Subsídios para a construção de projetos em pesquisa social: reflexões epistemológicas e metodológicas

Fernando Manuel Bessa Fernandes Marcelo Rasga Moreira Pablo Dias Fortes Sobre os autores

RESUMO

O artigo dirige-se a alunos, docentes e pesquisadores. Visa a contribuir para o debate sobre construção e desenvolvimento de projetos de pesquisa, a partir da experiência profissional dos autores na docência da disciplina Metodologia em Pesquisa Social, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública do DCS/Ensp/Fiocruz (Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz). Busca-se refletir sobre questões comuns, como: O que são 'projeto de pesquisa', 'metodologia', 'método', 'objeto', 'objetivos', 'técnicas'? Como superar a recorrente confusão que se faz entre essas palavras, que gera problemas na construção de projetos? Como pensar as relações entre tais conceitos no processo de construção de um projeto de pesquisa e durante a sua execução?

PALAVRAS-CHAVE
Conhecimento; Metodologia; Projetos de pesquisa

Introdução

O real nunca é 'o que se poderia achar',

mas é sempre o que se deveria ter pensado...

Diante do real, aquilo que cremos saber com clareza

ofusca o que deveríamos saber.

Gaston Bachelard

O artigo dirige-se a alunos, docentes e pesquisadores das Ciências Sociais e Humanas, primordialmente, da área da saúde coletiva, e tem por objetivo contribuir, com subsídios tanto teórico-metodológicos quanto prático-instrumentais, para a qualificação do debate sobre construção e desenvolvimento de projetos em pesquisa social, tais como monografias de graduação e/ou trabalhos de conclusão de curso, assim como dissertações, teses e projetos de pesquisa em geral.

O artigo surge de reflexões epistemológicas dos autores, no âmbito das atividades de orientação e de docência na disciplina Metodologia em Pesquisa Social, do Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública do Departamento de Ciências Sociais da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (DCS/Ensp/Fiocruz), nas modalidades stricto e lato sensu.

Nota-se que afloram, com regularidade, dúvidas e dificuldades de compreensão dos alunos sobre questões, tais como: o que se deve articular num projeto de pesquisa? O que são 'metodologia', 'método', 'objeto', 'objetivos', 'técnicas'? Como superar a recorrente confusão que se faz entre essas palavras, que gera problemas na construção de projetos? Como pensar as relações entre esses conceitos no processo de construção de um projeto de pesquisa e durante a sua execução? Para dar conta dessas preocupações mais diretas, ao longo do tempo, textos têm sido elaborados (BACHELARD, 2002BACHELARD, G. A formação do espírito científico. 3. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.; CONTANDRIOPOULOS 1994CONTANDRIOPOULOS, A. et al. Saber preparar uma pesquisa: definição, estrutura, financiamento. São Paulo: Hucitec; 1994.; DEMO, 1987DEMO, P. Metodologia científica em ciências sociais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1987. ; ECO, 1986ECO, U . Como se faz uma tese. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. ; QUIVY; COMPENHOUDT, 1992QUIVY, R.; CAMPENHOUDT, L. V. Manual de investigação em ciências sociais. Lisboa: Gradiva, 1992. ; FERNANDES; MOREIRA, 2013FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA M. R. Considerações metodológicas sobre as possibilidades de aplicação da técnica de observação participante na saúde coletiva. Physis, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, 2013. ; GALERA, 2007GALERA, J. M. B. Epistemologia e conhecimento científico: refletindo sobre a construção histórica da ciência através de uma docência investigativa. Revista Tecnologia & Humanismo, Curitiba, v. 21, p. 96-106, 2007.; GOLDENBERG, 2007GOLDENBERG, M.A arte de pesquisar. 10. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007. ; KUHN, 1995KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. 3 ed. São Paulo: Perspectivas, 1995. ; LIMA; MIOTO, 2007LIMA, T. C. S.; MIOTO, R. C. T. Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Rev. katálysis, Florianópolis, v. 10, n. esp., p. 37-45, 2007.; MANN, 1970MANN, P. Métodos de investigação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.; MINAYO, 1998MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 1998. ; OLIVEIRA; EPSTEIN, 2009OLIVEIRA, J. A.; EPSTEIN, I. Tempo, ciência e consenso: os diferentes tempos que envolvem a pesquisa científica, decisão política e opinião pública. Interface, Botucatu, v. 13, n. 29, p. 423-33, abr./jun. 2009. ; RICHARDSON, 1999RICHARDSON, R. J. Pesquisa Social: métodos e técnicas. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1999. ; SALOMON, 2006SALOMON, D. V. A Maravilhosa incerteza: pensar, pesquisar, criar. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2006. ; SANTOS, 2003SANTOS, B. S. Introdução a uma ciência pós-moderna. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003. ). Essas, sem dúvida, são questões pertinentes e válidas, merecedoras de discussão permanente, daí o motivo deste artigo.

A pesquisa como um processo - considerações teóricas sobre a construção de projetos em pesquisa social

Entre os alunos de pós-graduação em saúde pública com os quais temos trabalhado, em geral, percebe-se insegurança frente a questões de ordem teórica e prática no que concerne a elaborarem projetos. O temor ao 'erro', 'fracasso' ou 'incorreção' pode gerar e, ao mesmo tempo, ser gerado por um sentimento de inferioridade e incapacidade ao idealizarem e operacionalizarem seus projetos, se não seguirem à risca um 'gabarito', 'receita de bolo', 'guia' ou 'manual' descrevendo ações padronizadas sobre como fazer pesquisa, com chancela científica.

Esse sentimento, muitas vezes, cristaliza-se a partir de uma visão sobre a organização, elaboração, formatação e divulgação de trabalhos de pesquisa que postula e mitifica os métodos, as técnicas e a própria atividade científica como mecanicamente objetivos, impessoais e assépticos, ou seja, automaticamente padronizados e 'neutros' a priori.

Essa forma de pensamento tende a esvaziar o caráter político e simbólico-cultural inerente aos protagonistas e procedimentos da ciência, assim como de suas implicações. Tal caráter passa a ser visto como naturalmente estanque e relacionado à passionalidade, irracionalidade e subjetividade, tomado como indesejado por supostamente carecer de precisão, confiabilidade e concretude objetiva, características comumente associadas à prática científica.

Tal visão, levada ao extremo, implica uma abordagem estruturada com o efeito limitado e limitador de medir e traduzir em números, equações e relações estatísticas, em um determinado intervalo espaço-tempo, a polissemia e a plasticidade dos problemas que povoam as realidades a serem estudadas e dos atores que as vivenciam, num movimento de matematização do real. Contingencialmente, nesse movimento, fica nublado o fato de que a pesquisa social lida, em primeira e última instância, com seres humanos, de carne, osso, emoções e sentimentos, plásticos em essência, aparência e valor (ALVES, 2005ALVES, R. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2005. ; CRUZ NETO, 1998CRUZ NETO, O. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. ; FERNANDES; MOREIRA, 2013FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA M. R. Considerações metodológicas sobre as possibilidades de aplicação da técnica de observação participante na saúde coletiva. Physis, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, 2013. ; MINAYO, 1998MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 1998. ; MINAYO; SANCHES, 1993MINAYO, M. C. S.; SANCHES, O. Quantitative and qualitative methods: opposition or complementarity? Cad Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 237-248, 1993.).

Por outro lado, também é fato que, com vigor, na área da saúde, a importância e a utilidade dos recursos teórico-práticos das ciências sociais têm se destacado, entre os quais, aqueles oriundos da antropologia, ciência política, história, direito, filosofia, administração, economia etc. Daí ser preciso cada vez mais subsidiar os interessados, no sentido de aprofundarem e articularem suas reflexões acerca da elaboração e da estruturação de seus projetos de pesquisa, combinando saberes e práticas (ALVES, 2005; COSTA, 2002COSTA, M. C. S. Intersubjectivity and historicity: contributions from modern hermeneutics to ethnographic research. Rev Latino-Am Enfermagem, São Paulo 2002, v. 10, n. 3, p. 372-382, 2002.; DESLANDES, 1997DESLANDES, S. F. A construção do projeto de pesquisa. In.: MINAYO C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. ; FERNANDES; MOREIRA, 2013FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA M. R. Considerações metodológicas sobre as possibilidades de aplicação da técnica de observação participante na saúde coletiva. Physis, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, 2013. ; LIMA; MIOTO, 2007LIMA, T. C. S.; MIOTO, R. C. T. Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Rev. katálysis, Florianópolis, v. 10, n. esp., p. 37-45, 2007.; MINAYO; SANCHES, 1993MINAYO, M. C. S.; SANCHES, O. Quantitative and qualitative methods: opposition or complementarity? Cad Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 237-248, 1993.; RICHARDSON, 1999RICHARDSON, R. J. Pesquisa Social: métodos e técnicas. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1999. ; SERAPIONI, 200SERAPIONI, M. Métodos qualitativos e quantitativos na pesquisa social em saúde: algumas estratégias para a integração. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, n. 1, p. 187-192, 2000.; TEIXEIRA, 2004TEIXEIRA, M. O. As ciências sociais entre biólogos e vacinas: agruras do estudo em um laboratório. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 159-172, 2004.).

Nesse movimento de aprofundamento, torna-se, por vezes, pertinente dar um passo atrás, a fim de que seja possível avançar dois passos à frente. Essa frase de Lênin, que tão bem ilustra o fluxo não linear de nosso pensamento, adequa-se aos propósitos e ao espírito deste artigo e traduz a necessidade de se fazer algumas breves considerações sobre as várias formas de compreensão do mundo produzidas pelos seres humanos e, especificamente, sobre ciência - tão presente na vida cotidiana destes dias que correm.

Ao longo da história, várias formas de pensamento humano foram desenvolvidas para conhecer, interpretar, entender, compreender, assimilar, explicar e definir o mundo, assim como as questões tanto universais quanto particulares e íntimas que afligem a todos, enfim, para se conhecer a vida em si - individual e coletiva. É possível citar: arte, ciência, filosofia, religião, pensamento mágico e senso comum, basilar em relação a todas as outras formas. Todas compartilham o fato de serem leituras possíveis do que compreendemos por realidade, que, constantemente e ao mesmo tempo, criam, destroem, recriam, modificam e transformam realidades.

Não entrando no mérito e nas minúcias de cada uma dessas formas, pode-se afirmar que todas possuem alguma estruturação sistêmica e essência especulativa e reflexiva, o que lhes dá a competência de atribuir sentido e significado à chamada realidade. E, mais ainda, todas convivem de maneira nada isolada ou indiferente umas com relação às outras (ALVES, 2005; CRUZ NETO, 1998CRUZ NETO, O. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. ; MINAYO, 1998MINAYO, M. C. S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 1998. ; MINAYO; SANCHES, 1993MINAYO, M. C. S.; SANCHES, O. Quantitative and qualitative methods: opposition or complementarity? Cad Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 237-248, 1993.).

No decorrer do processo histórico, percebe-se que os adeptos mais aguerridos de uma ou outra dessas formas têm buscado alcançar destaque, na tentativa de afirmar e consolidar, para sua visão de mundo, o status de melhor ou única e correta maneira de lidar com a realidade. Tal interação configura uma constante disputa por hegemonia, com afastamentos, alianças e aproximações. Sabe-se que, muito embora essa interação possa provocar confrontos retóricos ou mesmo mais diretos, a disputa por hegemonia não compreende, necessariamente, a aniquilação total de uma forma de ver o mundo por outra.

Uma forma de compreender o mundo (e, portanto, de exercer poder sobre ele e, em última análise, de controlá-lo) hegemoniza-se quando consegue instaurar uma situação de aceitação tácita de seus valores, universalizando-os e não demandando obrigatoriamente o uso da coerção física e da força bruta.

Entretanto, observa-se que, reiteradas vezes, ao longo da História, têm sido e são, mesmo em dias atuais e em sociedades tidas como progressistas, recorrentes episódios tais como perseguições, constrangimentos e atos de intolerância dos mais diversos tipos e gerados pelas mais variadas causas.

Só que um mesmo indivíduo carrega em seu arcabouço cognitivo um potencial latente de protagonizar cada uma dessas formas de ver o mundo, dependendo de sua formação - o fato de alguém ser cientista não implica unidimensionalidade, podendo essa pessoa se expressar, também, por meio da arte, por exemplo. As fronteiras entre as formas são arbitrárias, fluidas, permeáveis.

Isto posto, na intenção de fundamentar as reflexões e para que se possa pensar sobre a construção de projetos de pesquisa, cabe focalizar a atenção em alguns aspectos sobre a discussão envolvendo o que se convenciona denominar ciência, sem menosprezo pelas outras formas de compreender o mundo.

A ciência - cuja raiz etimológica deriva do latim scire, significando conhecimento, saber, sabedoria - não é a única nem a melhor forma de compreensão do mundo. Caracteriza-se por propor e enfrentar problemas palpáveis e cotidianos e projetar suas soluções, lançando mão de teorias, métodos e técnicas sistematizadas para tal. Diferentemente das outras formas de compreensão do mundo, a ciência retroalimenta-se ao produzir conhecimento dinâmico e replicável, gerando concretude em seus resultados voltados para os interesses das sociedades, formando-as, informando-as e re-formando-as por conta de sua capacidade intrínseca de efetuar verdadeiras 'profecias autorrealizáveis' (ALVES, 2005ALVES, R. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2005. ; COLLET; ROZENDO, 2001COLLET, N.; ROZENDO, C. A. Questões metodológicas da pesquisa no campo da saúde. Rev Latino-Am Enfermagem, São Paulo, v. 9, n. 3, p. 106-111, 2001.; KUHN, 1995KUHN, T. S. A estrutura das revoluções científicas. 3 ed. São Paulo: Perspectivas, 1995. ; OLIVA, 2003OLIVA, A. Filosofia da ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. (Coleção Passo a Passo; n. 31).; SALOMON, 2006SALOMON, D. V. A Maravilhosa incerteza: pensar, pesquisar, criar. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2006. ; SANTOS, 2003SANTOS, B. S. Introdução a uma ciência pós-moderna. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003. ).

É interessante notar que, mesmo entre os cientistas - assim como em cada uma das outras formas de ver o mundo -, o processo de disputa por hegemonia também se faz presente. Essa disputa aparece, por exemplo, na clássica divisão entre as ciências naturais ou da natureza (chamadas de 'duras' ou 'hard sciences') e as ciências humanas, ('leves' ou 'soft sciences'), divisão que espelha a distinção de objetos de estudo e a dicotomia natureza/cultura: nas ciências naturais, objetos concretos e mensuráveis, pertencentes à natureza; nas ciências humanas, objetos abstratos, portanto, imponderáveis e subjetivos, relacionados aos seres e às relações humanas. Interessante notar que essa distinção postula que o que é humano estaria apartado da natureza, como se fossem opostamente estanques 'naturalmente'...

Assim como nas ciências ditas naturais, nas humanas, mais especificamente, nas ciências sociais, também ocorre disputa por hegemonia, visível pelo embate entre as variadas correntes ou escolas de pensamento: marxismo ou materialismo histórico/dialético, positivismo, fenomenologia etc. e os artifícios procedimentais por elas desenvolvidos para lidar com a realidade.

Compreende-se, aqui, realidade não como sinônimo de real. Na verdade, essa é uma questão metafísica e ontológica crucial da filosofia ao longo dos séculos, e o presente artigo não poderia ter a pretensão de resolvê-la. Mas, para efeito de definição e em atenção a fins expositivos, real seria tudo que compõe o mundo, seja de ordem concreta ou abstrata, cuja compreensão em sua totalidade é vedada ao conhecimento humano, posto que este está impedido de apresentar o atributo da onisciência. Assim, para fins deste artigo, a realidade, ou, melhor dizendo, as possíveis realidades, seriam aproximações ou representações que os seres humanos fazem do real, construídas a partir dos olhares adotados.

Esse entendimento auxilia na dessacralização e desmitificação da ideia clássica de ciência, pois permite perceber que ela é - como toda produção humana - parcial, limitada, polissêmica; enfim, não está isenta de historicidade, de cultura, de relações de poder, de dominação política e de direcionamento ideológico.

Muito pelo contrário, observa-se que mesmo os que advogam e propõem a objetividade e a neutralidade axiológica do fazer científico não escapam das injunções advindas da natureza humana, plasmada no viver em sociedade. Esse é um lembrete por vezes negligenciado por todos os que vivem na, da e pela ciência.

Contudo, há de se ter cuidado para não se adotar posturas maniqueístas e demonizadoras da ciência, atribuindo um peso exagerado a seus problemas, dificuldades, limitações, incapacidades de explicação e vinculações político-ideológico-econômicas atuantes em seus usos e abusos. Assim como toda e qualquer outra visão de mundo, a ciência, na qualidade de ação humana, demanda ser humanizada e humanizadora.

E parece ser acertado notar que a humanização da ciência inexoravelmente passa pela consciência de que suas atividades típicas de ensino e pesquisa são expressões da humanidade, tanto dos que são quanto dos que não são cientistas, conforme afirma Paulo Freire (1996, P. 32)FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. :

Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino... Ensino porque busco... Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.

Nesse contexto se produz ciência, com o adendo de que o pesquisador, ao pesquisar, também coloca em xeque o que já conhece: nas palavras de Karl Popper, "A solução consiste em perceber que todos podemos errar, individual ou coletivamente, e que erramos com frequência..." (1994, P. 51).

A ciência constrói seu caminho, faz-se, cresce e afirma-se como uma visão e, também, como uma explicação de mundo, ao infundir e participar do debate entre as diferentes visões e acerca de seus próprios procedimentos. Nem melhor, nem pior que o pensamento religioso, por exemplo. Porém, diferente, e é nessa diferença que o cientista-pesquisador deve trabalhar, consciente de que fazer ciência não implica o cumprimento de um percurso pré-formatado que deve ser rígida e mecanicamente seguido: "A ciência reclama pessoas flexíveis e inventivas e não rígidos imitadores de padrões de comportamento estabelecidos" (FEYERABEND, 2007FEYERABEND, P. Contra o método. São Paulo: Unesp, 2007. , P. 221).

De fato, no processo da pesquisa, a adoção de postura simultaneamente cautelosa e criativa por parte do pesquisador tende a produzir preciosas narrativas e conhecimentos relevantes e inovadores.

Ao anunciar novidade, o pesquisador gera e movimenta debate, posto que outros também estão pesquisando, com outros instrumentais teóricos e práticos, direcionamentos e propósitos. Do debate, surgem novas demandas, que os obrigam a reiniciar ciclos de pesquisa, buscando conhecer outros aspectos e realidades, e anunciando-os novamente, mantendo o ciclo em espiralado movimento, indefinidamente.

Adotar uma ideia dogmática de verdade tornaria o trabalho do pesquisador nada inquietante, admitindo-se a inquietação - aparentada da curiosidade - como a centelha que inflama a vontade de saber. Pistas adicionais sobre o papel da inquietação estão numa das possíveis definições de pesquisa:

[...] processo no qual o pesquisador tem uma atitude e uma prática teórica de constante busca que define um processo intrinsecamente inacabado e permanente, pois realiza uma atividade de aproximações sucessivas da realidade, sendo que esta apresenta 'uma carga histórica' e reflete posições frente à realidade. (LIMA; MIOTO, 2007LIMA, T. C. S.; MIOTO, R. C. T. Procedimentos metodológicos na construção do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Rev. katálysis, Florianópolis, v. 10, n. esp., p. 37-45, 2007., P. 23).

E para que o trabalho do pesquisador seja satisfatório no desenrolar de seu caminho, ações, estratégias e ferramentas demandam ser imaginadas, planejadas, desenvolvidas, concretizadas, refletidas, submetidas a teste e questionadas. Pesquisar é preciso. Porém, pesquisar também é impreciso! E pesquisar é estudar!

Não é gratuito notar que estudo é um sinônimo para investigação e também para pesquisa, vocábulo esse que, em inglês, é research, e, em francês, recherche. Ambos vêm, respectivamente, das palavras search e cherche, significando a ideia de busca. E nessas palavras, identifica-se a raiz francesa cher - querido, ou seja, algo que se quer. Num projeto de pesquisa, portanto, é fundamental a estruturação clara acerca do que, do por que, do como e do para que se busca.

A pesquisa como um processo - considerações conceituais fundamentais para a construção de projetos em pesquisa social

Marx, tanto em sua análise sobre o cotidiano quanto em sua reflexão metodológica, afirmava que os indivíduos são capazes de construir seus próprios caminhos, a partir da estrutura econômica, histórica, política e social em que se encontram, vivem e pesquisam. Daí ser preciso estudar essa estrutura e conhecê-la, para que se possa nela intervir e transformá-la.

Logo, os interessados em efetuar uma pesquisa, ao construir seu caminho, devem buscar evitar o que seria um equívoco: desdenhar das teorias e reflexões metodológicas existentes ou cair na arrogância de querer impor seu raciocínio como o melhor ou o correto. Os caminhos percorridos não serão os mesmos, mas as experiências vivenciadas por outros podem (e devem) ser aproveitadas, se não para serem replicadas, para serem debatidas. Logo, espera-se que o pesquisador esteja disposto a investigar, analisar e promover o debate, fazendo contribuições para o desenvolvimento do conhecimento com observância de uma postura ética e voltado para o bem-estar coletivo.

Fundamentalmente, a maneira do pesquisador observar, captar, compreender, sentir e explorar o mundo faz com que se estabeleçam quadros ou modelos explicativos e elabore interpretações compartilhadas com seus pares e com a sociedade em geral por meio de palavras, ou seja, utilizando-se da linguagem como meio e ferramenta, ainda que limitada pelas barreiras e dificuldades intersubjetivas de expressão e difusão.

Talvez uma boa metáfora seja a ideia figurativa de um mapa elaborado pelo pesquisador, que pode ajudar a entender tanto particularidades quanto generalidades, auxiliando em direção a um melhor entendimento de um dos múltiplos aspectos da complexidade do assim chamado mundo real.

Contudo, tomados todos os cuidados, não pode ser esquecido que o modelo explicativo elaborado não se confunde com aquilo que se chama de real nem com o que aqui se chama realidade. Metáforas podem ser eficientes, mas são imperfeitas: o mapa não é o território (KORZYBSKI, 1994KORZYBSKI, A. Ciência e sanidade: uma introdução para sistemas não-aristotélicos e semântica geral. 5. ed. New Jersey: Instituto de Semântica Geral, 1994. ); antes, é uma imperfeita tradução do território. Mas configura-se num modelo.

Neste sentido, 'modelo explicativo' pode ser entendido como uma tentativa de representação da realidade, relacionada a um corpus teórico, ou seja, a uma teoria. Esta pode ser entendida como sendo um conjunto de conceitos, definições, categorias e proposições sistematicamente inter-relacionados para explicar a realidade. A diferenciação ocorre na medida em que a teoria é marcada pelo caráter eminentemente explicativo, ao passo que o modelo distingue-se, também, pelo caráter representativo, podendo tanto subsidiar a elaboração de uma teoria quanto potencializar o entendimento dos conceitos de uma teoria.

No processo de pesquisa, compreende-se método pelo caminho traçado e percorrido pelo pesquisador para se atingir objetivos na sua prática, e chega-se ao entendimento de que o caráter científico de uma atividade investigativa, entre outros requisitos, não pode prescindir da indagação voltada para as próprias ações e pensamentos que engendram o método utilizado. Daí compreende-se metodologia, ou seja, o estudo do método, consistindo em conhecimento de segunda ordem e de natureza epistemológica, um conhecimento sobre o conhecimento, metaconhecimento nascido e plasmado na reflexão sobre o caminho dos pesquisadores no exercício de sua forma de visão/explicação do mundo (ALVES, 2005ALVES, R. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e a suas regras. 9. ed. São Paulo: Loyola, 2005. ; BACHELARD, 2002BACHELARD, G. A formação do espírito científico. 3. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002.; MORIN, 2005MORIN, E . O método III: o conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina, 2005.; OLIVA, 2003OLIVA, A. Filosofia da ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. (Coleção Passo a Passo; n. 31).; SALOMON, 2006SALOMON, D. V. A Maravilhosa incerteza: pensar, pesquisar, criar. São Paulo: Martins Fontes Editora, 2006. ).

Pode-se dizer que o caminho do pesquisador, ou seja, o método, possui dimensões: os conceitos e categorias que fundamentam a teoria com a qual se trabalha e que subsidiam o raciocínio hipotético, a definição do objeto, as técnicas que operacionalizam o cumprimento dos objetivos da pesquisa, o uso da criatividade e a observância dos princípios éticos instituídos. A seguir, na figura 1, observa-se um esquema que busca ilustrar panoramicamente o processo de pesquisa, contextualizando os seus elementos componentes no que concebemos como real e realidade:

Figura 1
Esquematização dos componentes do processo de pesquisa

Nota: A Situação-Problema, a Teoria e o Raciocínio Hipotético compõem o Modelo Explicativo.

Se toda caminhada começa com um primeiro passo, haveria, portanto, um ponto de partida para esse caminhar do pesquisador? Onde começaria seu trabalho? Seria a partir da realidade experienciada no seu dia a dia? Seria a partir das reflexões, percepções, observações, sentimentos, ideias e pré-conceitos do próprio pesquisador? Ou seria na relação entre ambos?

De fato, é exatamente essa relação que faz com que o pesquisador encare algum aspecto da realidade como uma 'situação-problema', algo que o afeta, demanda e propicia oportunidade de realizar um estudo. Os problemas que interessam ao pesquisador não estão dados pela natureza, já prontos e acabados para serem coletados, sistematizados, interpretados, descritos, analisados, explicados. Eles derivam da correlação entre a concepção de mundo e a realidade vivenciada pelo pesquisador via pesquisa, e, inclusive, não pode ser isenta de prazer:

La investigación tiene que suscitar placer, tiene que ser placer. Uno no puede entender que alguien estudie o investigue algo que no le gusta o que no le agrada, aunque casos se ven. (ROZO, 2007ROZO, O. P. La investigación es un placer. Revista Aquichan, Chía, Colômbia, v. 7, n. 1, 2007., P. 98).

Ter que lidar com uma situação-problema significa, também, que o que é considerado problema, para alguns, pode não ser para outros, pois não há garantias de que a mesma situação seja encarada como um problema por duas ou mais pessoas diferentes. Só que o modo de se pensar e de se propor tentar encontrar possíveis soluções para esse problema é fundamental para lhe conferir caráter científico - cientificidade.

A situação-problema está inscrita num tema, dentro do contexto profissional e sociocultural do pesquisador, por conta da empatia e da ênfase que ele tem com um determinado assunto, e geralmente já explorado por outros autores. O movimento de escolha do tema protagonizado pelo pesquisador equivale a delimitar a grande área do conhecimento de interesse a ser pesquisada:

Fazer uma tese significa, pois, aprender a por ordem nas próprias idéias e ordenar os dados: é uma experiência de trabalho metódico; quer dizer, construir um 'objeto' que, como princípio, possa também servir aos outros. Assim, não importa tanto o tema da tese quanto a experiência de trabalho que ela comporta [...] embora seja melhor fazer uma tese sobre um tema que nos agrade, ele é secundário com respeito ao método de trabalho e à experiência daí advinda. Ainda mais: trabalhando-se bem, não existe tema que seja verdadeiramente estúpido. Conclusões úteis podem ser extraídas de um tema aparentemente remoto ou periférico. (ECO, 1986ECO, U . Como se faz uma tese. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. , P. 5).

Toda pesquisa demanda um projeto, e, nele, quando o pesquisador realiza o levantamento de base teórico-conceitual, está lidando com as ideias de autores que já trabalharam o tema. Cabe, desta forma, ao pesquisador procurar promover o diálogo desses autores entre si e deles consigo, a fim de formar e enriquecer suas próprias concepções.

Avançando na busca dos elementos que serão fundamentais para dar conta dos objetivos e situar o que será estudado, torna-se necessário procurar, identificar e acessar fontes de informação, divididas em dois tipos, lembrando que se trata de pesquisa social: fontes primárias, constituídas pelas pessoas que transmitem a informação para o pesquisador em primeira mão, ou seja, cuja informação ainda não foi transmitida e/ou sistematizada, permanecendo em estado bruto no raciocínio e na emoção daquele(s) indivíduo(s) que as veicula(m); e fontes secundárias, constituindo bancos de dados, livros, atas, boletins de ocorrência, censos, estatísticas, prontuários médicos, registros audiovisuais, textos digitais ou documentos em geral, nos quais as informações já estão registradas e sistematizadas. Fala-se em fontes secundárias não em sentido pejorativo, por fornecerem informações inferiores, mas, sim, por fornecerem informações que já foram transmitidas e/ou submetidas a um processo de sistematização, mesmo que simples.

O pesquisador não tem como se abster, portanto, de buscar as fontes onde elas estão: no 'campo de pesquisa', conceito esse pelo qual compreende-se uma construção intelectual do pesquisador, que, partindo da realidade, situa o objeto, os objetivos, as técnicas e os sujeitos a serem investigados, pertencentes ao processo da pesquisa. No que tange à pesquisa social:

Concebemos campo de pesquisa como o recorte que o pesquisador faz em termos de espaço, representando uma realidade empírica a ser estudada a partir das concepções teóricas que fundamentam o objeto da investigação [...] Além do recorte espacial, em se tratando de pesquisa social, o lugar primordial é ocupado pelas pessoas e grupos convivendo numa dinâmica de interação social. Essas pessoas e esses grupos são os sujeitos de uma determinada história a ser investigada, sendo necessária uma construção teórica para transformá-los em objetos de estudo. (CRUZ NETO, 1998CRUZ NETO, O. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. , P. 53-54).

O campo não é 'a realidade': é uma construção mental de leitura de uma realidade elaborada pelo pesquisador no qual ele, necessariamente, faz um recorte redutor dela, instruída pela teoria e matizada por seus objetivos de pesquisa:

A compreensão desse espaço da pesquisa não se resolve apenas por meio de um domínio técnico. É preciso que tenhamos uma base teórica para podermos olhar os dados dentro de um quadro de referências que nos permite ir além do que simplesmente nos está sendo mostrado. (CRUZ NETO, 1998CRUZ NETO, O. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. , P. 61).

Nesse processo, o pesquisador insere-se e lida com três dimensões: 1) o espaço concreto onde os sujeitos que integram a realidade da pesquisa travam as relações que interessam aos objetivos da pesquisa; 2) o tempo histórico em que os sujeitos convivem nesse espaço; e 3) as próprias relações sociais que se engendram entre os sujeitos nesse tempo e nesse espaço.

Imperativos éticos estabelecidos referentes ao estudo relacionado a seres humanos devem ser seguidos, sendo necessários alguns cuidados: o envolvimento compreensivo por parte de todos os envolvidos, incluindo, principalmente, o pesquisador; a apresentação da proposta de estudo aos grupos envolvidos; a garantia de que eles não são obrigados a uma colaboração sob pressão, e outros (CRUZ NETO, 1998CRUZ NETO, O. O trabalho de campo como descoberta e criação. In: MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. , P. 55). Os princípios éticos em pesquisa envolvendo seres humanos podem ser acessados no sítio eletrônico da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Disponível em: <http://conselho.saude.gov.br/Web_comissoes/conep/index.html>. Acesso em: 3 mar. 2017.
http://conselho.saude.gov.br/Web_comisso...
) do Conselho Nacional de Saúde.

De início, o problema detectado numa determinada situação é geralmente extenso, com múltiplas facetas e amplas possibilidades de abordagem. É preciso, portanto, adequar a situação-problema às demandas da pesquisa, por intermédio de um exercício metodológico. Trata-se de um processo chamado de 'recorte' do objeto, compreendido como um constructo ou uma construção analítica, portanto, algo que não se confunde à realidade em si, mas que é essencial para que se possa estudá-la.

Posto que a situação-problema não está solta ou descolada de qualquer realidade, ela se insere no campo, o qual corresponde, em termos empíricos, ao recorte teórico definido pelo pesquisador. Assim, o modelo mental de leitura da realidade construído, necessariamente, é um recorte, uma redução, por parte do pesquisador, matizada por seus objetivos de pesquisa e que se materializa num espaço geográfico e numa temporalidade delimitados, mas que também apresenta um plano abstrato no que tange à delimitação teórica.

O pesquisador elabora e demarca o problema, isto é, as relações inerentes à situação daquela dada realidade que lhe despertou a atenção. E, para iniciar a busca de uma forma de explicação e análise do problema, formula uma pergunta, por alguns autores também chamada de 'questão norteadora', de maneira a não se ter respostas simples como 'sim' e 'não'. Isso se justifica pelo fato de que se é formulada uma questão cuja resposta é, de antemão, categórica, a pertinência de um estudo, nesse caso, ficaria comprometida, pois esse tipo de resposta imediata atende à pergunta, porém, não explica o problema.

A essa altura, paralelamente à configuração da situação-problema, cabe indagar: o que é relevante para ser demonstrado na pesquisa? O que, na área temática e profissional, é relevante apresentar? O que se precisa saber sobre aquele tema e aquele objeto específico? E, finalmente, por que se deve estudar o que se propõe? A esse 'por que' corresponde a justificativa da pesquisa.

O processo de delimitação ou recorte do objeto, portanto, é facilitado e realiza-se de maneira pragmática, por intermédio do emprego das locuções 'por que?', 'que?' e 'para que?'. Esse recorte demanda investimento teórico, ou seja, o estudo e o domínio da teoria acerca do tema no qual a situação-problema se insere. Tanto o pragmatismo quanto o investimento teórico estão, consequentemente, em movimento dialético, quer dizer, em constante interação, contraposição e composição de ideias. Com o recorte, o objeto da pesquisa - ou seja, o que se quer estudar - vai tomando contornos nítidos, e o modelo mental de leitura de um aspecto da realidade do pesquisador, paulatinamente, institui-se como modelo descritivo, explicativo e analítico.

Há de se atentar para o fato de que 'objeto' é expressão caudatária da terminologia das ciências naturais. Em situações que envolvam diretamente seres humanos, é necessária a atenção do pesquisador para o risco de reificação dos sujeitos e das relações por eles engendradas, o que desvanece a humanidade intrínseca dos mesmos.

Em sua primeira versão, o objeto é enunciado como se fosse composto de duas partes. Uma delas diz respeito diretamente aos sujeitos (que podem ser coletivos ou indivíduos e até mesmo processos e procedimentos), e a outra diz respeito às relações e ações que eles desempenham e/ou sofrem. Relembrando a maneira pragmática de recorte citada, o objeto da pesquisa equivaleria ao 'o que' estudar.

Admitir que sujeitos e relações por eles travadas possam ser objeto de estudo é compreender que a pesquisa deve, em seu caminho, levar em consideração os aspectos da historicidade e da ideologia inerentes da ocorrência de interação e, por conseguinte, da impossibilidade de neutralidade.

Nesse processo de abordagem, elaborando perguntas em diálogo com a literatura, o pesquisador produz, pari passu, respostas, naquilo que pode ser chamado de 'raciocínio hipotético'. Inicialmente, são respostas breves, generalistas e incompletas, mas que apontam os primeiros passos e rumos do caminho.

O raciocínio hipotético contém, a partir da questão norteadora, a afirmação categórica inicial do pesquisador, também chamada de hipótese, ou seja, uma pré-solução da situação-problema, que pode vir a ser confirmada ou não, ao ser submetida a teste por intermédio da pesquisa.

Esse conjunto de reflexões (sobre situação-problema, objeto, objeto, raciocínio hipotético/hipótese) torna-se o primeiro esboço de modelo explicativo e que compele o pesquisador a confrontá-lo com a realidade. Não convém que tal processo seja presidido por uma atitude que vise a corroborar seu modelo e seus raciocínios hipotéticos a qualquer custo. Certamente, é um equívoco se o pesquisador busca forçar a realidade ou os fatos para que respondam às respostas desejadas às suas questões. A frase de Francis Bacon, 'extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos', revela um ambicioso desejo humano, porém, inexequível, de pretensioso controle absoluto.

A atitude do pesquisador, que mais parece coadunar com a consciência de que sua capacidade cognitiva não é absoluta, deve ser uma atitude de testagem e experimentação, de constante construção, desconstrução e re-construção de seu pensamento. Nesse processo, ele percebe em que medida e de que modo o seu modelo descreve, explica e analisa a realidade, como explica e de que modo não a explica, além do que, com isso, identifica em quais aspectos seu modelo é frágil, a fim de buscar aperfeiçoá-lo e, mais tarde, novamente, submetê-lo a teste.

Em harmonia com o raciocínio hipotético, os procedimentos do pesquisador se desenvolvem atendendo a uma finalidade, consubstanciada nos objetivos da pesquisa (também chamados de metas), que são o que o pesquisador pretende atingir, ou seja, 'para que' será feita a pesquisa. Usualmente, estabelece-se um objetivo geral relacionado à hipótese que informa qual é a intenção do pesquisador e alguns objetivos específicos relacionados aos modos, tarefas, procedimentos, processos ou estratégias sem os quais o objetivo geral não pode ser atingido.

Definindo 'por que' (justificativa), 'o que' (objeto) e 'para que' (objetivos) da pesquisa, delineiam-se quais informações precisam ser levantadas. Para tanto, precisa-se de técnicas de pesquisa, entendidas como os procedimentos sistematizados que o pesquisador realiza para obter as informações necessárias, organizá-las, sistematizá-las, trabalhá-las e analisá-las, a fim de que possa atingir seus objetivos, ou seja, 'como' será operacionalizada a pesquisa.

As técnicas podem ser manejadas de maneira isolada ou em conjunto, o que confere ao pesquisador a ampliação das possibilidades de ter acesso às informações que lhe são necessárias. Do ponto de vista do método, do caminho do pesquisador, as técnicas começam a ser definidas desde o momento em que se recorta o objeto. Contudo, o momento em que sua definição torna-se mais premente é aquele no qual são definidos os objetivos da pesquisa.

Isso significa que as técnicas possuem limitada autonomia metodológica para definirem o objeto e/ou os objetivos de uma pesquisa. Em outras palavras: não se parte de uma técnica para se construir um objetivo ou um objeto de pesquisa! São os objetivos específicos de uma pesquisa que conduzem a escolha e a aplicação das técnicas. As informações que elas levantam, submetidas à análise, levam o pesquisador a conhecer seu objeto. Pode até ser que, ao ampliar esse conhecimento sobre o objeto, o pesquisador reestruture seus objetivos, gerando futuras novas necessidades de informações e, portanto, a aplicação de novas técnicas.

Nas pesquisas envolvendo fontes primárias, é na dimensão espacial do campo de pesquisa que se aplicam técnicas para levantar informações - o trabalho de campo -, pois é nele que convivem os sujeitos que podem fornecer as informações necessárias para o pesquisador atingir seus objetivos e é nele que as inter-relações ocorrem.

A Internet, com seus múltiplos recursos interativos, constitui um novo e amplo repositório de informações a ser explorado pela pesquisa científica. Essas inovações têm se configurado, cada vez mais e velozmente, em possibilidades de intercâmbio de experiências marcadas pela virtualidade, ou seja, o contato entre indivíduos sem interação física. A partir dessas inovações, é possível se falar em 'campo virtual de pesquisa' e, por conseguinte, em novas possibilidades investigativas, sendo o virtual compreendido como realidade factual. Não cabe aqui aprofundar esse tema, porém, ainda assim, é necessário ressaltá-lo e reafirmar as inúmeras potencialidades que essa incorporação do virtual à pesquisa pode trazer para o processo investigativo (FERNANDES; MOREIRA, 2013FERNANDES, F. M. B.; MOREIRA M. R. Considerações metodológicas sobre as possibilidades de aplicação da técnica de observação participante na saúde coletiva. Physis, Rio de Janeiro, v. 23, n. 2, 2013. ).

O pesquisador deve estar atento para o fato de que sua presença no campo - seja ela virtual ou não - interfere na rotina e na vida dos sujeitos, o que torna a pesquisa uma prática que deve ser revestida de cuidados, responsabilidade e ética para com todos aqueles que estejam participando.

Além disso, se a presença do pesquisador no campo é capaz de alterá-lo - por força das influências que tem nos sujeitos e nas suas relações, que ocorrem o tempo inteiro -, ela também deve ser entendida como um dado da pesquisa, pois o pesquisador não vai a campo como uma tábula rasa à qual as informações se inscreverão ou revelarão automaticamente. Sua própria bagagem cultural, seus pré-conceitos e suas subjetividades, do mesmo modo que as dos sujeitos da realidade em tela, devem ser consideradas. Lidando-se com questões na área da saúde, não poderia ser diferente:

Como em qualquer processo social, o objeto 'Saúde' oferece um nível possível de ser quantificado, mas o ultrapassa quando se trata de compreender dimensões profundas e significativas que não conseguem ser aprisionadas em variáveis [...] Qualquer ser humano, qualquer grupo ou classe social é uma multiplicidade de relações e de relações entre relações. (MINAYO; SANCHES, 1993MINAYO, M. C. S.; SANCHES, O. Quantitative and qualitative methods: opposition or complementarity? Cad Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 9, n. 3, p. 237-248, 1993., P. 251).

Logo, para que o trabalho - tanto de pesquisa como um todo quanto o de campo - flua adequadamente, um bom planejamento é indispensável. E no ato de planejar está justamente o cerne do sentido que um projeto de pesquisa contém.

A pesquisa como um processo - considerações práticas sobre a construção de projetos em pesquisa social

Um projeto de pesquisa pode ser entendido como uma 'carta de intenções' cuja elaboração demanda considerações de ordem prática. A primeira delas diz respeito a elementos que influem decisivamente na metodologia, tanto na elaboração do projeto quanto na execução da pesquisa: as questões da temporalidade, dos recursos e do investimento teórico. Esses são alguns dos fatores que, do ponto de vista do pesquisador, interferem na escolha de um tema para o trabalho de pesquisa e, consequentemente, na estruturação do seu projeto (COUTINHO; CUNHA, 2004COUTINHO, M. T. C.; CUNHA, S. E. Os caminhos da pesquisa em ciências humanas. Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.; GIL, 2002GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa.São Paulo: Atlas , 2002.; MINAYO, 2004; POPPER, 2007POPPER, K. R. A lógica da pesquisa científica. 19. ed. São Paulo: Cultrix, 2007. ).

Podem ser listados fatores internos e externos. Entre os primeiros, destacam-se:

  • A dedicação do pesquisador, traduzida pelo grau de afetividade, empatia e interesse pessoal. O usual é que um pesquisador explore temas que lhe sejam agradáveis;

  • O tempo que o pesquisador pode dedicar para a realização da pesquisa, visto que sua vida transcende as atividades profissionais ou acadêmicas;

  • O limite das capacidades cognitivas do pesquisador, já que é grande a variabilidade dos investimentos teóricos a serem feitos com relação a aspectos da realidade passíveis de serem entendidos como situação-problema.

    Como fatores externos, figuram:

  • A significação e a relevância do tema escolhido, o ineditismo e os valores acadêmicos e sociais inerentes aos resultados do estudo;

  • O limite de tempo disponível, determinado pela natureza da demanda institucional. Por exemplo, pesquisas encomendadas por uma instituição a um grupo de pesquisadores possuem temporalidades diversas de um trabalho de conclusão de curso;

  • A disponibilidade de material de consulta, dados e fontes necessários para a realização do trabalho.

A segunda consideração diz respeito à estruturação lógica que o documento deve apresentar. Questões fundamentais seriam as seguintes:

Figura 2
Estruturação lógica de um projeto de pesquisa

Convém recordar que a estruturação de projetos de pesquisa varia de instituição para instituição, mas os elementos fundamentais são consensuados no País e seguem recomendações da instituição responsável pela normalização técnica (ABNT, 2005ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS (ABNT). NBR 14724: Informação e Documentação. Trabalhos Acadêmicos. Apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2005.).

Especificamente sobre a questão dos recursos financeiros, percebe-se que não é uma obrigatoriedade. Somente se a pesquisa requerer financiamento, em seu projeto, o pesquisador discrimina o orçamento necessário para a execução. Portanto, é tópico facultativo e geralmente não cabível em projetos de monografias, trabalhos de conclusão de curso, dissertações ou teses.

Em se tratando de quem realizará a pesquisa e para quem será realizada, o caráter facultativo novamente se apresenta. Dependendo da pesquisa, uma equipe será necessária, e, nesse caso, torna-se conveniente discriminar as funções. O mesmo ocorre se a pesquisa foi demandada por alguma instância financiadora ou instituição.

Como terceira consideração, propõe-se a reflexão sobre um exercício utilizado em sala de aula pelos autores deste artigo, na forma de tópicos a serem contemplados pelos alunos:

  1. Discorrer sobre uma situação observada numa dada realidade, problematizando-a dentro de um tema da área da saúde (situação-problema) e indicando por que ela deve ser feita (justificativa). Discorrer sobre possíveis benesses para a coletividade, a comunidade científica/Ciência e para os sujeitos da pesquisa;

  2. Tomando por base um 'corpus teórico' e a partir da correlação entre a situação-problema e a justificativa, discorrer brevemente sobre os conceitos considerados fundamentais para a pesquisa;

  3. Formular uma pergunta ou um conjunto de perguntas articuladas (questão/ões norteadora/s) que sintetize(m) o problema identificado, de modo a não admitir resposta simplista. Dando seguimento, formular uma resposta com caráter provisório (hipótese) à(s) pergunta(s);

  4. Levando em consideração o 'raciocínio hipotético' elaborado, enunciar numa frase curta e direta o que se pretende estudar, ou seja, recortar o objeto;

  5. Estabelecer o objetivo geral da pesquisa numa frase curta e direta, enunciando para que a pesquisa será feita, e, a partir de toda essa reflexão, estabelecer os objetivos específicos, inter-relacionados. Diferenciar o que se gostaria que a pesquisa gerasse com o que se propõe que a pesquisa efetivamente produza, de modo a não confundir com a justificativa nem com atividades e objetivos de gestão, já que monografias, trabalhos de conclusão de curso, dissertações ou teses são documentos acadêmicos;

  6. Indicar as técnicas de levantamento, sistematização e análise de informações a serem utilizadas, a partir dos objetivos específicos.

Com isso, espera-se terem sido trazidas contribuições para o debate sobre a construção de projetos de pesquisa e fornecidos insumos teórico-práticos para aqueles que se deparam com essa demanda, notadamente, os alunos de pós-graduação que constituem a população-alvo do artigo e que ensejaram a elaboração do mesmo.

As reflexões aqui apresentadas não poderiam fugir ao desejo de favorecer e fortalecer o debate, no sentido de buscar torná-lo ainda mais prolífico e fazer, assim, com que a elaboração de projetos de pesquisa não seja um processo sofrido e penoso para os alunos. Também se espera que seja suscitada a continuidade das reflexões que a atividade científica demanda, na provocação de novas e criativas indagações sobre os caminhos percorridos, experimentados e refletidos pelos que cultivam a constante inquietude da busca multifacetada e sem fim do conhecimento.

Os limites, dificuldades, obstáculos e problemas da e na atividade de pesquisa devem, portanto, ser compreendidos no âmbito da dinâmica de produção de conhecimento em uma sociedade em constante e veloz transformação. Gaston Bachelard (2002, P. 45)BACHELARD, G. A formação do espírito científico. 3. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002. resume o processo científico de forma bastante sucinta: "O fato científico é conquistado, construído e verificado"; Conquistado sobre Preconceitos; Construído pela Razão; Verificado nos Fatos.

E complementamos: Temperado pela emoção.

  • Suporte financeiro: não houve

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    Ago 2016
  • Aceito
    Fev 2017
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