RESUMO
Este artigo analisa os aspectos principais dos sistemas políticos federativos segundo teorias clássicas e contemporâneas e o caso do setor saúde brasileiro. O Brasil apresenta uma configuração federativa fundada na cooperação como resultado da transição democrática na qual foram fortalecidas as dimensões consensuais da democracia. Por outro lado, o enfraquecimento de aspectos madisonianos de separação de funções e revisão judicial comprometeu a coordenação política e a responsabilização na política de saúde. Argumenta-se que os aspectos cooperativos são comprometidos pela singularidade de municípios com poder federativo sem a criação de instituições compensatórias dos déficits competitivos.
PALAVRAS-CHAVE:
Federalismo; Sistema Único de Saúde; Políticas de saúde pública
Introdução
O federalismo como arranjo institucional tem relevância para a análise de políticas no Brasil, não apenas pelo óbvio fato de configurar o seu sistema político, mas pela trajetória histórica pendular em que maior ou menor centralização política esteve associada aos diferentes regimes republicanos. As configurações federativas variáveis quanto aos ciclos políticos, em termos de graus de autonomia dos governadores estaduais, desembocaram em um modelo que é singular entre as principais nações devido à repartição tripartite de poderes entre União, estados e municípios, a partir da Constituição de 1988.
O conceito de federalismo segue as teorias políticas, jurídicas ou fiscais que sustentam as análises de diversos autores. Logo, a literatura registra mais o debate sobre as modalidades do que uma definição objetiva e direta. Para permitir uma definição conceitual sintética, Valeriano Costa (2007)COSTA, V. Federalismo. In: AVELAR, L.; CINTRA, A. O. (Org.). Sistema político brasileiro: uma introdução. Rio de Janeiro: Konrad-Adenauer-Stiftung; São Paulo: Editora Unesp, 2007, p. 211-223. destaca dois modelos. Um deles é o norte-americano, em que estados preexistentes não se dissolvem em um Estado não unitário e que centraliza parte do poder. O outro modelo, que inclui o Brasil, segue o caminho inverso, onde Estados originalmente unitários descentralizam poder para formação de uma federação.
Uma importante parcela do debate sobre tipos de federalismo gira em torno de abordagens jurídicas e fiscais. Neste ensaio, entretanto, as dimensões políticas serão destacadas e com ênfase na dinâmica cooperação e competição e nos mecanismos de contrapesos institucionais.
O fundamento básico de todos os arranjos federativos é o objetivo de evitar a tirania do controle absoluto do poder em um indivíduo, fração política ou instituição. Isso ocorre em contraposição aos regimes unitários, onde a concentração da decisão e da responsabilização política é o objetivo perseguido, e os contrapesos decorrem dos processos eletivos e de instituições jurídicas.
Para o setor saúde, os mecanismos institucionais de pesos e contrapesos - típicos dos principais arranjos federativos no mundo e com variações, em que se destacam casos distintos, como o norte-americano e o germânico - e as dinâmicas entre cooperação e competição - expressas nos normativos do Sistema Único de Saúde (SUS) - representam, junto com o financiamento do setor público, os principais temas políticos relacionados à crise do federalismo cooperativo do sistema de saúde brasileiro.
Desde a Constituição de 1988, passando pela legislação infraconstitucional e, em caráter progressivo e aditivo, pelas diferentes Portarias e Decretos do governo federal, cada vez mais são enfatizados os fatores cooperativos na gestão de responsabilidades e atribuições entre os entes federados. As relações entre federalismo e políticas setoriais são, entretanto, povoadas de controvérsias.
As políticas indutivas da cooperação regional esbarram em dois grandes obstáculos: (i) a competição aberta entre governantes estaduais e municipais por recursos, incentivos e prerrogativas na provisão e no acesso aos serviços de saúde; e (ii) a disseminação de centenas de instituições multipartites na forma de colegiados estaduais e regionais que, para o exercício de poder efetivo, deveriam se constituir em centenas de minigovernos regionais assimétricos e que, em grande parte, tornaram-se poderosas estruturas de veto de políticas coordenadas no SUS.
Apesar de os objetivos de descentralização do sistema federativo serem virtuosos, embora virtudes sociais também sejam observadas em sistemas unitários e centralizados, na conjuntura do setor saúde brasileiro, a crise relacionada aos aspectos cooperativos é evidente.
Neste ensaio, são discutidos, inicialmente, alguns fundamentos dos diferentes regimes federalistas nas tradições clássica e contemporânea e seus mecanismos de contrapesos e dinâmicas cooperativas. Em seguida, as características do federalismo brasileiro são analisadas com destaque para a configuração vigente no setor saúde, a partir das disposições constitucionais de 1988. Por fim, algumas ideias são apresentadas em caráter preliminar para superar o quadro de vetos cruzados e sustentados entre milhares de atores políticos que inviabilizam a coordenação do sistema público de saúde em termos de acesso universal e redução das desigualdades regionais. Logo, o objetivo é discutir a crise política do federalismo cooperativo no âmbito do SUS - utilizando aspectos clássicos e contemporâneos da teoria política sobre o federalismo - e delinear estratégias para solucionar problemas de coordenação política relacionados às enormes assimetrias entre municípios e regiões do País.
Abordagens clássicas do federalismo
O federalismo como tema da filosofia política moderna aparece com força a partir de Maquiavel, que inclui mecanismos confederativos como um dos métodos utilizados por nações para estender e consolidar poderes. Nos Discursos, Livro II, publicados em 1531, (MACHIAVELLI, 2007MACHIAVELLI, N. Discourses on Livy. New York: Dover Publications, 2007.) destaca:
Aquele que tenha lido a história antiga com atenção, deve ter observado que três métodos foram usados pelas repúblicas para estender seus poderes. Um deles, seguido pelos antigos Etruscos, é formar uma confederação de muitos Estados, na qual nenhum tenha precedência sobre o resto em autoridade ou hierarquia e cada um permite aos demais compartilhar suas conquistas, como fazem os Estados da Liga Suíça nos dias de hoje e faziam os Aqueanos e Etolians na Grécia em tempos passados. (MAQUIAVELLI, 2007MACHIAVELLI, N. Discourses on Livy. New York: Dover Publications, 2007., P. 160).
Esse sistema de ligas é tratado como inferior, pelos limites à expansão de territórios e participantes, ao longevo modelo romano de formação de coalizões com aliados, com preservação do controle e da supremacia do governo central, porém, superior à dominação direta adotada por espartanos e atenienses, considerada inútil e fracassada segundo a experiência histórica. Maquiavel atribuía ao sistema confederativo dos etruscos a longevidade e a sustentabilidade desse povo em termos de controle regional, embora o compartilhamento de conquistas e o sistema de consultas dentro de tais Ligas impeçam a sua expansão territorial ou a proliferação de parceiros.
Em sentido mais contemporâneo, sistemas políticos descentralizados, em que a parceria expressa pela coesão nacional coabita com a separação de direitos e responsabilidades, são, na tradição clássica, vinculados ao maior ativismo dos cidadãos em regiões mais próximas de sua moradia ou trabalho, ou seja, uma democracia de dimensões locais. A descentralização territorial é tema vinculado à vida associativa de indivíduos e coletivos locais e regionais. Para Alexis de Tocqueville (2003)TOCQUEVILLE, A. Democracy in America and two essays on America. London: Penguin Books, 2003., em seu clássico de 1835, representava a principal marca distintiva dos Estados Unidos frente ao sistema centralizado francês. As virtudes de sistemas descentralizados, em termos de controle da tirania de governantes, maior representação dos cidadãos e autonomia de governos locais, no âmbito da nação, foram debatidas nos anos que antecederam a constituição federativa dos Estados Unidos da América.
Esse processo foi analisado em termos de lógica aplicada à política e às evidências da experiência histórica por Robert Dahl (1989)DAHL, R. Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.. Sua análise, a partir do debate constitucional norte-americano, e a ênfase na separação de poderes (executivo, legislativo e judiciário), nos meios de controles externos sobre a tirania de maiorias ou de minorias, as formas de lidar com a regra da decisão por maiorias e os sistemas de contrapesos levaram à elaboração de um tipo definido como 'democracia madisoniana'.
Tal modelo se contrapõe à 'democracia populista', que seria caracterizada pela regra absoluta das maiorias. Os limites desses modelos e a combinação de suas virtudes - somar regras de maioria e controle externo sobre tiranias - foram a base pluralista da 'democracia poliárquica' que tem sido experimentada segundo regras distintas entre períodos eleitorais (produção de governos) e entre eleições (processos de governos mais sujeitos a contraditórios).
Mesmo não tratando diretamente da questão federativa, Dahl (1989)DAHL, R. Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. ilumina o modelo madisoniano construído em meio ao pacto federativo como a base da pactuação a ser preservada nas poliarquias modernas, seja por separação de poderes ou por concentração de poderes, como no parlamentarismo britânico. Os fundamentos madisonianos envolvem a busca de separações cooperativas e sem concentração de poderes e têm como objetivo central alcançar a 'república não tirânica'.
As virtudes, em termos de eficiência e equidade dos sistemas democráticos sensíveis ao ativismo de seus indivíduos e comunidades, foram também destacadas em conhecida obra de Robert Putnan (2000)PUTNAN, R. D. Comunidade e Democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2000. como resultantes de tradições cívicas regionais de longa maturação histórica e que desembocam na formação de capital social.
Embora as tradições, exemplos históricos, análises e teorias sobre concentração de poder político, em contraposição a regimes descentralizados, sejam múltiplas, é fato que o modelo federativo norte-americano, apesar de estar, hoje, presente nesse formato em poucos países, tornou-se paradigmático para este debate.
Seus fundamentos remontam aos debates que precederam, em 1787 e 1788, a finalização da Convenção Constitucional, em 1789. Os debates nas mais destacadas Convenções Estaduais ficaram conhecidos pelos ensaios teóricos de seus principais líderes, principalmente na imprensa, que se tornaram referência a partir da compilação conhecida como Federalist Papers (HAMILTON , 2003HAMILTON, A.; MADISON, J.; JAY, J. The Federalist Papers. New York: Signet Classics, 2003.), publicada em 1788. O tipo de federalismo daí resultante pode ser considerado um ordenamento orientado à máxima preservação dos poderes regionais cujas origens podem ser relacionadas ao modelo confederativo de Ligas, descrito por Maquiavel.
No modelo federativo norte-americano há uma importante descentralização política no nível estadual e uma nítida separação de funções entre União e estados em termos de atribuições e responsabilidades. Os conflitos federativos são resolvidos pelo poder judiciário (revisão judicial) e têm na responsabilização e na autonomia federativa suas principais marcas. Nesse modelo, o federalismo implica um sistema de checks and balances orientado a impedir a concentração de poderes em um só indivíduo ou instituição. As contradições do modelo madisoniano, o qual foi implementado segundo instituições federativas clássicas, foram apontadas por Dahl (1989)DAHL, R. Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989. e incluem problemas associados à realização das regras majoritárias e ao déficit de centralização, que são observados em países unitários e parlamentaristas, como o Reino Unido, onde a concentração de poderes também se mostrou eficaz para controlar a tirania das maiorias. A solução poliárquica mais mesclada e contraditada se aproxima das democracias de configurações mais pactuadas observadas em países europeus continentais.
Países unitários, como o Reino Unido, constituíram o modelo majoritário, de caráter altamente centralizado, estruturado em uma concentração elevada no parlamento através do partido ou da coalizão vencedora. A 'tirania da maioria' é controlada pelas eleições pulverizadas em distritos e consolidadas na formação do governo. A descentralização para instituições locais ocorre no âmbito de políticas específicas e sob a égide do governo central. É importante destacar, entretanto, que diversos países vêm passando por reformas que tornam essa dinâmica centralização/descentralização mais complexa e cheia de nuanças. Em caráter pendular, países centralizados e de regimes majoritários adotam algumas reformas em nome de maior descentralização e vice-versa.
Lijphart (1999)LIJPHART, A. Patterns of Democracy: government and performance in thirty-six countries. New Haven: Yale University, 1999. analisou, em perspectiva comparada, o estilo de democracia consensuada fortalecido no pós-guerra em contraposição às de caráter majoritário. A descentralização se manifesta tanto em sistemas unitários quanto federativos, mas, em suas formas típicas, a democracia consensual ocorre em sistemas federativos ou semifederativos, povoada de instituições decisórias de caráter multipartite neocorporativas ou configuradas segundo regiões dotadas de culturas distintas, como forma de manutenção da unidade nacional. A regra majoritária não é, portanto, a ordenadora final de um amplo rol de soluções políticas. Para Lijphart (1999), esse sistema, apesar da maior lentidão do processo decisório, é superior em termos de proteção social e desenvolvimento social e econômico redistributivo. Vale lembrar que tais arranjos estão muito associados à montagem do welfare state europeu ocidental. As escolas que se sucederam com o foco em modos de governança conferiram uma nova roupagem aos processos de decisão pactuada.
A estrutura consensuada e sujeita a contrapesos, no entanto, pode abrir caminho para vetos sucessivos que paralisem o processo decisório. Além disso, a orientação cooperativa dos sistemas federativos de caráter consensual pode implicar perda de nitidez de atribuições e responsabilidades, de modo a comprometer as dimensões madisonianas (desejáveis ou não) do sistema político.
O caso alemão, classificado no modelo de Lijphart (1999)LIJPHART, A. Patterns of Democracy: government and performance in thirty-six countries. New Haven: Yale University, 1999. no polo de democracia consensual, tem sido alvo de críticas internas quanto aos possíveis efeitos de seu federalismo cooperativo como obstáculo ao processo decisório e inibidor do crescimento econômico, o que levou à criação de comissões parlamentares para promover a revisão do seu sistema federativo quanto a seus aspectos cooperativos horizontais. Hillgruber (2005)HILLGRUBER, C. German Federalism: An Outdated Relict? German Law Journal, Charlottesville, v. 6, n. 10, p. 1269-1282, 2005., entretanto, crítica tais intensões e demonstra as vantagens do modelo cooperativo contra o retorno da radical separação de poderes federativos.
Por sua vez, problemas gerados pela descentralização excessiva ou disfuncional têm sido assinalados em importante literatura na ciência política, como nas falhas de governança (JESSOP, 2003JESSOP, B. Governance and Metagovernance: on reflexity, requisite variety, and requisite irony. Lancaster: Lancaster University, 2003. Disponível em: <http://www.lancaster.ac.uk/fass/resources/sociology-online-papers/papers/jessop-governance-and-metagovernance.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2016.
http://www.lancaster.ac.uk/fass/resource... ) ou na perda de capacidade de governo por excesso de terceirizações (PETERS, 2009PETERS, B. G. The two futures of governing: decentering and recentering processes in governing. The Journal of Public Administration and Policy, Budapest, v. 2, n. 1, p. 7-24, 2009.). A literatura especializada em políticas de saúde destaca a falta de evidências sobre as vantagens de sistemas descentralizados na experiência internacional (COSTA-FONT; GREER, 2013COSTA-FONT, J.; GREER, S. L. (Org.). Federalism and decentralization in European health and social care. London: Palgrave; Macmillan, 2013.).
Implicações do federalismo para o Brasil e o setor saúde
Pelas suas características institucionais, o Brasil, caso estudado, seria incluído no mapa de Lijphart (1999)LIJPHART, A. Patterns of Democracy: government and performance in thirty-six countries. New Haven: Yale University, 1999. mais próximo ao polo da democracia consensual devido ao seu sistema federativo. As dimensões institucionais do Brasil, após a Constituição de 1988, definem também o caso entre as formas de federalismo cooperativo, ao menos em termos de regras institucionais. No entanto, o caráter efetivamente cooperativo do nosso federalismo é algo a ser demonstrado, haja vista uma série de eventos conhecidos como guerras fiscais, regulamentos de royalties, penalização de estados que não podem cobrar Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços (ICMS) sobre a sua produção de petróleo, crise fiscal dos estados, entre muitos.
Com relação, especificamente, ao setor saúde, a crise do federalismo cooperativo é evidente. Governos estaduais sujeitos a recorrentes crises fiscais e, em muitos casos, com abandono da agenda da saúde não conseguem cumprir o papel estratégico e essencial de coordenar as políticas regionais em nome de maior equalização. Governos municipais dispõem de capacidades fiscais, de governo e de recursos de atenção à saúde bastante díspares em todos os estados e nas grandes regiões. A competição por recursos e a imposição de barreiras de acesso a outros municípios são rotinas no SUS e contribuem para minimizar os efeitos positivos de um grande número de experiências municipais em termos de boas políticas e de cooperação regional. A fragilidade dos colegiados regionais de pactuação de políticas - com suas diferentes denominações segundo as sucessivas portarias ministeriais e os decretos presidenciais - não permite a imposição de regras às próprias vizinhanças. Dimensões efetivamente cooperativas estão por ser demonstradas adequadamente frente às dimensões competitivas por recursos financeiros, profissionais e blindagem ou desincentivo de acesso de cidadãos aos serviços do SUS nos maiores centros urbanos. Além disso, as vantagens da descentralização radical de políticas, como às de saúde, em países com grandes populações, áreas e enormes desigualdades regionais, como o Brasil, ainda estão por ser demonstradas.
Um padrão federativo com objetivos madisonianos, mesmo que difusos, serviu como orientação para o desenho institucional da República de 1889. Os ciclos democráticos e ditatoriais que se seguiram podem ser resumidos em centralização autoritária no Estado Novo varguista e na Ditadura Militar de 1964; e descentralização federativa do pós-guerra e da democracia da Constituinte, de 1988.
Numa abordagem que exclua os ciclos ditatoriais, pode-se considerar que a república nasceu na forma de um federalismo madisoniano e chegou até aqui sob a forma de um federalismo cooperativo de características bastante singulares entre as demais nações.
A literatura nacional em ciências sociais é muito qualificada quanto aos estudos sobre tais ciclos, e diversas abordagens divergentes são identificáveis entre os especialistas. Aqui, destacamos apenas algumas referências importantes como apoio à discussão específica da crise institucional do setor saúde e nos limites deste ensaio.
Abrúcio (1998)ABRÚCIO, L. F. Os barões da federação: os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo: Editora Hucitec, 1998. analisou o papel histórico dos governadores na transição democrática definida pela Constituinte de 1988. O 'federalismo estadualista' foi a matriz dos pactos da transição democrática e de suas repercussões fiscais. Esse 'ultrapresidencialismo estadual' deve ser analisado junto com as transformações das matrizes da administração pública desde o século XX e sua tradição centralizadora e vulnerável à captura por interesses corporativos tradicionais e em conflito com as dinâmicas de reformas universalistas, bem analisadas por Nunes (1997)NUNES, E. A Gramática Política do Brasil. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1997.. Esses processos acompanharam as variações nos padrões de federalismo na história brasileira.
A descentralização fiscal da Constituinte de 1988 implicou maior autonomia fiscal e maior participação na receita nacionalmente arrecadada, como foi demonstrado por diversos especialistas, inclusive quanto aos processos políticos e suas implicações (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008GIAMBIAGI, F.; ALÉM, A. C. Finanças públicas: teoria e prática no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.).
No entanto, a virada fiscal, em detrimento do poder dos governos estaduais, ocorreu a partir da década de 1990, especialmente a partir dos diferentes ajustes macroeconômicos que seguiram ao longo dos anos 2000. O impacto específico das crises estaduais e a renegociação das dívidas no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso são responsáveis, segundo Monteiro Neto (2014)MONTEIRO NETO, A. Governos estaduais no federalismo brasileiro: capacidades e limitações no cenário atual. In: ______. (Org.). Governos estaduais no federalismo brasileiro: capacidades e limitações governativas em debate. Brasília, DF: IPEA, 2014. p. 21-60., pela perda de poder federativo dos governos estaduais. A complexidade das configurações fiscais e políticas, suas repercussões para políticas setoriais e relações com o sistema político-partidário foram analisadas por Arretche (2004)ARRETCHE, M. Federalismo e políticas sociais no Brasil: problemas de coordenação e autonomia. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 2, p. 17-26, 2004., e a perda específica de capacidade de importantes governos estaduais foi perceptível no período pós-democratização.
O protagonismo dos governadores é responsável pela configuração do federalismo fiscal e por arranjos cooperativos, mas está na base do conflito federativo vigente. Além disso, devido à sua falta de ação direta, figuram entre os responsáveis políticos pelas desigualdades regionais e fragilidade das instituições de cooperação regional em seus estados no setor saúde.
Com relação ao caso brasileiro, há uma crescente preocupação em fortalecer ou recuperar os aspectos cooperativos do federalismo definidos na transição democrática. Como bem retratado por especialistas quanto ao fortalecimento da esfera estadual na forma política de um ultrapresidencialismo (ABRÚCIO, 1998ABRÚCIO, L. F. Os barões da federação: os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo: Editora Hucitec, 1998.) ou pela nova repartição fiscal pela descentralização fiscal de recursos federais para governos subnacionais (GIAMBIAGI; ALÉM, 2008GIAMBIAGI, F.; ALÉM, A. C. Finanças públicas: teoria e prática no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.), pode-se afirmar que as expectativas por um sistema descentralizado e cooperativo decorrem, em grande parte, da capacidade dos governos estaduais de desenvolver políticas redistributivas em sua esfera de poder.
Em termos de federalismo horizontal, municípios entre si, induzidos e coordenados por governos estaduais, seriam capazes de estabelecer uma democracia consensuada e reduzir as graves desigualdades regionais. Isso seria, em termos de uma visão otimista do arranjo constitucional de 1988, estruturado nacionalmente segundo um arranjo federativo vertical, pelo qual a União, baseada em um sistema presidencialista clássico, efetuaria as compensações por meio de recursos de indução das desigualdades entre as grandes regiões.
Entretanto, o processo que se seguiu após o pacto constitucional de 1988, à medida que a década de 1990 avançou, evidenciou a crise fiscal e o enfraquecimento político de governadores, a guerra fiscal entre estados e a incapacidade de se promover a redução de desigualdades sociais por meio de políticas setoriais. A Constituição de 1988 foi realizada em meio a preocupações relacionadas ao pacto federativo e ao maior equilíbrio federativo em termos fiscais. No entanto, os esforços de descentralização nessa área esbarraram em aspectos estruturais. O pressuposto da homogeneidade entre os entes como parâmetro de descentralização se mostrou bastante frágil. A principal marca da desigualdade entre estes entes se deu pelos municípios tornados entes federativos não subordinados aos estados. A falta de homogeneidade e a falta de controles estaduais, somadas à descentralização de recursos da União sem a nítida definição de competências subnacionais, contribuíram para o fracasso de políticas regionais redistributivas (VERGOLINO, 2014VERGOLINO, J. R. O. Federalismo e autonomia fiscal dos governos estaduais no Brasil: notas sobre o período recente (1990-2010). In: MONTEIRO NETO, A. (Org.). Governos estaduais no federalismo brasileiro: capacidades e limitações governativas em debate. Brasília, DF: IPEA, 2014. p. 63-117.).
Além disso, o ajuste macroeconômico dos anos 1990 reduziu a capacidade dos governos estaduais, na medida em que o governo federal impôs na renegociação das dívidas a limitação do papel dos governos estaduais no federalismo brasileiro. O resultado foi a maior centralização fiscal na União, embora o agregado dos municípios tenha aumentado a sua participação ao final da década de 2010 (MONTEIRO NETO, 2014MONTEIRO NETO, A. Governos estaduais no federalismo brasileiro: capacidades e limitações no cenário atual. In: ______. (Org.). Governos estaduais no federalismo brasileiro: capacidades e limitações governativas em debate. Brasília, DF: IPEA, 2014. p. 21-60.).
Como destaca Vergolino (2014)VERGOLINO, J. R. O. Federalismo e autonomia fiscal dos governos estaduais no Brasil: notas sobre o período recente (1990-2010). In: MONTEIRO NETO, A. (Org.). Governos estaduais no federalismo brasileiro: capacidades e limitações governativas em debate. Brasília, DF: IPEA, 2014. p. 63-117., o êxito do federalismo depende da combinação entre a autonomia (autodeterminação dos entes federados) e a cooperação (resolver conflitos cotidianos de natureza vertical e horizontal). Porém, a avaliação realizada por ele do caso brasileiro sobre a autonomia fiscal vigente nos estados mostrou um forte predomínio das regiões Sudeste e Sul sobre as regiões Norte e Nordeste, e um mosaico no Centro-Oeste, porém, inferior ao observado para as regiões de melhor desempenho. Esse quadro contribuiu para reforçar as desigualdades regionais que tradicionalmente marcam o País.
Entre essas desigualdades regionais, o setor saúde é um daqueles em que esse processo de fragmentação política e a competição federativa mais se evidenciam. Há um certo consenso entre os autores nacionais em torno das possíveis vantagens da municipalização, da descentralização e da regionalização como boa política. Porém, as evidências de sucessos nessa agenda são frágeis, e diversos autores concentram suas análises em atribuir as causas das restrições do federalismo cooperativo a fatores externos ao sistema.
A literatura especializada em políticas de saúde é bastante coesa em clamar pelas vantagens de sistemas descentralizados, embora essa convergência se desfaça quando se trata de demonstrar as reais características cooperativas do federalismo no setor.
A falta de políticas de desenvolvimento regional aparece em diversos estudos como causa relevante, muitas vezes associada a evidências de desigualdades de caráter socioeconômico (ARRETCHE; MARQUES, 2002ARRETCHE, M.; MARQUES, E. Municipalização da saúde no Brasil: diferenças regionais, poder de voto e estratégias de governo. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 7, n. 3, p. 455-479, 2002.; TRAVASSOS , 2006TRAVASSOS, C.; OLIVEIRA, E. X. G.; VIACAVA, F. Desigualdades geográficas e sociais no acesso aos serviços de saúde no Brasil: 1998 e 2003. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 4, p. 975-986, 2006.; VIANA LIMA; FERREIRA, 2010VIANA, A. L. A.; LIMA, L. D.; FERREIRA, M. P. Condicionantes estruturais da regionalização na saúde: tipologia dos Colegiados de Gestão Regional. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. 5, p. 2317-2326, 2010.; GADELHA , 2011GADELHA, C. A. G. et al. Saúde e territorialização na perspectiva do desenvolvimento. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 16, n. 6, p. 3003-3016, 2011.; VIACAVA; BELLIDO, 2016VIACAVA, F.; BELLIDO, J. G. Condições de saúde, acesso a serviços e fontes de pagamento, segundo inquéritos domiciliares. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 351-370, 2016.; PIOLA, FRANÇA; NUNES, 2016PIOLA, S. F.; FRANÇA, J. R. M.; NUNES, A. Os efeitos da Emenda Constitucional 29 na alocação regional dos gastos públicos no Sistema Único de Saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 411-421, 2016.). Aspectos diretamente relacionados ao federalismo fiscal e que demonstram seus efeitos nas desigualdades regionais e como oportunidade de reforma equitativa são trazidos ao debate político (DAIN 2001DAIN, S. et al. Avaliação dos impactos de reforma tributária sobre o financiamento da saúde. In: NEGRI, B.; FERRATO, G. (Org.). Radiografia da Saúde: 2001. Campinas: Editora Unicamp, 2001, p. 233-288.; LIMA, 2007LIMA, L. D. Conexões entre o federalismo fiscal e o financiamento da política de saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 511-522, 2007.). Inúmeras experiências de cooperação regional, no entanto, são percebidas e analisadas como casos exitosos de distritos sanitários e formulação de políticas orientadas à consolidação do modelo descentralizado (MENDES, 1993 MENDES, E. V. (Org.). Distrito sanitário: o processo social de mudança das práticas sanitárias do Sistema Único de Saúde. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Abrasco, 1993.). Seguindo orientações distintas, as parcerias por livre associação entre municípios na forma de consórcios intermunicipais de saúde também demonstram alguns casos exitosos de cooperação local. Nesses arranjos, municípios se associam de modo formal, institucionalizados por conselhos de prefeitos, conselhos municipais, secretários municipais, e repartem recursos de atenção para uso comum segundo regras de rateio de benefícios e custos segundo regras de solidariedade (RIBEIRO; COSTA, 2000RIBEIRO, J. M., COSTA, N. R. Regionalização da assistência à saúde no Brasil: os consórcios municipais no Sistema Único de Saúde (SUS). Planejamento e Políticas Públicas, Brasília, DF, n. 22, p. 173-220, 2000.; NEVES; RIBEIRO, 2006NEVES, L. A.; RIBEIRO, J. M. Consórcios de saúde: estudo de caso exitoso. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 10, p. 2207-2217, 2006.; MACHADO; ANDRADE, 2014MACHADO, J. A.; ANDRADE, M. L. C. Cooperação intergovernamental, consórcios públicos e sistemas de distribuição de cursos e benefícios. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 48, n. 3, p. 695-720, 2014.). Após a regulamentação, na forma de consórcios públicos, tais arranjos, embora existentes, perderam protagonismo na agenda política.
As recorrentes crises fiscais dos governos estaduais realçaram suas dimensões competitivas - somadas à conhecida guerra fiscal -, reduziram a capacidade de equalização entre seus municípios e regiões e, principalmente com relação ao setor saúde, geraram superposições com o emergente municipalismo e as políticas assertivas de prefeitos (inicialmente) e de secretários municipais de saúde (no quadro vigente). As dimensões cooperativas do federalismo no setor saúde se manifestam como desigualdade entre sistemas locais em função das diferentes capacidades fiscais e de governo, como falta de coordenação política e baixa responsabilização entre os três entes em termos dos resultados da política pública.
Pode-se dizer que o federalismo cooperativo do setor saúde, no Brasil, atualmente, assemelha-se a um pacto de não responsabilização mútua entre os três níveis de governo. A dimensão consensual da democracia nesse caso não peca pelo processo decisório mais lento e negociado, e, sim, por um sistema de vetos cruzados entre os atores federativos (Ministério da Saúde, Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde e Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde) e os societários (Conselho Nacional de Saúde), onde a dimensão contratual e responsável cede lugar à inércia. A persistência de intensas desigualdades regionais e locais, a delegação das funções regulatórias para órgãos de controle e judiciário, a superposição de funções e despesas, as barreiras de acesso intermunicipais e interestaduais e a paralisia política da agenda de regionalização são apenas algumas das muitas evidências nesse sentido.
Considerações finais: a crise da gestão federativa e compartilhada no SUS
Existem muitas experiências bem-sucedidas no SUS em todas as esferas de governo. Em comum, mostram o potencial do sistema público para atender aos seus objetivos universalistas. Contudo, a experiência cotidiana e as diversas análises aqui destacadas têm demonstrado que as dimensões federativas cooperativas no setor saúde têm fracassado em reduzir as suas enormes desigualdades regionais. Parte substantiva disso resulta de fatores externos ao setor saúde e depende de variáveis de caráter social, econômico, cultural e territorial. A competição predatória entre estados, em termos de recursos, incentivos e políticas de desenvolvimento competitivas, também assume importante papel.
Por sua vez, aspectos relacionados especificamente ao setor saúde acabam por enfraquecer as iniciativas de equalização. As fragilidades das instituições regionais e locais de cooperação federativa podem ser evidenciadas pela incapacidade de redução das desigualdades, e a capacidade de governo no contexto da política de saúde se mostrou baixa para atenuá-las.
Há necessidade da recuperação da capacidade regulatória do sistema público. Como discutido aqui, as funções regulatórias são realizadas de modo assistemático, num quadro de judicialização e, de modo sistemático, pelos diversos órgãos de controle da administração federal. Os colegiados de gestão compartilhada - Comissão Intergestores Tripartite, Conselho Nacional de Saúde, Comissão Intergestores Bipartite e os diversos colegiados regionais - não exercem funções coercitivas em termos de responsabilização por pactos firmados e têm baixa capacidade de indução por meio de incentivos financeiros e de status.
Diante desse quadro, agravado pela escassez progressiva de recursos financeiros frente à demanda crescente - decorrente do envelhecimento populacional, da persistência de endemias e epidemias, dos impactos das doenças crônicas, das inovações tecnológicas e da percepção social de direitos à atenção em saúde -, o SUS deve empreender inovações institucionais como resposta.
A resposta política necessária resulta, inclusive, de seus próprios sucessos. A percepção da saúde como dever do Estado e direito universal foi entendida, aceita e reivindicada pela população. Logo, o aumento da capacidade de governo e de coordenação das políticas se impõe.
Algum grau de centralização autárquica, que melhore a coordenação sistêmica, gere incentivos à cooperação, induza de modo decisivo à redução das desigualdades regionais e traga para a política de saúde as funções de responsabilização hoje delegadas quase exclusivamente ao poder judiciário e a órgãos reguladores do executivo (Controladoria Geral da União; Departamento Nacional de Auditoria do SUS) e do legislativo (tribunais de contas, especialmente o Tribunal de Contas da União), pode ser atingido por meio de pactuação setorial.
Um modelo desse tipo pode consistir de uma institucionalização autárquica, ou seja, dotada de maior formalização, incluindo Comissão Intergestores Tripartite e o Conselho Nacional de Saúde, em uma instituição de caráter nacional dotada de governança multipartite. Pode-se considerar que o Ministério da Saúde seja o órgão adequado a essas funções, mas é fato que seu poder indutivo é neutralizado ou (ao menos) contraditado pelos colegiados do federalismo horizontal.
Uma coordenação de caráter nacional deve ter suas prerrogativas politicamente bem delineadas. O orçamento relacionado a políticas e serviços de saúde dos três níveis de governo não pode ser transferido em uma forma de 'fundo a fundo reverso', de difícil implementação institucional, porém, um pacto de delegação de autoridade sobre a execução financeira das políticas de regionalização e equalização pode ser feito em nome de mais coordenação central.
Os limites estabelecidos para o financiamento setorial, considerando o esgotamento fiscal de grande parte dos municípios, a crise fiscal na maioria dos estados e os limites institucionalmente colocados ao gasto federal em saúde, geram um quadro de escassez estrutural quando se trata da estratégia de montagem no Brasil de um sistema público, de caráter nacional e universal, nos moldes europeus e como definido na transição democrática.
Esses obstáculos já representam impedimentos poderosos ao sucesso do SUS, e não há necessidade de se agregar fatores como pulverização decisória, superposição de funções, blindagem de acessos entre municípios e competição por recursos escassos. A centralização autárquica pactuada e bem restrita a funções específicas pode ser uma solução de caráter incremental, isto é, que não altera a natureza do sistema, para favorecer as dimensões cooperativas horizontais e verticais do federalismo brasileiro no setor saúde.
- Suporte financeiro: não houve
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Dez 2016
Histórico
- Recebido
Nov 2016 - Aceito
Dez 2016