Avaliação da Rede de Atenção à Saúde de pequenos municípios na ótica das equipes gestoras

Evaluation of the Health Care Network in small towns from the perspective of management teams

Cássia Regina Gotler Medeiros Tatiana Engel Gerhardt Sobre os autores

Resumos

Estudo de caso com objetivo de analisar a Rede de Atenção à Saúde em dois municípios de pequeno porte, baseado nos elementos institucionais que configuram o padrão de interdependência em rede e na análise de atributos que indicam o nível de integração da rede de serviços de saúde. Foram realizados grupos focais com equipes gestoras dos municípios, bem como entrevistas com informantes-chave da gestão regional e do serviço de referência regional hospitalar, analisadas pelo método de interpretação de sentidos. A análise expôs uma rede parcialmente integrada e relações de interdependência que apresentam interesses divergentes e pouca confiança entre os atores, dificultando a governança.

Políticas públicas de saúde; Sistemas locais de saúde; Avaliação em saúde


Case study aiming to analyze the Health Care Network in two small towns, based on the institutional elements that configure the pattern of network interdependence and on the analysis of attributes that indicate the level of integration of the health services network. Focus groups were conducted with management teams of municipalities, as well as interviews with regional management key informant and the regional hospital reference service, analyzed by method of interpretation of meanings. The analysis exposed a partially integrated network and interdependence relations that have divergent interests and a low level of trust between the actors - a condition that hinders governance.

Public health policies; Local health systems; Health evaluation


Introdução

O avanço da descentralização e a consolidação da municipalização após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) têm ocorrido gradualmente e com diferenças significativas entre regiões e entre municípios.

Uma das características do Brasil é o grande número de pequenos municípios, 61% destes apresentando menos de 15 mil habitantes. O retrato no Rio Grande do Sul (RS) não é diferente: 75,4% dos municípios são pequenos. Na 16ª Coordenadoria Regional de Saúde (CRS), onde estão vinculados os municípios deste estudo de caso, este percentual sobe para 85,7 - 36 entre 42 municípios (MEDEIROS, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Curso de formação de facilitadores de Educação Permanente em Saúde. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 2005.).

A maioria dos municípios dessa região encontra-se em situação de grande dependência externa em relação a referências de Média (MC) e Alta Complexidade (AC) - com algumas dificuldades de acesso a estes serviços e diferentes formas de organização da Atenção Básica (AB) e na estrutura dos serviços -, configurando deficiência na constituição de Redes de Atenção à Saúde (RAS). Pasche et al. (2006)OUVERNEY, A.M. Regionalização do SUS: uma análise da estratégia de integração intermunicipal. Administração em Diálogo, São Paulo, n. 7, p. 91-106, 2005. consideram que o processo de regionalização foi bastante heterogêneo devido às diversidades regionais e desigualdades de capacidade técnica e de gestão entre as equipes locais, determinando avanços significativos em algumas regiões e redes fragmentadas em outras.

Com a publicação da Portaria 399/GM - que aprovou as diretrizes do Pacto pela Saúde -, o Ministério da Saúde (MS) buscou enfrentar os problemas estruturais, econômicos e de gestão apresentados pelo SUS, destacando o papel central das regiões de saúde, enquanto espaços territoriais, onde se deve organizar a rede de ações e de serviços de saúde a fim de que sejam cumpridos os princípios constitucionais da universalidade do acesso, equidade e integralidade do cuidado (BRASIL, 2006). O texto da portaria parece responder às críticas que existiam sobre as normas e portarias anteriores, pois visava à desburocratização dos processos e o respeito às singularidades regionais; ainda, ao buscar critérios equitativos de repasse de recursos, tentava corrigir as distorções neste repasse. No sentido de reforçar a territorialização, institui Colegiados de Gestão Regional (CGR) - incluindo todos os gestores municipais e gestores estaduais -, e reitera a importância com a qualificação da participação e do controle social, propondo, assim, uma gestão que se fundamenta na interdependência das redes.

A partir do decreto 7.508 do MS (BRASIL, 2011), o CGR foi instituído como Comissão Intergestores Regional (CIR). Este decreto avançou na proposta de um planejamento ascendente e no fortalecimento das regiões de saúde, a partir do qual se realizou um novo desenho na regionalização do RS, constituindo 30 regiões de saúde, sendo que a 16ª CRS ficou constituída por 2 regiões. A regionalização é uma das diretrizes propostas pelo SUS para organizar as RAS, garantindo as referências e contrarreferências (BRASIL, 2011).

Mesmo com a descentralização e a proposta de que os municípios cada vez mais se tornem responsáveis pela gestão da saúde, a região, não diferentemente do restante do País, apresenta muita dificuldade em avançar na tomada de algumas decisões e nas responsabilidades demandadas (MEDEIROS et al., 2010).

Na situação em que se encontra a implementação do SUS, são necessários estudos que avaliem a organização e funcionamento das RAS nos pequenos municípios e a capacidade destes em garantir a integralidade e a equidade em saúde para seus cidadãos, pois são estes municípios que apresentam a maior dependência externa. Nesse contexto, a governança do sistema apresenta uma tensão permanente entre os diversos atores envolvidos. Embora, na realidade brasileira, esta tensão esteja presente também em municípios de porte médio e grande, esta se amplia no caso dos pequenos, devido à grande dependência intermunicipal. A gestão dos fluxos na rede convive constantemente com a dialética cooperação/competição entre os entes federados e entre estes e os prestadores de serviço. Conforme Hufty, Báscolo e Bazzani (2006)HARTZ, Z. M. A.; CONTANDRIOPOULOS, A.P. Integralidade da atenção e integração de serviços de saúde: desafios para avaliar a implantação de um "sistema sem muros". Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, p. 5331-6, 2004., a governança pode ser definida como processos de ação coletiva que organizam as dinâmicas de atores e normas sociais com os quais uma sociedade determina sua conduta. Esta se refere à maneira de tomar e executar decisões que envolvem o conjunto social e os acordos dos atores entre si.

Essa problemática sugere a necessidade de uma agenda de pesquisa que permita delimitar precisamente os problemas e os obstáculos a serem removidos para o desenvolvimento das esperadas condutas cooperativas e solidárias entre agentes governamentais. (MACHADO, 2009HUFTY, M.; BÁSCOLO, E.; BAZZANI, R. Gobernanza en salud: un aporte conceptual y analítico para la investigación. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, supl. 1, p. 35-45, 2006., p. 106).

Um dos grandes nós críticos do SUS são as questões relacionadas à referência e contrarreferência, incluídas na regionalização do sistema, no entanto, a maior parte das propostas tecnoassistenciais desenvolvidas para o SUS centram-se na reorganização da AB. É fundamental, porém, que haja transformações em outros níveis do sistema de saúde para que se possa cumprir a promessa de um sistema único e organizado para a integralidade, que funcione como "malha de cuidado ininterrupto à saúde" e não como um sistema burocrático e despersonalizado de encaminhamentos (BRASIL, 2005, p. 107).

O estudo apresentado neste artigo teve como objetivo avaliar a RAS às pessoas com Doenças Cardiovasculares (DCV) na região da 16ª CRS do estado do RS, considerando os elementos institucionais que configuram o padrão de interdependência e os atributos que indicam o nível de integração da rede de serviços de saúde em dois pequenos municípios da região.

Metodologia

Desenvolveu-se um estudo de caso na região da 16ª CRS, a partir da seleção de dois municípios de pequeno porte populacional, visando à avaliação da rede de atenção às pessoas com DCV. A abordagem da avaliação adotada no estudo considerou a inserção da RAS dos municípios em seu contexto regional, estadual e até mesmo nacional. Embora não haja sentido em imaginar que todos os serviços devam estar disponíveis em todas as localidades, é correto pensar que os cidadãos de todos os municípios devam ter acesso a todas as ações e serviços de saúde que necessitam. Esta questão traz a importância da integração entre as três esferas de governo - embora não importe tanto saber qual esfera é diretamente responsável pela oferta do serviço, mas sim se a integralidade da atenção e o acesso aos serviços estão garantidos (SOUZA; VIEIRA-DA-SILVA; HARTZ, 2005PASCHE, D. F. et al. Paradoxos das políticas de descentralização de saúde no Brasil. Rev. Panam. Salud Publica, Washington, DC, v. 20 n. 6, p. 416-22, 2006.).

Uma dupla leitura sobre a natureza do objeto 'rede' é indispensável: da estrutura organizacional voltada para a produção de serviços e da dinâmica de atores em constante renegociação de seus papéis. A incerteza é permanente em relação à integração dos serviços de saúde em rede, pois os diversos atores e organizações envolvidos não têm os mesmos interesses, recursos ou competências para se envolverem com um projeto nessa mais exigente modalidade de cooperação. Dessa forma, os avaliadores devem levar em conta a percepção dos diversos atores implicados, além da documentação normativa e da revisão da literatura, indagando sobre a 'real' existência da implantação da rede em relação ao 'modelo ideal' (HARTZ; CONTANDRIOPOULOS, 2004).

Optou-se por utilizar as DCV como condição marcadora devido à relevância epidemiológica que estas patologias têm para a saúde no Brasil e na região; assim como por serem classificadas como condições crônicas, cuja atenção é de longo prazo e exige uma rede múltipla e articulada de serviços de saúde para garantir resolutividade.

Os municípios selecionados para o estudo eram similares em termos de porte populacional (cerca de 4 mil habitantes), estrutura de serviços de saúde e condições socioeconômicas. Os dois possuíam 100% de cobertura da Estratégia Saúde da Família (ESF) e pequeno hospital local. A escala de análise da RAS exigiu considerar os serviços existentes em outros territórios político-administrativos. Acredita-se que as características destes municípios são similares a grande parte dos municípios brasileiros, possibilitando inferir semelhanças nos resultados encontrados.

Foram coletadas e comparadas informações obtidas e sistematizadas por meio de várias fontes e métodos, incluindo grupos focais e entrevistas semiestruturadas, no período de março a agosto de 2012. Foram realizados dois grupos focais com equipes gestoras de cada município, no total de dez participantes, que foram pessoas identificadas pelo fato de exercerem atividades de gestão da rede nos municípios - uma médica, cinco enfermeiras, dois agentes administrativos e dois secretários de saúde. As discussões tiveram como tema gerador a organização e funcionamento da rede de atenção às pessoas com DCV.

As entrevistas semiestruturadas foram realizadas com um informante-chave ligado à gestão regional e dois informantes do serviço de referência regional em cardiologia. Essas entrevistas tiveram por objetivo analisar o posicionamento e entendimento de atores externos ao município, mas fundamentais na composição da rede regional de atenção à saúde. Considerou-se como informante-chave da gestão regional o servidor que possuía experiência e inserção significativas na organização e funcionamento das redes regionais, bem como nas diversas instâncias regionais de pactuação.

Para a análise das entrevistas e grupos focais, utilizou-se uma proposta produzida pelo grupo de pesquisadores do Claves/Ensp/IFF/Fiocruz (GOMES et al., 2005FLEURY, S. M.; OUVERNEY, A.M. Gestão de redes: a estratégia de regionalização da política de saúde. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. ) denominada interpretação de sentidos. Nessa proposta, a interpretação busca os sentidos das falas e das ações para compreender ou explicar além dos limites do que é descrito e analisado, sendo considerada o ponto de partida (interpretações dos atores) e o ponto de chegada (interpretação das interpretações).

As seguintes dimensões e categorias de análise foram utilizadas como parâmetros para o processamento e interpretação das informações: Atributos de integração da RAS (OPAS, 2011ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPAS). A atenção à saúde coordenada pela APS: construindo as redes de atenção no SUS. Brasília, DF: Organização Pan-Americana da Saúde, 2011, 113 p.) e Padrões de interdependência em rede (FLEURY; OUVERNEY, 2007______. Portaria 399/GM, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006- Consolidação do SUS e aprova as diretrizes operacionais do referido pacto. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 22 fev. 2006. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt0399_22_02_2006.html>. Acesso em: 9 out. 2015.
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
). A Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) (OPAS, 2011) lista 14 atributos essenciais, organizados em quatro âmbitos de abordagem, para que as RAS funcionem adequadamente, afirmando que, devido à grande variedade de contextos externos e fatores internos, não é possível prescrever um único modelo organizacional.

Fleury e Ouverney (2007) publicaram ampla análise sobre gestão de redes, enfocando especialmente as redes em administração pública, propondo uma tipologia para identificação e análise da interdependência em rede, identificando qual o seu padrão de governança. Para analisar o potencial de mobilização do trabalho coletivo e da promoção do intercâmbio de recursos, os autores propõem uma tipologia que analisa e sintetiza os principais elementos de um padrão de interdependência em rede, classificando-os em baixa institucionalidade, interdependência ou elevada institucionalidade.

Na medida em que as características que compõem um padrão de interdependência em rede estão presentes, é possível desenvolver um potencial de organização do trabalho coletivo sem que isso comprometa a sustentabilidade política, uma vez que a governança, nestes espaços interorganizacionais, constrói-se com pactuação e ajustes de percepções e interesses, em que não há uma autoridade central. No entanto, quando a formação possui características que se aproximam de um dos outros dois tipos, seu potencial de promoção e sustentação de interdependência diminui (OUVERNEY, 2005). O quadro 1, a seguir, mostra as dimensões e categorias de análise citadas.

Quadro 1.
Dimensões e categorias de análise

O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul sob o número 21739. Os atributos de avaliação encontram-se destacados em itálico na análise a seguir, que sintetiza a interpretação dos grupos focais e entrevistas.

Resultados e discussão

Atributos de integração da Rede de Atenção à Saúde

Os relatos das equipes gestoras revelaram uma rede de atenção em construção. Esta rede parece estar em um processo incipiente de transição de modelo assistencial a partir de algumas tentativas de mudanças feitas pelas equipes da AB. O restante da rede permanece na lógica fragmentada de um modelo assistencial que atua por procedimentos, cuja finalidade é executá-los sem integração com a AB ou comprometimento com a resolutividade da atenção oferecida.

Conforme os atributos de análise de RAS propostos pela Opas (2011), encontrou-se, no âmbito de abordagem modelo assistencial, uma rede com população e territórios definidos (atributo 1), pois há adstrição da população aos serviços que compõem esta rede, tanto no âmbito municipal quanto no regional. No entanto, não se observou amplo conhecimento das necessidades dessa população, muito menos a determinação de uma oferta de serviços que as atendam, conforme recomenda o referido atributo. O que se verificou é que a oferta é determinada principalmente pela análise de viabilidade econômica dos prestadores de serviço e, por vezes, pela pressão que a população exerce sobre a gestão municipal.

Há, na região, uma rede de estabelecimentos de saúde que seria suficiente para prestar um cuidado integral; verificou-se, porém, vários problemas que dificultam este cuidado. Alguns estão relacionados à deficiência da AB oferecida à população, ainda muito centrada no atendimento médico e pouco eficiente em ações de promoção à saúde e prevenção às doenças (atributo 2). Pouco se trabalha com classificação de risco e protocolos clínicos, muito menos com planejamento. Embora se tenha verificado a presença de 'equipes multidisciplinares', não se constatou o trabalho interdisciplinar. A AB nem sempre é a 'porta de entrada' para o sistema, não conseguindo exercer efetivamente o papel de coordenadora da atenção à saúde. Também não se observou nas equipes a consciência da responsabilidade por essa coordenação (atributo 3). Quando os usuários são encaminhados para serviços regionais, muitas vezes o vínculo com a AB é rompido ou se mantém apenas nas questões administrativas, como documentos e viabilização do transporte.

A prestação de serviços especializados, na maioria das vezes, é realizada em ambiente hospitalar ou em consultórios particulares. Este fato traz várias dificuldades para a atenção longitudinal ao usuário, assim como ao estabelecimento de vínculo entre este e as equipes de saúde da família, pois há pouca comunicação entre os profissionais dos diferentes níveis da rede. A tentativa de coordenação assistencial é feita pelo setor de marcação de consultas da Secretaria Municipal de Saúde, que apenas exerce papel de agendamento e mantém poucos registros da trajetória dos usuários. Dessa forma, a coordenação assistencial praticamente inexiste, pois os profissionais que atendem o usuário não conseguem acompanhá-lo adequadamente a partir dos encaminhamentos (atributos 4 e 5).

Como os municípios analisados são muito pequenos, verificou-se a proximidade dos profissionais com as particularidades culturais da comunidade e a consideração em relação à diversidade da população, que são conhecidos pelas equipes, embora nem sempre resultem em atendimento diferenciado, conforme esta diversidade recomendaria. Por conhecer a condição socioeconômica da família em questão, porém, algumas vezes este reconhecimento está relacionado à decisão por garantir o atendimento pelo SUS ou recomendar que o serviço seja acessado por conta própria. O tipo de cuidado é muito mais direcionado ao indivíduo do que à família (atributo 6), pois os relatos revelaram que o contexto social e familiar ainda é pouco considerado na atenção aos usuários.

No âmbito de abordagem da governança e estratégia, observou-se a presença de um sistema de governança da rede ainda fragmentado, que tem a CIR por espaço de encontro e discussão. A participação, no entanto, é limitada: ora pela concentração de poder na Secretaria Estadual de Saúde (SES), ora pela falta de qualificação da gestão municipal, que não tem ferramentas para negociação com os prestadores privados. A capacidade de negociação com os hospitais locais é pequena, por ser individualizada em cada município. Assim, este processo torna-se fragilizado, pois se ocorresse no âmbito da CIR poderia obter melhores resultados, considerando negociação conjunta entre vários municípios com o mesmo prestador de serviço (atributo 7). A governança também é limitada pela 'pouca participação social' nas decisões da rede. Verificou-se a desarticulação do controle social nos municípios estudados, que algumas vezes meramente ratificam decisões da gestão municipal, conforme relatos das equipes da AB. Estas também referiram dificuldade em compor um número mínimo de conselheiros para realizarem as reuniões dos conselhos municipais de saúde (atributo 8).

A ação intersetorial ainda é incipiente, com atividades isoladas para com a educação, assistência social e alguns órgãos governamentais e não governamentais (atributo 9), mas não como uma diretriz das ações na RAS.

Em relação ao âmbito de abordagem da organização e gestão, observou-se que há integração razoável nos sistemas administrativos e logísticos entre os serviços, apesar de ainda ocorrerem importante número de faltas aos agendamentos. O maior problema está na integração do sistema de apoio clínico. Verificou-se deficiência na comunicação entre os serviços pelo não preenchimento dos documentos de referência e contrarreferência, assim como pela ausência de comunicação entre os profissionais de saúde. Não se observou utilização de protocolos e fluxogramas clínicos em nenhum ponto da rede (atributo 10).

Entende-se que as questões acima possam estar ligadas ao perfil e formação dos profissionais que atuam na rede. Embora em algumas áreas haja deficiência quantitativa, o que mais se observou foi a inadequação do perfil dos profissionais para o trabalho em rede. Não se verificou visão sistêmica entre eles e nem o compromisso com o acompanhamento do usuário no contínuo da rede, fatos demonstrados pela resistência em utilizar documentos de comunicação entre os serviços ou até mesmo em realizar contatos telefônicos na ocasião de transferência dos usuários (atributo 11).

Encontraram-se múltiplos sistemas de informação que não se comunicam entre si, e observou-se que as equipes pouco utilizam os dados para conhecer e melhorar a assistência (atributo 12). Outra grande deficiência verificada na rede foi a falta de monitoramento e avaliação, inviabilizando a gestão por resultados. Os municípios pouco utilizam os indicadores de saúde na sua prática, tomando decisões mais políticas do que técnicas. O hospital de referência utiliza vários indicadores internos de qualidade na sua gestão, mas estes não são integrados com a avaliação do restante da rede (atributo 13).

Não há definição de metas da rede para orientar a alocação de recursos financeiros e incentivos. Constatou-se que esta alocação segue critérios orientados pelo poder de negociação dos prestadores e interesses políticos. A região não está suficientemente articulada para a definição técnica de prioridades de investimento. Além disso, verificou-se que, devido ao financiamento insuficiente da MC, o foco das discussões na CIR concentra-se sempre nessa área, desviando o olhar da AB, que apresenta problemas de resolutividade - o que também consome recursos de forma inadequada, gerando aumento da demanda para a MC (atributo 14).

De acordo com a proposta da Opas (2008), que classifica a rede em três níveis (I - Sistema fragmentado; II - Sistema parcialmente integrado e III - Sistema integrado), verificou-se que esta rede se encontra no nível II; ou seja, é um sistema parcialmente integrado. Dos 14 atributos considerados, 13 encontram-se nesse nível. Considerou-se que apenas o atributo financiamento (14) esteja no nível I, por ter sido avaliado como insuficiente.

Padrões de interdependência em rede

Complementando a análise, avaliou-se o potencial para a organização e o desenvolvimento de um trabalho coletivo que promova e sustente a interdependência em rede de acordo com as dimensões propostas por Fleury e Ouverney (2007).

O exercício da governança por meio de redes mostra a necessidade de construir relações de interdependência e intercâmbio de recursos com base numa visão de complementaridade de interesses e confiança. (FLEURY; OUVERNEY, 2007, p. 65).

Verificou-se que o foco gerencial na rede de cuidados às pessoas com DCV concentra-se em um conjunto de atividades complementares que precisam ser coordenadas pela rede: o estabelecimento e distribuição de cotas de consultas, exames e procedimentos entre os municípios; os processos de comunicação e agendamento entre os municípios e o serviço regional de referência; o transporte dos usuários para os serviços fora do município; preenchimento da documentação necessária para a referência e contrarreferência; a prestação de serviços pelo Hospital de referência; e o pagamento por serviços prestados por parte da SES e dos municípios.

Cada organização mantém o foco e autonomia sobre suas próprias atividades, mas incorpora seletivamente à rede as atividades consideradas essenciais à realização de metas coletivas. (OUVERNEY, 2005, p. 91).

Como as atividades propostas pela rede são duradouras e planejadas coletivamente, observou-se o envolvimento de atores de todos os níveis das organizações delas. Estão envolvidos os níveis de maior capacidade decisória, como os secretários municipais de saúde, coordenador regional de saúde, administrador e outros gestores hospitalares. Também há o envolvimento do nível tático, como os coordenadores de setores dos municípios, da CRS e dos hospitais. Por fim, vários profissionais administrativos e técnicos da saúde que compõem o nível operacional estão envolvidos na rede, caracterizando ampla inserção de atores. No entanto, a participação dos profissionais médicos nas questões gerenciais é mínima, o que leva a problemas posteriores de integração clínica, conforme se verificou.

O nível de formalização da rede precisa manter um equilíbrio entre regras coletivamente construídas e a autonomia das partes, mantendo uma dinâmica flexível e resolutiva (FLEURY; OUVERNEY, 2007). Verificou-se que algumas regras gerais foram construídas coletivamente, mas muitas decisões foram tomadas pela SES sem a participação dos outros atores da rede, caracterizando alta formalidade. Observou-se, também, que algumas regras estabelecidas não são seguidas pelos componentes da rede, como o cumprimento dos contratos pelos hospitais locais e o processo de comunicação entre os serviços. Conforme Fleury e Ouverney (2007), a instituição de regras é uma condição essencial para a institucionalização da rede, possibilitando o seu desenvolvimento, capacidade de se autorregular e transformar rapidamente.

Segundo os autores, os recursos envolvidos e o foco de poder devem ser analisados de forma conjunta: a distribuição de recursos influencia o padrão de interdependência dos atores, e este orienta a distribuição de poder dentro da rede. Nesse sentido, observou-se o domínio elevado de recursos pela SES e pelo serviço de referência regional enquanto o município fica em uma relação de dependência destes recursos. Esse domínio proporciona a centralização de poder, como se viu nos depoimentos dos participantes do estudo. Essa situação leva a relações de subordinação, em que

[...] os atores com maior quantidade de recursos estabelecem as diretrizes em detrimento dos demais, o que é incompatível com a dinâmica de estruturação da rede. (OUVERNEY, 2005, p. 98).

Embora a SES tenha o papel de condução do processo de regionalização, os municípios precisam participar ativamente das decisões da rede, pois constituem a instância mais próxima e, portanto, com maior conhecimento das necessidades da população.

Monitorar o trabalho coletivo é essencial para garantir o alcance dos resultados e a prestação de contas, embora o caráter autônomo dos componentes da rede se revele na dificuldade para estabelecer mecanismos de controle e legitimidade de quem possui esta função. Nas redes, o controle assume uma nova dimensão, ampliando a sua função de apoio às atividades desenvolvidas em detrimento de seu caráter fiscalizador (FLEURY; OUVERNEY, 2007). O controle na rede em estudo é realizado pela comissão de acompanhamento de contrato e pela CIR - e de forma muito incipiente: município e prestadores discutem os padrões de relacionamento, intercâmbio de recursos e resolução de problemas. Portanto, observou-se um foco complementar de sistemas articulados e um caráter estratégico de suporte à dinâmica gerencial. No entanto, o processo de planejamento ao qual está ligada a função do controle ainda está muito centralizado no gestor estadual, que é quem define parâmetros, cotas e referências, caracterizando elevada institucionalidade.

Quando há percepção de que os objetivos compartilhados devem ser perseguidos com o engajamento integrado das organizações, é possível aprofundar a interdependência em rede (FLEURY; OUVERNEY, 2007). Embora cada organização que compõe a rede em estudo tenha seu foco principal voltado para suas metas, observou-se a construção de um compromisso em torno de objetivos compartilhados. O estado e os municípios necessitam da prestação de serviços de saúde na região, e os prestadores têm interesse em oferecê-los. Embora haja alegações sobre a insuficiência do financiamento, os hospitais locais não sobreviveriam sem a filantropia e apoio monetário dos municípios; o hospital regional, por sua vez, também necessita do custeio para a AC e, para isso, é tensionado a ofertar serviços que não são considerados lucrativos por eles.

Conforme Fleury e Ouverney (2007), é necessária, para o desenvolvimento de uma estrutura de rede, a institucionalização das relações de interdependência. Deve haver bases organizacionais que deem suporte ao trabalho coletivo e a coalizões políticas internas e externas na construção da governança. A coesão precisa ocorrer no interior do conjunto de recursos para que haja condições de governança. O autor considera como bases institucionais as instâncias estratégicas nos espaços internos de pactuação e nos canais externos de articulação. Na rede em estudo, as instâncias estratégicas estão estruturadas dentro e fora do conjunto de recursos. Os parâmetros de atendimento são definidos pelo MS e distribuídos pela SES, assim como a decisão final sobre as referências oficiais de MC e AC. O principal espaço interno de pactuação na rede é a CIR, porém, viu-se pouca capacidade gerencial e de negociação por parte dos secretários municipais de saúde. A CRS também fica em um papel fraco de articulação, pois não possui poder decisório - concentrado na direção da SES, que muitas vezes negocia diretamente com os prestadores de serviço. No entanto, verificou-se um movimento interno na CIR: o espaço começa a ganhar legitimidade no compartilhamento do poder decisório e na construção de consensos. Notaram-se processos de aprendizagem que têm o potencial de levar ao planejamento regional da rede. Acredita-se que esse processo tende a avançar à medida que os municípios forem assumindo a regulação e a auditoria dos serviços do seu território.

A despeito das mudanças propostas pelo Pacto e mais recentemente pelo Decreto 7.508 (BRASIL, 2011), a esfera federal ainda interfere nos mecanismos da governança interna das regiões de saúde, pois detém importante parcela do financiamento que é condicionado aos parâmetros institucionais gerais do sistema estabelecidos pelo MS.

Não se verificou a participação social na governança da rede, conforme relatos das equipes da AB, devido à desarticulação do controle social, que, na maioria das vezes, tem cumprido papel meramente burocrático na aprovação das decisões que já vêm tomadas pela gestão municipal.

Considerações finais

A análise, baseada nos dois referenciais teóricos escolhidos, expôs uma RAS parcialmente integrada e relações de interdependência que, embora complementares, apresentam interesses divergentes e pouca confiança entre os atores - condição que dificulta o estabelecimento da governança em rede. Pode-se afirmar que existe uma estrutura de serviços de saúde, mas esta não está configurada como uma rede, conforme critérios de análise.

Verificaram-se vários pontos positivos na análise da RAS, mas todos apresentando alguma limitação: embora haja a definição do território e das referências regionais, os quantitativos de consultas, procedimentos e exames são insuficientes para a população; a CIR é um potente espaço de pactuação e controle, mas os gestores ainda não assumiram na plenitude seu papel; a principal porta de entrada para o atendimento é a AB, no entanto, esta não exerce a função de coordenação da rede.

Como dificuldades, salienta-se: a pouca integração clínica e dos sistemas de informação entre os serviços da rede; a centralidade do MS e da SES no estabelecimento de regras e domínio de recursos, gerando relações de subordinação e não de cooperação entre os entes federados; pouco planejamento, monitoramento e avaliação da rede; baixa capacidade gerencial nos municípios e parâmetros definidos pelo MS; a quase ausência da participação social na governança da rede; o modelo de atenção ainda pouco atuante nas ações de promoção à saúde, prevenção às doenças e intersetorialidade. Observa-se que o estado, ao mesmo tempo que detém o poder de estabelecer regras, mostra-se ausente nas questões de regulação e pouco efetivo no apoio técnico aos municípios.

As limitações observadas remetem a outras questões que precisam ser aprofundadas, pois são importantes para entender a problemática dos pequenos municípios. Como compreender as tensões que permeiam o território e as relações de poder que se estabelecem entre gestores, profissionais e usuários na utilização dos serviços? Quais as limitações que impedem os gestores de assumirem seu papel no planejamento, controle e avaliação do sistema de saúde? Quais são os entraves para que a AB assuma seu papel na coordenação da rede? O que as experiências em outros locais e países na tentativa de coordenação da rede pela AB têm indicado?

Pode-se considerar que os mecanismos de cooperação identificados são motivados pela interdependência de recursos entre os atores e, como tais, são mantidos enquanto esta necessidade estiver presente. No entanto, os atores não aprofundam a cooperação para além da prestação pontual de serviços. Não se observa, em todos os níveis de densidade tecnológica, o acompanhamento do usuário ao longo da rede. Pouco se verificou a responsabilização integral pelo usuário, pois cada ponto da rede limita a atenção a sua parte da tarefa.

Este contexto de divergência com relação ao objetivo principal do trabalho em cada ponto da rede dificulta a possibilidade de compatibilizá-lo em busca da efetivação de uma RAS que proporcione um cuidado com integralidade e equidade.

Referências

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  • ______. Decreto nº 7.508, de 28 de junho de 2011. Regulamentação da Lei nº 8.080 de 19 de setembro de 1990, para dispor sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa, e dá outras providências. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2011,16 p.
  • ______. Portaria 399/GM, de 22 de fevereiro de 2006. Divulga o Pacto pela Saúde 2006- Consolidação do SUS e aprova as diretrizes operacionais do referido pacto. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 22 fev. 2006. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt0399_22_02_2006.html>. Acesso em: 9 out. 2015.
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt0399_22_02_2006.html
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  • Suporte financeiro: não houve

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2015

Histórico

  • Recebido
    Abr 2015
  • Aceito
    Set 2015
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