Tudo a temer: financiamento, relação público e privado e o futuro do SUS

Ademar Arthur Chioro dos Reis Ana Paula Menezes Sóter Lumena Almeida Castro Furtado Silvana Souza da Silva Pereira Sobre os autores

Introdução

A organização jurídico-política brasileira, típica do Estado capitalista e estabelecida desde a Proclamação da República, permitiu que o capital pautasse a lógica de organização da saúde, do modelo campanhista adotado no início do século 20 ao Sistema Único de Saúde (SUS).

O final da década de 1970 foi marcado pela derrocada da ditadura militar, declínio do milagre econômico e grave crise do modelo de assistência médica previdenciária. Surge, nesse período, o movimento da Reforma Sanitária, que produziu uma mobilização nacional que influenciou na inclusão da saúde como um direito universal na Constituição Federal de 1988 (CF 88).

A CF 88 e as Leis Federais nº 8.080/90, nº 8.142/90 e nº 9.656/98 sustentam a organização do sistema de saúde brasileiro. Outras leis complementares e atos normativos do Ministério da Saúde (MS) e de suas agências reguladoras serviram de base para a implantação do SUS, um sistema público de saúde universal, integral e equânime. Cabe ao SUS, ainda, regular um subsistema privado, suplementar, embasado no direito do consumidor, na garantia da integralidade da atenção e segurança do paciente, ainda que orientado pela lógica de mercado. Ressalta-se que esse subsistema foi criado na década de 1960 e atuou sem nenhuma regulação até 1998.

Os avanços produzidos pelo SUS em quase três décadas são inquestionáveis (PAIM 2011PAIM, J. et al. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. 2011. Lancet[Internet]. 2011. p. 11-31. (Série Brasil). Disponível em: <http://actbr.org.br/uploads/conteudo/925_brazil1.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2016
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). A ampliação de cobertura da atenção básica para mais de 73% da população, a Estratégia Saúde da Família, reforçada pelo Programa Mais Médicos; os cuidados na saúde bucal por meio do Brasil Sorridente; o programa de vacinas e medicamentos; o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu-192), Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) são alguns exemplos. O SUS oferece o maior sistema público de transplantes do mundo e um sistema público de sangue e hemoderivados extremamente seguro. Destaca-se, ainda, a reforma psiquiátrica, cuidando aos transtornos mentais e pessoas em uso abusivo de álcool e drogas em liberdade e com dignidade.

A implementação do SUS, ao se deparar com inúmeros desafios, problemas e fragilidades de ordem política, econômica, gerencial e assistencial, produziu uma importante dissociação entre o 'SUS constitucional' e o 'SUS real'. Embora tenha resultado em mais acesso à saúde, melhoria dos indicadores de saúde e da qualidade de vida dos brasileiros, em particular quando comparado ao modelo excludente vigente antes de 1988, não foi capaz de gerar confiança e legitimidade social na população brasileira, que aponta a saúde como o principal problema do País e aspira como ideal de consumo o acesso ao modelo privado de atenção à saúde.

Tal situação não pode ser explicada tão somente pela permanente utilização dos meios de comunicação para satanizar o SUS e vender a saúde privada como solução. É determinada por desafios e problemas ainda não superados, que resultam na crise do SUS, erigido em um país de estrutura federativa complexa, que garante ampla autonomia aos entes federados, mas que é ainda marcado por uma cultura política fortemente centralizadora, clientelista e patrimonialista.

A implantação do SUS, a partir de 1989, constituiu-se em um projeto marcadamente contra-hegemônico (GRAMSCI, 1991GRAMSCI, A. O Conceito de Hegemonia em Gramsci3. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1991.). O projeto vitorioso na primeira eleição presidencial realizada a partir da redemocratização foi aquele capitaneado por Fernando Collor, antagônico aos ideários do SUS (CEBES, 1992CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES). Saúde é qualidade de vida. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, n. 35, p. 7-18, out. 1992.). De caráter neoliberal, preconizava o Estado Mínimo e a estratificação de clientela. De certa maneira, os interesses do capital financeiro estiveram fortemente presentes, ainda que em diferentes intensidades, na conformação do Estado brasileiro e na sua lógica de formulação de políticas públicas e marcaram a condução da política de saúde e o forte tensionamento na implantação do SUS também nos governos Itamar, FHC (Fernando Henrique Cardoso), Lula e Dilma.

Somam-se a isso os desafios inerentes à produção de um sistema universal em um país com 206 milhões de habitantes e dimensão geográfica continental, grandes diferenças regionais, estrutura econômico-social heterogênea e que enfrenta transformações no padrão de saúde, determinadas por profundas mudanças demográficas, epidemiológicas e nutricionais. Além do mais, confronta-se com problemas crônicos e graves, ainda não solucionados, em relação ao modelo de atenção à saúde, à gestão do trabalho e da educação em saúde, ao planejamento e à gestão do sistema e dos serviços de saúde, à judicialização da saúde, entre outros.

Para a compreensão do processo de desenvolvimento do SUS e da grave crise que atravessa, duas questões revestem-se de importância diferenciada: o (crônico) subfinanciamento da saúde e a relação público e privado. São temas que atravessam fortemente a conformação dos vários desafios hoje enfrentados, e analisá-los constitui-se no principal objetivo deste artigo de opinião que expressa a visão de seus autores, implicados com a construção do SUS. Procura-se refletir sobre os rumos do SUS no contexto da crise política e econômica estabelecida no País que deu margem à ascensão de Temer ao poder a partir do golpe jurídico-político que resultou na deposição do governo de Dilma Rousseff e possibilidades de enfrentamento à forte ameaça à democracia e aos direitos sociais.

O (crônico) subfinanciamento da saúde no Brasil

Assegurar um financiamento público adequado que viabilize a garantia do direito à saúde prevista na CF 88 tem sido um dos maiores desafios para o SUS. O gasto total em saúde, no Brasil, atingiu 9, 7% do Produto Interno Bruto (PIB), valor próximo ou superior aos de alguns países desenvolvidos (OECD, 2013______. Health expenditure, public (% of GDP) World Bank, 2013. Disponível em: <http://data.worldbank.org/indicator/SH.XPD.PUBL.ZS>. Acesso em: 12 set. 2016.
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). Contudo, em relação ao percentual do gasto total em saúde, este foi de apenas 48, 2%, inferior ao de países latino-americanos (como Argentina, 67, 1%; Colômbia, 76%; Costa Rica, 75%; Cuba, 93%; e México, 51, 7%) e equiparável ao dos Estados Unidos (47, 1%). Países com sistemas universais despendem mais de 70% do gasto total em saúde com seus sistemas públicos, como demonstrado na tabela 1. Evidências internacionais sugerem que a universalização dos sistemas de saúde implica gastos públicos iguais ou superiores a 70% dos gastos totais em saúde, estando o Brasil mais de 20 pontos percentuais abaixo desse patamar. Em 2013, os gastos per capita públicos com saúde no Brasil foram de US$ 525 (OECD, 2013______. Health expenditure, public (% of GDP) World Bank, 2013. Disponível em: <http://data.worldbank.org/indicator/SH.XPD.PUBL.ZS>. Acesso em: 12 set. 2016.
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), valor baixo se comparado com outros países. Isso significa um gasto diário per capita inferior a R$ 3, 00 para garantir cuidado integral e universal.

Tabela 1
Gastos em saúde – comparação internacional

A maioria dos gastos com a saúde segue sendo privado. Em 2015, 26% da população possuía planos de saúde (ANS, 2016AAGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (ANS). Dados e Indicadores do Setor. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setor#>. Acesso em: 28 jul. 2016.
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), e o setor movimentou cerca de R$ 132 bilhões, contra R$ 236 bilhões de gastos públicos. As despesas públicas em saúde per capita (R$ 1, 17 mil) representam menos da metade do valor gasto pelos planos de saúde (R$ 2, 5 mil) com seus usuários.

A iniquidade do SUS, segundo Medici (2010)MEDICI, A. Breves considerações sobre a relação entre direito sanitário e financiamento à saúde no Brasil. In: SANTOS, L. (Org.). Direito da saúde no Brasil. Campinas: Saberes, 2010. p. 243-78., não está apenas no grau de utilização do sistema por ricos e pobres, mas na natureza dos procedimentos disponibilizados pelo sistema aos mais ricos, que utilizam o SUS de forma complementar aos planos de saúde na busca por atendimentos de alto custo e de alta tecnologia, geralmente não cobertos pelos planos de saúde.

Os gastos privados em saúde no Brasil representaram 51, 8% dos gastos totais, sendo mais da metade com gastos diretos do bolso das famílias (prioritariamente com medicamentos), contribuindo para a iniquidade no financiamento da saúde na medida em que o acesso a serviços está condicionado ao poder de compra. Outra grave distorção são as deduções no imposto de renda de despesas privadas. Apenas em 2013, foram deduzidos R$ 13, 5 bilhões, que equivalem a 16% das despesas federais em saúde nesse ano. Agregados todos os componentes relativos à função saúde, chega-se a um valor da ordem de R$ 21 bilhões (BRASIL, 2015B______. Ministério da Saúde. Relatório Final do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre órteses, próteses e materiais especiais (GTI-OPME)2015b. Disponível em: <https://www.editoraroncarati.com.br/v2/phocadownload/relatorio_final_gti_opme.pdf>. Acesso em: 28 set. 2016.
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).

O indiscutível subfinanciamento do SUS decorre do fato de que seu mandamento constitucional generoso não foi acompanhado de dispositivos que garantissem, do ponto de vista econômico, seus princípios. A implantação dos novos direitos sociais coincidiu com um período de hiperinflação e restrições macroeconômicas. O movimento mundial da Reforma do Estado, pautado pelos objetivos do sistema financeiro, expressa-se no Brasil com grande crescimento do setor privado e fortalecimento das regras de mercado na saúde e na previdência social, por meio das seguradoras privadas, e um alto crescimento da dívida pública, que impediu o aumento dos orçamentos da área social, incluindo a saúde (MENDES; MARQUES, 2009MENDES, A.; MARQUES, R. M. O financiamento do SUS sob os "ventos" da financeirização. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 841-50, 2009.; PAIM , 2011PAIM, J. et al. O sistema de saúde brasileiro: história, avanços e desafios. 2011. Lancet[Internet]. 2011. p. 11-31. (Série Brasil). Disponível em: <http://actbr.org.br/uploads/conteudo/925_brazil1.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2016
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). O percentual mínimo de 30% do Orçamento da Seguridade Social destinado para o SUS, constante nas disposições transitórias da CF 88, foi desconsiderado.

Em 1989, observam-se os mais baixos índices de gastos com saúde e o mais alto grau de deterioração e desprestígio do sistema de saúde. O Plano Quinquenal de Saúde do governo Collor inspirava-se na focalização no atendimento aos 'descamisados', um modelo de atenção voltado às periferias urbanas marginais e à pobreza rural por meio de uma rede extensiva de serviços de baixo custo, ferindo os princípios fundamentais do SUS (CEBES, 1992CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DE SAÚDE (CEBES). Saúde é qualidade de vida. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, n. 35, p. 7-18, out. 1992.).

Em 1993, a crise foi agravada, pois além de não se cumprir os 30% do OSS para a Saúde, disposto na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), o Ministério da Previdência suspendeu o repasse dos valores arrecadados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e previstos, orçamentariamente, para a saúde. Foi decretado, pelo governo federal, Estado de Calamidade Pública, e, novamente, recorreu-se ao empréstimo financeiro no Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Ainda nesse ano, demonstrando a prioridade das medidas de ajuste fiscal, o governo criou o Fundo Social de Emergência, hoje denominado Desvinculação de Receitas da União (DRU), que passou a retirar parte das receitas destinadas à seguridade social e às receitas dos Fundos de Participação dos Estados e dos Municípios (UGÁ; PORTO; PIOLA, 2012UGÁ, M. A. D.; PORTO, S. M.; PIOLA, S. F. Financiamento e alocação de recursos em saúde no Brasil. In. GIOVANELLA, L. et al Políticas e sistema de saúde no Brasil2. ed. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2014. p. 395-425.).

Em 1996, para superação da crise do financiamento da saúde, houve a criação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), cujo produto da arrecadação deveria ser destinado ao Fundo Nacional de Saúde (FNS). Em média, no período entre 1997 e 2007, quando foi extinta, a CPMF respondeu por um terço dos recursos destinados ao MS, e sua contribuição foi mais efetiva para a estabilidade do financiamento do que para a ampliação de recursos, visto que seu impacto foi amortecido pela retirada de outras fontes.

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 169, apresentada em 1993, propunha destinar à saúde 10% da receita de impostos da União, DF, estados e municípios e 30% do Orçamento da Seguridade Social. No Conselho Nacional de Saúde, foram aprovadas Resoluções (67 e 68) no mesmo sentido, propondo a vinculação constitucional de recursos. Outras PECs foram apresentadas, e várias tentativas de negociação foram frustradas até o ano 2000, quando foi promulgada a EC-29, que teve como objetivo comprometer as três esferas de governo com o financiamento da saúde, definir o que seriam Ações e Serviços Públicos de Saúde (ASPS) e estabelecer fontes estáveis de financiamento, prevenindo crises ou situações de insolvência (BRASIL, 2000______. Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000. Altera os arts. 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescenta artigo ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. Diário Oficial [da] União. Brasília, DF, 13 set. 2000. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 21 jul. 2016.
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). Estados ficaram obrigados a aplicar em saúde, no mínimo, 12% de sua receita bruta, municípios, 15% da receita de impostos municipais e a União, o montante aplicado no ano anterior corrigido pela variação nominal do PIB. A regulamentação por lei complementar só aconteceu em 2012, por meio da Lei Complementar nº 141.

A EC-29 levou a um crescimento dos recursos aplicados em ASPS de 2, 9% em 2000 para 4, 7% do PIB em 2013 (OECD, 2013______. Health expenditure, public (% of GDP) World Bank, 2013. Disponível em: <http://data.worldbank.org/indicator/SH.XPD.PUBL.ZS>. Acesso em: 12 set. 2016.
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). Em 2014, os estados aplicaram em ASPS R$ 57, 4 bilhões (27%), os municípios, R$ 65, 3 bilhões (30%) e a União, R$ 92, 6 bilhões (43%). Entre 2003 e 2015, o gasto federal em ASPS evoluiu de R$ 27, 2 bilhões para R$ 99, 2 bilhões, mais do que triplicando em termos nominais.

Em 2012, diversas entidades da sociedade civil lançaram o Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública (Movimento Saúde+10), propondo um Projeto de Lei (PL) de iniciativa popular com o objetivo de alterar o valor mínimo a ser aplicado pela União. O Saúde+10 entregou ao Congresso o projeto de iniciativa popular com mais de 1, 9 milhão de assinaturas pedindo a destinação de 10% das receitas correntes brutas da União para a saúde pública. No entanto, foi aprovada a EC nº 86/2015, tornando obrigatória a execução das emendas parlamentares individuais e alterando a regra de vinculação dos recursos federais para a saúde (BRASIL, 2015A______. Emenda Constitucional n° 86, de 17 de março de 2015. Altera os arts. 165, 166 e 198 da Constituição Federal, para tornar obrigatória a execução da programação orçamentária que especifica. Diário Oficial [da] União. Brasília, DF, 17 mar. 2015a. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 21 jul. 2016.
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). O piso deixa de ser calculado com base na variação nominal do PIB e passa a ter como base a receita corrente líquida (RCL) da União, da seguinte forma: 13, 2% da RCL no primeiro exercício financeiro subsequente ao da promulgação da EC; 13, 7% no segundo; 14, 1% no terceiro; 14, 5% da RCL no quarto e, 15% da RCL em 2020.

O subfinanciamento pautou a XV Conferência Nacional de Saúde. O Conselho Nacional de Saúde lançou a Frente em Defesa do SUS e apoia a aprovação da PEC 01/2015 que, entretanto, foi engavetada. Em agosto deste ano, o governo federal, ainda de transição, encaminhou a PEC 241/2016 que limita os gastos públicos federais, questão que será abordada mais adiante.

Relação público e privado

O desenvolvimento do setor privado na saúde no Brasil está profundamente ligado à opção modernizante implementada pelo regime militar. Ao desintegrar os esquemas associativos que davam voz aos pleitos sociais, impôs uma política de racionalidade privatizante, que, embora tecnicamente justificada, desencadeou e exacerbou traços perversos (ALMEIDA, 1998ALMEIDA, C. O Mercado Privado de Serviços de Saúde no Brasil: Panorama Atual e Tendências da Assistência Médica Suplementar. 1998. (Texto para Discussão no 599). Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_0599.pdf>. Acesso em: 27 set. 2016.
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). Foi ainda na ditadura que se erigiu o complexo industrial na saúde, formado para suprir uma necessidade de consumo de produtos de saúde em nosso país.

Para Gadelha (2009)GADELHA, C. A. G. et al. O Complexo Econômico-Industrial da Saúde no Brasil: dinâmica de inovação e implicações para o Sistema Nacional de Inovação em saúde. Revista Brasileira de Inovação. Campinas, v. 12, n. 2, p. 251-282, jul. /dez. 2013., o complexo da saúde pode ser dividido em três subsistemas: um que congrega indústrias de base química e biotecnológica (farmacêutica, vacinas, hemoderivados e reagentes para diagnóstico); o das indústrias de base mecânica, eletrônica e de materiais (equipamentos e materiais médico-hospitalares e odontológicos); e, por fim, o de serviços de saúde (produção hospitalar, laboratorial e de serviços de diagnóstico e tratamento). Deve-se acrescentar a esse modelo um quarto subsistema, o da saúde suplementar. A regulação do MS sobre o setor privado se dá em torno dos três setores descritos na figura 1:

Figura 1
Regulação estatal e provimento de serviços privados no Brasil

Segundo Pereira (2009)PEREIRA, S. S. S. As inovações na regulação: o caso da saúde suplementar no Brasil. In: AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (BRASIL) (Org.). Atenção à saúde no setor suplementar: evolução do processo regulatório. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/images/stories/Materiais_para_pesquisa/Materiais_por_assunto/Livro_Manual_AtencaoSaude.pdf>. Acesso em: 21 dez. 2016.
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, as agências reguladoras da saúde foram criadas para que o Estado moderno pudesse regular o setor privado de uma forma mais organizada, trazendo homogeneidade, estabilidade e competitividade para esses setores. Os três segmentos privados se instituíram e cresceram de formas e com objetivos diferentes. Enquanto o setor de fornecimento e de prestação de serviços cresceu para atender toda a população brasileira, usuária ou não do SUS, o de prestação de serviço suplementar se instalou como prestador de assistência médica previdenciária, a quem deve parte significativa do seu crescimento.

Os setores de fornecimento e de prestação de serviços conseguiram se organizar e dependem, de certa forma, do SUS. Quanto mais recursos e acesso a compras públicas, maior o faturamento, levando-os a pressionar por preços e incorporação de suas tecnologias e produtos. Essa disputa estimulou a competição na indústria de medicamentos e insumos. Assim, o complexo produtivo em saúde conseguiu produzir uma pauta comum para o setor, com ênfase na incorporação, desburocratização, aumento de recursos financeiros e compras públicas, compreendendo o poder do SUS como alavancador e garantidor de um ambiente de negócios favoráveis aos seus interesses. A prestação de serviços suplementares cresceu muito nos últimos anos, passando de 30.909.969 beneficiários em 2000, para 48.487.129 em 2016. O aumento da taxa de cobertura da população brasileira com saúde suplementar no período, de 18, 2% para 25, 0% (ANS, 2016AAGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR (ANS). Dados e Indicadores do Setor. Disponível em: <http://www.ans.gov.br/perfil-do-setor/dados-e-indicadores-do-setor#>. Acesso em: 28 jul. 2016.
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), pode ser atribuído à própria atuação da agência com regras claras, trazendo mais segurança ao consumidor, e ao aquecimento do mercado de trabalho, com aumento dos empregos formais, possibilitando, por meio dos contratos coletivos, a aquisição de planos de saúde. Esse setor, entretanto, foi incapaz de dialogar entre si e produzir uma pauta centrada em interesses comuns. Reagir e resistir à regulação governamental imposta a partir de 1998 foi a única agenda que os uniu, ainda que com divergências, já que alguns setores, como operadoras em franco crescimento na região nordeste e as administradoras de benefícios, consolidaram-se, em virtude, também, das regras regulatórias.

Três questões merecem ser destacadas na relação público e privado: a judicialização, o lobby e pressão da indústria da saúde e a competição do setor suplementar com o SUS.

A judicialização da saúde por incorporação ou fornecimento de medicamentos e procedimentos ainda não disponibilizados pelo sistema público e suplementar tem se tornado um dos difíceis desafios da saúde brasileira e, grosso modo, dá-se pelo conflito que se instala entre os diversos atores e interesses envolvidos, gerado pela ideia de que a efetivação do direito à saúde deve dar-se independentemente da política pública, da cobertura contratada na saúde suplementar e da análise das evidências de segurança, eficácia e efetividade disponíveis. Entre 2010 e 2014, o MS gastou mais de R$ 2, 1 bilhões com ações judiciais para aquisição de medicamentos, equipamentos, insumos, realização de cirurgias e depósitos judiciais. Não se pode negar aos cidadãos o direito de utilizar a justiça para alcançarem seus direitos. O equilíbrio entre o direito individual, o coletivo e a responsabilidade dos órgãos sanitários em evitar o risco que os pacientes correm ao utilizar medicamentos e procedimentos não avaliados deve ser discutido sem paixões e com a responsabilidade que o tema merece. Até o poder legislativo, nos últimos anos, vem se arvorando a incorporar medicamentos e procedimentos em legislações específicas, na maioria das vezes, sem as comprovações e trâmites científicos que comprovem a eficácia e segurança deles.

Outro grave problema é a pressão da indústria e de fornecedores de órteses e próteses, que atuam como verdadeiras máfias, corrompendo profissionais, pressionando o sistema público e privado para utilização de produtos de seu interesse, por meio judicial, lobby, vantagens e ilicitudes. Um mercado muito pouco regulado, que atua como lhe convém, prejudicando os cidadãos e a organização dos sistemas público e privado de saúde e impactando nos gastos em saúde. Há necessidade que sejam implantadas, imediatamente, regulações de ordem sanitária, econômica, de uso, penalidades e proibições, ações apontadas no Relatório Final do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre órteses, próteses e materiais especiais (BRASIL, 2015B______. Ministério da Saúde. Relatório Final do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre órteses, próteses e materiais especiais (GTI-OPME)2015b. Disponível em: <https://www.editoraroncarati.com.br/v2/phocadownload/relatorio_final_gti_opme.pdf>. Acesso em: 28 set. 2016.
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).

Por último, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (OECD, 2008ORGANISATION FOR ECONOMIC CO-OPERATION AND DEVELOPMENT (OECD). Brasil: fortalecendo a governança para o crescimento. Relatório sobre a reforma regulatória. OECD, 2008. Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/publicacoes-oficiais/catalogo/lula/oecd-reviews-of-regulatory-reform-brazil-2008/@@download/file/oecd%20reviews%20of%20regulatory%20reform%20brazil%202008.pdf>. Acesso em: 27 set. 2016.
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), em seu peer review, apontou que o Sistema de Saúde Brasileiro é duplicado na assistência. Assim, o sistema suplementar, de forma geral, compete com o SUS para ter os mesmos usuários e para contratar a mesma rede prestadora. Há, ainda, a utilização da rede do SUS sem o adequado ou devido ressarcimento. Desde que a regulação começou a ser implantada, as operadoras, de forma geral, reagem a oferecer a atenção integral à saúde. Tensionam o Estado para que autorize a operação de planos de saúde subsegmentados, isto é, com coberturas menores e diversas, sob o argumento de que isso produzirá expansão da oferta e desafogará o SUS, sem obter guarida governamental até agora, o que gera, por parte das operadoras, inúmeras críticas à atuação do MS e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

O que será da saúde a partir do governo Temer?

Em maio de 2016, com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff pela Câmara dos Deputados, iniciou-se a última fase de um golpe que se consumou em 31 de agosto, com o impedimento definitivo da presidenta pelo Senado Federal. Milhões de pessoas que estavam nas ruas dizendo não ao golpe continuam mobilizadas, no País e no exterior, denunciando o caráter golpista do governo Temer e pedindo eleições livres e democráticas. Com o despudor e a pressa características de quem não tem compromisso com o voto popular, Temer escancara o projeto neoliberal, sem apreço pelos direitos sociais inscritos na CF 88.

Com a Medida Provisória (MP) 727, reinstitui o processo de desestatização da economia, visando entregar as empresas estatais que interessam ao capital privado. Medidas emblemáticas de um governo sem compromisso social: Estado mínimo submetido aos interesses de mercado, utilizando-se da crise econômica para justificar o desmonte do Estado social, por programas de austeridade para solução da crise, reduzindo os direitos sociais conquistados na Constituição democrática, como aponta Mazza (2016)MAZZA, W. P. O desmonte do Estado Social não é solução para a crise financeira e política2016. Disponível em: <http://www.emporiododireito.com.br/?s=O+desmonte+do+Estado+Social+n%C3%A3o+%C3%A9+solu%C3%A7%C3%A3o+para+a+crise+financeira+e+pol%C3%ADtica>. Acesso em: 26 set. 2016.
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Somos surpreendidos por propostas que reduzem a responsabilidade e a participação do Estado na condução das políticas sociais e que desmantelam direitos. Políticas de caráter universal são apontadas como inviáveis e responsáveis pela crise. Floresce o debate sobre a focalização de diversas políticas sociais.

Nesse contexto, o governo Temer impõe novos e graves contornos à dinâmica da crônica crise vivida pela saúde e produz a mais grave ameaça ao SUS em três décadas. A indicação de um engenheiro e deputado federal do Partido Progressista para o comando do MS, em um movimento de recomposição da base de apoio do executivo no Congresso Nacional, embora seja prática já utilizada em governos anteriores, revestiu-se de fundamental importância para a aprovação do impeachment de Dilma Rousseff e sustentação do projeto liberal e conservador das forças políticas e empresariais que se apoderaram do governo federal por meio de um golpe jurídico-parlamentar. Reflete a utilização do órgão responsável pelo comando nacional do SUS - e que detém o maior orçamento da União - para a produção de governabilidade, prática que está na raiz de parte dos problemas enfrentados na consolidação do SUS como política de Estado.

A composição do MS com quadros sem trajetória no SUS e na reforma sanitária potencializa a utilização intensiva da máquina pública de maneira clientelista, arregimentação de apoio político e atendimento de interesses privados, indo além da paralisação ou desmonte das políticas de saúde em curso. Ao longo dos primeiros seis meses de gestão, observam-se declarações polêmicas que apenas contribuem para o folclore anedótico da política nacional. Outras, mais graves, ferem de morte o SUS: a defesa explicita da revisão do seu tamanho; ou que o problema do SUS não é a falta de recursos e seu crônico subfinanciamento, mas a 'falta de gestão'; que os direitos sociais previstos na CF 88 não cabem no orçamento público e que, portanto, devem ser revistos. São posicionamentos que respaldam teses de economistas liberais - que atuam dentro e fora do governo - e de setores políticos e empresariais que apostam no desmonte do Estado Democrático de Direito, dos quais o SUS é uma das mais importantes expressões.

Entretanto, para os que têm se dedicado à luta pela construção do SUS em diversos sítios de atuação, independentemente de espectro político-partidário, tais manifestações afrontam os princípios constitucionais e trazem enorme preocupação diante da possibilidade concreta de produzirem um desmonte sem limites do SUS.

O MS passa a defender que não é sua atribuição (e nem de sua agência reguladora, a ANS) fiscalizar a qualidade dos planos de saúde, papel que deve ser desempenhado pelos próprios 'consumidores' e seus órgãos de defesa, expressando uma visão em que a saúde deixa de ser um direito social para se constituir objetivamente em mercadoria. A saída para a crise seriam os planos de saúde 'acessíveis', que desonerariam o Estado da necessidade de prover saúde para uma parcela de população, expandindo a oferta pelo mercado por meio de 'planos populares de saúde'. Tal proposta, embora, ainda não explicitada, pode ir ao encontro dos interesses e do pleito de setores do mercado que propõe, há muito tempo, a oferta de rol restrito de procedimentos e a utilização, sem ressarcimento, da rede pública ou privada contratada pelo SUS para a oferta de procedimentos de maior custo. Já é possível observar uma aliança ao projeto de setores importante do mercado de saúde suplementar, à revelia da legislação em vigor.

Há uma equação, entretanto, que precisa ser considerada. Quem pagará a conta da suposta expansão de 'planos populares' sem o aumento de gastos públicos por 20 anos? Sem subsídio governamental, parece não haver viabilidade para a expansão do mercado privado para setores da sociedade que não conseguem acessá-lo por desembolso direto ou por cobertura de seus empregadores, mesmo com as estratégias vigentes de renúncia fiscal e benefícios tributários (BAHIA, 2005BAHIA, L. Padrões e mudanças no financiamento e regulação do Sistema de Saúde Brasileiro: impactos sobre as relações entre o público e privado. Saúde e Sociedade, v. 14, n. 2, p. 9-30, 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-12902005000200003>. Acesso em: 9 nov. 2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
). Países que ampliaram cobertura por mercado, como é o caso mais recente dos EUA (ObamaCare), subsidiaram fortemente a operação com recurso público.

O gasto direto individual (out of pocket) dos brasileiros sobre o gasto total com saúde, que era de cerca de 50% em 1996, desde 2008, tem se mantido em 30%, delimitando um teto possível que não tenderá a crescer em cenário de crise econômica e de empregabilidade. Além disso, os gastos com planos privados de saúde variaram em torno de 20, 5%, em média, em relação aos gastos totais de 1995 a 2012, o que sugere um limite para expansão desses mercados, conforme já indicado por Ribeiro (2009)RIBEIRO, J. M. UHS development and hospital services rationing. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 771-782, 2009.. Não parece haver, portanto, perspectiva de prosperar iniciativas desta natureza.

Outra grave ameaça ao SUS - e que também se articula à lógica de sua privatização - é a PEC 451/14, de autoria do ex-deputado Eduardo Cunha, que propõe a alteração no parágrafo único do art. 7º da CF 88, obrigando todos os empregadores brasileiros a garantirem aos seus empregados serviços de assistência à saúde (suplementar), excetuados os trabalhadores domésticos. Um retorno deplorável à situação existente antes da criação do SUS, quando tínhamos os chamados 'indigentes', brasileiros que não possuíam cobertura previdenciária e dependiam apenas da filantropia (ALMEIDA; CHIORO; ZIONI, 2001ALMEIDA, E. S.; CHIORO, A.; ZIONI, F. Políticas Públicas e Organização do Sistema de Saúde: Antecedentes, Reforma Sanitária e o SUS. In: WESTPHAL, M. F.; ALMEIDA, E. S. (Org.). Gestão de Serviços de Saúde. São Paulo: Edusp, 2001. p. 13-50.). Outra proposta legislativa, sempre presente em proposições de congressistas, é a da anistia às multas e do passivo do ressarcimento dos planos privados de saúde ao SUS. Além de abrir mão dos recursos devidos, demonstra enorme liberalidade em relação ao capital privado.

A ameaça mais grave, e que terá impacto devastador para o SUS e para as demais políticas públicas, é a PEC 241/2016, de autoria do Poder Executivo, que altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, limitando os gastos públicos - aí inseridos os gastos com saúde - por 20 anos. Dessa forma, o orçamento do MS, por duas décadas, será reajustado apenas pela apuração da inflação (medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - IPCA). A PEC desconsidera as necessidades de saúde da população, o impacto do crescimento populacional, da transição demográfica e do envelhecimento populacional (em 2030, mais de 30% da população terá mais do que 65 anos), da necessária expansão da rede pública para cobrir vazios assistenciais, o impacto da incorporação tecnológica (crescente e cumulativa na área da saúde) e dos custos associados à mudança do perfil assistencial determinado pela prevalência das doenças não transmissíveis e das causas externas, e da própria inflação setorial, superior aos demais setores da economia em âmbito internacional. Pior, desvincula os gastos sociais de qualquer possível crescimento de receitas nos próximos 20 anos. Assim, mesmo que aumente a arrecadação federal, não haverá investimentos nas áreas sociais.

O princípio básico da PEC é evitar que ganhos reais oriundos do crescimento econômico sejam automaticamente transferidos às despesas primárias e, portanto, aos gastos em ASPS. No que se refere à aplicação mínima, o problema se aprofunda na medida em que opta por uma base de partida deprimida pelo fraco desempenho da economia e da receita em 2016. Com isso, caso aprovada a PEC, o piso da saúde retrocederia em valores nominais, em relação ao valor orçamentário disponível em 2016. Apenas em 2018, o piso alcançaria os valores que devem ser empenhados no exercício atual.

Na prática, o aprofundamento da redução da parcela federal aplicada em saúde (em termos relativos e absolutos) imporia um encargo aos estados e municípios, que já se encontram em situação fiscal delicada e vêm ampliando seu percentual de participação no total da despesa de saúde desde os anos 2000, em decorrência da EC 29.

As despesas da União com saúde cairiam de 43% para 30% do total entre 2015 e 2022. Estados e municípios, que, em 2015, representaram 57% das despesas de saúde, passariam a ser responsáveis por 70% dos gastos em 2022. A União, portanto, responderia por menos de um terço das despesas totais em ASPS em 2022 (SÓTER; MORETTI, 2016SÓTER, A. P.; MORETTI, B. Análise preliminar dos efeitos da vedação do crescimento real das despesas federais e o comprometimento da universalidade do SUS. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA DA SAÚDE, 12., 2016. Anais... Salvador: Associação Brasileira de Economia de Saúde. Disponível em: <http://abresbrasil.org.br>. Acesso em: 29 set. 2016.
http://abresbrasil.org.br...
). Como os outros entes federativos não terão capacidade de financiar mais de 70% dos recursos do SUS, diante da regra proposta para o piso da saúde, é forte a probabilidade de um cenário de caos para os próximos anos, apontando para o risco de redução da oferta de serviços e o encolhimento ou inviabilização total do SUS.

Um exercício hipotético apoia estas afirmações, mostrando os efeitos da regra do piso federal de saúde, caso ela tivesse sido utilizada entre 2003 e 2015 (tabela 2).

Tabela 2
Despesas efetivas ASPS x PEC 241 (R$ mil), atualizado pelo IPCA, a preços 12/2015

A perda acumulada no período teria sido de 30% relativamente aos valores executados e à redução em relação ao efetivamente aplicado de quase um terço das despesas federais em ASPS. Se observados apenas os valores executados em 2015, pode-se constatar que o piso da saúde seria quase a metade do valor aplicado. A redução real dos valores tornaria inviáveis os programas criados ou ampliados no período, como o Mais Médicos, UPA, Samu, Farmácia Popular, Saúde da Família, Programa Nacional de Imunização, entre outros.

O financiamento de um sistema que atende a 206 milhões de pessoas requer ampliação em termos reais do valor aplicado em suas ações, sobretudo no contexto de crescimento das demandas por saúde. Mantido o SUS em seus preceitos constitucionais, a regra de financiamento em saúde não pode ser guiada apenas pela perspectiva fiscalista, sobretudo se observado que a proposta é que a PEC tenha vigência por pelo menos dez anos. É preciso observar as necessidades de saúde, inclusive, no médio e no longo prazo, considerando-se que o País deverá estar preparado para atender às demandas crescentes da população, em meio a transição demográfica, nutricional e epidemiológica já referida.

Conclusão

As mudanças conservadoras que apontam para o fim do SUS são fomentadas e produzem base simbólica no constructo societário a partir da insidiosa e permanente destruição da sua imagem produzida pelos meios de comunicação de massa, que expõem, de maneira desonesta e perversa, diariamente as mazelas do sistema, explorando seus problemas, sem jamais analisar ou indicar seus determinantes e sem considerar os êxitos do SUS na produção de acesso a saúde, melhoria dos indicadores de saúde e da qualidade de vida para milhões de brasileiros.

Nunca estivemos tão perto da implosão do SUS. De política de Estado, em construção e mundialmente referenciada, com suas contradições, desafios e complexidades, corremos o risco de vê-lo transformado em uma política de governo, amesquinhada e restritiva para os brasileiros excluídos do mercado de trabalho formal, em detrimento de um sistema que garanta acesso universal.

Uma lógica contra a qual tanto lutamos na década de 1990, mas que, desafortunadamente, ressurge nas propostas de golpistas e usurpadores do poder. Não contam com legitimidade social, mas se aproveitam da crise política e econômica que o País atravessa para impor uma agenda que nem os ícones mundiais da reforma liberal dos anos 1990 - como M. Thatcher e R. Reagan - e, no Brasil, Collor e FHC, ousaram implementar, derrotando o sonho de oferecer o SUS previsto na Constituição Federal, capaz de garantir acesso universal, integral e equânime para a população brasileira.

O SUS, nos últimos anos, foi perdendo legitimidade social. Pesquisas demonstram aprovação entre os usuários do SUS (BOLZAN , 2012BOLZAN, L. C. et al. Ouvidoria Ativa: A Inovação das Pesquisas de Satisfação na Ouvidoria-Geral do SUS. 2009. Disponível em: <http://www.sgc.goias.gov.br/upload/arquivos/2013-03/ouvidoria-ativa-a-inovacao-das-pesquisas-de-satisfacao-na-ouvidoria-geral-do-sus.pdf>. Acesso em: 28 ago. 2016.
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; COSEMS-SP, 2012CONSELHO DE SECRETÁRIOS MUNICIPAIS DE SAÚDE DO ESTADO DE SÃO PAULO (COSEMS-SP). Ministério da Saúde divulga pesquisa da Ouvidoria sobre grau de satisfação dos usuários do SUS. São Paulo: COSEMS-SP, 2012. Disponível em: <http://www.cosemssp.org.br/noticias/93/ministerio-da-saude-divulga-pesquisa-da-ouvidoria-sobre-grau-de-satisfacao-dos-usuarios-do-sus.html>. Acesso em: 27 set. 2016.
http://www.cosemssp.org.br/noticias/93/m...
), mas paradoxalmente apontam os planos de saúde como objeto de desejo dos trabalhadores que ascenderam economicamente no governo Lula (IESS, 2011INSTITUTO DE ESTUDOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR (IESS). Pesquisa IESS/Datafolha aponta que o plano de saúde é uma necessidade e desejo do brasileiro. Saúde Suplementar em Foco, São Paulo, n. 14, 2 maio 2011. Disponível em: <http://www.iess.org.br/?p=publicacoes&id=672&id_tipo=6>. Acesso em: 28 ago. 2016.
http://www.iess.org.br/?p=publicacoes&id...
). A inclusão social pelo acesso ao consumo, e não pela ampliação e fortalecimento das políticas públicas, diminuiu o engajamento dos trabalhadores nas lutas sociais.

O governo Temer, até o momento, não anunciou ou ofereceu uma única contribuição para o aperfeiçoamento do SUS. Apenas a perspectiva de restrição de gastos de um sistema já asfixiado pelo subfinanciamento e a privatização, alargando-a definitivamente na perspectiva da provisão e da ampliação do gasto privado em saúde, segundo as tipologias propostas por Maarse e Scatena (2006)MAARSE, H.; SCATENA, J. H. G. The privatization of health care in Europe: an eight-country analysis. J Health Polit Policy Law, Durham, n. 31, p. 981-1014, 2006. para a privatização.

Como reagir aos retrocessos e ameaças à democracia, aos direitos sociais e humanos e defender políticas públicas como o SUS? Esta pergunta tem alimentado o debate e ocupará as reflexões dos militantes que atuam em defesa do SUS e da democracia nos próximos tempos. É preciso enfrentar essa agenda, aprofundar a relação com os movimentos sociais e com os novos coletivos que se colocam na cena política e reencantá-los para a defesa de um sistema público, universal, integral e equânime. Precisamos superar uma máxima que tem confundido e despolitizado o movimento de defesa do SUS: não defendemos todos o mesmo SUS. Em seu bojo, são travadas disputas sobre o jeito de cuidar e de produzir saúde.

Disputamos o SUS que queremos quando enfrentamos com vigor, por exemplo, a epidemia de cesarianas, construímos uma política de alimentação segura e saudável, desconstruímos a excessiva medicalização da vida como caminho terapêutico adequado, investimos na qualificação das tecnologias leves para a produção de um cuidado de qualidade (MERHY, 1998MERHY, E. E. et al. A perda da dimensão cuidadora na produção da saúde: uma discussão do modelo assistencial e da intervenção no seu modo de trabalhar a assistência. In: REIS, A. T. et al (Org.). Sistema Único de Saúde em Belo Horizonte: reescrevendo o público. São Paulo: Xamã, 1998.), construímos estratégias para acolher na diferença a população trans, negra, as mulheres vítimas de violência, pessoas em situação de rua, os povos indígenas. É preciso engravidar nossos coletivos com os sonhos que constroem esse projeto de SUS, explicitar as disputas, tomar posição, fazer o debate político, ocupar os vários espaços. Encantar de novo a população e os trabalhadores. A luta de agora pede aprofundamento, sair das bandeiras genéricas e qualificar o debate. Todavia, para tanto, será necessário avançar na perspectiva de fortalecer o processo democrático e barrar o Estado golpista na sua sanha de diminuir os direitos e o próprio SUS.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016

Histórico

  • Recebido
    Set 2016
  • Aceito
    Nov 2016
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