Resumos
O estudo analisa a opinião de juízes, médicos, psicólogos, membros de Comitê de Ética em Pesquisa, familiares de deficientes intelectuais e público em geral, sobre a esterilização de deficientes intelectuais, que consta na Lei n° 9.263, de 23 de janeiro de 1996. Os dados foram analisados sob a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, da Unesco, considerando o princípio da autonomia e seus artigos 7 e 8. Conclui-se, com este estudo, que a lei requer ajustes e deve considerar princípios da bioética relacionados com os direitos humanos e a deficiência intelectual, que fundamentam a normativa desde esta perspectiva, constituindo fonte valiosa e mais segura para futuras tomadas de decisões.
Bioética; Direitos humanos; Deficiência intelectual; Planejamento familiar; Saúde pública
The study analyzes the opinion of judges, doctors, psychologists, members of Research Ethics Committee, relatives of people with intellectual disabilities and public in general, on the sterilization for people with intellectual disabilities that set out in the Brazilian Law 9.263, of January 23th, 1996. The data were analyzed from the Unesco's Universal Declaration on Bioethics and Human Rights, considering the principle of autonomy and its articles 7 and 8. It is concluded, with this study, that the law requires adjustments and must consider bioethics principles related to human rights and mental disabilities, that underlies the regulatory from this perspective, constituting valuable and safer source for future decision making.
BIOETHICS; Human rights; Intellectual disability; Family planning; Public health
Introdução
O conceito de deficiência assumido pelo Estado tem impacto direto na construção de políticas públicas de saúde no Brasil (BERNARDES et al., 2009______. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Regulamenta a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm>. Acesso em: 28 jul. 2013.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/dec... ). Um exemplo dessa afirmação é a da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, sobre planejamento familiar (BRASIL, 1996BRASIL. Presidência da República. Subchefia de Assuntos Jurídicos. Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Regula o § 7º do art. 226 da Constituição Federal, que trata do planejamento familiar, estabelece penalidades e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9263.htm>. Acesso em: 2 jul. 2013.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei... ), que trata, entre outros assuntos, da esterilização de pessoas com deficiência intelectual. Este tema levanta discussões desde o século XIX e tem relação direta com a bioética por incorporar interesses relacionados aos direitos humanos e às liberdades fundamentais. Documentos internacionais de proteção aos direitos humanos, como a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (DUBDH), homologada pela Unesco em 2005 (UNESCO, 2005), e a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência adotada pela Organização das Nações Unidas em 2007 (WHO, 2007), respaldam internacionalmente esses direitos e liberdades.
Em muitos países, a prática de esterilização de seres humanos continua sendo debatida e justificada por governos, profissionais de saúde, familiares e pela própria bioética, no sentido de melhor atender aos interesses dos portadores de deficiência. Porém, os argumentos em defesa desses interesses estão pouco relacionados ao conceito atualmente consagrado de autonomia, ao consentimento das pessoas envolvidas e ao próprio respeito à dignidade das mesmas. Ao invés de as preocupações públicas centrarem preferencialmente nas pessoas diretamente afetadas, os argumentos são mormente direcionados à minimização de problemas sociais, tais como: a evitação de transtornos para o cuidador; a criação de medidas de proteção contra estupro e exploração sexual de pessoas nesta situação de vulnerabilidade; ou mesmo a sanação de carências nos serviços de saúde que apoiam a pessoa com deficiência em sua decisão de paternidade ou maternidade (SERVAIS, 2006SERVAIS, L. Sexual health care in persons with intellectual disabilities. Mental Retardation and Developmental Disabilities Research Reviews, Bruxelas, v. 12, n. 1, p. 48-56, 2006.).
No Brasil, a esterilização cirúrgica em pessoas tipificadas pela legislação como 'absolutamente incapazes' somente pode ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma de lei. No entanto, esta prática tem gerado fortes discussões sobre sua aplicabilidade indiscriminada, que, em muitas ocasiões, acaba violando direitos humanos e estigmatizando a pessoa deficiente sem respeitar sua vulnerabilidade e autonomia. Estudo recente de Albuquerque (2013)ALBUQUERQUE, A.A. Esterilização compulsória de pessoa com deficiência intelectual: análise sob a ótica do princípio da dignidade da pessoa humana e do respeito à autonomia do paciente. Bioethikos, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 18-26, 2013. sobre um caso específico com deficiência intelectual moderada denunciou que o princípio da dignidade humana foi violado com base em uma decisão judicial arbitrária.
Neste sentido, o presente estudo tem o propósito de discutir, com base na bioética, a tomada de decisão com relação à esterilização de pessoas com deficiência intelectual, de acordo com o disposto na legislação brasileira, levando em consideração os princípios da autonomia e do consentimento, bem como outros artigos correlatos à DUBDH, relacionados aos indivíduos sem capacidade de consentir e ao respeito à vulnerabilidade dos mesmos.
Objetivos
Geral: Identificar a opinião de pessoas componentes de seis diferentes segmentos sociais do Distrito Federal (DF), Brasil - juízes, psicólogos, médicos psiquiatras, familiares de pessoas com deficiência intelectual, membros de Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) e público em geral - sobre aspectos da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que versa sobre planejamento familiar e esterilização voluntária e involuntária.
Específicos: (1) Analisar e comparar as opiniões de diferentes segmentos sociais sobre a esterilização de deficientes intelectuais; (2) Estudar as respostas à luz dos princípios da autonomia e do consentimento, além de sob os seguintes artigos da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos: Art. 7º - Indivíduos sem capacidade de consentir; e Art. 8º - Respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual; (3) Analisar a necessidade de ajuste na Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, com relação à sua utilização nos casos de deficiência intelectual leve e/ou moderada.
Método
A pesquisa foi desenvolvida no período de julho a dezembro de 2013, sendo que a coleta de dados deu-se em outubro de 2013. Foram identificadas as opiniões de seis segmentos sociais, sobre aspectos da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que versa sobre planejamento familiar e outras questões relacionadas à esterilização de pessoas com deficiência intelectual.
Os seis grupos entrevistados foram, respectivamente: psicólogos, juízes, médicos, familiares de pessoas com deficiência intelectual, membros de CEP e população em geral. Dentro do universo do estudo foi prevista uma amostra de 60 pessoas selecionadas por conveniência, uma vez que, em alguns grupos selecionados - como juízes e familiares de pessoas com um problema tão específico -, foi difícil conseguir uma amostra aleatória adequada aos propósitos do estudo. O recrutamento dos participantes deu-se por meio de convite face a face e pessoal. Após a concordância dos entrevistados, lhes foi apresentado para leitura, aceite e assinatura, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Como critério de definição dos grupos foi prevista uma distribuição das entrevistas que proporcionasse equilíbrio entre o número de pessoas mais distanciadas dos sujeitos precípuos da pesquisa (pessoas com deficiência) e de pessoas mais próximas aos mesmos. Neste sentido, utilizou-se um grupo relacionado ao sistema judiciário (juízes), um grupo diretamente isento em relação à questão da esterilização de pessoas com deficiência intelectual (população em geral), um grupo indiretamente relacionado a pessoas com deficiência (membros de diversos comitês de ética em pesquisa) e três grupos relacionados diretamente a pessoas com deficiência intelectual (familiares, médicos e psicólogos desses pacientes). Como critério de inclusão dos grupos, foi definido que seriam os compostos de pessoas adultas maiores de 18 anos, de ambos os sexos. Como critério de exclusão, pessoas com deficiência intelectual e outras deficiências.
Para a coleta de dados, utilizou-se um instrumento na forma de questionário com quatro perguntas, aplicado pelos pesquisadores junto aos entrevistados imediatamente após o convite e a assinatura do TCLE. As perguntas foram direcionadas ao objetivo do estudo, incluindo os dados de identificação, conhecimentos sobre a Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, e conhecimentos sobre questões relacionadas a pessoas com deficiência intelectual.
O estudo teve uma abordagem quantitativa e qualitativa, com a aplicação da estatística descritiva e obtenção de valores percentuais para os dados obtidos. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências da Saúde, da Universidade de Brasília, sob o parecer de número 421.075.
Resultados
Foram analisadas e comparadas as opiniões de seis diferentes segmentos sociais sobre a esterilização de pessoas com deficiência intelectual. A pesquisa girou em torno da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que trata de planejamento familiar. Foi utilizado, como instrumento de coleta de dados, um questionário com quatro perguntas. Foram entrevistadas 54 pessoas: 10 psicólogos, 7 juízes, 9 médicos, 10 familiares de pessoas com deficiência intelectual, 8 membros de CEP e 10 participantes do público em geral. Fizeram parte da amostra entrevistada 20 pessoas do sexo masculino (37%), 33 do sexo feminino (61%) e 1 pessoa que não declarou o sexo (2%). Em relação à faixa etária dos entrevistados: 5 estavam entre 18 e 30 anos; 24 tinham entre 31 e 40 anos; 13 achavam-se entre 41 e 50 anos; 10 encontravam-se acima de 50 anos; e 2 não declararam a idade.
Questão 1
A Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que trata de planejamento familiar, no seu Art. 10, Parágrafo 6º, diz que: "A esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes somente poderá ocorrer mediante autorização judicial, regulamentada na forma da Lei". Você está de acordo? Por quê?
Os entrevistados geraram respostas diferenciadas conforme o grupo, porém todos os 54 responderam à questão (gráfico 1). De maneira geral, juízes, médicos, psicólogos e familiares de deficientes intelectuais seguiram uma mesma tendência no padrão das respostas positivas ('sim'); tendência contrária ('não') ocorreu nas respostas dos membros de CEP e do público em geral. Respostas afirmativas por parte de juízes e médicos ficaram em número acima da média, dentre os que responderam afirmativamente. Por outro lado, as respostas negativas do público em geral e dos membros de CEP superaram a média percentual das respostas dos grupos de juízes e médicos.
Os juízes que responderam 'sim' a esta questão argumentaram o seguinte: pessoas incapazes não se manifestam ou têm dificuldades de exercer plenamente os atos da vida; quando a família solicita ao juiz a esterilização, age com a emoção e não com a razão.
Sobre a esterilização cirúrgica em pessoas absolutamente incapazes, mediante autorização judicial
De maneira geral, os médicos concordaram que a decisão deve ficar a cargo da justiça. Os argumentos são que, do ponto de vista clínico, é pertinente e necessário que a pessoa incapaz seja submetida a uma avaliação médico-psiquiátrica e psicológica, visto que não é capaz de discernir entre o certo e o errado, ou sobre a responsabilidade de constituir uma prole, além de não ter condições de assumir as responsabilidades frente a uma gestação indesejada. Para a maioria dos médicos (2 entre os 9 da amostra - 77%), do ponto de vista jurídico, não caberia ao indivíduo absolutamente incapaz tomar decisões, sendo importante a lei para evitar abusos, uma vez que o juiz é a melhor pessoa para julgar as situações, caso a caso.
Quanto aos psicólogos, a resposta dominante (60%) também foi 'sim', visto que a família (pais) é quem ficará com a responsabilidade de cuidar dos filhos da pessoa com deficiência. Além disso, muitas meninas/mulheres com deficiência não têm condições de administrar métodos contraceptivos. Elas querem se relacionar sexualmente, mas não necessariamente ter filhos. Para a maioria deste grupo de entrevistados, a decisão judicial é importante no sentido de evitar que a esterilização cirúrgica ocorra indiscriminadamente, pois absolutamente incapazes não respondem por seus atos.
Os familiares de deficientes intelectuais, por sua vez, mostraram-se majoritariamente (60%) a favor de que a esterilização cirúrgica de pessoas absolutamente incapazes seja realizada mediante autorização judicial, visto que se trata de uma decisão importante, que deve ser tomada com a participação de um conjunto de autoridades com maiores conhecimentos em legislação e também em assuntos médicos e familiares.
Contrariamente às respostas afirmativas acima colhidas, a maioria dos membros de CEP e o público em geral (60% e 70%, respectivamente) discordaram que a decisão sobre a esterilização de pessoas absolutamente incapazes parta da justiça. Consideraram que, por ser um tema muito complexo, um juiz não seria a figura a ter todo esse poder de decisão sobre a esterilização dessas pessoas. Houve alegação de que a família gasta tempo em processos judiciais, além de haver um constrangimento para o portador de deficiência intelectual, que, neste caso, não pode ter sua autonomia ignorada. Além disso, manifestaram que a família é importante na decisão, pois nem sempre as pessoas que decidem com base nas leis estão devidamente informadas dos problemas familiares, e ações judiciais tornam o processo burocrático e levam a equívocos.
Questão 2
Você considera que o deficiente intelectual, em seus diversos níveis, deve ser envolvido, na medida do possível, na tomada de decisão sobre sua esterilização? Por quê?
O gráfico 2 mostra que a maioria dos entrevistados respondeu 'sim' a esta questão, com exceção dos familiares entrevistados (70% das respostas), que acham que os deficientes intelectuais 'não' devem ser envolvidos na decisão.
A maioria dos juízes (quatro de uma amostra de sete) respondeu que há diversos níveis de deficiência e, quando o deficiente pode manifestar-se, deve ser ouvido, uma vez que ele tem o direito de se expressar.
Para justificar a resposta afirmativa, oito dos nove médicos entrevistados informaram que, com exceção de algumas situações - como no caso da esquizofrenia de grau máximo -, o deficiente deve ser envolvido na decisão da esterilização, posto que ele tem preservada alguma parte de sua capacidade de entendimento. Deve-se respeitá-lo como ser humano e seus direitos fundamentais devem ser preservados. Portanto, sempre respeitando os limites da deficiência do paciente, os médicos consideram importante o envolvimento do mesmo, ainda que o ponto de vista deste não seja decisivo na conduta. Na mesma linha de argumentação dos médicos, nove dos dez psicólogos da amostra pensam que, independentemente do grau de comprometimento, o deficiente intelectual é um ser humano, e o nível de consciência, por menor que seja, deverá ser considerado e respeitado, assim como sua capacidade de autocrítica e de se autogerir, opinar e participar das decisões que dizem respeito à sua vida. Este indivíduo é sujeito e o fato de ser totalmente incapaz não significa que ele seja 'alienado'. Assim, desde que tenha autonomia, ele deve participar da decisão.
Majoritariamente (88%), membros de CEP consideram, com relação ao envolvimento do deficiente intelectual no processo de esterilização, que alguns deles terão condições de dar opinião e manifestar sua vontade sem se privar da sua dignidade e de outros desejos e emoções. O deficiente intelectual tem direitos sobre seu corpo, e é importante conhecer seu ponto de vista, independentemente da decisão a ser tomada, fazendo valer sua autonomia e seu poder decisório.
Contrariamente àqueles entrevistados que concordam que o deficiente deve ser envolvido, na medida do possível, na tomada de decisão sobre sua própria esterilização, uma elevada percentagem (70%) dos membros de famílias de deficientes enfatizou que participar de tal decisão não contribuirá em nada para a melhoria intelectual dessas pessoas. Para a maioria dos familiares entrevistados, " o deficientenão tem a menor noção do que seja criar um filho, não tem capacidade de tomar decisão e não tem conhecimento suficiente para debater o assunto.e
Questão 3
Cabe, única e exclusivamente, ao juiz a responsabilidade de julgar sobre a esterilização em pessoas deficientes intelectuais, independentemente do grau de severidade das deficiências? Por quê?
O gráfico 3 mostra que a grande maioria dos membros dos grupos entrevistados respondeu 'não' a esta questão, sendo esta opção uma unanimidade entre os psicólogos e membros de CEP. Em conformidade com a maioria dos juízes incluídos na pesquisa, a decisão primeira estaria a cargo de familiares e curadores, seguida da igreja e do próprio deficiente intelectual, pois, uma vez julgada, a decisão judicial estaria sujeita a recursos. Na hipótese de problemas médicos decorrentes de patologias que exijam a esterilização - por exemplo, tumores nos órgãos reprodutivos -, a decisão não cabe somente ao juiz.
Sobre a responsabilidade exclusiva do juiz sobre a esterilização de deficientes intelectuais
Nada menos que oito entre os nove médicos entrevistados admitiram que a responsabilidade deva ser compartilhada entre médicos peritos, familiares do 'doente', Ministério Público e amigos próximos, entre outros. Além disso, deve ser promovida uma consultoria médica e psicológica da pessoa, pois a competência técnica para avaliar o grau de incapacidade cabe aos profissionais da psiquiatria e da psicologia. Para eles, no entanto, o profissional mais adequado para esta avaliação é um psiquiatra, com base em pesquisas, nos laudos e medicamentos dos quais esse indivíduo faça uso. Com base nisto, aí sim, o juiz poderia julgar.
Os psicólogos que foram entrevistados complementam que a família é muito importante no processo decisório, amparada pela avaliação de profissionais especializados, além da opinião do próprio sujeito: " Juízes não têm conhecimento da realidade que a família vivencia, faltando a eles conhecimento específico para decidir e avaliar aspectos biopsicossociaiss.
A totalidade dos membros de CEP manifestou que, dependendo do nível cognitivo, a família deve responsabilizar-se por essa decisão juntamente com a equipe multiprofissional, que dispõe de condições técnicas. A sociedade médica também deve sensibilizar-se. Desta forma, a lei não necessitaria ser interpretada pelo poder judiciário. Sociedades defensoras de direitos humanos e conselhos de ética médica também poderiam participar desse processo: "O juiz não conhece inteiramente o caso e apenas analisa papéis".
A maior parte dos familiares de deficientes intelectuais (nove entre dez entrevistados) argumentou que esta questão deveria sempre ter o envolvimento e a opinião única e exclusiva dos pais, e que a família deveria decidir, independentemente da decisão do juiz. Consideram que o juiz não tem conhecimento de cada caso e as leis nem sempre estão certas.
Dentre o público em geral, 80% opinaram que a decisão do juiz também tem que ser levada em consideração, mas deveria ser conjunta, levando-se em consideração a capacidade intelectual do deficiente e as opiniões do médico e da família, a fim de que seja tomada a melhor decisão.
Questão 4
Os familiares, como responsáveis legais, devem decidir sobre a esterilização de um membro da família com deficiência intelectual, independentemente do grau de severidade da deficiência? Por quê?
Nesta questão, 25 entrevistados (47,2%) responderam 'sim', 24 (43,4%) responderam 'não' e 5 (9,4%) não manifestaram opinião. Todos os familiares de deficientes intelectuais se posicionaram favoravelmente em relação à questão e 60% dos representantes do público em geral responderam 'sim'. Entre os juízes que responderam, houve o mesmo percentual de respostas afirmativas e negativas (um dos sete juízes entrevistados não respondeu à questão) e, para os grupos de médicos, psicólogos e membros de CEP, foi predominante a alternativa 'não' (gráfico 4).
Sobre os familiares decidirem com relação à esterilização de deficientes intelectuais, independentemente do grau de severidade da deficiência
Os juízes que se manifestaram favoravelmente argumentaram que os familiares são responsáveis pelo deficiente e sabem dos problemas com relação à gravidez indesejada, a dificuldades financeiras e de educação. Por outro lado, aqueles que se posicionaram contra consideraram que deve ser levado em consideração o grau de severidade da deficiência: " Há juiz que pensa que a decisão não deve ficar sob a responsabilidade da família, pois a mesma agirá com sentimentos em detrimento da razãor.
A maioria dos médicos (55%) afirmou que a família tem sua parcela de participação no processo decisório, mas os profissionais de saúde, uma junta médica, o Ministério Público e o próprio deficiente exercem papel importante. Para os médicos, o peso da decisão dos familiares fica reduzido na medida em que diminui também o grau de deficiência do indivíduo. Concordaram, porém, com relação ao fato de que os responsáveis legais devem decidir com base em laudos psiquiátricos e em posicionamento multiprofissional. Segundo eles, a lei atribui aos familiares o dever de defender os direitos da pessoa incapaz.
A maioria dos psicólogos (60%) considera que a decisão do juiz é majoritária, mas ela deve ser fruto de uma composição entre as informações familiares e a avaliação mental levantada pelo psicólogo e uma equipe especializada. Há que se respeitar o indivíduo deficiente e sua vontade, por este se tratar de um ser humano.
Mais de 70% dos membros de CEP reforçam que os familiares não devem ser os únicos a decidir, não devem fazê-lo sem o amparo de entidades competentes, dependendo também do grau de severidade da deficiência ou ainda do grau de envolvimento e compreensão da família.
Ao responderem a essa questão, os familiares de deficientes foram unânimes em declarar que a decisão deve ser sempre coletiva, tratada com amor; que o deficiente deve ser aceito com suas limitações, e não visto como um peso a mais; que a família deve ter respeitada sua autonomia para decidir, visto que o deficiente não tem esse poder.
Dentre os representantes do público em geral, 60% declararam que a família e os responsáveis legais conhecem a realidade do deficiente - ela norteia sua decisão em vários aspectos, como o religioso, o moral e o afetivo. Para eles, os familiares devem ser os únicos a decidir sobre a esterilização, tendo o direito e o dever legal de definir a questão, como representantes daquela pessoa.
Discussão
A discussão será realizada em duas partes: primeiro, levando em conta a ordem das perguntas do questionário e seus desdobramentos; posteriormente, a partir de uma análise bioética dos resultados, tendo como referenciais os princípios da autonomia e do consentimento, além dos artigos 7 e 8 da DUBDH.
Sobre os resultados da pesquisa
CONCORDÂNCIA COM A LEI DE PLANEJAMENTO FAMILIAR
A maior parte dos grupos (quatro em um total de seis) concordou com o Parágrafo 6º contido no Art. 10 da Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que versa sobre a autorização judicial para permitir a esterilização cirúrgica de pessoas absolutamente incapazes. Destaca-se que as respostas minoritárias contra este parágrafo da Lei de Planejamento Familiar argumentaram razões relacionadas ao desrespeito à autonomia da pessoa com deficiência e à de sua família, e a origem disso viria de interpretações equivocadas desta lei por parte dos juízes.
É importante refletir que essas interpretações normativas podem ter diversas origens. Particularmente, neste parágrafo da lei mencionada, não existem esclarecimentos sobre os limites de idade previstos para a prática de esterilização em pessoas com deficiência intelectual. Igualmente, não é considerado se a pessoa tem ou não tem filhos, além de haver omissão em relação à necessidade de aconselhamento por equipe multidisciplinar, em contraponto com o estabelecido na mesma lei, para esterilização voluntária das pessoas com capacidades plenas. Deste modo, a análise hipotética desses aspectos, durante o estudo de cada caso específico, deveria ficar sob a responsabilidade do juiz, que é o representante do Estado apto a garantir o respeito à equidade, à autonomia e à vulnerabilidade da pessoa com deficiência.
Por outro lado, a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência definiu Pa promoção de ações preventivas, como as referentes ao planejamento familiar, ao aconselhamento genético, ao acompanhamento da gravidez, do parto e do puerpério [...]a (BRASIL, 1999). Esta definição, portanto, é contrária ao que é considerado na Lei de Planejamento Familiar.
Percebe-se, assim, contradição entre a legislação referente ao planejamento familiar e as políticas dirigidas às pessoas portadoras de deficiência, fato que pode gerar múltiplas interpretações dos casos, com possíveis tomadas de decisão baseadas em meros pressupostos, que, como consequência, poderão ocasionar violações aos direitos humanos. Este raciocínio está de acordo com o colocado por Guedes, Moura e Almeida (2009)GUEDES, T. G.; MOURA, E. R. F.; ALMEIDA, P.C. Particularidades do Planejamento Familiar de mulheres portadoras de transtorno mental. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 17, n. 5, p. 639-644, 2009., sobre a necessidade de uma interação entre diferentes políticas públicas nesse campo, com o objetivo de garantir os direitos reprodutivos.
PERTINÊNCIA DO TERMO 'ABSOLUTAMENTE INCAPAZ' NA LEI DE PLANEJAMENTO FAMILIAR
A maioria dos juízes (71%) concordou que essa expressão abrange diferentes níveis de severidade da deficiência intelectual. Isso parece justificar a necessidade de consultoria médica e psiquiátrica sobre esses casos, antes da tomada de decisão judicial. O termo 'absolutamente incapaz' significa uma impossibilidade total de entendimento da pessoa em relação aos atos próprios de sua vida. Na situação específica abordada no presente estudo, significaria a compreensão do procedimento de esterilização cirúrgica e suas consequências, administração do método contraceptivo e habilidades para criar um filho. Assim, a utilização errônea de um termo contido em uma lei, pode atentar contra a autonomia e a dignidade da pessoa com deficiência, que, por sua condição, já vivencia uma situação de vulnerabilidade.
ENVOLVIMENTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL NA TOMADA DE DECISÃO
Neste ponto, cabe refletir sobre a opinião dos familiares dos pacientes, que não concordaram que o deficiente intelectual deva participar da decisão sobre sua própria esterilização. De forma geral, é reconhecido pela sociedade que, em situações de comprometimento absoluto da autonomia do paciente, a família é quem delibera por ele (ALBUQUERQUE, 2013). Nestes casos, são os familiares que solicitam e manifestam o consentimento sobre a realização dos procedimentos de esterilização. Devem-se levar em consideração, contudo, os graus de severidade da deficiência, aspecto colocado anteriormente. A imperiosidade de proteção de um familiar poderia violar a autonomia e a dignidade do deficiente, sempre que não fossem avaliadas as habilidades de compreensão deste sobre sua situação particular.
RESPONSABILIDADE DO JUIZ NA TOMADA DE DECISÃO
Os membros de CEP, psicólogos e médicos, na sua grande maioria, defenderam que a decisão judicial deveria ser baseada em laudos de psiquiatras ou psicólogos que ofereçam clareza sobre o nível de severidade da deficiência e, portanto, sobre o grau de autonomia e responsabilidade da própria pessoa para fazer escolhas. Neste sentido, a autorização judicial deve ser produto de interações inter e transdisciplinares, método bastante utilizado pela bioética para orientar a tomada de decisões diante de conflitos morais. Justifica-se, deste modo, a importância desta disciplina como ferramenta norteadora nas análises de casos.
RESPONSABILIDADE DA FAMÍLIA NA TOMADA DE DECISÃO
Registre-se que os próprios familiares concordaram com o fato de que deveria caber a eles a tomada de decisão sobre a sexualidade de seu parente, mesmo sem levar em consideração o grau de severidade da deficiência. Este dado reforça a possibilidade de que motivações de familiares que divergem dos interesses da pessoa com deficiência poderiam levar a violações de sua dignidade humana e de seus direitos reprodutivos. Outros grupos entrevistados neste trabalho argumentaram que o peso atribuído à decisão dos familiares deve ser proporcional ao grau de severidade da deficiência intelectual.
A pesquisa à luz dos referenciais teóricos definidos para o estudo
OS PRINCÍPIOS DA AUTONOMIA E DO CONSENTIMENTO
Segundo Beauchamp e Childress (2013)BEAUCHAMP, T. L.; CHILDRESS, J.F. Respect for autonomy. In: BEAUCHAMP, T. L., CHILDRESS, J.F. Principles of biomedical ethics. 7. ed. New York: Oxford University Press, 2013., um ato autônomo exige as premissas de intencionalidade, entendimento e ausência de coerção. No caso das pessoas com deficiência intelectual, que não exercem sua autonomia de forma plena e livre, o entendimento e a ausência de coerção são elementos que variam, dependendo da complexidade da deficiência intelectual e do entorno familiar por ele vivenciado.
Existem, contudo, argumentos a favor da restrição da autonomia dos deficientes intelectuais. O primeiro se relaciona à autoproteção desses indivíduos porque, por sua condição, poderiam causar riscos à própria saúde. O segundo é a proteção de outras pessoas. Neste contexto, Albuquerque (2013, p. 21) reforça que o Estado deve respeitar a autonomia da pessoa com deficiência intelectual, "salvo nos casos em que o exercício livre do planejamento familiar cause mal a si mesmo ou outrem, ou se existir absoluta incapacidade de compreensão dos atos".
Com relação aos resultados do presente trabalho, a Lei de Planejamento Familiar brasileira não esclarece as ressalvas levantadas pela maioria dos entrevistados com referência à autorização judicial para permitir a realização de esterilização de pessoas com deficiência intelectual. Também não estabelece hipóteses sobre os diversos níveis existentes e possíveis de incapacidade, que, consequentemente, podem afetar o entendimento da esterilização cirúrgica. Este fato restringe a atuação do juiz, que é quem deverá adotar uma atitude cautelosa para não violar os princípios da autonomia e do consentimento livre e voluntário, da responsabilidade individual e, por conseguinte, da própria dignidade humana da pessoa que está sendo objeto da decisão.
Outro fato evidenciado no estudo, e que diz respeito diretamente à autonomia e ao livre consentimento dos portadores de deficiência intelectual, é a atitude dos familiares em relação ao envolvimento dos mesmos na tomada de decisão. Os familiares - por desejo ou necessidade de proteger seu parente deficiente contra a violência sexual, ou, simplesmente, por considerarem que ele ou ela 'não tem ideia sobre ter e criar um filho' - possivelmente violariam o direito à autodeterminação desse indivíduo quando não considerassem os diferentes e possíveis níveis de entendimento e compreensão do mesmo. Neste sentido, a coerção exercida pelos familiares pode constituir um fator-chave em todo este contexto, já que o familiar ou responsável legal é quem formula o pedido de esterilização cirúrgica para o juiz.
ART. 7º DA DUBDH - INDIVÍDUOS SEM CAPACIDADE PARA CONSENTIR
O Art. 7º da DUBDH refere que Oa autorização para [...] prática médica deve ser obtida no melhor interesse do indivíduo envolvido e de acordo com a legislação nacional [...]a (UNESCO, 2005, p. 7). E ainda ressalta que "o indivíduo afetado deve ser envolvido, na medida do possível, tanto no processo de decisão do consentimento assim como no de sua retirada."
A assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido legitima a voluntariedade da esterilização cirúrgica. Caso a pessoa seja absolutamente incapaz de dar seu consentimento, o familiar ou responsável legal apresentará ao juiz a solicitação do procedimento e será este quem emitirá a decisão sobre sua realização. Logo, com a atual legislação, existem, no Brasil, formas legais de substituir a decisão de pessoas que, mesmo sendo portadoras de deficiência, sejam autônomas, embora tenham sua autonomia reduzida. Neste sentido, existem modelos de decisão substituta que permitem acolher e respeitar o exercício da autonomia do paciente (TARZIA; FETHERSTONHAUGH; BAUER, 2012TARZIA, L.; FETHERSTONHAUGH, D.; BAUER, M. Dementia, sexuality and consent in residential aged care facilities. Journal of Medical Ethics, Londres, v. 38, n. 10, p. 609-613, 2012.), mesmo em situações de vulnerabilidade, como é o caso dos deficientes intelectuais, objeto do presente estudo.
Em contraponto com os resultados aqui apresentados, é preocupante o fato de que as famílias não contemplem, na medida do possível, o envolvimento do paciente na tomada de decisão, interferindo nas escolhas do seu familiar, na sua capacidade de consentimento e na sua autonomia, mesmo que esta seja frágil e/ou esteja diminuída.
ART. 8º DA DUBDH - RESPEITO PELA VULNERABILIDADE HUMANA E PELA INTEGRIDADE INDIVIDUAL
Segundo Garrafa e Prado (2001)GARRAFA, V.; PRADO, M.M. Tentativas de mudanças na Declaração de Helsinki: fundamentalismo econômico, imperialismo ético e controle social. Cadernos de Saúde Pública, v. 17, n. 6, p. 1489-1496, 2001., a palavra vulnerabilidade encerra diversas denotações, implicando afastamento, seja individual ou coletivo. Em consequência disto, tais condições geram distanciamentos entre as populações e o desfrute dos possíveis benefícios derivados dos avanços científicos.
No campo específico da ética das pesquisas, pode-se definir vulnerabilidade social como
condições de vida cotidiana, historicamente determinadas, capazes de: a) interferir na autodeterminação dos sujeitos e comunidades quanto à participação nas pesquisas; b) provocar riscos excedentes de participação ou potencialização dos riscos previstos; c) prejudicar a capacidade de defesa dos próprios interesses em relação aos benefícios visados. (GARRAFA; LORENZO, 2009, p. 515).
As pessoas deficientes, alvos da presente discussão, além de muitas vezes serem vulneráveis sociais no sentido acima atribuído, também são marcadas pela capacidade diminuída para elaborar uma informação e transformá-la em ações práticas. Historicamente, as pessoas portadoras de deficiência fazem parte dos grupos fragilizados jurídica, política e culturalmente, marcadas por dificuldade de acesso às informações, bens e serviços. Tal situação é hoje considerada como uma problemática de saúde pública (OLIVEIRA; LIBERALESSO, 2012OLIVEIRA, R. N.; LIBERALESSO, N.A. Vulnerabilidade social, individual e programática em idosos da comunidade: dados do estudo FIBRA, Campinas, SP, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 8, p. 2129-2139, 2012.). Deste modo, o reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das pessoas com deficiência intelectual por parte da legislação e do sistema de saúde vigente facilita a efetivação do princípio do respeito pela vulnerabilidade humana. Neste sentido, a clareza das normativas, conjuntamente às práticas inter e transdisciplinares no atendimento às pessoas com deficiência intelectual, são elementos-chave a serem resgatados no contexto brasileiro atual.
Conclusões
Os resultados do presente estudo possibilitam algumas conclusões, a seguir apresentadas:
A normativa brasileira sobre Planejamento Familiar - Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996 - proporciona vários desdobramentos relacionados à bioética e aos direitos humanos, o que exige um maior diálogo do campo legislativo com estas duas áreas;
A sociedade e o Estado devem avaliar a compreensão das deficiências intelectuais seguindo uma linha de trabalho conjunto e cooperativo. Pelos resultados obtidos no presente estudo, percebe-se a necessidade de um ajuste na Lei de Planejamento Familiar, colocando-a em consonância com as demais políticas direcionadas às pessoas portadoras de deficiência;
A esterilização de pessoa com deficiência é um tema que remete à prática da inter e da transdisciplinaridade. Com base nos fundamentos da ética aplicada preconizados pela bioética e diante do quadro aqui exposto, mostra-se necessária a abertura de espaços de diálogo institucional, com a participação de comitês interdisciplinares de ética clínica e assistencial, que facilitem o aconselhamento adequado aos profissionais envolvidos e às famílias, e o seguimento seguro dos casos.
Referências
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- Suporte financeiro: não houve
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jul-Sep 2015
Histórico
- Recebido
Jul 2014 - Aceito
Jan 2015