores coletivos e a proliferação de movimentos sociais em todo país. Um amplo debate sobre a necessidade de reversão das desigualdades sociais e transformação do regime político fez surgir uma série de propostas alternativas para a estruturação das políticas sociais. Nesse cenário, surge o Movimento da Reforma Sanitária, com o propósito não apenas de ampliar a cobertura assistencial, mas, também, de desencadear amplo processo de participação da sociedade sobre os rumos do setor (GERSCHMAN, 2004GERSCHMAN, S. A democracia inconclusa: um estudo da Reforma Sanitária brasileira. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2008.).
Na arquitetura do Sistema Único de Saúde (SUS), os mecanismos de participação social requerem o envolvimento direto dos usuários nos processos de discussão, deliberação e controle das políticas de saúde. Isso resulta na apropriação pela sociedade de meios e instrumentos para interferir, fiscalizar e analisar as ações e os serviços de saúde. Essa noção indica uma nova modalidade de relacionamento entre a sociedade e o Estado, na qual a participação social é, ao mesmo tempo, resultado do processo de democratização do País, e um pressuposto essencial para a consolidação desse ideal democrático (MARTINS , 2011MARTINS, P. C. et al. De quem é o SUS? sobre as representações sociais dos usuários do Programa Saúde da Família. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1933-1942, 2011.).
No bojo das transformações dos modelos de atenção, a participação social é apresentada como elemento essencial da Atenção Primária à Saúde. O envolvimento da comunidade se constitui em elemento importante para consolidação da Estratégia de Saúde da Família (ESF), bem como para viabilizar a democratização do SUS (SILVA; CALDEIRA, 2010SILVA, J. M. D.; CALDEIRA, A. P. Modelo assistencial e indicadores de qualidade da assistência: percepção dos profissionais da Atenção Primária à Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 6, p. 1187-1193, 2010.). Para Damasceno . (2010)DAMASCENO, S. S. et al. Fomentando o controle social em rodas de conversa com usuários de uma unidade de saúde da família. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 34, n. 84, p. 59-66, 2010., a participação social é atributo imprescindível da Atenção Primária à Saúde por sua capacidade de construir corresponsabilidades de um fazer em saúde comprometido com o contexto e as exigências locais.
A ESF adota uma nova forma de organização do cuidado em saúde, produzido por equipe multiprofissional, com atuação em um território definido e com uma população adscrita. Busca-se o desenvolvimento de práticas de saúde mais integrais e resolutivas, com a participação da comunidade na identificação dos problemas de saúde, bem como no planejamento e na avaliação das atividades desenvolvidas (GIOVANELLA; MENDONÇA, 2012GIOVANELLA, L.; MEDONÇA, M. H. M. Atenção Primária à Saúde. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org). Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz: Cebes, 2012. p. 493-545.). Mesmo diante de significativos avanços, a Estratégia de Saúde da Família ainda enfrenta graves problemas para consolidar um novo modelo assistencial. Em muitos locais, a prática cotidiana das equipes se mantém permeável e embasada no modelo curativo tradicional, com reflexo negativo sobre os resultados da equipe e o envolvimento da população (SILVA; CALDEIRA, 2010SILVA, J. M. D.; CALDEIRA, A. P. Modelo assistencial e indicadores de qualidade da assistência: percepção dos profissionais da Atenção Primária à Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 6, p. 1187-1193, 2010.).
Nesse contexto, emergem os Conselhos Locais de Saúde (CLS), com o potencial de ampliar a participação e a democratização nos serviços de saúde. Os CLS são criados em unidades de saúde da rede de Atenção Básica dos municípios, como instâncias colegiadas e paritárias, e envolvem a representação dos profissionais de saúde e dos membros da comunidade. Cabe aos conselheiros locais discutir e buscar soluções para os principais problemas assistenciais e estruturais da comunidade. Profissionais e usuários, a partir das atividades dos conselhos, buscam a mobilização e a participação comunitária no intuito de fortalecer as ações de saúde e o empoderamento da população local.
No campo das práticas, vários estudos apresentam limitações e entraves no funcionamento e na dinâmica dos conselhos de saúde (BISPO JÚNIOR; SAMPAIO, 2008BISPO JÚNIOR, J. P.; SAMPAIO, J. J. C. Participação social em saúde em áreas rurais do Nordeste do Brasil. Revista Panamericana de Salud Publica, Washington, DC, v. 23, n. 6, p. 403-409, 2008.; MARTINS ., 2011MARTINS, P. C. et al. De quem é o SUS? sobre as representações sociais dos usuários do Programa Saúde da Família. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1933-1942, 2011.). Labra (2009)LABRA, M. E. Política Nacional de Participação na Saúde: entre a utopia democrática do controle social e a práxis predatória do clientelismo empresaria. In: FLEURY S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 176-203.aponta quatro ordens de questões impeditivas para o bom funcionamento desses fóruns: 1) a existência de espaços onde não se respeita o Estado de Direito e não há prestação de contas ou transparências das ações governamentais; 2) diminuta cultura cívica e limitação do associativismo nacional; 3) complexidade e incertezas inerentes ao processo de produção de políticas públicas; 4) dificuldade de acesso da população aos serviços de saúde e baixa qualidade da atenção, ainda presentes em alguns setores do SUS.
Não obstante ao fato de alguns estudos demonstrem que os conselhos apresentam dificuldades nos aspectos organizativos e deliberativos, Côrtes (2009)CÔRTES, S. M. V. Conselhos e conferências de saúde: papel institucional e mudança nas relações entre Estado e sociedade. In: FLEURY, S.; LOBATO, L.V.C. (Org.). Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 102-128. destaca que esses fóruns constituem-se em importantes instrumentos da democracia deliberativa e participativa. Segundo Escorel e Moreira (2012)ESCOREL, S.; MOREIRA, M. R. Participação Social. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org.). Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Cebes, 2012. p. 979-1010., os conselhos - como espaço de poder, de conflito e de negociação - representam a possibilidade de a população interferir nas ações governamentais. Apontam, ainda, que essas instâncias podem contribuir para o esmaecimento do clientelismo e do fisiologismo tradicionais, além de possibilitar o desenvolvimento do aprendizado do exercício do poder político.
Diante desse contexto, o presente estudo tem por objetivo analisar as percepções de conselheiros de saúde com relação à participação social na Estratégia de Saúde da Família. As dimensões da análise estão centradas na compreensão sobre o papel político dos conselhos locais de saúde e sobre o envolvimento dos participantes e das comunidades nas atividades desses fóruns.
Metodologia
Ao considerar que as instâncias de participação social na área de saúde constituem-se em espaços complexos, heterogêneos e permeados de contradições - com atores pertencentes a classes sociais diversas, onde se confrontam e se harmonizam ideologias e interesses muitas vezes antagônicos e com correlação de forças também desiguais -, optou-se pela abordagem qualitativa do estudo. A pesquisa qualitativa em saúde é capaz de desvelar o mundo dos sentidos e significados dos atores e de suas posições sobre a temática estudada (SEIDMAN, 2006SEIDMAN, I. Interviewing as qualitative research. 3 ed. New York: Columbia University, 2006.). Nesse sentido, essa abordagem metodológica é mais adequada para apreender a posição e a dinâmica estabelecidas pelos sujeitos nos espaços de participação social.
A presente investigação caracteriza-se como exploratória e descritiva, em que o campo de estudo foi constituído pelos conselhos de saúde das Unidades de Saúde da Família (USF) do município de Vitória da Conquista - BA.
Vitória da Conquista está localizado na região Sudoeste da Bahia, dista cerca de 500 km da capital Salvador e possuía uma população estimada de 308.901 habitantes no ano de 2009. A cidade se destaca na gestão do SUS e ganhou projeção nacional pela organização e qualidade dos serviços prestados à população. De acordo com a opinião de gestores, o município decidiu pela reestruturação dos serviços de saúde, com destaque para priorização da Atenção Básica. Atualmente, possui uma ampla rede de serviços básicos e especializados e constitui-se como referência em saúde para a região Sudoeste da Bahia e norte de Minas Gerais (SOLLA, 2010SOLLA, J. J .S. P. Dilemas e desafios na gestão municpipal do SUS. São Paulo: Hucitec, 2010.).
No período do estudo, a rede de Atenção Básica era composta por um total de 35 unidades de saúde, sendo sete Unidades Básicas de Saúde (UBS) tradicionais e 28 USF. Estavam implantadas 37 equipes de saúde da família e 27 equipes de saúde bucal, o que correspondia a 51,7% de cobertura populacional da ESF (SOLLA, 2010SOLLA, J. J .S. P. Dilemas e desafios na gestão municpipal do SUS. São Paulo: Hucitec, 2010.).
Os conselhos de saúde estavam instalados em todas as unidades básicas tradicionais e USF. A lógica de estruturação dos CLS é de um conselho para cada unidade de saúde. Nas unidades com duas ou três equipes de saúde da família, existe um único CLS, com participação e representação de todas as equipes presentes na unidade. Desta forma, havia em funcionamento no município 35 CLS, dos quais, 28 eram Unidades de Saúde da Família. Para a realização do estudo, foram escolhidos seis conselhos de USF. O critério de escolha desses conselhos foi que estivessem em funcionamento regular, buscando-se contemplar conselhos de diferentes bairros do município.
As informações que subsidiaram a presente investigação foram obtidas por meio de entrevista semiestruturada com os conselheiros de saúde. A técnica de entrevista semiestruturada foi escolhida pela sua capacidade de apreender dados de natureza subjetiva relacionados às atitudes, aos valores e às opiniões dos sujeitos, simultaneamente, atores dos processos. Para Minayo (2010)MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12 ed. São Paulo: Hucitec, 2010., a fala pode ser reveladora de condições estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos e, ao mesmo tempo, ter a magia de transmitir, por meio de porta-vozes, as representações de grupos determinados, em condições históricas, socioeconômicas e culturais específicas. De maneira semelhante, Flick (2009)FLICK, U. Qualidade na pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed, 2009. aborda que nas entrevistas não encontra-se apenas uma reprodução ou representação do conhecimento existente, mas, sobretudo, uma interação com relação ao tema e à realidade em estudo.
Foram entrevistados 36 conselheiros locais de saúde, entre os meses de fevereiro e junho de 2009. Para cada CLS escolhido, foram entrevistados seis conselheiros, três representantes dos usuários e três representantes dos profissionais de saúde, contemplando-se tanto os profissionais de nível superior como de nível médio. Os conselheiros usuários mantinham pouca afiliação com movimentos sociais ou associações de moradores, e o processo de escolha desses sujeitos como conselheiros de saúde, na maioria das vezes, era determinado por sua elevada frequência na unidade de saúde e pelo bom relacionamento com os demais usuários da USF.
A análise das informações foi realizada por meio da técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin (2009)BARDIN, L. Análise de Conteúdo. 5 ed. Lisboa: Edições 70, 2009.. No primeiro momento, realizou-se a leitura das entrevistas transcritas com a identificação e codificação das unidades de registro e unidades de análise. A partir da análise dessas unidades, foram identificados os núcleos de sentido contidos nas falas dos sujeitos. Então, realizaram-se as sínteses vertical e horizontal dos núcleos de sentido para a identificação das categorias e subcategorias temáticas (BARDIN, 2009BARDIN, L. Análise de Conteúdo. 5 ed. Lisboa: Edições 70, 2009.).
Cabe destacar que a análise de dados em pesquisa qualitativa exige o estabelecimento de técnicas e procedimentos bastante rígidos, a fim de se evitar a indução analítica (BLOOR; WOOD, 2006BLOOR, M.; WOOD, F. Keywords in qualitative methods: an vocabulary of reccearch concepts. London: Sage Publications, 2006.). Neste sentido, foram observadas as recomendações de Seidman (2006)SEIDMAN, I. Interviewing as qualitative research. 3 ed. New York: Columbia University, 2006. sobre a necessidade de os pesquisadores estarem alertas para: as variações de linguagem e de sentidos nas expressões entre os diferentes grupos sociais; as situações de conflito entre diferentes pessoas e na fala de um mesmo sujeito; e as expectativas manifestas e subjacentes.
Todos os requisitos referentes à ética em pesquisa foram obedecidos conforme os preceitos estabelecidos na Resolução CNS 196/96. A referida pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, parecer 164/2008.
Resultados e discussão
Percepções sobre o papel político dos conselhos de saúde
Os Conselhos Locais de Saúde são percebidos de maneira dúbia. Tanto são referidos como instrumento da melhoria da assistência à saúde, como espaço de articulação intersetorial e de promoção da saúde.
A vertente assistencial aparece de forma predominante nos discursos dos conselheiros. Os conselhos são referidos como espaço de protesto e reivindicação para maior oferta de atendimento médico-odontológico. Embora nas reuniões sejam abordados outros temas referentes à saúde da comunidade, a exemplo de campanhas sanitárias, aprovação de documentos, divulgação de informações e prestações de contas, a busca por questões assistenciais permeia o desejo coletivo de representantes dos usuários.
Você está falando de uma coisa e já vem com atendimento. Mas a pauta não era o atendimento, a pauta era a questão aqui do bairro. Só que, quando chega aqui, eles já vêm pra outra coisa, por exemplo, atendimento, atendimento. Eles só querem atendimento. (Entrevista 04).
A real debilidade na oferta de atendimento médico, aliada ao imaginário coletivo de que a atenção à saúde fundamenta-se, primordialmente, no atendimento curativo individual, exerce forte influência sobre a percepção assistencialista dos conselheiros locais.
As limitações no acesso às consultas médicas são evidenciadas em diversos estudos sobre Atenção Primária no Brasil. Serapioni e Silva (2011)SERAPIONI. M.; SILVA, M. G. C. Avaliação da qualidade do programa Saúde da Família em municípios do Ceará: uma abordagem multidimensional. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 4315-26, 2011; destacam a grande quantidade de equipes de saúde da família que atuam sem a presença do médico e o fato de a maioria atender uma população muito superior ao preconizado pelo Ministério da Saúde. Fatores dessa natureza constituem-se em obstáculo para o acesso da população aos profissionais.
Evidencia-se, também, a grande dificuldade de fixação dos médicos no âmbito da saúde da família, com consequente rotatividade elevada desses profissionais. Nesse sentido, a efetividade da estratégia é abalada diante da baixa responsabilização pelo seguimento dos usuários e da descontinuidade do tratamento, especialmente daqueles portadores de patologias crônicas (ONOCKO-CAMPOS ., 2012ONOCKO-CAMPOS, R. T. et al. Avaliação de estratégias inovadoras na organização da Atenção Primária à Saúde. Revista de Saúde Publica, São Paulo, v. 46, n. 1, p. 43-50, 2012.). Acesso, vínculo e acolhimento são assinalados como atributos essenciais para uma atenção primária efetiva e resolutiva, e a não garantia desses princípios pode gerar distorções no imaginário da população sobre a forma de organização e a finalidade da Estratégia de Saúde da Família (SOUZA ., 2008SOUZA, E. C. F. et al. Acesso e acolhimento na Atenção Básica: uma análise da percepção dos usuários e profissionais de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24 suppl. 1, p. s100-s110, 2008.).
Em estudo realizado em 21 municípios do Nordeste brasileiro, observou-se que as equipes de saúde da família apresentam predomínio de práticas curativoindividuais e um quantitativo elevado de famílias por equipe. A pressão por assistência conduz a uma sobrecarga dos profissionais de saúde, o que leva, também, a grande descontentamento e reclamações por parte dos usuários (ROCHA ., 2008ROCHA, P. M. et al. Avaliação do Programa Saúde da Família em municípios do Nordeste brasileiro: velhos e novos desafios. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, suppl. 1, p. s69-s78, 2008.).
Por outro lado, os discursos também desvelam compreensões ampliadas de saúde, em que os fatores determinantes e condicionantes da saúde são apontados como objeto de preocupação dos conselheiros locais e constituem-se em temas recorrentes das reuniões. Uma parte dos conselheiros, embora também reconheça a importância do atendimento individual e das dificuldades de acesso, demonstra compreensão sobre a amplitude do tema e a necessidade de articulação intersetorial para se atingirem níveis desejados de saúde. Nesse sentido, os CLS são percebidos como lócus privilegiado para discussão e amadurecimento da consciência sanitária da população.
Nós discutimos outros temas também, como a violência no bairro, iluminação, a coleta do lixo, o esgoto, né? Então, a gente discute sobre tudo, tudo que possa, assim, contribuir para o benefício da comunidade.(Entrevista 11).
A gente não fica exclusivo na área da saúde, a gente parte para outras áreas também, para melhorar a vida da comunidade como um todo, em geral, certo? Porque você sabe que para ter uma boa saúde são necessários que estejam envolvidos várias coisas, né? Transporte, moradia adequada, saneamento básico e saúde também, em primeiro lugar. (Entrevista 14).
Esses discursos desvelam a preocupação com as condições de vida e saúde da comunidade e não apenas com a prestação de serviços de saúde. Segundo Carvalho e Buss (2012), a promoção da saúde constitui-se em processo político e social direcionado a um maior controle sobre os determinantes da saúde e destinado a modificar as condições sociais, econômicas e ambientais em favor da saúde individual e coletiva.
A partir da publicação da Carta de Ottawa, em 1986, conceitos e práticas de promoção da saúde são evocados como necessários à estruturação dos sistemas de saúde. No Brasil, a criação do SUS é fortemente influenciada por esses valores, e diversas ações são desenvolvidas para viabilização das ações promocionais. Nesse contexto, a saúde da família constitui-se como estratégia de destaque para o desenvolvimento da promoção da saúde, por priorizar ações intersetoriais e estimular parcerias com diferentes segmentos sociais e institucionais. Também, por estimular a organização das comunidades para exercer o controle social das ações e dos serviços de saúde (CARVALHO; BUSS, 2012CARVALHO, A. I.; BUSS, P. M. Determinantes Sociais na Saúde, na Doença e na Intervenção. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org.). Políticas e Sistemas de Saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Cebes, 2012. p. 141-166.).
Os resultados da presente investigação estão em sintonia com outros estudos empíricos que demonstram avanços no que tange à compreensão da Atenção Primária para além da assistência curativoindividual. Figueira . (2009)FIGUEIRA, T. R. et al. Percepções e ações de mulheres em relação à prevenção e promoção da saúde na Atenção Básica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 43 n. 6, p. 937-943, 2009. identificaram considerável assimilação do enfoque da promoção da saúde e da busca da qualidade de vida entre usuárias de serviços básicos de saúde. Foi observada a valorização do conceito positivo de saúde, em que as usuárias demonstraram forte empatia com relação às práticas cujo foco se destina a alcançar, gradativamente, melhores níveis de vida.
As visões focalizada e ampliada sobre os conselhos locais de saúde se coadunam com o debate apresentado na literatura internacional sobre os modelos de participação comunitária. Pérez . (2009)PÉREZ, D. et al. Augmenting frameworks for appraising the practices of community-based health interventions. Health Policy and Planning, Oxford, v. 24, p. 335-41, 2009. classificam os modelos de participação em duas tipologias principais: utilitarista e empoderamento. Na visão utilitarista, fundamentada nos princípios biomédicos e assistenciais, a participação é implementada nos serviços de saúde com o propósito de atingir a melhoria da assistência. O envolvimento comunitário objetiva mobilizar recursos e pessoas para prover suporte aos serviços e facilitar as intervenções. Para o modelo de empoderamento, a participação tem um fim em si mesma e seu propósito é a conquista de poder pelas comunidades para interferir nas decisões que afetam suas vidas. Segundo esta visão, o envolvimento das pessoas deve ser ativo e baseado nas iniciativas comunitárias (PÉREZ ., 2009PÉREZ, D. et al. Augmenting frameworks for appraising the practices of community-based health interventions. Health Policy and Planning, Oxford, v. 24, p. 335-41, 2009.). Embora existam críticas e falhas na implementação dos dois modelos, a participação como empoderamento é considerada a forma mais avançada, por apresentar maiores chances de sustentabilidade e transformação das realidades sociais, econômicas e políticas.
A concomitância entre as visões focalizada e ampliada sobre os conselhos locais de saúde no município estudado pode ser explicada, entre outros fatores, pelos baixos níveis de organização e mobilização popular, discutidos a seguir, e pelo contexto de avanços e fragilidades no âmbito da atenção primária. Segundo Serapioni e Silva (2011)SERAPIONI. M.; SILVA, M. G. C. Avaliação da qualidade do programa Saúde da Família em municípios do Ceará: uma abordagem multidimensional. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 4315-26, 2011;, o desenvolvimento da ESF resultou em considerável ampliação do acesso da população aos serviços de saúde e em significativo incremento de atividades promocionais e preventivas, no entanto, a qualidade dos serviços prestados constitui um aspecto crítico da estratégia. Para Figueira . (2009)FIGUEIRA, T. R. et al. Percepções e ações de mulheres em relação à prevenção e promoção da saúde na Atenção Básica. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 43 n. 6, p. 937-943, 2009., ainda persistem dificuldades para operacionalização das ações de promoção da saúde, e as abordagens de educação em saúde mantêm-se em formatos tradicionais.
Percepções sobre a participação comunitária e a mobilização social
A realidade estudada evidencia que, de maneira geral, existe uma pequena participação da população nas reuniões do CLS. Cabe destacar que o município mantém uma estrutura administrativa para suporte e apoio aos conselhos locais. A Secretaria Municipal de Saúde possui uma coordenação de controle social com a função de acompanhar e estimular o desempenho dos conselhos locais. Todavia, a simples presença do aparato burocrático tem se mostrado insuficiente para manter níveis elevados de mobilização social e participação popular.
Os entrevistados demonstraram existir um sentimento de desinteresse das comunidades pelas práticas participativas e pelas atividades dos conselhos de saúde.
O que faz cair o conselho é a participação da comunidade, que é muito fraca, fraquíssima, entendeu? A gente tem dificuldade para que haja a adesão maciça da comunidade nas reuniões, na participação efetiva mesmo no conselho. Mas, assim, uma parte já aderiu e os outros é porque não gostam de participar, não querem participar. (Entrevista 09).
A desmobilização social e a fraca participação em saúde não são características exclusivas do município estudado. Diversos estudos sobre os mecanismos de participação no SUS demonstram a diminuta adesão das comunidades às instancias participativas (OLIVEIRA; ALMEIDA, 2009OLIVEIRA, M. L.; ALMEIDA, E. S. Controle Social e gestão participativa em saúde pública em unidades de saúde do município de Campo Grande, MS, 1994-2002. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 141-153, 2009.; ROLIM ., 2013ROLIM, L. B. et al. Participação popular e controle social como diretriz do SUS: uma revisão narrativa. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 37, n. 36, p. 139-47, 2013.). Embora o país apresente, hoje, mais de 5.800 conselhos de saúde, distribuídos em todas as esferas de governo, não existe um expressivo envolvimento da sociedade civil nos conselhos, o que conduz ao descrédito e abala a legitimidade desses espaços (ESCOREL; MOREIRA, 2009ESCOREL, S.; MOREIRA, M. R. Participação Social. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org.). Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, Cebes, 2012. p. 979-1010.). No que tange aos conselhos de unidades de saúde, Oliveira e Almeida (2009)OLIVEIRA, M. L.; ALMEIDA, E. S. Controle Social e gestão participativa em saúde pública em unidades de saúde do município de Campo Grande, MS, 1994-2002. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 141-153, 2009. também encontraram um baixo comprometimento dos usuários diante desses fóruns. Em outros municípios do Nordeste, evidenciam-se a irregularidade no funcionamento dos conselhos e o diminuto envolvimento das comunidades (ROCHA ., 2008ROCHA, P. M. et al. Avaliação do Programa Saúde da Família em municípios do Nordeste brasileiro: velhos e novos desafios. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, suppl. 1, p. s69-s78, 2008.). Também em outros países, tanto nos desenvolvidos (ABELSON ., 2007ABELSON, J. et al. Examining the role of context in the implementation of a deliberative public participation experiment: results from a canadian comparative study. Social Science and Medicine, Oxford, v. 64, p. 2115-2128, 2007.) como nos de economia periférica (O'MEARA ., 2011O'MEARA, W. P. et al. Community and facility-level engagement in planning and budgeting for the government health sector - A district perspective from Kenya. Health Policy, Amsterdan, v. 99, p. 234-243, 2011.), as experiências participativas locais apresentam fragilidades e dificuldades de envolvimento de grandes parcelas da população.
Alguns fatores são apontados pelos conselheiros como desencadeantes do desinteresse e da baixa participação da comunidade. Os CLS são vistos por muitos dos entrevistados como espaço de muita discussão e debate, mas com limitado poder de resolutividade sobre problemas da comunidade.
Então, o que não atrai o interesse das pessoas é porque às vezes discutem determinada necessidade na reunião e vê que não funciona, que nada é resolvido. Então, com isso, vem o desinteresse da comunidade. As pessoas, naturalmente, já são desinteressadas. Com isso, piora ainda mais. (Entrevista 27) .
Segundo Escorel e Moreira (2009)______. Desafios da participação social em saúde na nova agenda da reforma sanitária: democracia deliberativa e efetividad. In: FLEURY S.; LOBATO, L.V.C. (Org.). Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 229-247, a capacidade dos conselhos de influenciar os rumos das políticas de saúde é considerada baixa. Não raro, os conselhos apresentam sérios problemas de independência e autonomia, com limitado poder de interferir e controlar o desenvolvimento das políticas (BISPO JÚNIOR; SAMPAIO, 2008BISPO JÚNIOR, J. P.; SAMPAIO, J. J. C. Participação social em saúde em áreas rurais do Nordeste do Brasil. Revista Panamericana de Salud Publica, Washington, DC, v. 23, n. 6, p. 403-409, 2008.). Nesse sentido, o descrédito e o desinteresse da população surgem como consequências de uma participação considerada estéril pelos usuários. Estes não veem sentido em destinar parte do seu tempo para se envolver em algo que não implicará mudanças para sua vida pessoal ou da comunidade.
A ausência de uma cultura participativa também é identificada pelos entrevistados como um fator de forte influência para o desinteresse da população.
Eu acho que é porque a comunidade não está acostumada ainda em estar participando, e aí que é um processo que leva tempo. Acho que é uma questão cultural. Porque a comunidade nunca foi chamada para estar participando, então, de repente, não é assim da noite para o dia. Então, é um processo.(Entrevista 17).
Embora Vitória da Conquista seja identificado como um município com tendência democrática e com experiências bem sucedidas de participação, a exemplo do orçamento participativo (AVRITZER, 2007AVRITZER, L. A participação social no Nordeste. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.), os resultados do presente estudo sugerem baixos níveis de mobilização da população, o que influencia negativamente o desempenho dos CLS. Para um desempenho efetivo da participação em saúde, Pérez . (2009)PÉREZ, D. et al. Augmenting frameworks for appraising the practices of community-based health interventions. Health Policy and Planning, Oxford, v. 24, p. 335-41, 2009. destacam a importância da prévia tradição de mobilização das comunidades. No entanto, o que parece existir em diversas localidades do Brasil é uma lógica da participação concedida, onde os segmentos de governo criaram conselhos gestores e delegaram a responsabilidade da participação às comunidades, muitas das quais sem nenhuma tradição participativa. Em uma atmosfera de ausência de cultura cívica e com fortes valores de privatização da vida, em que os interesses individuais se sobrepõem aos valores coletivos, não se pode esperar um desempenho expressivo dos conselhos de saúde.
Por outro lado, a criação dos conselhos pode ser entendida como um instrumento com capacidade de estimular a cultura cívica e participativa. Mesmo diante da pequena participação em um dado momento, o diálogo franco, propositivo e o respeito mútuo entre profissionais e usuários podem servir de estímulo para a mobilização comunitária e a participação cidadã. Nesse sentido, a postura de gestores e profissionais é decisiva, uma vez que pode facilitar ou inibir a participação da comunidade. Deve-se buscar um equilíbrio entre o saber técnico e o saber popular, bem como nas relações de poder, visto que uma decisão tecnicamente correta não é, necessariamente, a mais legítima socialmente ou a mais adequada moralmente (BATTAGELLO ., 2011BATAGELLO, R. et al. Conselhos de Saúde: controle social e moralidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 3, p. 625-34, 2011.). A postura profissional não deve ser paternalista, e as relações devem estar assentadas nos valores de solidariedade, autonomia, respeito às diferenças e equidade.
Outros fatores destacados como responsáveis pelo diminuto envolvimento da população são a escassa informação sobre a existência dos conselhos e a pequena divulgação sobre o funcionamento e as atividades desses fóruns. Tal situação leva ao desconhecimento da população sobre os objetivos, as funções e a atuação dos conselhos, resultando em baixa adesão das comunidades nos processos decisórios locais (LABRA, 2009LABRA, M. E. Política Nacional de Participação na Saúde: entre a utopia democrática do controle social e a práxis predatória do clientelismo empresaria. In: FLEURY S.; LOBATO, L. V. C. (Org.). Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009. p. 176-203.). Assim, pode-se ressaltar que o conselho pode até ser uma instituição muito valorizada por aqueles que dela participam, mas é desconhecida pela grande parte dos cidadãos brasileiros (MARTINS ., 2008MARTINS, P. C. et al. Conselhos de saúde e a participação social no Brasil: matizes da utopia. Physis, Rio de Janeiro, v. 18, n. 1, p. 105-121, 2008.).
Questões relativas à motivação e ao envolvimento dos profissionais de saúde também surgem com fatores limitantes ao desempenho do CLS no município. A maioria dos profissionais não está motivada para participar e percebe as atividades do conselho local como uma atribuição a mais na já sobrecarregada jornada de trabalho. Os discursos revelam que muitos profissionais participam do conselho apenas porque essa é uma obrigação inerente à função. No município, todos os profissionais da unidade são obrigados a participar da reunião do CLS, mesmo os que não são os representantes oficiais da unidade. Entre os trabalhadores da unidade, são escolhidos os conselheiros locais representantes dos profissionais, e todos os outros devem também participar na condição de ouvintes.
Tem profissional que não participa ou participa somente porque é forçado. Eu mesmo nem queria entrar, nem nada. Mas pelo sorteio, como é obrigatório ter quatro pessoas do posto e quatro da população, aí, por sorteio, eu saí. Mas eu não queria participar. (Entrevista 31).
Algumas características ainda presentes na organização e no funcionamento da ESF ajudam a explicar a desmotivação dos profissionais e a influência negativa sobre o desempenho dos CLS. A grande demanda por assistência, potencializada por condições de vida inadequadas e pelo número elevado de famílias por equipes, sobrecarrega os profissionais, que não conseguem desempenhar suas funções conforme preconizado, o que desencadeia grande insatisfação entre os usuários (ROCHA ., 2008ROCHA, P. M. et al. Avaliação do Programa Saúde da Família em municípios do Nordeste brasileiro: velhos e novos desafios. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, suppl. 1, p. s69-s78, 2008.). A ausência de interesse de alguns trabalhadores da Atenção Primária, aliada às debilidades da educação permanente (ONOCKO-CAMPOS ., 2012ONOCKO-CAMPOS, R. T. et al. Avaliação de estratégias inovadoras na organização da Atenção Primária à Saúde. Revista de Saúde Publica, São Paulo, v. 46, n. 1, p. 43-50, 2012.), contribui para que profissionais exerçam suas atividades sem o devido cuidado com os mecanismos de escuta e não percebam a importância dos espaços locais de participação. Também, os problemas relativos à estrutura física e à precarização do trabalho na ESF - a exemplo de vínculo empregatício, salário e autonomia - desmotivam os profissionais e abalam a qualidade da atenção no nível primário (SERAPIONI; SILVA, 2011SERAPIONI. M.; SILVA, M. G. C. Avaliação da qualidade do programa Saúde da Família em municípios do Ceará: uma abordagem multidimensional. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 11, p. 4315-26, 2011;).
Em estudo sobre a percepção de profissionais da atenção primária, observou-se que as equipes consideram a participação comunitária um atributo mais dependente da comunidade do que de suas ações. Segundo Silva e Caldeira (2010)SILVA, J. M. D.; CALDEIRA, A. P. Modelo assistencial e indicadores de qualidade da assistência: percepção dos profissionais da Atenção Primária à Saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 26, n. 6, p. 1187-1193, 2010., as equipes de saúde da família ainda não compreendem a interface entres suas ações e o papel político e ideológico da participação comunitária para a consolidação do modelo de atenção.
A despeito das percepções sobre a desmobilização social e o desinteresse das comunidades, alguns fatores são evidenciados pelos entrevistados como capazes de influenciar e potencializar o desempenho dos conselhos. Um grupo de entrevistados sinalizou que mudanças em questões organizacionais, a exemplo de local e horário das reuniões, elevariam a participação dos usuários. As reuniões acontecem em horário comercial, período de funcionamento da unidade e também horário de trabalho da maior parte da população adulta. Assim, é sugerido que a alteração das reuniões para a noite ou finais de semana possibilitaria a participação de um maior número de pessoas.
No entanto, essas tentativas já foram experimentadas em alguns CLS do município, sem a obtenção do êxito esperado.
Sinceramente, não sei o que poderia ser feito para aumentar o interesse da comunidade. Porque, assim, a gente já tentou de tudo. A gente já fez reuniões itinerantes de conselho local, a gente já foi em cada microárea mais próxima e fez as reuniões do conselho pra ver se a gente tinha uma participação maior da comunidade. Não teve. A gente já tentou fazer nos finais de semana, a gente já teve reunião à noite, com a própria secretária de saúde, de tudo que você puder imaginar. (Entrevista 10).
Questões relativas à distribuição de brindes, cestas básicas, lanches e outros atrativos são também sugeridos como estratégias para atrair maior interesse da comunidade. Outro fator apontado refere-se à presença de convidados externos, como representantes da gestão da saúde, de outras secretarias ou de outros segmentos de Estado e da Sociedade Civil. Todavia, esses fatores possuem capacidade pontual e limitada. O interesse por um brinde ou pela presença de uma autoridade pode até atrair grande público em uma determinada reunião, no entanto, isso não garante a participação nos meses subsequentes ou, numa reação reversa, pode levar ao desinteresse nos meses em que os usuários não vislumbrarem a possibilidade de benefício pessoal direto.
Entre os principais fatores citados como capazes de promover a mobilização e despertar o interesse da comunidade, o de maior destaque foi a necessidade de ampliação da resolutividade dos problemas sociais e de saúde referidos pela população.
A forma fundamental é ter uma resolução maior dos problemas da comunidade. Eu acredito que se resolvesse mais as coisas que a comunidade reivindica, na medida do possível, teria uma participação maior. (Entrevista 11).
Diante desses discursos, desvela-se o sentimento de descrédito da população para com os CLS. Nesse sentido, a distância da população com relação aos conselhos é influenciada pela insuficiente capacidade destes para o enfrentamento e a resolução dos problemas comunitários. Muitos conselheiros consideram que uma efetiva resposta para os problemas sociais desencadearia maior envolvimento e participação comunitária. Em estudo realizado por Oliveira e Almeida (2009)OLIVEIRA, M. L.; ALMEIDA, E. S. Controle Social e gestão participativa em saúde pública em unidades de saúde do município de Campo Grande, MS, 1994-2002. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 141-153, 2009., também foi evidenciada a desmobilização da população pelo não atendimento às deliberações da reunião. Segundo Baquero (2009)BAQUERO. M. Democracia, participação e capital social no Brasil hoje. In: FLEURY, S.; LOBATO, L.V.C. (Org.). Participação, democracia e saúde. Rio de Janeiro: Cebes, 2009, p. 129-150., a ampliação dos mecanismos formais de participação não tem conseguido resolver o problema da apatia, da resignação e da hostilidade dos cidadãos com relação à política. Como caminho, é apontada a necessidade de que os cidadãos confiem nas instituições políticas e participem ativamente das decisões que afetam suas vidas.
Martins et al. (2008) destacam a necessidade de que os cidadãos acreditem na possibilidade de transformação da realidade vivida. Assim, os indivíduos e a coletividade potencializarão o desenvolvimento de habilidades e pensamentos reflexivos, o que pode desencadear a migração de uma situação de resignação e acomodação para um contexto de participação ativa e cidadã. Para Batagello . (2011)BATAGELLO, R. et al. Conselhos de Saúde: controle social e moralidade. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 20, n. 3, p. 625-34, 2011., a participação social em saúde tem que ser mais ampla que os espaços formais dos conselhos, o que sugere a necessidade de fortalecimento dos movimentos sociais e ampliação de alianças com os órgãos públicos de controle.
Considerações finais
O cenário estudado desvela a concomitância entre as visões assistencial e ampliada sobre o papel político dos conselhos de saúde, com forte predomínio da compreensão do conselho como instrumento destinado apenas à melhoria da assistência à saúde. As dificuldades de acesso e a compreensão médicoindividual, ainda predominante na saúde, contribuem na formação dessa percepção coletiva.
Existe uma multiplicidade de fatores que contribuem para o pouco envolvimento da população com os CLS. A ausência de cultura participativa e o imaginário sobre a esterilidade do conselho na resolução dos problemas comunitários figuram entre os principais fatores de desestímulo.
Embora a criação dos conselhos de saúde, em todas as esferas de governo, represente uma possibilidade de avanço rumo à ampliação da democracia, estes não podem ser tratados apenas como instrumentos burocráticos de gestão. O descrédito e o tímido envolvimento da população são, sobretudo, determinados pela descrença nos mecanismos de participação, o que, por sua vez, reflete a descrença no próprio SUS. A promoção do envolvimento comunitário e a melhoria na efetividade dos CLS perpassam, precipuamente, a estruturação da Estratégia de Saúde da Família e a capacidade desta em oferecer respostas efetivas aos problemas da população.
Torna-se necessário o rompimento do ciclo vicioso estabelecido - em que as debilidades na assistência prestada desestimulam o envolvimento da população, e, por sua vez, a baixa participação não induz à melhoria dos serviços prestados - e o desenvolvimento de um novo ciclo virtuoso, em que a qualidade dos serviços estimule a participação e a mobilização comunitária, e que isso contribua para o aprimoramento da ESF e da qualidade de vida da população. Todavia, esse não é um processo simples e demanda envolvimento e comprometimento de diversos setores estatais e societais. Para o desenvolvimento de uma cultura participativa na área de saúde, é necessária a valorização dos princípios do SUS e que os diversos segmentos sociais se reconheçam como usuários e defensores do sistema público, verdadeiramente universal.
- Suporte financeiro: não houve
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Set 2014
Histórico
- Recebido
Out 2013 - Aceito
Jun 2014