Políticas sociais e modelos de bem-estar social: fragilidades do caso brasileiro

Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato Sobre o autor

RESUMO

O artigo analisa o modelo de bem-estar brasileiro a partir de elementos centrais à emergência e ao desenvolvimento dos sistemas de proteção social. Pretende-se discutir em que medida a ausência ou a incompletude desses elementos fragilizam o modelo construído na Constituição de 1988. Apresentam-se os preceitos gerais da proteção social para posteriormente caracterizá-los e discuti-los no caso brasileiro. Argumenta-se que o padrão inaugurado na Constituição de 1988 alterou de forma tímida elementos estruturais da dinâmica dos estados de bem-estar social, como a desmercantilização das relações sociais e os valores relativos à proteção social, tornando esse padrão frágil frente a medidas de retração.

PALAVRAS-CHAVE:
Política social; Seguridade social; Brasil

Introdução

A análise da emergência e principalmente do desenvolvimento dos regimes de bem-estar na América Latina (AL) trata em linhas gerais de três períodos distintos. O primeiro, da emergência e constituição dos regimes, relaciona-os à especificidade do capitalismo na região e seu correlato modelo de industrialização por substituição de importações, que resulta em um padrão centrado em modelos corporativos, tendo como característica mais comum a estratificação de clientelas e benefícios e amplas camadas da população excluídas (FILGUEIRA, 2011FILGUEIRA, F. Pasado, presente y futuro del Estado social latinoamericano: coyunturas críticas, decisiones críticas. In: BELLO, A. H.; SOTELO, C. R. (Ed.). Protección social em salud em America Latina y el Caribe: investigación y políticas. Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana, 2011.). O segundo, período de reformas neoliberais, onde os sistemas sofreram mudanças significativas em diversos países durante as décadas de 1980 e 1990, tendendo ou à quebra dos regimes, mas com alternativas diversas como a ampliação da universalização, caso do Brasil, ou à mercantilização mais radical, caso do Colômbia.

O terceiro período, mais recente, é identificado com a introdução de modelos econômicos chamados neodesenvolvimentistas, com foco na intervenção estatal e ampliação de políticas sociais. A tendência comum à AL foi a introdução do tema da pobreza na agenda pública dos governos, com a criação ou ampliação de programas de transferência de renda e ampliação da cobertura para sistemas de educação, saúde e previdência social. O resultado comum foi a redução significativa da desigualdade, se considerado o padrão histórico da região, além de um crescimento econômico não registrado em outras regiões (DRAIBE; RIESCO, 2011DRAIBE, S.; RIESCO, M. Estados de bem-estar social e estratégias de desenvolvimento na América Latina. Um novo desenvolvimentismo em gestação? Sociologias, Porto Alegre, v. 13, n. 27, maio/ago., p. 220-254, 2011.).

Um quarto período pode estar se delineando, caracterizado por retração econômica, crise política e econômica e crescimento de governos conservadores, cuja pauta inclui mudanças importantes nas políticas sociais. Embora a análise desse momento seja precoce, já é possível identificar que, novamente, as políticas sociais têm papel central.

No caso europeu, que vem vivenciando políticas neoliberais desde a década de 1970, o processo de alteração dos sistemas de proteção é caracterizado como de redução (ou retrenchment) ou restruturação, já que não teria havido alteração significativa nos regimes de bem-estar social. Mais ou menos radicais, as mudanças importaram em redução do crescimento dos gastos públicos sociais, introdução de mecanismos de gestão tomados da chamada new public managent (POLLITT; BOUCKAERT, 2002POLLITT, C.; BOUCKAERT, G. Avaliando reformas na gestão pública: uma perspectiva internacional. Revista do Serviço Público, Brasília, DF, v. 53, n. 3, p. 5-29, jul. /set., 2002.), mudança no padrão de benefícios, inclusão de mecanismos de copagamento e maior participação de serviços privados (COUSINS, 2005COUSINS, M. European Welfare States. London: Sage, 2005.; ALSPATER, 2003ALSPATER, C. Welfare capitalism around the world Taiwan: Casa Verde Publishing, 2003.). As mudanças introduzidas começam a mostrar suas consequências em termos de desigualdade e inequidade, mas ainda não se caracterizam por alterar a espinha dorsal das políticas sociais. Mas também não há sinais de retorno a períodos de expansão.

Como o modelo europeu é ainda a principal referência de construção de sistemas amplos de políticas sociais, cabe destacar a característica diferenciada do caso latino-americano, de inflexão na trajetória neoliberal - ou o terceiro período apontado acima - em meio à prevalência do processo de redução das políticas sociais na maioria dos países, e mesmo da radicalidade dessa redução na própria América Latina em período imediatamente anterior. Dado o delineamento de um suposto quarto período na América Latina, com nova onda de retração, aparentemente tão ou mais radical que a anterior, é razoável supor que o período de inflexão, ou expansão das políticas sociais na América Latina, possa explicar, ao menos em parte, o processo presente.

Neste artigo discute-se especificamente o caso brasileiro. O objetivo é explorar alguns fatores de nosso estado de bem-estar, em seu período mais recente, que indicam uma instabilidade crônica e o fragilizam frente a medidas de retração. Para tanto, tomamos algumas características que explicam a emergência e expansão dos regimes de bem-estar social, especificamente o grau de desmercantilização e os valores.

O caso brasileiro apresenta distinções e similaridades tanto com o caso europeu como com o latinoamericano. Aqui, pretendeu-se construir um aparato de bem-estar similar aos estados de bem-estar europeus, tendo como marco legal a Constituição de 1988. Essa construção, contudo, foi tardia em relação aos países centrais, e ocorre exatamente no período de quebra do 'consenso do welfare' e prevalência do 'consenso de Washington', quando as políticas sociais vinham sendo retraídas. Por outro lado, o Brasil apresentava contexto similar ao latinoamericano quanto à crise e à estagnação econômica aguda da década de 1980, com transição política e retomada da democracia. Principalmente durante os anos de 1990, foram apresentadas ao País várias das propostas editadas pelas agências internacionais para o enfrentamento dessa crise. Mas o Brasil não acompanhou integralmente as reformas levadas a cabo na América Latina durante os anos de 1990. As estruturas de políticas sociais previstas na Constituição não foram quebradas; ao contrário, foram, em grande parte, implementadas.

Nesse sentido, o Brasil acompanhou mais o processo de retrenchment das políticas de welfare originário do que a radicalidade das reformas latino-americanas. Houve, contudo, uma corrosão dessas estruturas ao longo das décadas que se seguiram, gerando uma complexa dinâmica de direitos segmentados, políticas focalizadas de grande potência sem relação com as políticas universais, baixa relação com a política econômica, o que causou sérios constrangimentos ao financiamento, e privatização 'por dentro' dos sistemas, ou seja, por meio da preferência contínua à compra de serviços ao setor privado.

A trajetória brasileira

No Brasil, as políticas sociais estiveram fortemente dependentes de projetos de desenvolvimento econômico de diferentes regimes políticos, deixando a um plano secundário a adoção de estratégias para a melhoria efetiva das condições de vida e criação de padrões mínimos de igualdade social. A cidadania esteve pautada na necessidade de legitimar diferentes regimes, o que fez com que os direitos sociais tenham se desenvolvido de forma fragmentada e desigual. Como sabido, o padrão prevalecente foi o da cidadania regulada (SANTOS, 1987SANTOS, W. G. Cidadania e Justiça:a política social na ordem brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1987.), onde o acesso a direitos dependia da inserção no mercado formal de trabalho, com privilégio aos setores urbanos e indispensáveis ao processo de industrialização.

Em modelo similar ao de muitos outros países do continente sul americano, desenvolveram-se potentes estruturas de proteção social destinada aos trabalhadores urbanos e baseadas na contribuição destes e seus empregadores. Os trabalhadores rurais, informais e domésticos, que sempre foram parcela importante da força de trabalho no País, estavam descobertos desses benefícios. A assistência social, por sua vez, sempre esteve fortemente associada a mecanismos tradicionais de intermediação de interesses, como o clientelismo, e foi também importante elemento de legitimação de sucessivos regimes. Como consequência, no campo das ações estatais, foi tratada principalmente como elemento de troca e relacionada ao favor e à benemerência (PEREIRA, 2001PEREIRA, P. A. Sobre a política de assistência social no Brasil. In: BRAVO, M. I. S.; PEREIRA, P. A. (Org.). Rio de Janeiro: Cortez; UERJ, 2001.; SPOSATI , 1992SPOSATI, A. et al. Assistência na trajetória das políticas sociais brasileiras: uma questão em análise. 5 ed. São Paulo: Cortez, 1992.).

Outro elemento importante do desenvolvimento das políticas sociais foi seu caráter antidemocrático. É significativo que, de 1923 a 1985, as políticas sociais tenham se desenvolvido mais em períodos autoritários, deixando um legado de alta centralização, baixa interferência da população e pouca transparência, além de organizações burocratizadas. Embora já exista um longo período democrático desde o fim do regime militar, essas características ainda permeiam as estruturas setoriais da política social.

Apesar da potência da estrutura institucional de política social construída durante o século passado, ela não conseguiu alterar a situação de exclusão de amplos setores sociais e nem tampouco a enorme concentração de renda que sempre caracterizou o País. O lento período de transição democrática, que se inicia ainda em meados da década de 1970 e se acelera durante toda a década de 1980 em uma conjuntura de profunda crise e estagnação econômica, trouxe de volta a voz da sociedade. A democratização teve como ápice institucional a Constituição de 1988. A noção de cidadania foi a base de construção desse novo modelo expresso no texto Constitucional.

A Constituição de 1988 institui um capítulo específico para a ordem social e reconhece como direitos sociais o acesso à saúde, previdência, assistência, educação e moradia - além de segurança, lazer, trabalho. A seguridade social institucionaliza um modelo ampliado de proteção social, nos moldes dos estados de bem-estar social, com universalização do acesso, responsabilidade estatal, orçamento próprio e exclusivo e dinâmica política inovadora baseada na integração federativa e na participação da sociedade.

A Constituição representou uma ruptura legal baseada em noções pouco sólidas na estrutura social brasileira, como cidadania, democracia e solidariedade social. Constitucionaliza-se ali um novo pacto social, mas suas bases foram frágeis. A ordem social prevista impunha uma nova forma de Estado em uma sociedade com baixos níveis de organização social, antidemocrática em suas instituições estatais e sociais e profundamente desigual. Do ponto de vista organizacional, a política social apresentava uma potente estrutura de oferta e garantia de bens sociais, mas de baixa cobertura, restrita às parcelas médias e ao mercado formal, burocratizada, permeada por particularismos e com alto grau de corrupção. O modelo constitucional teria que conviver com o passado das políticas sociais, com os projetos governamentais que lhe sucederam e com os valores da sociedade que o adotou. E daí resultaria o padrão incompleto e insuficiente de nosso estado de bem-estar social.

Nos quase 30 anos de Constituição, pode-se afirmar que as políticas sociais avançaram em aspectos cruciais, como o aparato político-organizacional e a concepção da questão social. Do ponto de vista do aparato político-organizacional, destacam-se a construção de sistemas nacionais tais como os de saúde e assistência social, a expansão de burocracias públicas descentralizadas e unificadas, a participação inédita dos três níveis de governo e a construção dos mecanismos de participação e controle social. E do ponto de vista da concepção da questão social, destacam-se os elementos de 'constitucionalização' - incorporação da noção de direito (COUTO, 2008COUTO, B. R. O direito social e a assistência social na sociedade brasileira: uma equação possível? São Paulo: Cortez, 2008.; FLEURY, 2006FLEURY, S. Saúde e democracia no Brasil: valor público e capital institucional no Sistema Único de Saúde. XI CONGRESO INTERNACIONAL DEL CLAD SOBRE LA REFORMA DEL ESTADO Y DE LA ADMINISTRACIÓN PÚBLICA, 7-10 nov. 2016, Ciudad de Guatemala. Anais... Ciudad de Guatemala, 2006.), de 'abrangência' -, de publicização e incorporação, na agenda pública, de novos temas sociais, e de 'ampliação' - reconhecimento da produção social e da inter-relação dos problemas sociais (LOBATO, 2009LOBATO, L. V. C. Dilemas da institucionalização de políticas sociais em vinte anos da Constituição de 1988. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, p. 721-730, 2009.).

Esses avanços conviveram com restrições significativas, fartamente analisadas pela literatura da área. Contudo, nenhum prognóstico previu a inflexão que atinge as políticas sociais na conjuntura atual. Essa inflexão tem representação na proposta de Emenda Constitucional 55, em discussão no Congresso Nacional, embora seja mais ampla, já que se contrapõe ao pacto Constitucional de 1988 tanto no que toca aos direitos sociais como ao papel do Estado na sua garantia.

Até aqui as restrições aos direitos sociais se deram, por um lado, por meio de constrangimentos à expansão do investimento nas áreas sociais, criados ou mantidos pelos sucessivos governos, como é o caso da reedição sistemática da Desvinculação dos Recursos da União ou o impedimento à exclusão das áreas sociais da Lei de Responsabilidade Fiscal ou a disputa acirrada pela definição de mínimos de gastos para os entes federados. Por outro lado, por disputas intergovernamentais, por meio de projetos políticos distintos em relação à abrangência dos direitos sociais e à amplitude da intervenção estatal, como as diferenças entre o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso e o governo do presidente Lula da Silva na condução da política de assistência ou entre esses mesmos governos e as políticas de igualdade racial, por exemplo. Ainda, por disputas entre atores nas arenas setoriais específicas, por recursos ou direção na formulação e implementação de políticas, como a configuração do Sistema Único de Assistência Social (Suas), ou por disputas na descentralização de responsabilidades no Sistema Único de Saúde (SUS).

A não ser em manifestações específicas, por meio de discursos de autoridades ou por meio de tentativas ou sucessos na aprovação de legislações restritivas e setoriais, não houve, desde a Constituição, projeto político explícito para reconfiguração ampliada dos direitos sociais previstos na Constituição e materializados no amplo arcabouço de políticas públicas que lhes dá sustentação. Esse projeto hoje existe e está sendo levado a cabo em meio a uma crise política grave, sem base em um programa eleito e que jamais foi apresentado como tal à sociedade. E, mais espantoso, com razoável apoio social das camadas médias. É de fato um projeto de ruptura com a trajetória que vinha sendo delineada e com o modelo de estado de bem-estar social desenhado na Constituição. Nesse sentido, cabe discutir alguns elementos dessa trajetória.

Contradições e permanências do estado de bem-estar no Brasil

A literatura de estados de bem-estar seleciona elementos de sua emergência e desenvolvimento que, de explicações históricas, se transformaram em teorias com enfoques mais econômicos (WILENSKY, 1975WILENSKY, H. The Welfare State and Equality: structural and ideological roots of public expenditures. Berkeley: University of California, 1975.) ou institucionais (CASTLES, 1989CASTLES, F. G. The comparative history of public policy. Oxford: Oxford University, 1989.) (AMENTA, 2003AMENTA, E. What we know about the development of social policies. In: MAHONEY, J.; RUESCHEMEYR, D. (Ed.). Comparative historical analysis in the social sciences. New York: Cambridge University, 2003.; ARRETCHE, 1995ARRETCHE, M. Emergência e desenvolvimento do Welfare State: teorias explicativas. BIB - Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 39, p. 3-40, 1995.). Independentemente do enfoque teórico, há elementos comuns que operam em maior ou menor grau na configuração de políticas sociais e, nesse sentido, servem como categorias para a análise dos casos particulares. Dentre esses elementos, destacam-se o grau de desmercantilização, o compromisso entre capital e trabalho, as relações entre o mercado e o setor público, o papel da burocracia e da autoridade central e o papel das classes médias. Esses elementos são bem conhecidos da literatura brasileira de welfare state, mas, à exceção do papel da burocracia e da autoridade central, não são muito aplicados em pesquisas empíricas para conhecer a intervenção da ou na política social.

A desmercantilização, categoria desenvolvida por Esping-Andersen (1990)______. The three worlds of welfare capitalism. Cambridge: Polity, 1990., diz respeito à autonomia dos indivíduos em relação à dependência do mercado de trabalho. As políticas sociais, ao fornecerem bens e serviços independentemente da inserção do indivíduo no mercado, garantem essa autonomia e, nesse sentido, os estados de bem-estar seriam reguladores por excelência do mercado de trabalho. Por outro lado, quanto mais as relações sociais são desmercantilizadas, mais fortalecidos ficam os trabalhadores para reivindicar direitos (ZIMMERMANN; SILVA, 2009ZIMMERMANN, C. R.; SILVA, M. C. O princípio da desmercantilização nas políticas sociais. Cad. CRH, Salvador, v. 22, n. 56, p. 345-358, ago. 2009.). Assim, a desmercantilização envolve o aspecto econômico e também político. No caso brasileiro, as políticas sociais pós Constituição não teriam criado relações sociais inteiramente desmercantilizadas. Mais impactantes na desmercantilização foram medidas tais como a aposentadoria rural e o estabelecimento do mínimo de um salário mínimo para todos os benefícios previdenciários.

O Benefício de Prestação Continuada (BPC), importante benefício para idosos e pessoas com deficiência, com alto impacto positivo na vida desses segmentos, sofreu constrangimentos tanto pela baixíssima faixa de renda de elegibilidade (renda per capita familiar de até 1/4 do salário mínimo) como pelas normatizações excludentes de avaliação médica para as pessoas com deficiência. Esse rigor foi amainado recentemente com a inclusão da avaliação social, que considera impedimentos sociais e não só biomédicos para a concessão do benefício (LOBATO; BURLANDY; PEREIRA, 2016LOBATO, L. V. C.; BURLANDY, L. A.; FERREIRA, D. M. Assistência Social e o benefício de prestação continuada no Rio de Janeiro. In: SENNA, M. C. M. (Org.). Sistema Único de Assistência Social no estado do Rio de Janeiro: experiências locais. Rio de Janeiro: Gramma, 2016.). O impacto dessa medida ainda não é totalmente conhecido. Entretanto, quando combinada com a renda e com as regras para a análise da composição familiar, não parece que o acesso das pessoas com deficiência ao benefício poderá ser estendido de forma significativa.

O BPC atinge cobertura significativa para os idosos em extrema pobreza, mas não parece que vá ampliar sua cobertura ao amplo contingente de pessoas com deficiência, muitas das quais crianças e pessoas com transtornos mentais, cujas deficiências tornam pouco provável a inserção de muitas delas no mercado de trabalho. A insuficiência de serviços correlatos de saúde, de assistência e de educação para inclusão nas escolas de crianças e jovens com deficiência, compromete a inclusão social e o futuro destes, assim como aumenta o comprometimento familiar com o cuidado domiciliar, restringindo o acesso ao trabalho de membros da família, principalmente das mulheres, que permanecem dependentes de atividades pouco qualificadas e irregulares.

O crescimento do emprego nos anos do governo do presidente Lula da Silva foi expressivo, com a criação de 22 milhões de novos empregos, 90% deles empregos formais. Mas foram empregos de baixa qualificação, principalmente no setor de serviços, onde 95% dos empregados percebia até dois salários mínimos (POCHMANN, 2014POCHMANN, M. O balanço de Marcio Pochmann sobre os 12 anos de governo do PT. Portal GGN, 15 de maio de 2014. Disponível em: <http://jornalggn.com.br/noticia/o-balanco-de-marcio-pochmann-sobre-os-12-anos-de-governo-do-pt>. Acesso em: 30 nov. 2016.
http://jornalggn.com.br/noticia/o-balanc...
). O crescimento do emprego no setor de serviços está relacionado ao intenso processo de desindustrialização registrado a partir da década de 1990 e, embora a formalização reduza a precariedade do trabalho, já que permite o acesso a diretos tais como o seguro desemprego, envolve funções de baixa qualificação não ocupadas pelas camadas médias, permanecendo, portanto, 'gargalos' em áreas onde há exigência de qualificação (MONTALI; LESSA, 2016MONTALI, L.; LESSA, L. H. Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, p. 503-533, jul. 2016.).

A dinâmica em si do trabalho permanece insegura, haja vista o crescimento expressivo do benefício do auxílio doença previdenciário, que, de cerca de 30% das concessões do Regime Geral em 2000, passou a 55, 6% em 2006 (estabilizando-se em torno de 45% nos anos seguintes) (FREITAS, 2013FREITAS, F. A evolução recente do auxílio-doença previdenciário e o papel da reabilitação profissional. 2013.101 f. Dissertação (Mestrado em Política Social) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.). Vários fatores contribuíram para esse aumento, que recentemente gerou medidas de controle por parte da Previdência Social, e dentre eles estão as restrições para o reconhecimento dos acidentes de trabalho que geram o auxílio-doença acidentário.

Analisando a mobilidade de renda em regiões brasileiras, Montali e Lessa (2016)MONTALI, L.; LESSA, L. H. Pobreza e mobilidade de renda nas regiões metropolitanas brasileiras. Cad. Metrop., São Paulo, v. 18, n. 36, p. 503-533, jul. 2016. confirmam que o aumento da renda registrado entre 2001 e 2012 'não foi acompanhado por melhorias substanciais em outros indicadores, tais como qualidade do emprego e educação', apesar das diversas políticas e ações nesse sentido. Acrescentam que, apesar do progresso registrado no acesso aos serviços públicos urbanos entre 2001 e 2012, ainda há distância significativa entre setores de renda.

Precariedade do emprego, baixo nível educacional, insegurança em relação ao acesso a benefícios quando em situação de risco e insuficiência dos serviços universais mostram a fragilidade do processo de desmercantilização do nosso estado de bem-estar. Também, precisam ser considerados os efeitos da globalização sobre os estados de bem-estar, ainda são pouco conhecidos no Brasil, principalmente a abertura do mercado nacional sobre os setores relacionados aos serviços sociais (CORTEZ, 2008CORTEZ, R. P. S. Globalização e Proteção Social nos países desenvolvidos: uma análise da literatura. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 31, p. 161-176, nov. 2008.). Essa nova configuração influencia também a conformação e os interesses dos atores. Exemplos na área de saúde seriam novos atores e principalmente arranjos de interesses advindos das mudanças no mercado hospitalar privado no Brasil, nas empresas de planos de saúde ou o crescimento das empresas de serviços médicos, como as Organizações Sociais.

As mudanças na organização produtiva impactam a organização coletiva e as demandas por direitos coletivos. A desmercantilização não depende somente da oferta segura de benefícios e serviços; ela precisa de reconhecimento por parte dos sujeitos coletivos. Pochmann chama à atenção para o fato que a recente ascensão de amplas camadas ao emprego não foi acompanhada de maior participação em sindicatos ou associações (POCHMANN, 2014POCHMANN, M. O balanço de Marcio Pochmann sobre os 12 anos de governo do PT. Portal GGN, 15 de maio de 2014. Disponível em: <http://jornalggn.com.br/noticia/o-balanco-de-marcio-pochmann-sobre-os-12-anos-de-governo-do-pt>. Acesso em: 30 nov. 2016.
http://jornalggn.com.br/noticia/o-balanc...
). Os estudos de política social precisam se voltar mais para a compreensão da dinâmica coletiva, resultado da expansão do nosso estado de bem-estar, para identificar estratégias futuras.

A fragilidade do processo de desmercantilização se associa a outro elemento importante à sustentação dos estados de bem-estar, que são os valores (ROSANVALLON, 2000ROSANVALLON, P. The new social question rethinking the Welfare State. Princeton: Princeton University, 2000.; ESPING-ANDERSEN, 1999ESPING-ANDERSEN, G. Social Foundations of Postindustrial Economies. Oxford: Oxford University, 1999.). A noção de cidadania, base política da construção do modelo constitucional, parece não ter alcançado o fundamento da solidariedade social que lhe é inerente. A noção prevalente é a do direito; direito à educação, à saúde etc., e da responsabilidade do Estado. Mas esse direito não está necessariamente acompanhado da noção de igualdade, expressa na prestação pública e coletiva, mas, antes, no direito individual. Embora os sistemas públicos sejam sabidamente usados por todos, não há encontro entre os diferentes segmentos, já que se mantém, nos sistemas de proteção, a estratificação social presente na sociedade. É o caso da diferenciação no acesso à escola púbica e superior, do acesso a procedimentos de maior complexidade e do uso regular dos serviços no SUS ou da assistência dirigida preferencialmente à população vulnerável quando um conjunto de violações de direitos são riscos coletivos e podem atingir a todos.

O fato de parcela significativa da população ter acesso a seguros privados de saúde não é trivial do ponto de vista da construção coletiva do direito à saúde e dificulta a difusão de uma cultura favorável à proteção social ampliada e igualitária. A construção do nosso estado de bem-estar social democrático, previsto na Constituição de 1988, não contou com um pacto de classes. Mesmo os setores de ponta da classe trabalhadora, que deram suporte ao SUS, mantiveram apoio, mas demandam planos privados de saúde em seus acordos coletivos e não incorporaram os benefícios não contributivos como parte da previdência social. Por outro lado, empresários resistiram à predominância do setor público e à ampliação do papel do Estado no processo Constituinte.

O fenômeno da quebra de consenso do welfare é comum aos países que construíram estados de bem-estar, e os teóricos reforçam a dificuldade de se manter a solidariedade social em tempos de globalização e mudança do perfil do trabalho (CORTEZ, 2008CORTEZ, R. P. S. Globalização e Proteção Social nos países desenvolvidos: uma análise da literatura. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 16, n. 31, p. 161-176, nov. 2008.). Para esses países, a questão seria como manter sistemas de proteção sem a base valorativa que lhes deu sustentação. Segundo Cortez, 'parece haver crescente deslocamento entre a provisão dos serviços sociais e a manutenção dos pilares que garantiriam uma 'coesão' social (CORTEZ, 2008, P. 164). No caso brasileiro, talvez isso se aplique, e poderia ser identificado pela exigência de serviços sem a correspondente associação com a solidariedade social. Isso explicaria a ausência de associação entre as condições de garantia dos princípios do SUS, como integralidade e equidade e a oferta prioritária e fragmentada de serviços pelo setor privado.

Para a assistência social, essa falta de consenso é ainda mais problemática. A construção do Suas tem caminhado pari passu à preferência pelos benefícios de transferência de renda, que, em 2011, representaram 86% da despesa federal na assistência social, restando pouco para a manutenção do sistema e sua rede sócio assistencial (SPOSATI, 2015). Isso não só compromete o sistema como reforça a noção da assistência como forma de política para pobres e, mais, para pobres de renda. Apesar do avanço normativo da assistência social por meio de medidas tais como a tipificação dos serviços assistenciais, o que muda a lógica de relacionamento com entidades voluntárias de prestação de serviços, e da Lei nº 1. 2435/2011, que regulamenta o Suas e cria a estrutura de proteção básica e especial, rompendo com a lógica de atenção por segmentos, o sistema é ainda marginal na configuração da proteção social.

Dois mecanismos presentes no Bolsa Família, que é a vitrine da proteção aos pobres, comprometem a desmercantilização; são eles a contrapartida exigida para o benefício e a ideia de porta de saída. Noções comuns na concepção contemporânea do workfare, esses mecanismos tratam o recurso à assistência como risco eventual. A contrapartida, mesmo que seja do tipo soft, ou seja, evite penalizar o beneficiário que não cumpre as exigências de vacinação e frequência escolar - ao menos era assim até agora -, reforça a noção clássica liberal de controle sobre os pobres. Já a porta de saída, ou a criação de oportunidades para reinserção dos beneficiários no mercado de trabalho, é mais perversa, já que trata processos de amplitude diversas - a situação de pobreza ou pobreza extrema - no mesmo nível da recepção de uma dada qualificação e consequente entrada no mercado de trabalho. Se essa concepção de porta de saída não tem mostrado efeitos significativos em países com maior escolaridade e melhores condições de trabalho, quiçá aqui.

O modelo constitucional também careceu de uma coalizão político-partidária de apoio. Estados de bem-estar podem ser menos dependentes dos partidos, sindicatos e movimentos sociais quando estão consolidados, passando a contar com o apoio de usuários e profissionais dos serviços. No caso brasileiro, as coalizões foram setoriais, como na saúde e na assistência, formadas principalmente de profissionais e servidores, e, pouco, de partidos. Essas coalizões centraram esforços na construção dos sistemas por meio da formação de políticas públicas.

Tal estratégia foi bem sucedida, porque, mesmo sem apoio partidário forte e sendo marginais aos projetos econômicos, os sistemas de proteção públicos cumpriram papel político para os distintos governos, fosse como parte do projeto de 'modernização' do Estado - como no caso do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso - ou como parte de um projeto 'neodesenvolvimentista' - como nos governos do presidente Lula da Silva e parte do governo da presidente Dilma Roussef. A capacidade reformadora da política pública, contudo, mostrou seu limite frente às fragilidades estruturais de baixa inserção na política econômica, baixo grau de desmercantilização, ausência de valores igualitários e baixo apoio político-partidário.

A prioridade à institucionalização por meio de políticas públicas foi extremamente positiva do ponto de vista legal e da construção dos sistemas nacionais, mas não atingiu, da mesma forma, as esferas subnacionais. Um dos preceitos mais inovadores das políticas sociais pós 1988 foi a descentralização como mecanismo de fortalecimento da democracia contra a tradição centralizadora, embora pareça ter sido um dos problemas da expansão dos sistemas nacionais. As instâncias de pactuação como mecanismos inovadores de negociação nas políticas sociais não têm sido capazes de enfrentar os conflitos federativos e o modelo de competição partidária nos estados e municípios.

Conclusão

A ordem social instituída na Constituição de 1988 inaugurou um modelo avançado de estado de bem-estar, exercendo importante impacto nas condições de vida da população até aqui. Mas elementos estruturais à sustentação de tal modelo não puderam ser alterados ou o fizeram de forma tímida. Dados os sucessivos contextos desfavoráveis à consolidação do modelo, seu desenvolvimento priorizou a dinâmica estatal, principalmente em nível federal, por meio de políticas setoriais, serviços e benefícios, o que não lhe dá solidez para enfrentar conjunturas de retração.

A prioridade à dinâmica estatal foi também um tipo de 'estratégia de barricada' de defesa das políticas sociais frente à sua dissociação dos modelos econômicos sucessivamente adotados, em especial na saúde. Mesmo o chamado neodesenvolvimentismo não encontrou lugar para a expansão da universalização na área social, sendo mais ativo no incentivo ao consumo e aos mercados e na prioridade aos programas de transferência de renda. Nem nesse momento propício, a saúde, apesar de sua importância como setor industrial, recebeu lugar de destaque, ao contrário, aprofundou sua dependência do mercado externo. Esse também foi o caso em outros países latino-americanos, onde o modelo progressista não conseguiu romper a herança das políticas econômicas do período liberal que o precedeu. Apesar dos avanços desse modelo, há que se debitar também à antinomia entre expansão ampliada do bem-estar e políticas macroeconômicas os entraves vividos hoje.

A relação positiva e bem sucedida entre expansão de políticas sociais e democracia no Brasil, expressa na transição democrática, na Constituição de 1988 e posteriormente no desenho das políticas sociais, se tomada frente ao retrocesso que se avizinha, parece ter se esgotado e há que ser recriada. Sabe-se que democracia e políticas sociais não andam necessariamente juntas, e a história brasileira é um bom exemplo. Mas o esforço empreendido nos últimos 30 anos de relacioná-las autorizava a suposição de que algumas etapas haviam sido vencidas e não seriam alteradas, apesar dos embates constantes nas áreas de financiamento e gestão das políticas e nas dificuldades de superar as formas tradicionais de intermediação de interesses, muito presentes na dinâmica real das políticas sociais, que é aquela vivida pela população. Como recriar o sentido democrático dos direitos sociais e da cidadania social? Qual democracia é capaz de dar o sentido pleno às políticas sociais? Que políticas sociais adensam efetivamente a democracia? O Brasil e os casos latino-americanos desafiam a literatura sobre estado de bem estar social a responder a essas perguntas.

O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) tem indicado a necessidade de aprofundamento da democracia deliberativa; de inserção do bem-estar como mecanismo de desenvolvimento econômico; de valorização das manifestações sociais ainda pouco visíveis, como os movimentos de moradia e terra, de cultura, de favelas, mulheres, negros, homossexuais, onde a política social é menos institucional e mais identitária, onde o acesso a serviços é resultado de direitos substantivos e não o contrário. As respostas estão por vir, mas, nos seus 40 anos, o Cebes mostra juventude para começar de novo, se preciso for.

  • Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Processo nº 308079/2011-6

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2016

Histórico

  • Recebido
    Dez 2016
  • Aceito
    Dez 2016
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