Cuidando do familiar com transtorno mental: desafios percebidos pelos cuidadores sobre as tarefas de cuidar

Taking care of relative with mental disorder: perceived challenges by caregivers about the tasks of caring

Leonardo Martins Kebbe Lígia Beatriz Romeiro Rôse Regina Célia Fiorati Regina Yoneko Dakuzaku Carretta Sobre os autores

Resumos

Cuidar de um familiar com transtorno mental exige que o cuidador auxilie nas diversas atividades cotidianas, gerando dificuldades para quem cuida. Buscou-se conhecer como o cuidador ajuda o familiar nessas atividades e como percebe o cuidado. Foi realizado um estudo qualitativo com oito cuidadores de familiares assistidos em Hospital Dia, sendo os dados coletados em dois grupos focais e submetidos à análise temática de conteúdo. Foi observado que a ajuda ao ente cuidado envolve sobrecarga pelo acúmulo de funções desempenhadas e pelo despreparo do cuidador, sinalizando que os equipamentos de saúde mental necessitam intervir na saúde do cuidador e capacitá-lo para a oferta de cuidados.

Saúde mental; Cuidadores; Atividades cotidianas


Caring for a relative diagnosed with a mental disorder requires the caregiver's assistance in several daily activities, causing difficulties for those who take care. Caring results in difficulties for those who assume take care. The aim is to learn how caregivers help in daily activities and how they perceive the provided care. A qualitative study was performed with eight caregivers of assisted relatives in a Hospital Day. Data were collected in two focal groups and submitted to the content's thematic analysis. It has been observed that the care provided to the relative involves an overload by the accumulation of functions performed by the caregiver's unpreparedness, indicating that mental health equipments need to intercede in caregiver's health and enable them to improve the quality of life and care offer.

Mental health; Caregivers; Daily activities


Introdução

A Reforma Psiquiátrica brasileira pode ser concebida como um conjunto de aparatos jurídicos, administrativos e legislativos direcionado para a desinstitucionalização de pessoas com transtornos mentais, a qual aponta para a desconstrução do paradigma tradicionalista da psiquiatria e do modelo hospitalocêntrico, concomitante à construção de novos serviços de atenção em saúde mental (CAMPOS; SOARES, 2005CAMPOS, P. H. F.; SOARES, C. B. Representação da sobrecarga familiar e adesão aos serviços alternativos em saúde mental. Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 11, n. 18, p. 219-237, 2005.).

Balizados pela Política Nacional de Saúde Mental, através da lei 10.216/02, equipamentos de saúde mental - como os Hospitais Dia (HD), os ambulatórios, as unidades psiquiátricas em Hospital Geral, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) e as Estratégias de Saúde da Família (ESF) - devem ser organizados em uma rede hierarquizada de saúde mental (CARDOSO; GALERA, 2011CARDOSO, L.; GALERA, S. A. F. O cuidado em saúde mental na atualidade. Revista da Escola de Enfermagem USP, Ribeirão Preto, v. 45, n. 3, p. 687-691, 2011.).

Esses equipamentos ofertam estratégias terapêuticas para a assistência contínua às pessoas em sofrimento psíquico, priorizando a atenção àquelas com transtorno mental grave e persistente. As intervenções buscam prover os usuários do contato familiar e da participação no território e na comunidade onde vivem (JORGE ., 2003JORGE, M. A. S. et al. Textos de apoio em saúde mental. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.; LANCETTI; AMARANTE, 2006LANCETTI, A.; AMARANTE, P. Saúde mental e saúde coletiva. In: CAMPOS, G. W. S. et al. (Org.). Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006.).

Segundo Silva e Sadigusky (2008)SILVA, M. B. C; SADIGURSKY, D. Representações sociais sobre o cuidador do doente mental no domicílio. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, DF, v. 61, n. 4, p. 428-434, 2008., com a extinção gradual dos hospitais psiquiátricos, o controle sobre as internações e a organização de uma rede hierarquizada de serviços de saúde mental, de base comunitária e menos restritiva, observa-se maior permanência diária dos usuários em casa, em convívio com seus familiares. Essa aproximação familiar é uma relevante conquista da desinstitucionalização, mas se constata que os familiares, muitas vezes despreparados, se deparam com desafios ao assumirem o papel de cuidadores do parente em sofrimento mental.

Para Souza, Wegner e Gorini (2007)SOUZA, L. M.; WEGNER, W.; GORINI, M. I. P. C. Educação em saúde: uma estratégia de cuidado ao cuidador leigo. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v.15, n. 2, p. 337-343, 2007., o cuidado é uma ciência praticada em instituições de saúde por profissionais especializados e por pessoas leigas no âmbito familiar e comunitário. O familiar pode auxiliar o ente em sofrimento psíquico nos cuidados que visem à objetivação de suas atividades cotidianas: o autocuidado, o trabalho, o lazer e a participação sociocultural ampliada, nos contextos domiciliar e comunitário. Nesse sentido, desenvolve um papel colaborativo na assistência ao paciente junto aos profissionais dos equipamentos de saúde mental (ALMEIDA ., 2010ALMEIDA, M. M. et al. A sobrecarga de cuidadores de pacientes com esquizofrenia. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 32, n. 3, p. 73-79, 2010.).

Soares e Munari (2007)SOARES, C. B.; MUNARI, D. B. Considerações acerca da sobrecarga em familiares de pessoas com transtornos mentais. Ciência, Cuidado e Saúde, Maringá, v. 6, n. 3, p. 357-362, 2007. referem que o cuidado ao familiar acometido implica considerar: a transformação da pessoa outrora conhecida, a lida com comportamentos (de isolamento, autodestruição, agressividade) e hábitos inadequados de higiene, os quais podem gerar nos cuidadores ansiedade, raiva, culpa e medo. Acrescem-se às funções dos cuidadores acompanhar regularmente os familiares aos serviços de saúde, administrar a medicação, fornecer-lhes suporte social, arcar com gastos dos tratamentos e superar as dificuldades dessas tarefas (SOUZA-FILHO ., 2010SOUZA-FILHO, M. D. et al. Avaliação da sobrecarga em familiares cuidadores de pacientes esquizofrênicos adultos., Psicologia em Estudo Maringá, v. 15, n. 3, 2010, p. 639-647.).

Assim, os cuidadores predispõem-se ao desenvolvimento de sofrimento mental e comprometimento da vida social, ocupacional e financeira, pois as demandas da pessoa com transtorno mental podem tornar-se uma experiência vivida com sobrecarga para o cuidador.

O conceito de sobrecarga envolve duas dimensões: a sobrecarga objetiva e a subjetiva. A sobrecarga objetiva é relacionada ao desempenho das tarefas de assistência ao paciente e da supervisão dos seus comportamentos problemáticos. Refere-se, também, aos transtornos e às restrições da vida sócio-ocupacional dos familiares, assim como ao impacto financeiro. A sobrecarga subjetiva diz respeito às percepções e aos sentimentos dos familiares, tais como suas preocupações com o paciente, a sensação de peso a carregar e de incômodo ao exercer algumas das funções do papel de cuidador (BANDEIRA; BARROSO, 2005BANDEIRA M.; BARROSO, S. Sobrecarga das famílias de pacientes psiquiátricos. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 54, n. 1, p. 34-46, 2005.; BARROSO; BANDEIRA; NASCIMENTO, 2007BARROSO, S. M.; BANDEIRA, M.; NASCIMENTO, E. Sobrecarga de familiares de pacientes psiquiátricos atendidos na rede pública. Revista de Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 34, n. 6, p. 270-277, 2007.).

Intervenções psicossociais são necessárias para o alívio da sobrecarga e a melhora de sua qualidade de vida, devendo favorecer a expressão das múltiplas questões vividas pelos cuidadores e acolhê-los, sendo a escuta uma estratégia importante na atenção a essa população (SOUZA-FILHO ., 2010SOUZA-FILHO, M. D. et al. Avaliação da sobrecarga em familiares cuidadores de pacientes esquizofrênicos adultos., Psicologia em Estudo Maringá, v. 15, n. 3, 2010, p. 639-647.).

Este estudo propõe a participação de familiares cuidadores em grupos estruturados para a reflexão compartilhada sobre o papel do cuidador e o que está envolvido no oferecimento de cuidados à pessoa com transtorno mental no âmbito familiar. Grupos focais foram adotados como instrumento de coleta de dados, tendo sido balizados pelas questões norteadoras: que dificuldades os familiares identificam nos cuidados despendidos? Essas dificuldades se configuram enquanto sobrecarga subjetiva e objetiva? Que estratégias os cuidadores empregam para lidar com as dificuldades?

Objetivos

GERAL: Compreender como o familiar cuidador ajuda a pessoa com transtorno mental em atividades cotidianas - autocuidado, trabalho e lazer; e as percepções que elabora acerca do cuidado oferecido.

ESPECÍFICOS: Identificar as dificuldades dos cuidadores segundo sua percepção, classificando-as quanto aos tipos de sobrecarga (objetiva e subjetiva), e identificar as estratégias utilizadas por eles para minorar as dificuldades.

Método

O estudo realizado foi do tipo qualitativo-descritivo, considerando os valores, os significados, as crenças, as motivações e as ações dos familiares diante das pessoas com transtornos mentais das quais cuidam - questões centrais e subjetivas inviáveis de acesso mediante uma abordagem quantitativa (MINAYO, 2001MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2001.).

A pesquisa foi realizada em um HD em saúde mental, vinculado a um Hospital Escola do interior do Estado São Paulo. Trata-se de um equipamento de saúde mental para a hospitalização parcial de pessoas com transtornos mentais em crise aguda ou reagudizada. A permanência dos usuários no serviço é de até 45 dias. São oferecidas estratégias terapêuticas por equipe multidisciplinar, com atendimentos grupais e individuais de enfermagem, psiquiatria, psicologia e terapia ocupacional, incluindo, também, reuniões com os familiares de usuários e grupos comunitários.

Para a seleção de sujeitos, foi contatado um familiar cuidador de cada usuário, por ser considerado, na família, o cuidador referencial. Buscou-se essa informação com os próprios familiares dos usuários do HD, acessando-os (durante um mês) em sala de espera, por telefone e durante a realização dos grupos de família. Essa seleção seguiu os critérios: ser cuidador residente no município onde os dados foram coletados; ser cuidador de um familiar com transtorno mental em episódio de crise reagudizada, em tratamento no HD pela segunda vez, em um período de dois anos; ser cuidador maior de 21 anos. Os cuidadores foram arrolados como participantes independentemente do diagnóstico do familiar, por se considerar que o cuidado de uma pessoa em sofrimento psíquico perpassa uma diversidade de questões não necessariamente atreladas a uma categoria nosológica específica. Durante a realização deste estudo, as dezesseis vagas disponíveis no HD estavam ocupadas. Desse modo, 16 cuidadores referenciais foram contatados para participar da pesquisa, seguindo-se a relação: um cuidador por paciente.

Considerando a disponibilidade individual de participação e os critérios de seleção adotados, obtiveram-se oito participantes, número suficiente ao atentar para a abordagem qualitativa de pesquisa e para as características do local onde foi desenvolvida. A opção por somente dois grupos focais justifica-se pela intenção de não interferir na organização das rotinas de cuidados do HD.

Obteve-se a autorização para a realização do estudo no Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, sob o processo 1591/2009. A assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (atendendo à resolução 196/96, do Conselho Nacional de Saúde) foi feita antes do início das atividades do primeiro grupo focal.

Para a preservação dos nomes dos participantes, optou-se por apresentar somente seus depoimentos, considerando que a unidade de análise do grupo focal é o próprio grupo e não cada participante, tal como apontado por Gondim (2003)GONDIM, S. M. G. Grupos focais como técnica de investigação qualitativa: desafios metodológicos. Revista Paideia, Ribeirão Preto, v. 12, n. 9, 2003, p. 149-161.. Assim, as opiniões esboçadas foram referidas, para efeito de análise, como pertencentes ao grupo.

Sob coordenação do primeiro autor deste estudo, cada grupo reuniu-se uma vez por semana, com duração aproximada de uma hora e cinquenta minutos. No início de cada encontro, foi solicitado que cada participante dissesse nome, idade, ocupação e o nome do familiar sob sua responsabilidade, atendido no HD. No primeiro grupo focal, o tema proposto foi 'Ser cuidador: desafios, expectativas e estratégias'; e, no segundo grupo, discutiu-se o assunto 'Auxiliando nas atividades cotidianas do parente com transtorno mental'. O coordenador realizou intervenções verbais nos momentos em que os partícipes desviavam a discussão dos temas propostos.

Os depoimentos dos participantes foram integralmente gravados e transcritos. Para a análise dos dados, foi empregada a análise temática de conteúdo, proposta por Bardin (2004)BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2004.. Foram realizadas leituras exaustivas dos dados brutos transcritos, o que possibilitou identificar e agrupar núcleos temáticos comuns nos depoimentos colhidos, depreendidos de cada tema discutido nos grupos. Nos resultados, os dados foram apresentados da seguinte forma: Tema 1. 'Ser cuidador: desafios, expectativas e estratégias' (unidades temáticas - sentimentos de tristeza e de impotência; suporte familiar precário; exaustão emocional e física; lida com o paciente em casa; atividades cotidianas comprometidas). Tema 2. 'Auxiliando nas atividades cotidianas do parente com transtorno mental' (unidades temáticas - realização das atividades cotidianas dos familiares acometidos; sintomas psiquiátricos; discriminação social; ajuda insuficiente do equipamento de saúde mental; grupos enquanto ferramenta de cuidados).

Resultados

A faixa etária dos participantes era de 23 a 59 anos, dois deles do sexo masculino e seis do sexo feminino, sendo todos alfabetizados. As ocupações profissionais exercidas pelos participantes eram: funcionário público, auxiliar administrativo, pedreiro, técnico em informática, vendedor e empregada doméstica.

Tema 1. Ser cuidador: desafios, expectativas e estratégias

SENTIMENTOS DE TRISTEZA E DE IMPOTÊNCIA

Na condição de cuidadores de familiares com transtornos mentais, os sujeitos estudados se defrontaram, nos grupos focais, com o próprio sofrimento resultante do papel por eles assumido. Referiram sentirem-se tristes e inábeis para lidar com os comportamentos autoagressivos do familiar com transtorno mental em crise:

Aconteceu com ela uma vez, também, de comprar remédio por conta e tomar, e chega um belo dia que dá uma crise, descobre e toma tudo de uma vez com bebida alcoólica. Essa parte é triste.

Ela pegou duas agulhas de tricô e foi se furando nas pernas, e disse que ia morrer igual ao avô. E como que o avô morreu? Sem as duas pernas. Ela está toda cheia de hematomas nas pernas.

SUPORTE FAMILIAR PRECÁRIO

Os cuidados oferecidos ao ente em sofrimento psíquico por somente um cuidador do grupo familiar deram-se pela falta de opção desse cuidador em poder compartilhar suas tarefas com a família. Diante da resistência imposta pelo grupo familiar, advinda de preconceito e desinformação sobre o transtorno mental - questão objetivada na rejeição e no abandono do 'doente' e também do seu cuidador - assinalou-se a percepção dos cuidadores sobre a fragilidade das relações familiares:

Para a família, não existe essa coisa de depressão, então, só visita ou telefona para a gente uma vez por mês, e olhe lá. Infelizmente, não te ajuda, e, sim, o seu vizinho...

EXAUSTÃO EMOCIONAL E FÍSICA

Assumir a responsabilidade do cuidado do familiar com transtorno mental sem poder contar com ajuda de outros parentes predispôs os cuidadores à exaustão. Eles aludiram à sua sobrecarga diária nas tarefas de cuidar, ressaltando a dificuldade de manejar situações de crise do parente, condição que os levou a sentir necessidade de ajuda: "Isso acaba deixando a gente com muito cansaço, mas eu tenho que ter paciência". "Estou de mãos atadas, e sinto que estou precisando de ajuda, que eu não estou mais aguentando".

Percebendo a necessidade de receber ajuda, e não a obtendo por parte de outros familiares, o grupo referiu buscar ajuda informal de amigos e vizinhos e, também, o auxílio profissional da equipe multidisciplinar do HD, como estratégia para estruturar suporte social. Houve o reconhecimento e a valorização dos cuidadores à equipe do HD, devido ao auxílio profissional que lhes foi oferecido no período de internação do familiar nesse equipamento de saúde mental.

Na psiquiatria, conversam muito comigo, porque eu procuro apoio, diálogo com todos os profissionais aqui no HD, psicólogo, enfim. Eu tenho muito diálogo com os profissionais.

LIDA COM OS PACIENTES EM CASA

Durante a permanência dos usuários e de seus cuidadores no HD, o sentimento de desamparo destes tende a minorar por se sentirem protegidos pela presença e pela orientação dos profissionais componentes da equipe de saúde. Porém, os dados indicaram a ansiedade e a insegurança dos cuidadores ao lidarem com seus familiares em contextos em que não havia a presença da equipe de saúde mental. Quando distantes do HD, a percepção dos cuidadores acerca do suporte social recebido oscilou, ao se perceberem carentes de ajuda profissional contínua: "Quando o Dr. V. sai, eu me sinto sozinha, sem ninguém para apoiar. Me sinto desesperada".

Nesses momentos, a insegurança dos cuidadores sobre a eficácia do cuidado ofertado ao familiar manifestou-se em forma de dúvidas, ao afirmarem que não dispunham de informação suficiente, sendo que buscam respostas sobre a etiologia do transtorno mental e mencionam um despreparo experimentado durante o oferecimento de cuidados: "O fato da gente nunca ter passado por uma questão de doença dessas, a gente tem medo de atrapalhar mais, a gente não tem informação, não sabe como agir".

"Foi diagnosticado transtorno depressivo grave após a perda de um filho. É isso que eu acho que piora".

ATIVIDADES COTIDIANAS COMPROMETIDAS

Ao assumir a total responsabilidade pelos parentes com transtorno mental, condição vivida com sobrecarga pelo acúmulo de tarefas advindas dos cuidados, os cuidadores expressaram comprometimentos em suas atividades cotidianas, como no trabalho, no lazer, no autocuidado e nas relações interpessoais.

Nós que estamos de fora sofremos mais. A gente esquece de se cuidar. O fato de eu estar, hoje, aqui, cuidando da S. e participando da pesquisa, é porque eu estou afastada, porque se eu estivesse trabalhando, provavelmente, não estaria aqui.

"Estou muito, assim, desregulada. Eu deixo de comer e, às vezes, como demais".

Mesmo enfrentando dificuldades psicossociais e ocupacionais, os depoentes mostraram-se solícitos para com os familiares sob sua responsabilidade, auxiliando no seu cuidado, o que foi discutido, especialmente, no segundo grupo focal.

Tema 2. Auxiliando nas atividades cotidianas do parente com transtorno mental

REALIZAÇÃO DAS ATIVIDADES COTIDIANAS DOS FAMILIARES ACOMETIDOS

Frente à constatação dos cuidadores de que os familiares não conseguem cuidar de si, observou-se nos discursos a forma encontrada pelos depoentes para ajudá-los: ou realizando as atividades cotidianas em lugar dos familiares ou estimulando-os, verbalmente, a desenvolvê-las sozinhos.

Para eles, banho não é necessário, se cuidar fisicamente, então, há dedicação total na alimentação, na parte de se vestir e na parte de re-lacionamento. Eles não se cuidam, não têm vontade. Sai daqui e quer dormir, não quer ir para o escritório, não quer fazer nada, não tem ânimo. Eu falo: curte os momentos da vida, deixa essa tristeza de lado.

"Eu deixo o medicamento todo separadinho, para ele tomar".

SINTOMAS PSIQUIÁTRICOS

Na ajuda aos familiares, para que realizassem suas atividades cotidianas, os cuidadores aludiram aos sintomas psiquiátricos como interferentes na volição do familiar, consequentemente, inviabilizando a realização plena das atividades diárias de forma autônoma e independente. Para o grupo estudado, essa situação assinalou a necessidade de aprender novas estratégias de cuidados: "Não sei de que forma poderia oferecer algo a mais para fazer em casa, com ela".

Ele tinha 43 passarinhos, amava passarinho, tinha uns caros. Cinco meses para cá, não tem mais nenhum. Quando ele piorou, foi a primeira coisa que fez: dar os passarinhos. Nem essa distração tem mais.

DISCRIMINAÇÃO SOCIAL

A discriminação conferida à doença mental também prejudica a participação sócio-ocupacional de pessoas em sofrimento psíquico, mesmo quando apresentam habilidades para o desempenho de trabalho ou de lazer em contextos coletivos.

No trabalho, o que prejudica muito é a discriminação dos amigos em relação a essa pessoa, e é difícil lidar com isso. Os colegas, sabendo do problema dela, eu acho que aumenta muito o problema.

AJUDA INSUFICIENTE DO EQUIPAMENTO DE SAÚDE MENTAL

Os dados destacaram as atividades de autocuidado, de lazer e de trabalho dos usuários do HD realizadas precariamente ou não desenvolvidas. Diante do fato de que o familiar sob cuidado consegue realizar atividades no contexto do hospital, mas não em casa ou na comunidade, os depoentes explicitaram necessidade de intervenções específicas por parte do HD para efetivar a ajuda nas atividades cotidianas dos familiares: "Vocês, do HD, precisam nos ensinar a lidar com eles. É difícil. Muito complicado".

GRUPOS ENQUANTO FERRAMENTA DE CUIDADO

Os sujeitos aludiram aos benefícios obtidos da participação nos grupos focais, o que sugere a intervenção grupal como uma estratégia terapêutica, embora neste estudo tivesse sido um instrumento de coleta de dados.

Eu me identifiquei com ela porque parece que olhei e achei a cara dela tensa. E o que eu faço é tenso, sabe? Eu também estou vendo dúvida. Olha isso! Fui ver dúvida na cara dela! É um pouquinho do que estou sentindo.

"Ouvindo ela conversando, é tudo o que eu queria falar. Eu passo pela mesma dificuldade".

"Eu acho que o HD tinha que colocar alguém para continuar com isso, porque incentiva a gente vir".

Nos grupos focais, o compartilhamento das experiências entre os cuidadores oportunizou a percepção destes de que não vivenciam suas dificuldades isoladamente, pois há outros em situação semelhante. A valorização dos encontros grupais, traduzida pelo desejo de sua continuidade, também demonstra seu potencial terapêutico.

Discussão

Os cuidadores de usuários atendidos em HD revelaram dificuldades na realização dos cuidados com o familiar, não sabendo como auxiliá-lo adequadamente, em especial, durante os episódios de crise. O sofrimento dos cuidadores intensificou-se frente à impossibilidade de receberem ajuda de outros familiares, para compartilharem suas tarefas. Constatou-se um paradoxo nas ações dos participantes da pesquisa, pois, ao se debruçarem sobre os cuidados dos familiares, passaram a cuidar precariamente de si mesmos.

Os dados deste estudo ratificaram os resultados de estudos de Barroso, Bandeira e Nascimento (2009)______. Fatores preditores da sobrecarga subjetiva defamiliares de pacientes psiquiátricos atendidos na rede pública de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 25, n. 9, p. 1957-1968, 2009. e de Pegoraro e Caldana (2006)PEGORARO, R. F.; CALDANA, R. H. L. Sobrecarga de familiares de usuários de um centro de atenção psicossocial. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 3, p. 569-577, 2006. sobre fatores preditores da sobrecarga familiar, que aumenta no contato contínuo com os comportamentos problemáticos do paciente: os sintomas, as perdas ocupacionais, financeiras e a perda de suporte social decorrentes da doença. Assim, as dificuldades dos cuidadores de encontrar tempo para o próprio cuidado, devido à dedicação exclusiva ao familiar, os tornam, também, alvos de atenção dos serviços de saúde mental.

Neste estudo, os dados apontam para a sobrecarga objetiva dos cuidadores, proporcionada pelas dificuldades de manejo da crise e dos comportamentos autoagressivos dos familiares acometidos. Os sujeitos também apresentam indícios dessa sobrecarga ao apontarem interferência em sua vida ocupacional, afastando-se do trabalho e do convívio social, sendo a indisponibilidade de tempo um aspecto comprometedor para a realização dessas atividades (SANT'ANA ., 2011SANT'ANA, M. M; et al. O significado de ser familiar cuidador do portador de transtorno mental. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 50-58, 2011.; SANTIN; KLAFKE; 2011SANTIN, G.; KLAFKE, T. E. A família e o cuidado em saúde mental. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 31, 2011. Disponível em: <http://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/viewFile/1643/1567.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2012.
http://online.unisc.br/seer/index.php/ba...
).

Os cuidados aos pacientes, no que concerne à reestruturação de suas atividades laborais, de lazer e à administração de medicamentos, também se configuraram como sobrecarga objetiva, posto que os cuidadores exercem sozinhos essas tarefas. Sant'ana. (2011)SANT'ANA, M. M; et al. O significado de ser familiar cuidador do portador de transtorno mental. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 50-58, 2011. referem que cuidar exige paciência e disponibilidade. Porém, a organização da vida em função da pessoa cuidada resulta em desespero, impotência, adiamento de planos e mudanças pessoais e profissionais (COSTA ., 2011COSTA, C. S. et al.A percepção de pacientes e familiares sobre os resultados do tratamento em serviços de saúde mental., Cadernos de Saúde Pública Rio de Janeiro, v. 27, n. 5, p. 995-1007, 2011.).

Em decorrência disso, os cuidadores estudados experienciam sobrecarga subjetiva ao reportarem cansaço, impaciência, necessidade de ajuda contínua e preocupação com os familiares enfermos, especialmente na eclosão das crises, o que torna o cotidiano do cuidador enfraquecido e incerto (GONÇALVES; LUIS, 2010GONÇALVES, J. R. L; LUIS, M. A. V. Atendimento ao familiar cuidador em convívio com o portador de transtorno mental. Revista de enfermagem UERJ, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 272-277, 2010.).

Para o grupo estudado, dúvidas foram recorrentes no convívio com os parentes em sofrimento mental, no domicílio e na comunidade, especialmente, no oferecimento de cuidado efetivo nesses contextos. Embora o HD intervenha continuamente para o esclarecimento aos cuidadores sobre questões de transtorno mental e de suas possibilidades terapêuticas, foco terapêutico-educativo do trabalho multidisciplinar do serviço, nota-se que, em contexto extra-hospitalar, os cuidadores sentem-se inseguros e despreparados.

Mello e Schneider (2011)MELLO, R. M.; SCHNEIDER, J. F. A família e a internação psiquiátrica em hospital geral. Revista Gaúcha de Enfermagem, Porto Alegre, v. 32, n. 2, p. 226-233, 2011. salientam que muitas famílias buscam no sistema de saúde informações qualificadas e apoio emocional visando ao alívio de problemas, que aumentam quando se desconhece o significado da doença e como ela interfere na vida da pessoa cuidada. O acesso a informações provê mudanças na concepção da doença, ampliando as possibilidades de enfrentamento (SANT'ANA ., 2011SANT'ANA, M. M; et al. O significado de ser familiar cuidador do portador de transtorno mental. Texto & Contexto - Enfermagem, Florianópolis, v. 20, n. 1, p. 50-58, 2011.). Dificuldades do convívio diário com o ente cuidado podem persistir se associadas à percepção do cuidador de que nada pode atenuar seu sofrimento (COSTA ., 2011COSTA, C. S. et al.A percepção de pacientes e familiares sobre os resultados do tratamento em serviços de saúde mental., Cadernos de Saúde Pública Rio de Janeiro, v. 27, n. 5, p. 995-1007, 2011.). Sendo o HD destinado à internação parcial, esse convívio é permanente, e o alcance das ações desse equipamento, nos contextos domiciliar e comunitário, pode ser limitado por não integrar seus objetivos essenciais de intervenção.

Fato que leva à reflexão sobre a atenção oferecida pelo HD ter sido de fato suficiente para dar conta dos usuários e de seus cuidadores fora do ambiente hospitalar ou ter encontrado dificuldades na articulação com outros serviços substitutivos de saúde mental e com as Estratégias de Saúde da Família, que empreendem ações no território e deveriam ser mais resolutivas na promoção da saúde mental de pessoas envolvidas nas tarefas de cuidar. Segundo Estevam . (2011)ESTEVAM, M. C. et al. Living with mental disorders: family members' perspective have on primary care., Revista da Escola de Enfermagem USP Ribeirão Preto, v. 45, n. 3, p. 679-686, 2011., para a pessoa com transtorno mental e seu cuidador, este descompasso se traduz em descrença e sobrecarga, pois as respostas às suas dúvidas e inquietações reverberam sem soluções duradouras, visto que são abordadas exclusivamente dentro dos equipamentos de saúde.

A crise pela qual as práticas de saúde contemporâneas passam é contraditória ao seu expressivo desenvolvimento técnico-científico. Essas práticas encontram sérias limitações para responder, efetivamente, às complexas necessidades de saúde de grupos e indivíduos (AYRES, 2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo,v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004.). Os equipamentos de saúde mental, após a Reforma Psiquiátrica, têm que disponibilizar atenção integral aos usuários e familiares. O que incorre na disponibilização de uma clínica ampliada que abarque a integralidade das necessidades sociais e de saúde dos usuários e familiares desses equipamentos, envolvendo suporte clínico-terapêutico e reabilitação psicossocial (ONOCKO-CAMPOS; FURTADO, 2006ONOCKO-CAMPOS, R.; FURTADO, J. P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde., Cadernos de Saúde Pública Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1053-1062, 2006.).

Entende-se integralidade pela dimensão de um cuidado em saúde que contenha desde uma continuidade da atenção, em todos os níveis necessários a cada caso, como também um cuidado com base na consideração efetiva de todos os aspectos envolvidos no processo saúde-doença (sociais, culturais, morais, políticos, econômicos etc.), propiciando olhar o sujeito para além do referencial morfofisiológico (ACKERMAN, 2006ACKERMAN, M. Estou me formando e quero trabalhar; que oportunidades o sistema de saúde me oferece na saúde coletiva? Onde posso atuar e que competências preciso desenvolver In: CAMPOS, G. W. et al. (Org.). Tratado de saúde coletiva. São Paulo: Hucitec, 2006.).

Tornar a família corresponsável no tratamento do parente com transtorno mental é uma tarefa difícil e merecedora de atenção pelo prejuízo que pode causar ao grupo familiar e ao cuidador referencial, pois nem sempre a família se articula para o cuidado compartilhado, delegando essa tarefa a um de seus membros. Situação que aponta para a necessidade de reflexões no sentido de programar estratégias psicossociais de atenção ao cuidador e ao grupo familiar. Para Santos . (2011)SANTOS, L. S. et al. Intervenções de grupo para sobrecarga de cuidadores de pacientes com demência: uma revisão sistemática. Revista Psiquiatria Clínica, São Paulo, v. 38, n. 4, p. 161-167, 2011., é premente que equipamentos de saúde estimulem o cuidador a mobilizar pessoas da família e que recorram a serviços e recursos comunitários em busca de uma rede de apoio mais sólida, visando à construção de estratégias de enfrentamento. A isso se acrescenta o papel desses equipamentos enquanto articuladores da atenção em saúde mental em diferentes níveis de complexidade, enfatizando a Atenção Básica (nível primário de cuidados), pois é no território que usuários e cuidadores conjugam suas realidades subjetivas, materiais, afetivas e relacionais.

O suporte a cuidadores leigos tem sido objeto de estudo e de pesquisas em países estrangeiros, mas, no Brasil, figura como um novo desafio para o sistema de saúde. Os obstáculos recaem na falta de recursos e de políticas públicas para auxiliar o cuidador; na desvalorização social sobre as funções exercidas por ele; na condução de pesquisas devido à escassez de fomentos; e na dificuldade de se pôr em prática os resultados dos estudos. Os profissionais de saúde direcionam suas ações ao atendimento da pessoa doente, e nem sempre aos seus cuidadores, que necessitam de informações e de suporte para suas dificuldades, as quais interferem em sua própria saúde (SOUZA; WEGNER; GORINI, 2007SOUZA, L. M.; WEGNER, W.; GORINI, M. I. P. C. Educação em saúde: uma estratégia de cuidado ao cuidador leigo. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v.15, n. 2, p. 337-343, 2007.).

Baptista, Baptista e Torres (2006)BAPTISTA, M. N.; BAPTISTA, A. S. D.; TORRES, E. C. R. Associação entre suporte so-cial, depressão e ansiedade em gestantes. Revista de Psicologia da Vetor Editora, São Paulo, v. 7, n. 1, p.39-48, 2006. referem ser o suporte social essencial para a manutenção da saúde mental e para o enfrentamento de situações de estresse, sendo avaliado pela integração social da pessoa em seu meio. O suporte social informal é ofertado por familiares e amigos, baseado em afeto ou em uma obrigação percebida. Envolve cuidados prestados, execução de tarefas domésticas, aconselhamento e manutenção financeira da pessoa cuidada. Suporte formal advém de voluntários ou profissionais remunerados, vinculados ou não a instituições sociais ou de saúde (KAUFFMAN ., 2010KAUFFMAN, A. V. et al. Social support, caregiver burden, and life satisfaction in a sample of rural African-American and white caregivers of older persons with dementia. Journal of Gerontological Social Work, Philadelphia, v. 53, n. 3, 2010, 251-269.).

Para os sujeitos pesquisados, o suporte informal vindo do grupo familiar foi deficitário, mas tem sido ofertado por amigos e vizinhos. Suporte formal foi oferecido pelos profissionais do HD, mas houve mudanças nessa percepção quando os cuidadores depositaram expectativas no serviço acima de suas possibilidades assistenciais.

Reitera-se a necessidade de criação ou de aperfeiçoamento das ações ofertadas pelos equipamentos de saúde mental, incluindo-se o HD (onde se desenvolveu este estudo), para que deem conta das necessidades psicossociais e ocupacionais dos cuidadores e de seus familiares com transtorno mental, pois a ociosidade constante destes compromete a autonomia do cuidador, como apontam Santin e Klafke (2011)SANTIN, G.; KLAFKE, T. E. A família e o cuidado em saúde mental. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n. 31, 2011. Disponível em: <http://online.unisc.br/seer/index.php/barbaroi/article/viewFile/1643/1567.pdf>. Acesso em: 15 ago. 2012.
http://online.unisc.br/seer/index.php/ba...
. Essas ações devem preparar o cuidador para um auxílio eficaz aos parentes, no domicílio e na comunidade onde habitam. Vislumbra-se a possibilidade de se diluir o paradoxo antes assinalado, pois se supõe que, ao apreenderem as estratégias adequadas para o cuidado do ente enfermo, os cuidadores poderão cuidar-se melhor, readequando suas atividades cotidianas e melhorando sua qualidade de vida.

Sugerem-se abordagens terapêuticas mediante a oferta de espaços de escuta e construção dialógica de estratégias, nas quais os profissionais abandonem suas intervenções monológicas e construam com os usuários e familiares estratégias eficientes (AYRES, 2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo,v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004.).

Nos grupos focais, desvelar coletivamente as dificuldades vividas possibilitou aos participantes reavaliarem-se enquanto cuidadores, uma vez que exerceram o papel a eles confiado, mesmo com dificuldades. Esses grupos favoreceram o exercício de uma racionalidade comunicativa e dialógica, impondo-se a uma racionalidade puramente instrumental, na qual a técnica autonomizada encobre o valor da troca intersubjetiva produzida no âmbito da intercomunicabilidade humana (HABERMAS, 1988HABERMAS, J. Teoría de laacción comunicativa. Madrid: Taurus, 1988.).

Para Habermas (2000)______. O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins Fontes, 2000., os serviços de saúde tendem a reproduzir a racionalidade instrumental ditada pela ideologia da técnica e da ciência. Dispondo de informações monoliticamente tecnificadas, como orientações a serem seguidas, assumem-nas como prescrições invariáveis e desconsideram, portanto, a abertura de um campo dialógico de construções coletivas e a formação de consensos fundados, eticamente e não tecnicamente orientados (AYRES, 2004AYRES, J. R. C. M. O cuidado, os modos de ser (do) humano e as práticas de saúde. Saúde e Sociedade, São Paulo,v. 13, n. 3, p. 16-29, 2004.).

Assim, a utilização de grupos focais contribuiu para a reelaboração das percepções dos participantes enquanto cuidadores, auxiliando na desconstrução de crenças e de pensamentos estereotipados (a de serem cuidadores inativos), reelaborando-os construtivamente: passaram a se perceber como cuidadores ativos, assumindo as dificuldades e as sobrecargas advindas de suas funções, o que sugere maior controle da ansiedade nas situações grupais vividas e, também, nos contextos onde exercem os cuidados.

Considerações finais

Considera-se o objetivo deste estudo concretizado, visto ter-se acessado o modo como os familiares estudados estruturaram o cuidado ao ente com transtorno mental em suas atividades cotidianas de autocuidado, de trabalho e de lazer e as percepções sobre o cuidado despendido. A experiência dos cuidadores indicou as sobrecargas subjetiva e objetiva, decorrentes das funções por eles exercidas.

Porém, o fato de somente dois grupos focais terem sido realizados no HD consistiu uma dificuldade para o desenvolvimento pleno da pesquisa, pois esse equipamento de saúde mental apresenta uma rotina com múltiplas atividades e não dispõe de salas e de horários para a oferta de mais grupos focais. Considera-se que a impossibilidade de estruturar mais encontros restringiu o acesso dos pesquisadores a informações que atentassem para outros aspectos associados ao papel dos cuidadores e às tarefas que exercem, para além do que foi exposto neste estudo.

Nos grupos focais, os depoimentos elaborados pelos sujeitos, acerca dos cuidados ofertados ao ente com transtorno mental, possibilitaram-lhes compartilhar experiências, fazendo com que reconhecessem a necessidade de receberem ajuda técnica e especializada do HD. Outros equipamentos de saúde mental, desde que articulados em uma rede funcional de saúde, deveriam colaborar na atenção à saúde dos familiares cuidadores. Acredita-se nessa ajuda como sendo imprescindível aos cuidadores, pois se vislumbra a possibilidade de melhorar a qualidade do cuidado nas atividades sócio-ocupacionais dos entes com transtornos mentais, o que lhes permitirá melhorar a própria qualidade de vida e redimensionar, de forma contínua e positiva, seu próprio papel, enquanto cuidadores.

Realizou-se este estudo em uma abordagem qualitativa com oito participantes, não sendo o objetivo produzir resultados generalizáveis sobre as condições de saúde e da qualidade de vida dos cuidadores de familiares com transtorno mental. É possível que se possam produzir resultados diferentes em outros estudos, ratificando que, neste, o cuidador encontra-se no exercício de seu papel, junto de familiares com transtorno mental em crise reagudizada.

Crê-se que, com pacientes assintomáticos ou atendidos em outros equipamentos de saúde mental, os cuidadores possam desenvolver suas tarefas significando-as de modo diverso. Para novos estudos, sugere-se, também, o emprego de abordagem quantitativa que possibilite mensurar aspectos da qualidade de vida e da sobrecarga dos cuidadores, com o uso de instrumentos próprios. Estudos longitudinais poderão, ainda, contribuir para a avaliação de práticas interventivas estruturadas para a saúde dos cuidadores e dos seus familiares, tais como sugeridas neste estudo.

  • Suporte financeiro: CNPq (Processo 2009.1.1670.17.4).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2014

Histórico

  • Recebido
    Dez 2013
  • Aceito
    Ago 2014
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