Sobre a saúde, os determinantes da saúde e a determinação social da saúde

On health, determinants of health and the social determination of health

Guilherme Souza Cavalcanti de Albuquerque Marcelo José de Souza e Silva Sobre os autores

Resumos

Seres vivos são considerados saudáveis quando em condições de realizar suas possibilidades, e, para os seres humanos, essas possibilidades são produzidas historicamente. O objetivo deste trabalho é superar a lógica dos fatores determinantes, compreendendo a saúde a partir da produção social do humano nas pessoas e das condições de sua máxima realização. Para a humanidade, as possibilidades são produzidas historicamente pela transformação da natureza, de forma social, afastando os limites que esta impõe ao humano. A compreensão da determinação da saúde humana se faz pela análise do modo de produção, do grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações sociais estabelecidas.

Saúde; Fatores epidemiológicos; Determinação


Living beings are considered healthy when able to accomplish their possibilities, and, for human beings, such possibilities are produced historically. This paper aims to overcome the logic of the determining factors, understanding health by the social production of the human on people and the conditions of its full realization. For mankind, the possibilities are historically produced by the transformation of nature, performed socially, pushing the limits it imposes on their existence. The understanding of the determination of human health is reached through the analysis of the mode of production, the degree of development of productive forces and of social relations.

Health; Epidemiologic factors; Determination


Introdução

A reflexão sobre a saúde, seus determinantes e sua determinação, requer, em primeiro lugar, que se esclareça com que concepção de saúde se estará trabalhando. Muitas das reflexões na área da saúde ou não explicitam a concepção de saúde sobre a qual se fundam, ou partem do pressuposto de que tal concepção está dada, fruto de um consenso universal que não deixa qualquer margem de dúvida ou divergência entre os interlocutores (ALMEIDA FILHO, 2011ALMEIDA FILHO, N. O que é saúde? Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.; FLEURY-TEIXEIRA, 2009FLEURY-TEIXEIRA, P. Uma introdução conceitual à determinação social da saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 83, p. 380-387, 2009.). Não é assim. Ao longo da história, a humanidade foi elaborando diversas concepções de saúde (FOLADORI, 2011FOLADORI, G. Limites do desenvolvimento sustentável.Campinas: Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2001.; ALMEIDA FILHO, 2011ALMEIDA FILHO, N. O que é saúde? Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.): por um lado, de acordo com o grau de domínio sobre a natureza, sobre a realidade objetiva, com o modo hegemônico de interpretar a realidade em cada momento histórico; por outro lado, de acordo com as necessidades apresentadas a partir dos interesses dominantes em cada momento, em relação ao funcionamento do corpo para seu uso.

Desde as concepções primitivas, fundadas em uma explicação mágica - passando pelas explicações que correlacionavam o organismo humano com os elementos da natureza, pelas explicações religiosas, entre outras -, até as concepções mais atuais da ausência de doença e estado de completo bem-estar biopsicossocial, a humanidade produziu e acumulou diversas formas de conceituação da saúde. Cada uma delas constitui uma concepção particular, orgânica aos interesses, necessidades e grau de explicação da realidade que alcançou o pensamento hegemônico em cada formação social nos diferentes momentos históricos.

No presente texto, procurou-se expor uma concepção de saúde fundada no materialismo histórico-dialético como condição de realização das conquistas do gênero em cada sujeito, entendendo o ser humano como um ser que se produz em sociedade e que, diferentemente dos outros animais, impõe sua vontade sobre a natureza de forma teleológica, tornando-a seu corpo inorgânico, que se relaciona dialeticamente com seu corpo orgânico. A partir dessa concepção, buscou-se demonstrar sua determinação social e a necessidade da análise do modo de produção para sua correta compreensão.

Sobre a saúde

Em uma primeira análise, podemos considerar que os seres vivos, em geral, estão saudáveis quando em condições de realizar aquilo que a natureza lhes apresenta como potencial de realização. Nessa perspectiva, as plantas estão saudáveis quando em condições de extrair do solo seus nutrientes, desenvolver sua estrutura, produzir carboidrato e oxigênio através da fotossíntese, produzir flores, frutos, sementes, ou quaisquer outras formas de reprodução.

Para os animais em geral, significa estar em condições de obter seu alimento, proteger-se, reproduzir-se e ter como expectativa de vida aquela que caracteriza sua espécie. Para cada espécie em particular, significa poder realizar aquilo que lhes dá especificidade. Para a abelha Apis mellifera, por exemplo, significa, em primeiro lugar, ter uma expectativa de vida em torno de 60 dias (no caso das operárias), poder voar, colher pólen e néctar, produzir o mel, a cera, o própolis, defender a colmeia dos predadores etc. Em síntese, realizar aquilo tudo que está dado geneticamente como possibilidade e que caracteriza a espécie. A realização do potencial, no entanto, depende da disponibilidade dos recursos naturais necessários para a sobrevivência e a reprodução.

Para os seres humanos, a questão é a mesma, mas não é igual. É a mesma no que diz respeito ao fato de estar em condições de realizar aquilo tudo que o gênero humano apresenta como possibilidade de realização. Não é igual porque, para os seres humanos, essa questão não está dada e determinada apenas pelas possibilidades e limites impostos pela natureza.

Os animais não humanos realizam sua existência nos limites impostos pela natureza, obedecendo aos seus instintos. As diversas espécies animais retiram da natureza sua sobrevivência adaptando-se às circunstâncias impostas. Se a natureza não oferece as condições necessárias, os indivíduos fenecem. Se a espécie não se adapta ao meio natural, extingue-se. Ao longo de muitas gerações (em geral, em milênios), as diferentes espécies vão-se adaptando às diversas circunstâncias que a natureza oferece, vivendo dentro de certos limites de temperatura, pressão, luminosidade, entre outros. Porém, é importante destacar que em uma mesma geração não ocorre adaptação evolutiva da vida animal. Embora, por outro lado, os seres vivos em geral apresentem, como mecanismos evolutivos, não somente a transmissão de “melhores genes para um ambiente futuro” (FOLADORI, 2011FOLADORI, G. Limites do desenvolvimento sustentável.Campinas: Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2001., P. 50), mas também a transmissão de um ambiente modificado (pela sua existência e relação com o meio biótico e abiótico) para os genes vindouros.

No caso dos humanos, porém, essa modificação ocorre de modo especial. Estes, para realizar seu potencial, necessitam dispor dos recursos naturais, mas, se todo ser vivo atua modificando o meio, os seres humanos têm por característica particular atuar sobre a natureza de forma teleológica, buscando transformá-la intencionalmente. Através do trabalho, ação previamente pensada, dirigida a um determinado fim (MARX, 1965MARX, K. El proceso de producción del capital. In: ______. El capital: critica de la economía política. La Habana: Ediciones Venceremos, 1965. Tomo I.), os seres humanos afastam aqueles limites que a natureza impõe à plena realização de suas potencialidades, ampliando, permanentemente, essas próprias potencialidades.

A produção social do humano e a determinação da saúde e da doença

Ao atuar sobre a natureza para a produção da sua existência, o gênero humano não só cria novas condições de existência como também novos meios de produzir novas condições de existência. Assim, cria novas necessidades e torna mais complexas essas condições.

Para prover sua sobrevivência, os seres humanos, em conjunto, produzem coisas, como roupas, alimentos, moradias, meios de transporte, meios de comunicação, conhecimentos, ferramentas, máquinas, fábricas, entre outras. A produção disso tudo só é possível pela divisão social do trabalho - alguns produzem alimentos, outros produzem cuidados médicos, automóveis, computadores, máquinas, moradias e assim por diante -, e, com isso, criam-se as condições para que todos tenham à sua disposição tudo o que uma pessoa isoladamente não conseguiria. Cria-se, portanto, com essa divisão, uma relação de interdependência entre os diversos setores da produção, relação na qual é dada a condição humana. Portanto, uma pessoa, isoladamente, não conseguiria viver na condição alcançada pela humanidade, pois não conseguiria produzir tudo o que em sociedade torna-se possível e desenvolver em si todas as potencialidades humanas.

A sobrevivência humana, como dissemos, diferentemente da dos outros animais, não se dá através de uma relação instintiva de subordinação à natureza. É desta, também, que o humano retira sua sobrevivência, mas, através de sua ação intencional modifica a mesma, subordinando-a a seus desígnios e, assim, produzindo seus meios de sobrevivência. Não apenas extraindo diretamente da natureza o que necessita, mas produzindo objetos que nela não existiam através da sua modificação.

Se a humanidade só retirasse o que a natureza oferece, como no caso dos outros animais, em tempos de frio extremo, de seca, de ‘entressafras’, morreríamos de hipotermia, sede ou fome e não conseguiríamos jamais voar, explorar o espaço, ou armazenar informações em um computador. Ao modificar a natureza, a humanidade acaba por controlar seus processos de forma a adequá-la a suas necessidades.

Os demais animais (formigas, abelhas, castor, joão-de-barro, entre outros) também realizam uma atividade que se assemelha ao trabalho humano. Trata-se, porém, de uma ação realizada sempre da mesma forma, ‘obedecendo’ ao instinto da espécie. Subordinados à natureza, os demais animais realizam uma ação que difere radicalmente do trabalho humano. O ser humano, a partir de uma ideia, realiza processos no sentido de torná-la realidade. Idealiza um produto e depois atua sobre a natureza no sentido de produzi-lo. Nas palavras de Marx (1965MARX, K. El proceso de producción del capital. In: ______. El capital: critica de la economía política. La Habana: Ediciones Venceremos, 1965. Tomo I., P. 140, TRADUÇÃO NOSSA),

[…] antes de executar a construção, a projeta em seu cérebro. Ao final do processo de trabalho, brota um resultado que antes de começar o processo já existia na mente do trabalhador; quer dizer, um resultado que já tinha existência ideal.

A humanidade cultiva plantas ou cria animais, modifica-os para sua alimentação (do leite faz a manteiga, iogurte etc.), para vestir-se (do couro, da lã de carneiro, da seda, faz roupas, sapatos, sacolas etc.); utiliza plantas, como o algodão, para produzir suas roupas; utiliza fungos, por exemplo, para a produção de medicamentos; constrói moradias utilizando areia, fazendo tijolos de barro, cimento e cal, queimando as rochas, fundindo ligas metálicas, fazendo vidro a partir da sílica; produz meios de transporte que o levam muito longe e rápido sem exaurir suas energias, que lhe permitem navegar e voar; produz meios de comunicação que lhe permitem ver e conversar, em tempo real, com alguém que esteja do outro lado do globo terrestre; constrói aparelhos que lhe permitem enxergar microscopicamente ou enxergar a distâncias muitíssimo longas; produz um código de comunicação, expressando ideias através de signos (abstrações) orais, as palavras; registra essas ideias através da palavra escrita, estendendo, com isto, infinitamente sua memória.

Com tudo isso, com a utilização dos meios de vida que elabora, a humanidade consegue produzir cada vez mais recursos com menor esforço, garantindo a sobrevivência de mais gente por mais tempo, com maiores possibilidades de realização. Reduz-se a mortalidade precoce, aumenta-se a longevidade, aumentam-se as possibilidades de desenvolvimento, inclusive do saber, uma vez que cada um vive mais tempo.

É fundamental percebermos, no entanto, que cada coisa que existe na natureza, uma vez tomada pela humanidade para um determinado fim, tornada objeto da ação humana, torna-se objeto humano. São novos objetos, mesmo que não tenham sido modificados em sua forma e conteúdo, pois se modificaram em seu significado, ou seja, ganharam um novo significado pela ação humana (LUKÁCS, 1979LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.). Um galho de árvore, com a ação humana, vira alavanca, arco, flecha, bengala, espeto; o movimento das águas, devido à gravidade, ‘torna-se’ energia hidráulica, que será transformada em energia elétrica.

Ou seja, ao produzir objetos e utilizá-los para viver o ser humano produz uma nova realidade e se produz com ela. Isso quer dizer que ele é produto da civilização, é um produto social e não mais somente da natureza. O ser humano, portanto, não nasce pronto, vai adquirindo a condição humana com aquilo que a sociedade produz (MARX, 2004______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2004.). É isso que lhe permite objetivar em si aquilo que caracteriza a condição de humanidade. O gênero humano, na atualidade, tem como possibilidade viver próximo de 100 anos, enxergar o que ocorre no outro lado do mundo, voar, corrigir seu déficit visual com o uso de óculos, entre outras, mas esta condição não está dada pela natureza ao nascer, como está dada aos pássaros a condição de voar.

O humano continua sendo um ser biológico, sobre o qual, porém, depositam-se inúmeras produções sociais que o caracterizam, que o objetivam, diferentemente dos demais animais.

As formas de objetividade do ser social se desenvolvem, à medida que surge e se explicita a práxis social, a partir do ser natural, tornando-se cada vez mais claramente sociais. Esse desenvolvimento, porém, é um processo dialético, que começa com um salto, com o pôr teleológico do trabalho, não podendo ter nenhuma analogia na natureza. (LUKÁCS, 1979LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979., P. 17).

É um ser, agora, que precisa utilizar os objetos humanos produzidos para adquirir o grau de humanidade que a humanidade atingiu. Precisa ser educado, precisa aprender a utilizar o garfo, a faca, a leitura, o computador, os automóveis, os antibióticos, enfim, tudo aquilo que a sociedade produziu e que é necessário para poder viver o quanto tornou possível e realizar aquilo que o gênero humano realiza.

Desde o momento em que nasce, a criança forma o seu comportamento sob a influência das coisas que se formaram na história: senta-se à mesa, come com colher, bebe em xícara e mais tarde corta o pão com a faca. Ele assimila aquelas habilidades que foram criadas pela história social ao longo de milênios. Por meio da fala transmitem-lhe os conhecimentos mais elementares e posteriormente, por meio da linguagem, ele assimila na escola as mais importantes aquisições da humanidade. A grande maioria de conhecimentos, habilidades e procedimentos do comportamento de que dispõe o homem não são o resultado de sua experiência própria mas adquiridos pela assimilação da experiência histórico-social de gerações. (LURIA, 1979, P. 73LURIA, A. R. Introdução evolucionista à psicologia. In: ______. Curso de psicologia geral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. v. 1.).

Assim, a vida humana se produz conforme se organiza, em sociedade, a produção e distribuição dos meios de sobrevivência, dos produtos humanos. Realiza-se, portanto, dentro dos limites e possibilidades que o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção estabelecem (MARX, 1965MARX, K. El proceso de producción del capital. In: ______. El capital: critica de la economía política. La Habana: Ediciones Venceremos, 1965. Tomo I.). A vida humana depende, portanto, do grau de desenvolvimento e da forma como a própria sociedade se organiza.

Saúde e seus determinantes

Tomemos a definição de Juan César García, segundo a qual saúde constitui condição de “máximo desenvolvimento das potencialidades do homem, de acordo com o grau de avanço obtido pela sociedade em um período histórico determinado” (GARCIA, 1989, P. 103GARCIA, J. C. História das idéias em saúde. In: NUNES, E. D. (Org.). Juan César García: pensamento social em saúde na América Latina. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: ABRASCO, 1989.).

Se entendermos, assim, que saúde significa ‘estar vivo e em condição de nos objetivarmos como humanos, de realizarmos em cada um de nós o máximo dentro do que a humanidade já estabeleceu como possibilidade’, torna-se muito claro que essa objetivação depende não somente da regularidade anatomofuncional do corpo, mas também da possibilidade de apropriação daquilo que a humanidade produziu. Os produtos humanos aos quais estamos nos referindo e dos quais necessitamos para nos objetivarmos incluem: alimentos, moradia, educação, meio ambiente, transporte, serviços de saúde, hábitos ou estilos de vida, entre outros, denominados de ‘determinantes sociais de saúde’.

Segundo a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (2008), tais determinantes estariam vinculados aos comportamentos individuais e às condições de vida e trabalho, bem como à macroestrutura econômica, social e cultural. Seriam os “fatores sociais, econômicos, culturais, étnico-raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população” (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007, P. 78BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 77-93, 2007.).

Questões como o grau de autonomia, segurança, reconhecimento, recompensa ou frustração diante do esforço, frequentemente denominadas de determinantes psicossociais da saúde(FLEURY-TEIXEIRA, 2009FLEURY-TEIXEIRA, P. Uma introdução conceitual à determinação social da saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 83, p. 380-387, 2009.), são também produtos das diversas formações sociais e desempenham papel importante como determinantes da saúde.

Apesar do vínculo reconhecido pela Comissão Nacional de Determinantes Sociais, exposto acima, há um forte risco de ‘culpabilização’ dos sujeitos na adoção dos fatores determinantes como categoria explicativa da saúde, diante do que alguns estudos advertem para o fato de que

A determinação social da saúde está muito além de determinantes isolados e fragmentados que, sob uma perspectiva reducionista, são associados com fatores clássicos de riscos e estilos de vida individuais. Não devemos permitir que o conceito de determinantes sociais seja banalizado, ou reduzido, simplificando-o ao tabagismo, ao sedentarismo, ou a uma inadequada alimentação. O que precisamos reconhecer é que por trás dessas práticas, existe uma construção social baseada na lógica de uma cultura hegemônica [...]. (CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE, 2011, P. 1CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. O debate e a ação sobre os determinantes sociais da saúde: posição dos movimentos sociais. 2011. Disponível em: <http://www.cebes.org.br/internaEditoria.asp?idConteudo=1619&idSubCategoria=29>. Acesso em: 30 abr. 2012.
http://www.cebes.org.br/internaEditoria....
).

Alguns estudos buscam solucionar tal questão ressaltando a importância da distinção entre os determinantes de saúde dos indivíduos e os de coletivos de indivíduos, uma vez que fatores que explicariam as diferenças individuais não explicariam as diferenças entre grupos sociais ou entre sociedades (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 77-93, 2007.).

As importantes diferenças de mortalidade constatadas entre classes sociais ou grupos ocupacionais não podem ser explicadas pelos mesmos fatores aos quais se atribuem as diferenças entre indivíduos, pois se controlamos esses fatores (hábito de fumar, dieta, sedentarismo etc.), as diferenças entre estes estratos sociais permanecem quase inalteradas. (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 77-93, 2007., P. 81).

Segundo os autores citados, as diferenças seriam marcadas muito mais pelo grau de ‘equidade’ na distribuição de renda que pelos fatores individuais biológicos ou comportamentais. Sob essa óptica, uma ação consistente de saúde deveria atacar a má distribuição de renda. Os processos sociais que determinam essa má distribuição, no entanto, não são colocados em questão, expondo uma fragilidade fundamental neste tipo de explicação.

Mesmo os modelos como os de Dahlgren e Whitehead e o de Diderichsen, que buscam ampliar o olhar sobre os determinantes, no sentido de superar tal fragilidade explicativa e produzir indicações para a ação política voltada a minimizar os diferenciais dos diversos grupos sociais, indicam que a condição de saúde e doença dos indivíduos é influenciada pelo contexto social, pelas condições de vida e trabalho, ambos relacionados às condições macrodeterminantes (econômicas, culturais e ambientais), mas não demonstram as relações dialéticas existentes entre as diversas instâncias, ocultando seus nexos de determinação (SOUZA; SILVA; SILVA, 2013SOUZA, D. O.; SILVA, S. E. V.; SILVA, N. O. Determinantes sociais da saúde: reflexões a partir das raízes da “questão social”. Saúde Soc, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 44-56, 2013.).

Todas as questões apresentadas como determinantes das condições de saúde e doença dos indivíduos e dos grupos populacionais são analisadas em uma perspectiva positivista, fragmentadas, não conexas, sem uma base unificadora que as organize racionalmente e explique sua ocorrência.

No exemplo citado, a iniquidade na distribuição de renda é tomada como característica inerente às formações sociais estudadas, cuja origem ou determinação não se explica.

As produções mais recentes têm superado a instância de análise singular, demonstrando que os comportamentos (de risco) ocorrem subordinados às condições particulares de existência, nos limites que o modo de vida dos diversos grupos sociais impõe. Em decorrência disso, as propostas de intervenção voltadas à melhoria da saúde incluem: a preocupação com mudanças em normas culturais, ações educativas de massa, melhoria de acesso a alimentos saudáveis, melhor acesso à água limpa, esgoto, habitação adequada, emprego seguro e realizador, ambientes de trabalho saudáveis, serviços de saúde e de educação de qualidade, criação de espaços públicos para a prática de esportes, proibição de propagandas de alimentos e outras substâncias deletérias à saúde, bem como o apelo à coesão social e ao fortalecimento dos laços de solidariedade entre as pessoas e grupos populacionais, buscando que os grupos mais fragilizados se fortaleçam no sentido da participação das decisões da vida social (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 77-93, 2007.).

Tais ideias, se por um lado contemplam questões fundamentais na determinação da saúde, por outro desconsideram que estas próprias questões são sobredeterminadas, desconsideram que no capitalismo as coisas são produzidas pelo seu valor de troca e não pelo seu valor de uso e que, frequentemente, a produção de valores de troca prejudica ou mesmo impede a produção de valores de uso. Dessa forma, deixando intocados os fundamentos do capitalismo, tais assertivas acabam por assumir um aspecto de pregação moralista. Ao se responsabilizar as próprias pessoas e grupos por suas condições de existência, dilaceradas pelas necessidades do capital, dissemina-se a falácia de que a mudança dependeria da boa vontade e do despertar do humanismo que repousa nas boas almas humanas.

Afirmações eivadas de boa intenção, apelando à colaboração dos diversos setores da sociedade, como as que propõem intervenções através de políticas macroeconômicas e de mercado de trabalho, de proteção ambiental e de promoção de uma cultura de paz e solidariedade no sentido de promover um desenvolvimento sustentável, reduzindo as desigualdades sociais e econômicas, a violência, a degradação ambiental, que atuem sobre os mecanismos de estratificação social e sobre os diferenciais de exposição, de vulnerabilidade e de suas consequências (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 77-93, 2007.), desconsideram que, para a sociedade capitalista, é vital promover a exploração de imensas parcelas da população, gerando a desigualdade. Ou seja, o que o capitalismo precisa para sobreviver e progredir é exatamente o oposto do que é preconizado, reduzindo o discurso da saúde a uma pregação de responsabilização das vítimas que deverão encontrar meios de melhor viver, nas condições dadas pela sociedade do capital, com uma (improvável) colaboração das classes sociais a cujos interesses se opõem.

Os limites rigidamente impostos pela preservação do capitalismo ficam evidentes nas pífias pretensões ilustradas pelas proposições de ‘diminuir’ diferenciais de exposição a riscos dos grupos que vivem em condições insalubres ou trabalham em ambientes inseguros. São ações voltadas a ‘mitigar os efeitos’ de um modo de vida patogênico que permanecerá intocado, como evidencia o enunciado abaixo:

Quanto ao enfrentamento dos diferenciais de vulnerabilidade, são mais efetivas as intervenções que buscam fortalecer a resistência a diversas exposições, como por exemplo, a educação das mulheres para diminuir sua própria vulnerabilidade e a de seus filhos. (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 77-93, 2007., P. 87).

Perceber, portanto, que a frustração, a pobreza, a privação e o trabalho desgastante, fazem mal à saúde e que a boa saúde depende de acesso a boas condições de moradia, alimentação, trabalho, renda e saneamento é importante, mas insuficiente. Identificar que tais deficiências são determinantes das condições de saúde é fundamental para buscarmos saná-las com vistas à conquista da saúde, mas insuficiente para compreendermos a determinação da mesma. O desafio a ser enfrentado é compreender porque essas condições se impõem (SANTOS; TEJADA; EWERLING, 2012SANTOS, A.M.A.; TEJADA, C.A.O.; EWERLING, F. Os determinantes socioeconômicos do estado de saúde das crianças do Brasil rural. Rev. Econ. Sociol. Rural, Brasília, v. 50, n. 3, p. 473-492, 2012.). É imperativo entendermos as relações sociais historicamente dadas que estão a determinar as condições de existência, sob determinado modo de produção.

Estabelecer, simplesmente, uma relação de correspondência entre fatores determinantes, tomados como elementos que geram desiguais condições de saúde e doença, pressupõe a possibilidade de intervir sobre eles, desconsiderando os limites e possibilidades impostos pelo modo de produção dominante.

A postura de reunir evidência sobre os fatores sociais que geram desigualdades em saúde reproduz as limitações do paradigma dominante na epidemiologia e na saúde pública […], pois fragmenta a realidade em fatores, supondo que isolados mantêm sua capacidade explicativa e são suscetíveis de serem modificados. (ARELLANO; ESCUDERO; MORENO, 2008ARELLANO, O. L.; ESCUDERO, J. C.; MORENO, L. D. C. Los determinantes sociales de la salud: una perspectiva desde el Taller Latinoamericano de Determinantes Sociales sobre la Salud, ALAMES. Medicina Social, São Paulo, v. 3, n. 3, p. 323-335, 2008., P. 327, TRADUÇÃO NOSSA).

Granda e Breilh (1989GRANDA, E.; BREILH, J. Investigação da saúde na sociedade: guia pedagógico sobre um novo enfoque epidemiológico. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: ABRASCO, 1989., P. 39) nos alertam para o fato de que a colocação científica da análise da determinação da saúde e da doença requer um rigoroso processo de delimitação que não a desarticule, como objeto de estudo, “do processo geral da sociedade e, ao mesmo tempo, permita reconhecer seus aspectos específicos e situar suas expressões individuais”.

Desconsiderar tais relações faz ocultar a determinação social dos processos sobre os quais se produz a vida humana em sociedade, prejudicando a identificação das intervenções necessárias para as mudanças realmente significativas para a construção de uma sociedade mais saudável.

A análise dos ‘fatores determinantes’, sem a compreensão da totalidade que os produz, frequentemente leva a localizar nos indivíduos a origem e a solução das questões da saúde e da doença, dando suporte a proposições vinculadas à esfera da educação, da religião, da cidadania responsável, buscando tornar civilizadas as vítimas dos processos sociais desumanos.

Esse tipo de atitude pode induzir a equívocos, como a afirmação de Villermé de que a origem social da doença e da morte estaria na própria população que, pouco civilizada, constituiria uma raça à parte, que se reproduz em excesso e morre em excesso e que a solução para tal situação seria civilizá-los com a ajuda da religião, por meio do rigor moral e da cidadania responsável.

Determinação social da saúde

Que tipo de vida, o quanto se poderá viver, que tipo e grau de desgaste, de possibilidades de desfrute dos bens produzidos, que bens estarão disponíveis, dependem do grau de desenvolvimento adquirido pelas forças produtivas da sociedade em que se vive. Como demonstramos, tudo na vida em sociedade, tudo na vida humana, é determinado, em última instância, pelo grau de desenvolvimento alcançado pela sociedade, é determinado socialmente.

Mas o fato de ser determinado socialmente não inclui apenas a questão do grau de desenvolvimento das forças produtivas - não há, por exemplo, uma correlação direta entre os indicadores de riqueza de uma sociedade e os indicadores de saúde (BUSS; PELLEGRINI FILHO, 2007BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 77-93, 2007.) -, também depende das relações de produção, ou seja, de como estão organizadas na sociedade não somente as relações das pessoas com a natureza, mas também das pessoas entre si.

Em sociedades de classes, as relações que se estabelecem entre as classes determinam diferentes possibilidades e restrições ao desenvolvimento da vida e, consequentemente, diferentes formas ou possibilidades de viver, adoecer e morrer.

A possibilidade da apropriação de tais produtos (determinantes da saúde) está dada ou sobredeterminada pela formação social que os produz. O acesso aos objetos humanos, produtos do trabalho social, se dá, para cada grupo, de diferentes formas, na dependência de como se organiza a vida em cada sociedade. Ou seja, a forma como se organiza a produção na sociedade determina diferentes limites e possibilidades de realização da vida para os diferentes grupos sociais.

Na sociedade capitalista, uma classe detém a propriedade dos meios de produção e outra classe detém apenas sua força de trabalho. A classe que não possui meios de produção próprios precisa vender sua força de trabalho para sobreviver e, assim, terá maior ou menor desgaste no trabalho e maior ou menor possibilidade de acesso aos produtos da produção social, a depender da forma como se insere na produção e no consumo.

Quando as forças produtivas se desenvolvem, criam-se as condições para que a produção ocorra com menor desgaste de energia por parte do trabalhador e com menor dispêndio de tempo. Melhoram as possibilidades de realização da vida dos indivíduos, de aumentar a expectativa de vida, de alterar as causas de adoecimento e morte.

Se, por exemplo, olharmos para o Brasil colonial e compararmos com a atualidade, veremos que a expectativa de vida aumentou significativamente e que, se naquela época as causas de morte estavam muito ligadas às doenças infecciosas, hoje estão ligadas mais à violência e às doenças crônico-degenerativas.

Nas relações capitalistas de produção, no entanto, o avanço das forças produtivas nem sempre resulta em melhorias para a classe trabalhadora. Muitas vezes o avanço da produção se dá a partir de maior exploração do trabalhador. Marx, ao descrever as condições de trabalho que se instauravam com a maquinaria no século XIX, já nos apontava que

[…] a máquina se converte, nas mãos do capital, em um meio objetivo e sistematicamente aplicado para extrair mais trabalho dentro do mesmo tempo. Isto se consegue de um duplo modo: aumentando a velocidade das máquinas e estendendo o raio de ação da maquinaria que tem que vigiar o mesmo trabalhador, ou seja, o raio de trabalho deste. (MARX, 1965MARX, K. El proceso de producción del capital. In: ______. El capital: critica de la economía política. La Habana: Ediciones Venceremos, 1965. Tomo I., P. 363-364, TRADUÇÃO NOSSA).

Como demonstra Laurell (1983)LAURELL, A. C. A saúde-doença como processo social. In: NUNES, E.D. (Org.). Medicina social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global, 1983. p. 1333-1358., em um mesmo momento histórico, diferentes formas de organizar as sociedades também repercutem de forma diversa sobre a saúde, seja pela diferença no grau de desenvolvimento das forças produtivas, seja pela diferença na forma de se estabelecer as relações sociais.

Os Estados Unidos da América (EUA) possuem melhores condições de saúde do que os países africanos em geral devido, principalmente, ao maior grau de desenvolvimento de suas forças produtivas, que faz com que os estadunidenses tenham menor desgaste na produção e maior acesso ao consumo de produtos necessários para manter a saúde, como alimentos, medicamentos, entre outros. Por outro lado, dados de morbidade e mortalidade, comumente utilizados como indicadores de saúde, como a Mortalidade Infantil (MI), demonstram que nos EUA a MI é superior à de 55 países cujo grau de desenvolvimento das forças produtivas é, no máximo, similar ao seu, entre os quais Japão, Suécia, França, Alemanha, Holanda, Canadá e superior, também, à de países como Cuba, Grécia, Portugal, Sérvia, Croácia, Bósnia Herzegovina (CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY OF THE UNITED STATES OF AMERICA, 2014CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY OF THE UNITED STATES OF AMERICA. Country comparison of infant mortality rate. 2014. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2091rank.html>. Acesso em: 11 abr. 2014.
https://www.cia.gov/library/publications...
) que, evidentemente, possuem um grau de desenvolvimento dos meios de produção extremamente inferior. Em última instância, o que determina tal diferença, nesse caso, são as relações de produção, que nos EUA são marcadas pela extrema exploração do homem pelo homem, pela prioridade absoluta da produção de valores de troca sobre valores de uso e pela desigualdade gerada pelo fundamentalismo liberal; o que no Canadá procura-se atenuar e em Cuba procura-se eliminar.

Finalmente, em uma sociedade de classes, em um mesmo momento histórico, o modo de viver, adoecer e morrer das diferentes classes e estratos de classe é bastante diverso. Em uma sociedade como a brasileira, por exemplo, já se sabe do que mais adoecem e morrem os médicos, os bancários, os banqueiros, os pedreiros, os engenheiros, os estivadores, os trabalhadores de telemarketing, os desempregados, entre outros. Têm uma expectativa de vida bastante diversa e adoecem e morrem por causas bastante distintas devido ao modo como se inserem no mundo da produção e no consumo.

Médicos adoecem e morrem mais por problemas cardiovasculares e suicidam-se mais que a população em geral (MELEIRO, 1998MELEIRO, A. M. A. S. Suicídio entre médicos e estudantes de medicina. Rev. Assoc. Med. Bras, São Paulo, v. 44, n. 2, p. 135-140, 1998.); trabalhadores da construção civil morrem precocemente por queda dos prédios em construção (LUCCA; MENDES, 1993LUCCA, S. R.; MENDES, R. Epidemiologia dos acidentes do trabalho fatais em área metropolitana da região sudeste do Brasil, 1979-1989. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 27, n. 3, 1993, p. 168-176.). Comparando os indicadores de morbidade e mortalidade por tuberculose de São José do Rio Preto, do estado de São Paulo e do Brasil, verifica-se que o risco de adoecer é três vezes maior na área com piores níveis socioeconômicos (VENDRAMINI ., 2005VENDRAMINI, S. H. F. et al. Tuberculose em município de porte médio do sudeste do Brasil: indicadores de morbidade e mortalidade, de 1985 a 2003. J Bras Pneumol, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 237-243, 2005.). Segundo Noronha, Figueiredo e Andrade (2010NORONHA, K.; FIGUEIREDO, L.; ANDRADE, M. V. Health and economic growth among the states of Brazil from 1991 to 2000. R. Bras. Est. Pop.,Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 269-283, 2010.), no Brasil existe uma relação significativa entre indicadores de saúde e maiores níveis de pobreza, com um pior acesso aos cuidados de saúde e também mortes por causas evitáveis. Os autores também verificaram uma relação significativa entre o crescimento econômico e a proporção de mortes por diabetes e câncer.

Indivíduos pertencentes à parcela da população que detém a posse dos meios de produção têm possibilidades imensamente maiores de se colocar em condições de desenvolver ao máximo suas potencialidades, pela maior possibilidade de apropriar-se dos objetos humanos produzidos. Porém, esses mesmos indivíduos, estando, também, submetidos a relações sociais alienadas, como ocorre no capitalismo, encontram-se em condições de subdesenvolvimento das potencialidades obtidas pelo gênero humano (MÉSZÁROS, 2009MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2009.).

Conclusão

A partir de nossas análises, expostas brevemente no presente trabalho, concluímos que a doença ocorre de modo diferente nas diferentes sociedades, nas diferentes classes e estratos de classes sociais, apesar das semelhanças biológicas entre os corpos dos seres humanos que as compõem.

Concluímos, também, que a saúde, entendida como a possibilidade de objetivação em cada indivíduo do grau de humanidade que a humanidade produziu, apresenta-se de modo diferente nas diferentes sociedades, nas diferentes classes e estratos de classes sociais, apesar das semelhanças biológicas entre os corpos dos seres humanos que as compõem.

A vida humana é determinada socialmente em todas as suas dimensões, inclusive a da saúde. Compreender a determinação social da saúde, portanto, não consiste em compreender apenas que a saúde depende do acesso aos objetos humanos, mas que as possibilidades de realização do humano, e o acesso aos produtos necessários para tal, dependem do grau de desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção estabelecidas em cada formação social. A ideia dominante, de identificação dos determinantes, é, portanto, insuficiente para direcionar ações de saúde que contribuam efetivamente para a máxima realização do humano. Para tal, seria necessário alterar o modo de produção.

A possibilidade de criação de um novo modo de produção, voltado prioritária e fundamentalmente para a satisfação das necessidades da vida, da saúde, da máxima realização do humano em cada um, não é uma questão de fé. Trata-se de uma conclusão racional a partir da compreensão da ontologia do ser humano. O que caracteriza o humano é a ação transformadora da realidade, no sentido de satisfazer suas necessidades, ou seja, é produzir o que ainda não existe. A condição de humanidade é produzida permanentemente pelos humanos. Não estamos condenados a viver neste modo de produção, assim como os animais irracionais estão presos aos limites de seus instintos. O que nos difere é a possibilidade de afastar os limites que a natureza nos impõe, ampliando as possibilidades de realização da vida.

A condição de máxima realização de cada indivíduo exige a superação do modo de produção capitalista que aliena dos sujeitos singulares as conquistas do gênero humano. Tal alienação ocorre apesar dos avanços proporcionados pelo capitalismo, pelos limites impostos pela propriedade privada dos meios de produção, que promovem o distanciamento entre as possibilidades de realização do indivíduo diante das possibilidades alcançadas pelo gênero humano. Isso se evidencia, por exemplo, nas recorrentes crises de superprodução ao lado da manutenção de imensos contingentes populacionais em condições de carestia, no desemprego estrutural produzido pela redução da necessidade de trabalho vivo, ao lado do aumento da exploração dos trabalhadores em atividade.

Segundo Mészáros (2006)MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2009., a atualidade é marcada por uma condição inédita de possibilidade de superação do modo de produção capitalista, mesmo diante da capacidade de criação de medidas de sobrevivência e de expansão do capitalismo, com as manobras manipulatórias de muitos de seus problemas. Não há como negar que estamos em meio a uma crise de dimensões globais. Vivemos o agravamento da contradição entre a abundância de condições de produção da base material da vida e a restrição do acesso a parcelas crescentes da população mundial a essa mesma base, acompanhada da rarefação de respostas satisfatórias das forças políticas dominantes. Configura-se, ao mesmo tempo, uma situação de insolvência do modo de produção capitalista, ao lado da possibilidade de sua superação por uma ordem social mais favorável à vida. O excedente socialmente produzido é cada vez maior e não dirigido à satisfação das necessidades da vida, mas às necessidades de expansão do capital.

Parcela cada vez maior da força de trabalho passa a ser desnecessária para a produção do capital, tendo sua sobrevivência ameaçada justamente quando poderia ter sua vida potencializada. A humanidade já tem condições de produzir o necessário para todos viverem uma vida que proporcione o desenvolvimento das potencialidades de todos os humanos, com muito menos trabalho vivo. (POCHMANN, 2013POCHMANN, M. Desafios do desenvolvimento brasileiro. Educ. Soc., Campinas, v. 34, n. 124, p. 705-722, 2013.; MÉSZÁROS, 2006MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2009.). Resta, como tarefa, produzir uma teoria da transição para a nova ordem social.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • ALMEIDA FILHO, N. O que é saúde? Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2011.
  • ARELLANO, O. L.; ESCUDERO, J. C.; MORENO, L. D. C. Los determinantes sociales de la salud: una perspectiva desde el Taller Latinoamericano de Determinantes Sociales sobre la Salud, ALAMES. Medicina Social, São Paulo, v. 3, n. 3, p. 323-335, 2008.
  • BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 77-93, 2007.
  • CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY OF THE UNITED STATES OF AMERICA. Country comparison of infant mortality rate. 2014. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2091rank.html>. Acesso em: 11 abr. 2014.
    » https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2091rank.html
  • CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE. O debate e a ação sobre os determinantes sociais da saúde: posição dos movimentos sociais. 2011. Disponível em: <http://www.cebes.org.br/internaEditoria.asp?idConteudo=1619&idSubCategoria=29>. Acesso em: 30 abr. 2012.
    » http://www.cebes.org.br/internaEditoria.asp?idConteudo=1619&idSubCategoria=29
  • COMISSÃO NACIONAL SOBRE OS DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE. As causas sociais das iniqüidades em saúde no Brasil. 2008. Disponível em: <www.determinantes.fiocruz.br>. Acesso em: 29 ago. 2013.
    » www.determinantes.fiocruz.br
  • FLEURY-TEIXEIRA, P. Uma introdução conceitual à determinação social da saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 33, n. 83, p. 380-387, 2009.
  • FOLADORI, G. Limites do desenvolvimento sustentável.Campinas: Unicamp; São Paulo: Imprensa Oficial, 2001.
  • GARCIA, J. C. História das idéias em saúde. In: NUNES, E. D. (Org.). Juan César García: pensamento social em saúde na América Latina. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: ABRASCO, 1989.
  • GRANDA, E.; BREILH, J. Investigação da saúde na sociedade: guia pedagógico sobre um novo enfoque epidemiológico. São Paulo: Cortez; Rio de Janeiro: ABRASCO, 1989.
  • LAURELL, A. C. A saúde-doença como processo social. In: NUNES, E.D. (Org.). Medicina social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global, 1983. p. 1333-1358.
  • LUCCA, S. R.; MENDES, R. Epidemiologia dos acidentes do trabalho fatais em área metropolitana da região sudeste do Brasil, 1979-1989. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 27, n. 3, 1993, p. 168-176.
  • LUKÁCS, G. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.
  • LURIA, A. R. Introdução evolucionista à psicologia. In: ______. Curso de psicologia geral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. v. 1.
  • MARX, K. El proceso de producción del capital. In: ______. El capital: critica de la economía política. La Habana: Ediciones Venceremos, 1965. Tomo I.
  • ______. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2004.
  • MELEIRO, A. M. A. S. Suicídio entre médicos e estudantes de medicina. Rev. Assoc. Med. Bras, São Paulo, v. 44, n. 2, p. 135-140, 1998.
  • MÉSZÁROS, I. A teoria da alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2009.
  • ______. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2006.
  • NORONHA, K.; FIGUEIREDO, L.; ANDRADE, M. V. Health and economic growth among the states of Brazil from 1991 to 2000. R. Bras. Est. Pop.,Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 269-283, 2010.
  • POCHMANN, M. Desafios do desenvolvimento brasileiro. Educ. Soc., Campinas, v. 34, n. 124, p. 705-722, 2013.
  • SANTOS, A.M.A.; TEJADA, C.A.O.; EWERLING, F. Os determinantes socioeconômicos do estado de saúde das crianças do Brasil rural. Rev. Econ. Sociol. Rural, Brasília, v. 50, n. 3, p. 473-492, 2012.
  • SOUZA, D. O.; SILVA, S. E. V.; SILVA, N. O. Determinantes sociais da saúde: reflexões a partir das raízes da “questão social”. Saúde Soc, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 44-56, 2013.
  • VENDRAMINI, S. H. F. et al. Tuberculose em município de porte médio do sudeste do Brasil: indicadores de morbidade e mortalidade, de 1985 a 2003. J Bras Pneumol, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 237-243, 2005.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    Maio 2014
  • Aceito
    Out 2014
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br