Bombeiros militares: um olhar sobre a saúde e violência relacionados com o trabalho

Natália Teixeira Mata Luiz Antonio de Almeida Pires Renato José Bonfatti Sobre os autores

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo refletir acerca da saúde do trabalhador e da violência relacionada com o trabalho a partir do movimento protagonizado por bombeiros militares do Estado do Rio de Janeiro em 2011. A pesquisa qualitativa, desenvolvida por meio dos registros dos atos públicos da categoria, utiliza a técnica de análise de conteúdo para tratamento e interpretação do material. Os resultados apontam que os trabalhadores reivindicam condições dignas de trabalho. A violação desse direito pode ser considerada uma forma de violência no ambiente de trabalho e impactar negativamente na saúde, na vida e na própria ocupação profissional do trabalhador em questão.

PALAVRAS-CHAVE
Violência; Bombeiros; Saúde do trabalhador; Violência no trabalho

Introdução

Quem salvaguarda a vida dos bombeiros? Os atos públicos protagonizados por trabalhadores dessa categoria que luta pela preservação da vida constituem-se como objeto principal de análise no presente estudo. O objetivo central deste artigo é refletir sobre a saúde do trabalhador e sobre a violência no trabalho a partir do movimento dos trabalhadores do Corpo de Bombeiros Militares do Estado do Rio de Janeiro (CBMERJ), ocorrido em 2011, que almejou melhores condições de trabalho, saúde e vida desses profissionais.

O movimento surgiu por meio de uma aparente situação de precariedade no ambiente de trabalho vivenciada por essa categoria de trabalhadores. A precarização do trabalho cada vez mais se torna um problema social para diversas áreas, entre elas, a saúde do trabalhador (EDERHRDT; CARVALHO; MUROFUSE, 2015EBERHARDT, L. D.; CARVALHO, M.; MUROFUSE, N. T. Vínculos de trabalho no setor saúde: o cenário da precarização na macrorregião Oeste do Paraná. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 104, p. 18-29, 2015.). No contexto brasileiro, a perda e a violação de direitos trabalhistas intensificam esse cenário que atinge diferentes categorias profissionais e pode ser compreendida como uma forma de violência.

No Brasil, o trabalho está circunscrito enquanto um direito na Constituição Federal de 1988 em seu 6º artigo (BRASIL, 1988______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.). Entretanto não se garante que ele seja realizado em ambientes salubres ou em condições que respeitem outros direitos constitucionais, tais como a saúde e a dignidade, ambos componentes importantes para o campo da saúde do trabalhador e previstos em lei.

No caso dos bombeiros militares, a literatura científica aponta que um amplo leque de doenças vem se manifestando nessa categoria em decorrência de suas atividades de trabalho. Segundo Pires (2016)PIRES, L. A. A. A relação saúde-trabalho dos bombeiros militares do município do Rio de Janeiro. 2016. 210 f. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2016., esses trabalhadores estão desenvolvendo doenças osteomusculares, do aparelho circulatório e transtornos mentais e comportamentais. Estes últimos, de acordo com Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010)FRANCO, T.; DRUCK, G.; SELIGMANN-SILVA, E. As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Rev Bras Saude Ocup., São Paulo, v. 35, n. 122, p. 229-248, 2010., podem ser atribuídos a um ambiente de trabalho precarizado.

As repercussões negativas na saúde dos bombeiros podem ocorrer em função da violação de direitos no ambiente de trabalho? Observa-se que, na série de manifestações e passeatas públicas, os trabalhadores reivindicavam principalmente um direito constitucional fundamental da pessoa humana, que é a dignidade. Para os bombeiros, isso está atrelado a melhores condições de trabalho, transcendendo a questão salarial, ou seja, abrangendo a saúde e sua relação com o exercício da atividade laborativa.

Metodologia

Trata-se de um estudo qualitativo, desenvolvido a partir da técnica de análise de conteúdos para interpretação do material. Para tal, utilizaram-se, como fonte, os registros históricos das reinvindicações do coletivo organizado de bombeiros militares do Estado do Rio de Janeiro disponibilizados em duas páginas virtuais. Os endereços eletrônicos (SOSBOMBEIROS, 2011; SOSBOMBEIROSRJ, 2012) funcionam como instrumento de divulgação do pleito e atos públicos da categoria iniciados em 2011.

Ressalta-se que o artigo é fruto de um trabalho de conclusão de curso da Especialização em Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, realizado no ano de 2013. A pesquisa desenvolvida não teve qualquer tipo de suporte financeiro, além disso, não houve conflito de interesse. Por se tratar de dados secundários, não houve a necessidade da avaliação por comitê de ética.

No que se refere aos métodos, utilizou-se a análise de conteúdo proposta por Bardin (2011)BARDIN, L. Análise de Conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.. O autor afirma que esse tipo de técnica é um conjunto de instrumentos metodológicos cada vez mais sutis em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a 'discursos', e seu objetivo é a descrição e interpretação dos conteúdos das mensagens. Diante dos dados históricos do movimento dos trabalhadores bombeiros militares que serão apresentados, julga-se que tal procedimento metodológico se aplica de forma relevante para a compreensão e interpretação do material obtido.

Minayo (2014)MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. Huicitec, 14. ed., São Paulo, 2014. ressalta que a análise de conteúdo é a expressão mais comum usada para referir-se ao tratamento dos dados de uma pesquisa qualitativa, contudo a autora enfatiza que essa metodologia é muito mais do que apenas um procedimento técnico, é parte da trajetória histórica, teórica e prática do campo das investigações sociais.

Resultados e discussão

Um breve histórico da luta dos bombeiros

De acordo com o Estatuto dos Bombeiros Militares (RIO DE JANEIRO, 1985), são atribuições específicas desses profissionais: os serviços de prevenção e extinção de incêndios, os serviços de busca e salvamento, a prestação de socorros nos casos de inundações, desabamentos e catástrofes, entre outros. As atividades de trabalho da categoria são essenciais para a manutenção e equilíbrio da vida em sociedade.

A partir de abril de 2011, os trabalhadores do CBMERJ protagonizaram inúmeras manifestações públicas em prol de condições dignas de trabalho. As passeatas ganharam volume, intensidade e tornaram-se constantes. Os atos públicos também tiveram amplo apoio popular, um deles, inclusive, contou com um avião que sobrevoava a orla de Copacabana carregando uma faixa com o dizer: "Bombeiros pedem socorro, população precisamos de vocês!" (SOSBOMBEIROS, 2011).

O coletivo organizado de trabalhadores da instituição montou uma pauta reivindicatória, na qual solicitavam recursos para a execução de suas atividades, como: equipamentos de proteção individual, melhores condições de alimentação nos locais de trabalho e postos para salvamento no mar com melhor infraestrutura; também pediam o fim das gratificações, um piso salarial inicial de R$ 3.500,00, plano de carreira único, auxílio transporte de R$ 350,00, auxílio alimentação, data base e um código de ética alinhado com a Constituição Federal de 1988.

A pauta da categoria é ampla, seus itens permeiam as esferas individual, coletiva, estrutural/organizacional/funcional, econômica e social presentes nas instâncias do trabalho dos bombeiros, sugerindo que as suas atividades ocorrem em um ambiente inadequado e propício a danos à saúde. Segundo Franco (2010)FRANCO, T.; DRUCK, G.; SELIGMANN-SILVA, E. As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Rev Bras Saude Ocup., São Paulo, v. 35, n. 122, p. 229-248, 2010., o processo de precarização é multidimensional e, por isso, atinge a vida dos trabalhadores dentro e fora do trabalho.

No dia 3 de junho de 2011, houve mais um ato público na frente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em que os trabalhadores mobilizados caminharam até sua Unidade Central. Diante da ausência de representante governamental ou institucional, o coletivo de trabalhadores optou por entrar à força na unidade; o local foi cercado por policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope), que após uma madrugada de negociações sem sucesso invadiu o Quartel Central dos Bombeiros. O episódio culminou com 439 trabalhadores presos, conforme noticiado em mídia impressa, televisiva e on-line.

Em fevereiro de 2012, ocorreu um ato na Cinelândia que reuniu bombeiros, policiais militares e civis; em assembleia, os trabalhadores das três instituições decretaram greve. Mais uma vez, os policiais do Bope fizeram-se presentes, e o episódio terminou com 12 bombeiros e 3 policiais militares presos e levados para o Presídio Bangu I acusados de serem os líderes do movimento.

Alguns dias após o fato acima descrito, uma mudança no regulamento da instituição agilizou os trâmites internos para a apuração de 'crimes' cometidos por seus militares, assim, os 12 bombeiros presos foram expulsos da instituição. A partir desse dia, os trabalhadores empenharam-se para revogar a punição.

O episódio do Quartel Central e da Cinelândia tiveram repercussão internacional. Ao longo de sua trajetória de luta, os bombeiros conseguiram algumas vitórias no campo financeiro como o pagamento de auxílio-transporte no valor de R$ 100,00 e uma gratificação de R$ 350,00 que até o final de 2017 será incorporada ao salário. No campo funcional, a categoria conseguiu a retirada dos militares da instituição das Unidades de Pronto Atendimento (UPA) - fato que proporcionou o seu retorno aos quartéis para exercerem suas atribuições finalísticas - e também conseguiu a redução do tempo para a progressão profissional, este último pode gerar um aumento salarial.

Foram criados convênios com outros órgãos do Estado, e, mediante pagamento de uma gratificação, os bombeiros que se voluntariassem poderiam trabalhar como motoristas e brigadistas em hospitais, por exemplo. Criou-se também um programa de reforço do efetivo em que o bombeiro, de forma voluntária, trabalhasse em unidades da instituição com efetivo reduzido, recebendo, para isso, uma gratificação. Tal fato possibilitou que muitos trabalhadores com férias atrasadas pudessem gozar desse direito (SOSBOMBEIROSRJ, 2012).

As mudanças realizadas pelo Estado trouxeram resultados positivos na relação saúde-trabalho-doença da categoria? Tendo em vista que a maioria das medidas adotadas pelo governo foi na esfera econômica, pode-se supor que aumentou a segurança financeira e o poder aquisitivo dos trabalhadores da categoria em questão. Todavia, os serviços extras, mesmo que de forma voluntária como o acima citado, representam uma intensificação do trabalho, fato que pode proporcionar diversos tipos de adoecimento.

A mobilização dos bombeiros por meio dos atos populares possibilitou diversos acontecimentos históricos para a categoria. Em 7 de julho de 2013, o coletivo organizado inaugurou a Associação de Bombeiros Militares do Estado do Rio de Janeiro (ABMERJ), que, mesmo recém-criada, luta pelos direitos não somente dos bombeiros, mas também de policiais militares. Em outubro do mesmo ano, a categoria obtém uma nova conquista: os trabalhadores excluídos são reintegrados ao Corpo de Bombeiros.

Nas eleições de 2014, a categoria conseguiu eleger um Cabo como deputado federal e um Major como vereador. Estes, por sua vez, têm a missão de lutar pela efetivação de um ambiente de trabalho mais adequado às especificidades das atividades dos bombeiros militares. A eleição de tais candidatos pôde proporcionar o fortalecimento da categoria e de seu coletivo organizado. Além disso, por meio do controle social, os trabalhadores puderam participar de forma propositiva do mandato de seus representantes.

Ante o protagonismo dos bombeiros militares na trajetória de seu movimento por melhores condições de trabalho, saúde e vida, os episódios vivenciados pela categoria caracterizam-se como uma verdadeira luta pela saúde do trabalhador. Vê-se assim um novo capítulo na história dessa instituição que possui mais de 160 anos e participa de inúmeros momentos marcantes da construção do País.

Cabe ressaltar que o breve histórico aqui apresentado contemplou as informações contidas nos dois sites (SOSBOMBEIROS, 2011; SOSBOMBEIROSRJ, 2012) de divulgação do movimento. Observa-se que as reivindicações neles salientadas estão na esfera da relação saúde-trabalho-doença e constituem-se como objeto importante para as análises do campo da saúde do trabalhador.

Saúde do trabalhador: um campo em defesa de direitos

O trabalho, ao longo da história, possuiu inúmeros sentidos. Seu desenvolvimento foi de fundamental importância para a construção das sociedades humanas. Para Marx (2008)MARX, K. O capital: Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2008., sua relação com o homem é dialética, pois à medida que o trabalhador transforma a matéria bruta da natureza em um produto que tem sentido e valor ao mesmo tempo, transforma-se e dá sentido à sua atividade laborativa.

A relação saúde-trabalho-doença é objeto de estudo do homem desde o século XVII, no qual tem-se Berdinado Ramazzini como precursor na temática. Atualmente, podem-se encontrar estudos dedicados a esse campo em Gracino (2016)GRACINO, M. E. et al. A saúde física e mental do profissional médico: uma revisão sistemática. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 40, n. 110, p. 244-263, 2016., entre outros; contudo, o entendimento do trabalho em condições não degradantes enquanto um direito humano foi algo duramente conquistado.

Encontra-se o nascedouro do direito trabalhista na Inglaterra no período da revolução industrial. Na época, a jornada de trabalho era muito extensa, as atividades penosas e o ambiente fabril insalubre. Essa conjuntura proporcionou diversos acidentes e mortes colocando o crescimento da produção industrial em risco. É nesse contexto que surge o contrato de trabalho cuja finalidade era a preservação do desenvolvimento da produção por intermédio do prolongamento da vida dos operários para garantir a força de trabalho (VASCONCELLOS, 2011______. A imperfeição da regra trabalhista: da Revolução Industrial à Consolidação das Leis do Trabalho. In: VASCONCELLOS, L. C. F.; OLIVEIRA, M. H. Saúde, Trabalho e Direito: uma trajetória crítica e a crítica de uma trajetória. Rio de Janeiro: Educam, 2011. p. 125-164.).

A saúde do trabalhador é uma área que segundo Gomez (2011)GOMEZ, C. M. Campo da Saúde do Trabalhador: trajetória, configuração e transformações. In: GOMEZ, C. M.; MACHADO, J. M. H; PENA, P. G. L. Saúde do Trabalhador na Sociedade Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 23-34. incorpora disciplinas de outras áreas de conhecimento, tais como: epidemiologia, ergonomia, engenharia, sociologia, psicologia, administração, entre outras, e que por isso se constitui como um campo de conhecimento.

A saúde do trabalhador agrega [...] um amplo espectro de disciplinas. Como campo de saber próprio da saúde coletiva, está composta pelo tripé epidemiologia, administração e planejamento em saúde e ciências sociais em saúde, ao que se somam disciplinas auxiliares como demografia, estatística, ecologia, geografia, antropologia, economia, sociologia, história e ciências políticas, toxicologia, engenharia de produção e ergonomia entre outras. (GOMEZ, 2011GOMEZ, C. M. Campo da Saúde do Trabalhador: trajetória, configuração e transformações. In: GOMEZ, C. M.; MACHADO, J. M. H; PENA, P. G. L. Saúde do Trabalhador na Sociedade Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 23-34., P. 25).

O campo teve como inspiração o Modelo Operário Italiano (MOI) que surgiu na década de 1960 e tinha como característica o protagonismo dos operários e dos seus sindicatos na defesa da saúde, ou seja, a proteção da saúde dos operários não era delegada aos donos das fábricas.

A participação ativa do trabalhador, o conhecimento e a sua autonomia possibilitaram, pouco a pouco, a construção do conceito de não delegação, cujo significado implica não delegar à técnica tradicional e instituída e à gestão político-institucional o direito do controle das condições do ambiente de trabalho. (PAIVA; VASCONCELLOS, 2011______. A imperfeição da regra trabalhista: da Revolução Industrial à Consolidação das Leis do Trabalho. In: VASCONCELLOS, L. C. F.; OLIVEIRA, M. H. Saúde, Trabalho e Direito: uma trajetória crítica e a crítica de uma trajetória. Rio de Janeiro: Educam, 2011. p. 125-164., P. 387).

No Brasil, é possível citar como fatos marcantes de sua construção que reuniu profissionais da área da saúde, intelectuais da academia e diversos segmentos de trabalhadores: o Movimento da Reforma Sanitária, a I Conferência Nacional de Saúde e os primeiros Programas de Saúde do Trabalhador.

Para Mendes e Dias (1991)MENDES, R.; DIAS, E. C. Da Medicina do Trabalho à Saúde do trabalhador. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 25, n. 5, p. 341-9, 1991., a saúde do trabalhador supera as práticas da medicina do trabalho e da saúde ocupacional, pois nela os trabalhadores não são compreendidos como objetos das ações de intervenção; eles são formuladores, gestores e protagonistas das intervenções que visam à garantia da atenção, proteção e cuidado de sua saúde.

Para Vasconcellos (2011, P. 409)______. A imperfeição da regra trabalhista: da Revolução Industrial à Consolidação das Leis do Trabalho. In: VASCONCELLOS, L. C. F.; OLIVEIRA, M. H. Saúde, Trabalho e Direito: uma trajetória crítica e a crítica de uma trajetória. Rio de Janeiro: Educam, 2011. p. 125-164., esse campo de conhecimento

invoca o direito à saúde no seu espectro irrestrito da cidadania plena, típica dos direitos civis, econômicos, sociais e humanos fundamentais, a que os demais direitos estão subordinados.

A saúde para essa área é compreendida como um direito fundamental que vai para além dos limites existentes nos contratos de trabalho. A saúde do trabalhador está legitimada na Constituição Federal de 1888 e tem o Sistema Único de Saúde (SUS) como palco principal da efetivação de suas ações.

Ao pensar na trajetória histórica do campo da saúde do trabalhador e nas ações protagonizadas pelos militares do CBMERJ, nota-se que ambos almejam a garantia das condições necessárias à preservação da saúde no ambiente de trabalho. Dessa forma, acredita-se estar presente na luta desses trabalhadores o ideário do MOI: "A saúde não se vende e nem se delega: se defende" (PAIVA; VASCONCELLOS, 2011______. A imperfeição da regra trabalhista: da Revolução Industrial à Consolidação das Leis do Trabalho. In: VASCONCELLOS, L. C. F.; OLIVEIRA, M. H. Saúde, Trabalho e Direito: uma trajetória crítica e a crítica de uma trajetória. Rio de Janeiro: Educam, 2011. p. 125-164., P. 388), logo, pode-se caracterizar os episódios dos bombeiros como um movimento em defesa da saúde do trabalhador.

Reflexões sobre a violência relacionada com o trabalho

Há diferentes discussões acerca da terminologia que integra violência e trabalho. Alguns autores mencionam a categoria de violência do trabalho, outros se apropriam da descrição de violência no trabalho e também da violência relacionada com o trabalho. A principal divergência ocorre em função de uma violência ligada ao ambiente de trabalho ou a própria função do trabalhador. Oliveira e Nunes (2008)OLIVEIRA, R. P.; NUNES, M. O. Violência relacionada ao trabalho: uma proposta conceitual. Revista Saúde Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 4, p. 22-34, 2008. consideram a violência relacionada ao trabalho e descrevem da seguinte forma:

[...] como toda ação voluntária de um indivíduo ou grupo contra outro indivíduo ou grupo que venha a causar danos físicos ou psicológicos, ocorrida no ambiente de trabalho, ou que envolva relações estabelecidas no trabalho ou atividades concernentes ao trabalho. Também se considerada violência relacionada ao trabalho toda forma de privação e infração de princípios fundamentais e direitos trabalhistas e previdenciários; a negligência em relação às condições de trabalho; e a omissão de cuidados, socorro e solidariedade diante de algum infortúnio, caracterizados pela naturalização da morte e do adoecimento relacionados ao trabalho. (OLIVEIRA; NUNES, 2008OLIVEIRA, R. P.; NUNES, M. O. Violência relacionada ao trabalho: uma proposta conceitual. Revista Saúde Sociedade, São Paulo, v. 17, n. 4, p. 22-34, 2008., P. 30).

A temática violência vem ganhando cada vez mais visibilidade e trazendo preocupações nas últimas décadas. No Brasil, segundo Minayo e Souza (1999)MINAYO, M. C. S.; SOUZA, E. R. É possível prevenir a violência? Reflexões a partir do campo da saúde pública. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, p. 7-32, 1999., é na década de 1980 que esse tema entra com maior ênfase no campo da saúde, buscando maior consolidação nos anos 1990. No que diz respeito às causas externas de morbidade e mortalidade que estão na Classificação Internacional de Doenças (CID- 10), os acidentes e violência que ocorrem no local de trabalho também são um problema de saúde pública.

A literatura ressalta a importância de pensar sobre os agravos decorrentes de acidentes e violência no trabalho perante a gravidade deles sobre a população. Machado e Gomez (1994, P. 74)MACHADO, J. M. H.; GOMEZ, C. M. Acidentes de trabalho: uma expressão da violência social. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 10, supl. 1, p. S74-S87, 1994. compreendem o

acidente como uma forma de violência impõe à área de saúde do trabalhador novas relações no interior da Saúde Pública, bem como interfaces disciplinares e setoriais.

Os autores mencionam a magnitude da mortalidade em função de violências no trabalho na sociedade, salientando a precariedade do reconhecimento e registro nos sistemas de informação.

Dessa forma, refletir sobre a relação acidente-violência-trabalho é crucial para pensar estratégias em defesa da saúde do trabalhador. Em relação às manifestações dos bombeiros militares aqui estudadas, percebe-se que a luta era principalmente em prol da sua saúde e direitos. Para o movimento reivindicatório, a dignidade relaciona-se diretamente com direitos humanos fundamentais, inclusive de um trabalho com condições que não propiciem impactos negativos sobre a saúde dos trabalhadores. Tais princípios são consagrados na Constituição Federal de 1988 reforçando o entendimento que esses direitos e condições devem ser garantidos nos ambientes laborais.

Considera-se a definição de violência abordada pela Organização Mundial da Saúde, como

uso da força física ou poder, em ameaça ou prática, contra si próprio, outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade, que resulte ou possa resultar em sofrimento, morte, dano psicológico, desenvolvimento prejudicado ou privação. (OMS, 2002ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra, 2002. Disponível em: <http://www.opas.org.br/relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude/>. Acesso em: 26 maio 2016.
http://www.opas.org.br/relatorio-mundial...
, P. 5).

O histórico de idas e vindas dos bombeiros militares no movimento em busca de melhoria nos recursos de trabalho revela os possíveis dramas da categoria em sua prática laboral que aqui se compreende como sendo um quadro sugestivo de violências relacionadas com o trabalho.

A segurança, saúde e bem-estar dos profissionais como aspectos que pertencem ao desenvolvimento da instituição devem ser considerados na abordagem mais ampla das causas de violência relacionada com o trabalho (OMS, 2002ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE (OMS). Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra, 2002. Disponível em: <http://www.opas.org.br/relatorio-mundial-sobre-violencia-e-saude/>. Acesso em: 26 maio 2016.
http://www.opas.org.br/relatorio-mundial...
). De modo que pensar na melhoria e ampliação da saúde do trabalhador é também prevenir a violência no local de trabalho, com isso é possível o estabelecimento de um ambiente laboral que não propicie danos à saúde daqueles que realizam suas atividades de trabalho.

Os bombeiros militares constituem uma categoria de trabalhadores que luta para salvar vidas, portanto necessitam das melhores condições de trabalho possíveis para realizar suas atividades laborais de forma satisfatória. A escassez ou limitação de recursos básicos para as práticas laborais são elementos que podem gerar impactos negativos na saúde e vida de profissionais em geral, dessa forma tal situação precária nas condições de trabalho se estabelece como uma forma de violência relacionada com o trabalho.

Considerações finais

A análise da pauta reivindicatória dos bombeiros militares sugere que a categoria possui condições de trabalho com problemas estruturais, ambientais e de ordem socioeconômica. Esse quadro pode produzir efeitos negativos não somente no transcorrer de suas atividades, mas também causar agravos em todas as instâncias que envolvem sua saúde e vida conforme mencionado. Cabe ressaltar que foram abordados os episódios protagonizados pelos bombeiros militares em um determinado período e local, portanto o fenômeno observado pode não ocorrer ou ser diferente em instituições com a mesma finalidade em outras localidades do País.

A literatura sobre a situação de saúde da categoria relacionada com o trabalho ainda é pequena no País. Apesar disso, alguns estudos como o realizado por Monteiro (2013)MONTEIRO, J. K. et al. Bombeiros: psicopatologia e condições de trabalho. Estudos de Psicologia (Campinas), São Paulo, v. 30, n. 3, p. 437-444, 2013. e Lima, Assunção e Barreto (2015)LIMA, E. P.; ASSUNÇÃO, A. A.; BARRETO, S. M. Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) em Bombeiros de Belo Horizonte, Brasil: Prevalência e Fatores Ocupacionais Associados. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília, DF, v. 31, n. 2, p. 279-288, 2015. apontam que os trabalhadores do Corpo de Bombeiros de outros estados enfrentam problemas de saúde que podem estar relacionados com suas atividades laborais. Dessa forma, identifica-se a necessidade de aprofundamento da temática, ou seja, a realização de um estudo exploratório em que seja possível ouvir os pontos de vistas desses profissionais e da instituição.

O contexto de carência de recursos materiais, estruturais e socioeconômicos no cotidiano de diversos segmentos profissionais, sejam eles formais ou não, pode afetar a saúde física e psicológica dos trabalhadores, propiciando o surgimento de doenças crônicas, psicossomáticas, além de acidentes de trabalho e outros agravos. Esse cenário denota a importância de um olhar sobre as condições de trabalho e sua interface com a saúde do trabalhador.

O movimento reivindicatório dos profissionais buscou a redução de fatores que prejudiquem a sua saúde no ambiente laboral. Tais condições podem caracterizar-se como violências no trabalho e desencadear danos físicos, psicológicos e até mesmo a morte. O percurso realizado pelos bombeiros foi em prol da efetivação de um trabalho que não seja sinônimo de adoecimento, sua mobilização foi pela concretização do direito à saúde em seu sentido amplo e irrestrito, a categoria lutou pela efetivação do direito fundante de todos os outros, o da dignidade humana.

  • Suporte financeiro: não houve

Agradecimentos

Liane Maria Braga da Silveira: pelo apoio e leitura cuidadosa do artigo em andamento.

Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos: pelo apoio e companheirismo em todas as batalhas enfrentadas para a produção do trabalho de conclusão de curso que deu base para este artigo.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    Ago 2016
  • Aceito
    Dez 2016
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