Realocar a oferta do SUS para atender problemas do futuro: o caso do trauma no Brasil

Luisa Regina Pessôa Isabela Soares Santos Juliana Pires Machado Ana Cristina Marques Martins Claudia Risso de Araújo Lima Sobre os autores

RESUMO

Este artigo analisa o perfil dos recursos físicos de saúde disponíveis no Brasil, utilizando o exemplo do trauma de alta complexidade para subsidiar o debate da reorganização da rede de serviços de saúde. Utilizou-se o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde de 2013. Identificou-se que há insuficiência quantitativa e baixa oferta na distribuição geográfica de leitos de Unidades de Terapia Intensiva, de hospitais de grande porte e das oito estruturas exigidas pelo Ministério da Saúde para habilitação dos estabelecimentos ao atendimento do trauma de alta complexidade. A aquisição de uma estrutura nos estabelecimentos que já possuem as outras sete aumentaria esta oferta de 30 para 80 do número de municípios com atendimento ao trauma de alta complexidade.

PALAVRAS-CHAVE:
Alocação de recursos para a atenção à saúde; Regionalização; Assistência hospitalar; Centros de traumatologia

Introdução

O objetivo deste artigo foi mapear e analisar o perfil dos recursos físicos de saúde existentes no Brasil e usar como exemplo o caso dos recursos para o atendimento do trauma de alta complexidade, com vistas a subsidiar o debate acerca das alternativas de investimentos para a reorganização da rede de serviços de saúde, ante as questões das transições demográfica e epidemiológica estimadas para os próximos anos e os altos custos da saúde e, especificamente, de investimento em Ciência e Tecnologia (C&T).

É preocupante como tem se dado a incorporação de novas tecnologias de saúde no Brasil, em especial na rede pública. O incremento de capacidade instalada utilizada ou disponibilizada é muitas vezes realizado de forma inadequada, em face da fragilidade da incorporação e da peculiaridade do mix público-privado existente no sistema de saúde brasileiro (MACHADO ., 2015MACHADO, J. P.; MARTINS, M.; LEITE, I. C. O mix público-privado e os arranjos de financiamento hospitalar no Brasil. Saúde debate, v. 39, n. especial, p. 39-50, dez. 2015.). Um exemplo da gravidade dessa situação é o resultado ressaltado da auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) (BRASIL, 2013b______. Tribunal de Contas da União. Relatório de Levantamento: FiscSaúde. Brasília, DF, 2013b. Disponível em: <http://portal3.tcu.gov.br/portal/page/portal/TCU/imprensa/noticias/noticias_arquivos/032.624-2013-1%20Fisc%20Saude.pdf>. Acesso em: 22 ago. 2016.
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) no que se refere ao tema da assistência hospitalar no Sistema Único de Saúde (SUS). O TCU realizou amplo diagnóstico em 116 hospitais públicos, com mais de 50 leitos em todos os estados, com foco na identificação do motivo da existência de leitos e serviços indisponíveis e/ou com bloqueio para uso da população, com base em denúncias e cobertura da mídia.

O processo de transição demográfica vem transformando o perfil da sociedade brasileira, tornando-a mais longeva (OLIVEIRA; O'NEILL, 2013OLIVEIRA, A. T. R.; O'NEILL, M. M. V. C. Cenário Sociodemográfico em 2022-2030. In: FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (Fiocruz). A saúde no Brasil em 2030: prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: estrutura do financiamento e do gasto setorial. Rio de Janeiro: Fiocruz; Ipea; Ministério da Saúde; Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, 2013, p. 85-89.). Essa alteração da estrutura etária afeta diretamente o padrão de uso de serviços de saúde, o modelo de atenção hospitalar (BRAGA NETO ., 2012BRAGA NETO, F. C. et al. Atenção Hospitalar: evolução histórica e tendências. In: GIOVANELLA, L. et al. (Org.). Políticas e Sistema de Saúde no Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2012, p. 577-608.) e a necessidade de ajustar a oferta de recursos físicos de saúde a essa nova realidade.

A reorganização da rede de serviços para suprir necessidades futuras deve considerar que nas últimas décadas os eventos provocados por causas externas (violência e acidentes) estão entre os que mais afligem os brasileiros, com expressivo aumento da taxa de internação no SUS por causas externas na última década. Os dois principais componentes (homicídios e acidentes de trânsito) são responsáveis por taxas de mortalidade muito superiores às de países desenvolvidos, constituindo-se como a terceira causa de mortalidade na população (MORAES NETO ., 2012MORAIS NETO, O. L. et al. Mortalidade por acidentes de transporte terrestre no Brasil na última década: tendência e aglomerados de risco. Ciênc. saúde colet., Rio de Janeiro, v. 17, n. 9, p. 2223-2236, set. 2012.; LUNA; SILVA JR., 2013LUNA, E. J. A.; SILVA JR., J. B. Doenças Transmissíveis, Endemias, Epidemias e Pandemias. In: FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ (Fiocruz). A saúde no Brasil em 2030: prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro: estrutura do financiamento e do gasto setorial. Rio de Janeiro: Fiocruz; Ipea; Ministério da Saúde; Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, 2013. p. 97-107.), cujo coeficiente, em 2000, foi 69,7/100 mil. Ressalta-se que os óbitos por causas externas têm tido aumento progressivo nos últimos anos, indicando possível agravamento dessa situação nos próximos anos (GAWRYSZEWSKI; KOIZUMI; MELLO-JORGE, 2004GAWRYSZEWSKI, V. P.; KOIZUMI, M. S.; MELLO-JORGE, M. H. P. As causas externas no Brasil no ano 2000: comparando a mortalidade e a morbidade. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, p. 995-1003, jul./ago. 2004.; BRASIL, 2013a______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.366, de 8 de julho de 2013. Estabelece a organização dos Centros de Trauma, estabelecimentos de saúde integrantes da Linha de Cuidado ao Trauma da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 2013a. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 9 jul. 2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1366_08_07_2013.html>. Acesso em 18 jul. 2016.
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).

Dados sobre a mortalidade e morbidade por causas externas no Brasil, em 2000, identificaram que o perfil das causas externas associadas à morte difere daquele relacionado com a morbidade. No caso dos óbitos, os homicídios são os mais prevalentes, enquanto nas internações, as quedas são responsáveis por mais da metade delas. Por outro lado, traumas e lesões relacionados com o transporte terrestre são importantes na mortalidade e morbidade. Em conjunto, os homicídios, acidentes de trânsito e quedas são as causas mais importantes e devem orientar as prioridades na organização dos atendimentos em trauma (GAWRYSZEWSKI; KOIZUMI; MELLO-JORGE, 2004GAWRYSZEWSKI, V. P.; KOIZUMI, M. S.; MELLO-JORGE, M. H. P. As causas externas no Brasil no ano 2000: comparando a mortalidade e a morbidade. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 4, p. 995-1003, jul./ago. 2004.).

O conhecimento das morbidades e da carga dessas doenças crônicas contribuiria na estruturação da linha do cuidado ao trauma e de outras patologias descapacitantes, organizando os Serviços de Apoio Diagnóstico e Terapêutico (SADT) e, posteriormente, os serviços de reabilitação, como a fisioterapia, logopedia, entre outros, necessários para o acompanhamento do paciente egresso.

Além do impacto sobre a mortalidade, os traumas geram grande demanda por serviços especializados de urgência/emergência, questões relacionadas com o acesso e com os recursos disponíveis são preponderantes na redução da mortalidade e das lesões. Nesse contexto, considerando como necessária a implantação de uma rede de atendimento integral ao paciente vítima de trauma, em 2006, o Ministério da Saúde (MS) instituiu a Política Nacional de Atenção em Traumato-Ortopedia de Alta Complexidade e, em 2011, a Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE), definindo estratégias para organização dos serviços e ações de saúde no âmbito da atenção às situações de urgência e emergência (BRASIL, 2011______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.600, de 7 de julho de 2011. Reformula a Política Nacional de Atenção às Urgências e institui a Rede de Atenção às Urgências no Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 8 jul. 2011. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt1600_07_07_2011.html>. Acesso em: 18 jul. 2016.
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).

Em 2013, publicou a Portaria nº 1.366 que estabelece a organização dos Centros de Trauma no âmbito do SUS, definindo os requisitos para habilitação das unidades nas classificações dos hospitais para atendimento ao trauma em média complexidade, Centros de Trauma I, e alta complexidade, Centros de Trauma tipo II e III (BRASIL, 2013a______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.366, de 8 de julho de 2013. Estabelece a organização dos Centros de Trauma, estabelecimentos de saúde integrantes da Linha de Cuidado ao Trauma da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 2013a. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 9 jul. 2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1366_08_07_2013.html>. Acesso em 18 jul. 2016.
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). Em conjunto, essas portarias estabelecem diretrizes e visam propiciar a organização do atendimento ao trauma em todos os níveis no SUS.

É nesse contexto que se insere a necessidade de um olhar apurado para a oferta e a necessidade de investimento nos Centros de Trauma de média e alta complexidade no Brasil.

Métodos

Para o presente trabalho, recursos físicos de saúde referem-se à capacidade instalada, que compõe a oferta de serviços de saúde. Como a oferta pressupõe a existência dos outros recursos além da capacidade instalada - como os humanos, cognitivos, tecnológicos, materiais, financeiros e de poder -, optou-se por analisar apenas os recursos físicos.

Foi usado o Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES, Departamento de Informática do SUS - Datasus/MS) para obter informações sobre recursos físicos de saúde disponíveis no Brasil em dezembro de 2013. Foram identificados os estabelecimentos existentes, descritos segundo localização geográfica e características selecionadas: natureza jurídica (público, privado sem fins lucrativos, privado com fins lucrativos), tipo de atendimento prestado (internação, ambulatorial, SADT, urgência), tipo de estabelecimento (centro ou posto de saúde, policlínica, clínica ou ambulatório especializado, hospital geral ou especializado, pronto-socorro geral, pronto-socorro especializado, unidade de SADT).

Tendo em vista o alto grau de detalhamento das variáveis do CNES, estas foram recategorizadas conforme metodologia definida em Santos . (2016)SANTOS, I. S. et al. Os recursos físicos de saúde no Brasil: um olhar para o futuro. In: NORONHA, J. C. (Org.). Brasil Saúde Amanhã: dimensões para o planejamento da atenção à saúde. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2016., com objetivo de selecionar apenas aquelas que se enquadram no escopo deste estudo e agregar dados detalhados, como, por exemplo, os hospitais que foram categorizados por porte de leitos totais, considerando políticas e portarias existentes e por porte de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI).

Foram selecionados os equipamentos em uso e desconsiderados na análise de disponibilidade os existentes e fora de uso.

Para a análise dos leitos, que são um dos requisitos da Portaria Nacional do Trauma, excluíram-se aqueles de psiquiatria, acolhimento noturno e hospital-dia. Foi observada a disponibilidade de leitos 'SUS' e 'não SUS', em que 'SUS' inclui leitos em estabelecimentos públicos e privados (estes majoritariamente sem fins lucrativos) e o 'não SUS' os privados com fins lucrativos e parte dos privados sem fins lucrativos que não possui convênio com o SUS.

Para as análises de estruturas envolvendo leitos para internação, foi construída uma base de dados contendo todos os estabelecimentos cujo campo 'tipo de atendimento prestado' no CNES era 'internação'. Entre estes, foram excluídos os estabelecimentos que não possuíam leitos. Também foram construídas bases específicas para as análises de equipamentos, serviços e habilitações selecionadas.

Para que uma unidade de saúde seja habilitada ao atendimento do trauma de alta complexidade (Centro de Trauma tipo II e III), esta deve atender a oito requisitos definidos pela Política Nacional do Trauma (BRASIL, 2013a______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.366, de 8 de julho de 2013. Estabelece a organização dos Centros de Trauma, estabelecimentos de saúde integrantes da Linha de Cuidado ao Trauma da Rede de Atenção às Urgências e Emergências (RUE) no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). 2013a. Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 9 jul. 2013. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2013/prt1366_08_07_2013.html>. Acesso em 18 jul. 2016.
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; BRASIL, 2006BRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de atenção às urgências. 3 ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2006. 256 p.): 1) porte de mais de 100 leitos; 2) disponibilidade de UTI; 3) disponibilidade de equipamento de tomografia computadorizada; 4) serviço de alta complexidade em neurocirurgia (inclui neurocirurgia e traumatologia, bem como leitos de internação relacionados); 5) serviço de hemoterapia; 6) disponibilidade de equipamento de ressonância magnética; 7) serviço de radiologia intervencionista; e 8) serviço de reabilitação.

Resultados

O Brasil dispõe de mais de 113 mil unidades de saúde totalizando as que atendem o SUS (privadas sem fins lucrativos e públicas) e as que atendem apenas de forma privada (com ou sem fins lucrativos). A distribuição dos estabelecimentos difere nas regiões do País, especialmente para aqueles relacionados com o cuidado ambulatorial.

Os prontos-socorros e prontos atendimentos são majoritariamente públicos (80%), ao passo que são predominantemente privados e com fins lucrativos os SADT (92%) e os consultórios, as clínicas especializadas, os ambulatórios especializados e as policlínicas (83%) (tabela 1).

Tabela 1
Estabelecimentos segundo natureza jurídica e tipo – Brasil e regiões, 2013

As unidades com leitos para internação estão distribuídas em aproximadamente 3,5 mil municípios. Destaca-se que, se por um lado, apenas 2% dos estabelecimentos possuem mais de 300 leitos, distribuídos em apenas 2% dos municípios que oferecem internação, por outro lado, a grande parte dos estabelecimentos que oferecem internação no País (80%) possui menos de 100 leitos, são os chamados hospitais de pequeno e médio porte (tabela 2).

Tabela 2
Número e percentual de estabelecimentos e de municípios segundo número de leitos disponibilizados – Brasil, 2013

Entre os 430 mil leitos, 37.968 são de UTI e estão divididos muito mais homogeneamente entre SUS e não SUS - respectivamente, 18.970 (50,3%) e 18.998 (49,7%) - quando comparados com a totalidade dos leitos.

Na relação entre leitos UTI e gerais, observa-se uma maior complexidade nos leitos não SUS (14%) do que no SUS (6%). Este desequilíbrio é mais evidente em alguns municípios centrais, como São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Niterói, com oferta privada bastante superior à oferta no SUS.

A figura 1 mostra a oferta de leitos de UTI nos municípios, classificando-os como SUS, não SUS ou ambos. Os leitos não SUS estão presentes em 374 municípios, sendo a única oferta de leito de UTI disponível em 49 municípios do País, com 642 leitos (figura 1).

figura 1
Municípios segundo disponibilidade de leitos de UTI SUS, não SUS ou ambos – Brasil, 2013

Em relação ao trauma de alta complexidade, apenas 41 hospitais em 30 municípios possuem os oito itens necessários para habilitação no trauma de alta complexidade. Entre eles, 17 são públicos, 21 são privados sem fins lucrativos e 3 privados com fins lucrativos.

Do ponto de vista dos investimentos para a reorganização da rede de atenção ao trauma de alta complexidade, observa-se que existem 99 hospitais em 50 municípios que possuem 7 das 8 estruturas analisadas (gráfico 1), sendo 34 públicos, 56 privados sem fins lucrativos e 9 privados com fins lucrativos. Entre esses 99 hospitais, a estrutura que falta para completar o mínimo para serem habilitados é: radiologia intervencionista (39 hospitais), ressonância magnética (30 hospitais), reabilitação (16 hospitais), hemoterapia (9 hospitais), neurocirurgia e ortopedia-traumatologia (4 hospitais), mais de 100 leitos (1 hospital).

Gráfico 1
Hospitais e municípios segundo número de estruturas para trauma de alta complexidade existentes – Brasil, 2013

Caso sejam alocados recursos em 50 dos 99 hospitais com deficit de apenas uma das estruturas analisadas, o Brasil mais que dobraria o número de municípios com capacidade de assistência ao trauma de alta complexidade, passando de 30 para 80 municípios cobertos.

Ao agrupar os municípios com sete ou oito das estruturas para atendimento do trauma complexo, observa-se com clareza a escassez de hospitais disponíveis para esse atendimento nas regiões Norte e Nordeste. Essas unidades estão concentradas nas regiões Sudeste e Sul, especialmente nos municípios de São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Salvador, Belo Horizonte, Santos e Recife, que possuem ao menos um hospital com as oito estruturas exigidas. Em 14 municípios, onde estão 37 hospitais com 7 das 8 estruturas exigidas, também dispõem de uma unidade com as 8 estruturas (figura 2).

figura 2
Municípios segundo classificação dos estabelecimentos por número de estruturas para o trauma complexo – Brasil, 2013

Discussão

Os resultados acima apresentados têm como finalidade subsidiar, em especial, escolhas alocativas na área do trauma de alta complexidade, com vistas a subsidiar a rede de recursos físicos de saúde em seus processos futuros de reorganização e planejamento da atenção à saúde. Parte-se do suposto que o elevado custo do investimento em C&T e a real limitação de recursos no setor público cada vez mais exigem fazer escolhas de onde realizar o investimento.

A primeira questão que se coloca sobre a organização da rede de atenção à saúde brasileira está no desequilíbrio entre a distribuição de serviços no território e as disparidades entre o SUS e o setor privado. Especialmente na atenção hospitalar, a oferta de leitos SUS e não SUS, bem como sua distinta relação de complexidade, demonstra importante heterogeneidade da capacidade de atendimento de cada setor.

Ao ter como imagem objetiva a reorganização dos serviços vinculados ao setor público para o aumento da oferta de serviços de média complexidade, consultas e exames, o sistema de saúde brasileiro ainda esbarra em uma questão relevante que é a dificuldade da administração municipal em investir na ampliação da capacidade instalada pública neste nível de atenção, dados os desafios próprios da gestão que consistem, entre outros, na necessidade de quadro técnico capacitado na gestão pública, com continuidade/estabilidade no serviço público.

A baixa oferta de hospitais de mais de 100 leitos é mais um fator agravante da dificuldade de reverter os indicadores negativos para a organização desses serviços. Tem sido discutido o papel dos pequenos hospitais na atenção ao cuidado e, embora os estudos apresentem diferentes classificações quanto ao número de leitos para a definição de hospital de pequeno porte, em geral aponta-se que a taxa de ocupação tende a ser mais baixa nos hospitais com menos de 100 leitos, além disso, identificou-se maior custo dos procedimentos, maior frequência de problemas de segurança, baixa resolutividade dessas unidades e insuficiência da atenção ambulatorial especializada.

O estudo demonstrou importantes vazios assistenciais na oferta de serviços, como de leitos de UTI, que na atualidade são imprescindíveis para a qualidade da atenção em quase todas as linhas de cuidado. O volume de leitos de UTI no País é criticamente insuficiente, e os investimentos não poderão se limitar ao preenchimento de vazios e ao reequilíbrio na oferta público-privada, mas deverão cobrir uma nova necessidade.

A fim de responder às novas demandas de forma resolutiva, especialistas no tema apontam que a proporção de leitos de UTI, hoje estabelecida em Portaria Ministerial entre 4% e 10%, tende a aumentar em função das mudanças na complexidade da atenção e nos perfis demográfico e epidemiológico da população. Estes deveriam passar a representar 20% dos leitos de hospitais de alta complexidade nos próximos 20 anos. Mais uma vez, o SUS, com seus 6% de leitos de UTI em relação aos leitos totais, está em desvantagem com o setor privado, que já alcançam 14%.

No caso da atenção ao trauma de alta complexidade, não somente a insuficiência quantitativa como também de dispersão no território nacional dos leitos de UTI interferem na possibilidade de aumento da oferta de Centros de Trauma.

Este estudo mostrou que, caso sejam alocados recursos em 50 dos 99 hospitais com deficit de apenas uma das estruturas analisadas, o Brasil mais que dobraria o número de municípios com capacidade de assistência ao trauma de alta complexidade, passando de 30 para 80 municípios cobertos.

Conclusões

Quando se considera a grande quantidade de recursos existentes que não estão em uso, pode ser mais interessante para o País colocar em uso o que já existe e diminuir sua ociosidade do que realizar investimentos de aquisição de novos recursos e unidades, mesmo que essa transformação exija a reestruturação ou a realocação, pela migração de recurso, de um local para outro.

No caso do trauma de alta complexidade, a decisão de aquisição ou realocação de um determinado equipamento, por exemplo, deve ser feita preferencialmente nos municípios e estabelecimentos do SUS que já contam com praticamente todas as demais estruturas necessárias para atender a esse trauma e, também, nos municípios que têm potencial de se tornar polo de rede do SUS no trauma.

Destaca-se que os recursos precisam ser alocados nas unidades públicas para de fato interferir na reorganização da oferta do SUS. Parte-se do pressuposto que o não investimento no SUS enfraquece o sistema, fortalece a expansão e a consolidação da oferta privada, reforçando o desequilíbrio público/privado na oferta de serviços de média complexidade, e ainda concorre com iniciativas em vigor no âmbito internacional que buscam influenciar a configuração do sistema de saúde brasileiro - como a Cobertura Universal à Saúde - e no Congresso Nacional, favoráveis ao setor privado e em detrimento ao SUS, como a PEC 451 (obriga o empregador a oferecer plano privado para vínculo empregatício, proposta pelo Deputado Eduardo Cunha em 2014), a Lei nº 13.097 (permite a participação direta ou indireta e controle do capital estrangeiro na saúde de 2015) e a Agenda Brasil (proposta pelo Senador Renan Calheiros em 2015). Todas consistem em fortes ameaças à consolidação do SUS e do direito à saúde.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2016

Histórico

  • Recebido
    Fev 2016
  • Aceito
    Jul 2016
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
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