AO COMPLETAR UM ANO DO GOLPE ULTRALIBERAL que destituiu o voto popular e conduziu à desmoralização política do Brasil, o que ressalta no cenário são o declínio da economia e o massacre dos direitos sociais com acirramento das desigualdades sociais.
A direita ultraliberal tem se alastrado no mundo e imposto aos países políticas de austeridade econômica com graves repercussões e consequências. Impondo poder e manipulando as classes políticas, os ultraliberais também usam a estratégia do 'think tank', organizações disseminadoras do ideário. América Latina e Brasil abrigam diversas dessas organizações com perfil de formuladoras, como o Instituto Millenium, ou voltadas à formação de lideranças e ativismo, como é o caso do Movimento Brasil Livre (MBL) que liderou as manifestações populares pró-golpe.
O termo ultraliberalismo é usado aqui para ressaltar a distinção do liberalismo que esteve na base dos estados keynesianos vinculados à matriz do bem-estar social do período entre guerras. O neoliberalismo cunhado nas últimas décadas do século vinte diz respeito ao esvaziamento das funções do Estado de suas obrigações com direitos sociais, com desregulamentação e livre mercado quando então a resistência à esquerda incorpora as bandeiras por proteção social e direitos sociais. O ultraliberalismo está associado à globalização financeira com supremacia e mando do sistema financeiro.
A direita ultraliberal nos EUA que retorna com Trump já havia mostrado sua face com Reagan, que radicalizou seu ideário promovendo o livre mercado, desregulamentação da economia, cortes de impostos e redução dos orçamentos dos programas sociais, excluindo o orçamento militar. Justamente são as multinacionais petroleiras e da indústria bélica as grandes financiadoras das organizações do think tank, e seus interesses estão associados diretamente às guerras e genocídios que o planeta estarrecido assiste no Oriente Médio. O expansionismo norte-americano tem a América Latina sob constante mira.
A cada dia, surgem mais evidências quanto à real natureza do golpe no Brasil que instituiu grupos de poder - mesmo que descartáveis ao longo do processo - a serviço do sistema financeiro apátrida. Esse projeto mobilizou setores nacionais que, ainda que de forma secundária, são beneficiados pelo corolário do golpe. Contudo é o povo a sua grande vítima.
Os que patrocinaram o golpe manipularam os três poderes, desde os operadores do Judiciário à classe política aliando a mídia e parcela da população incomodada pelo pouco que a sociedade brasileira se moveu nos chamados governos populares. Mesmo sem barrar os interesses do liberalismo e do capital, tais governos sustentaram projetos políticos que, com todas as suas insuficiências e fragilidades, apresentavam intenções e compromissos com equidade e justiça social. Com a democracia, foi derrotado um ciclo que, mesmo ambíguo no segundo mandato Dilma, mostrou-se incompatível à radicalização vigente na globalização financeira
Está claro que a ascensão ao poder do grupo que executou o golpe seguiu a arquitetura e comando dos banqueiros, rentistas e das grandes multinacionais. São os que hoje auferem para si os maiores lucros e vantagens. Nessa hierarquia de poder, outros grupos econômicos hoje tensionam o cenário político por seus interesses específicos, ameaçados pela voracidade dos ultraliberais do sistema financeiro.
E o que o sistema financeiro está levando? O Banco Central anuncia em seu Relatório Mensal sobre a Política Fiscal que, em fevereiro de 2017, o valor dos juros pagos pelo governo atingiu o montante de 30,7 bilhões que, extrapolado aos últimos 12 meses, acumularia um pagamento de 388 bilhões pelo cardápio amplo de transações de títulos da dívida pública.
Vale mencionar que, desde os tempos do Plano Real, em 1994, o sistema financeiro vem contando com a fidelidade ao compromisso de todos os governos que mantiveram nos seus respectivos orçamentos o chamado superávit primário, que garante o pagamento de juros da dívida pública. Na prática, esse superávit refere-se ao que é subtraído dos gastos primários dos governos com saúde, educação e outras obrigações constitucionais.
A existência de um 'sistema da dívida' é hoje um consenso no qual ocorre sistematicamente desvio de recursos públicos em direção ao sistema financeiro. Trata-se de um perverso ciclo de corrupção oficializado e manipulado por grandes bancos, exclusivos beneficiários do esquema.
Os juros dessa dívida não param de crescer levando quase metade do Orçamento, sem contrapartida real e sem transparência quanto ao destino e forma de aplicação desse dinheiro. O que é certo é que não retorna em benefícios para o povo.
As políticas econômicas baseadas no ajuste fiscal, maquiadas sob o conceito da austeridade, têm como objetivo reduzir a relação dívida pública com o Produto Interno Bruto (PIB) por meio do congelamento das despesas primarias justamente para produzir volume crescente de superávit primário destinado ao pagamento dos encargos financeiros da dívida interna, ou seja, amortização, mas, sobretudo, juros. Experiências em outros países que, falidos, aplicaram política de austeridade tiveram prolongamento da recessão uma vez que economia e arrecadação não crescem.
Ha uma relação direta entre produção de superávit primário e redução do investimento público. Isso significa que a sociedade que paga os tributos que compõem o orçamento e que deveria receber o retorno sob a forma de bens e serviços públicos para a qualidade de vida está sendo saqueada. Assim, fica explicito que os gastos primários estão abaixo das receitas primárias, e isso significa dizer que o Brasil está gastando muito pouco nas políticas públicas que garantem direitos sociais previstos na Constituição Federal.
A grave crise contemporânea é mais uma que o capitalismo cria, alimenta e acumula para se fortalecer. O Brasil vive uma profunda recessão, com altas taxas de desemprego, juros elevados e redução do poder de compra do salário mínimo. Quando a população é submetida às consequências da queda do consumo e das condições de sobrevivência, o papel esperado do Estado seria o de proteger os seus cidadãos, o que implicaria ampliar investimentos públicos, produzindo empregos e ampliando políticas sociais com estancamento da sangria dos juros da dívida.
Entretanto, a política econômica vigente prioriza o sistema financeiro mantendo suas garantias preservadas, mesmo considerando a profunda recessão que o País está mergulhado e as enormes necessidades do povo.
O governo, sob o jugo do sistema financeiro, promove os cortes de gastos públicos incidindo na retração das políticas sociais. A política econômica praticada radicalizou no estabelecimento da meta do superávit primário a partir de cortes de verbas públicas e contingenciando o orçamento nas áreas sociais.
A austeridade é celebrada pela grande mídia como se fosse destinada a estancar a gastança do governo além de plantar a falsa ideia de combate à corrupção associada à gestão das verbas públicas. Essa mesma mídia que corrompe a informação, omite à sociedade as consequências do sacrifício do financiamento das políticas sociais para bem-estar cotidiano das pessoas. Assim, submete a opinião pública a valorar o cumprimento das obrigações de pagamentos de juros da dívida pública do País impostas por seu algoz, o sistema financeiro.
Na vida real das pessoas, a saúde está entre as primeiras queixas da população manifestando as consequências dos sucessivos cortes ao seu financiamento. É preciso reafirmar que o nível de investimento em saúde é insuficiente, seja comparando com outras experiências internacionais, seja observando o gasto privado per capita e a renda média brasileira.
O subfinanciamento crônico do Sistema Único de Saúde (SUS) tem impedido a consecução de seus objetivos e princípios constitucionais. A falsa polêmica frequente nas declarações do atual ministro da saúde relativiza a falta de recursos financeiros para depositar as responsabilidades das mazelas do SUS a problemas da gestão. Essa falácia exige reafirmar que a ausência de financiamento suficiente pode ser responsável, inclusive, pelos conhecidos e reais problemas de gestão presentes no SUS.
Para além da condição crônica de subfinanciado, o futuro próximo do SUS já está sob as sombras da Emenda Constitucional (EC) 95, que estabelece teto para os gastos públicos sem afetar a polpuda fatia do Orçamento destinada ao superávit primário. Na prática, significa a impossibilidade de o SUS cumprir seus desígnios constitucionais para garantia da saúde como direito universal. Estima-se que a aplicação dessa EC retira do SUS aproximadamente R$ 400 bilhões em 20 anos se for considerado o crescimento anual do PIB a 2,0% e a taxa de variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) em 4,5%.
Apesar do PIB setorial da saúde ter aumentado nos últimos anos, esse crescimento não ocorreu às custas do gasto público que contribui com menos de 50% sobre o seu percentual. As famílias estão gastando mais que o Estado para cuidados da saúde. O que é fato é que o atendimento universal e de qualidade que a Constituição promete e que a população espera exigiria um maior comparecimento do gasto público, hoje abaixo de países em condição econômica pior e que não dispõem de sistemas universais nos moldes do SUS.
Outro aspecto relevante é a queda da participação federal no financiamento do SUS ocorrida nos últimos 25 anos, que não acompanhou o crescimento observado nos investimentos municipal e estadual, reais responsáveis pelo aumento do gasto público total em saúde nesse período.
Não se trata aqui de desconsiderar a importância da melhoria da qualidade e da lisura com os gastos e a gestão da saúde, mas insistir quanto à necessidade de mais recursos, especialmente na conjuntura atual de desemprego massivo que remete ao SUS um importante contingente populacional antes vinculado a planos de saúde associado ao vínculo do emprego.
O governo tem fortalecido o mercado dos planos privados de saúde que já contam com crescentes subsídios fiscais e na pratica não oferecem o que prometem na venda além de expulsarem os grupos populacionais mais vulneráveis e necessitados de assistência médica. São empresas movidas pelo risco e pelo lucro, tal como qualquer outra do ramo das seguradoras.
Grandes financiadoras de campanhas eleitorais, as empresas de seguros e planos de saúde recebem o retorno do que investiram no golpe à democracia com a proposta atual de criação de planos privados 'populares' ou 'acessíveis', diga-se, desregulados e limitados em termos de cobertura de serviços. Está para ser escancarado e chancelado pelo governo um estelionato oficial dos planos populares às classes média e pobre.
É o projeto ultraliberal que organizações think tanks já vêm disseminando e infiltrando em diversos países e organismos internacionais que foi denominado Cobertura Universal, distorcendo maliciosamente um conceito caro e virtuoso da saúde. Esse projeto para sistemas de saúde é fundamentado no subsídio público e na compra de serviços do mercado para ações de saúde parciais, está bem distante da garantia de direitos, mais se prestando à fragmentação e financeirização da assistência à saúde.
Não menos importante e preocupante é a reforma da Previdência Social prevista no Projeto de Emenda Constitucional (PEC) 283 que parece fomentar o desejo pela sua implosão. De um Sistema de Seguridade Social contributivo e solidário, o Brasil pode passar ao regime de previdência privada como alternativa única que restará aos trabalhadores. O argumento do desequilíbrio das contas públicas não se sustenta nem mesmo se fosse comprovado o déficit. Essa retórica oferecida cotidianamente pelos noticiários da mídia subserviente amortece consciências e conduz à desconstrução da Previdência. Mais um sentido para o golpe, pois somente em situações políticas tão impositivas, beirando aos regimes de exceção, é possível promover mudanças tão radicalmente desfavoráveis ao povo e às classes trabalhadoras.
O discurso da inevitabilidade da reforma da Previdência Social é falacioso não apenas do ponto de vista fiscal por ausência de riscos de explosão da necessidade de financiamento como também pelo lado de que a necessidade de financiamento gere impacto no déficit público. Estimulo pela ampliação da entrada no sistema ou melhoria dos seus mecanismos de gestão constituem medidas necessárias ao aperfeiçoamento da Previdência. Ao lado dessas medidas, uma reforma deveria prioritariamente garantir destinação constitucional dos recursos da seguridade social, eliminar a Desvinculação de Receitas da União (DRU) e saldar a contas dos grandes devedores que há décadas caloteiam a Previdência protegidos pela vista grossa de governos.
Concluindo, é importante reafirmar a necessidade do financiamento estável e adequado como condição imprescindível à consolidação do direito universal à saúde e do SUS admitindo que a forma como tem sido tratada a questão tem ficado restrita a uma visão setorial. A proposta constitucional que vincula o financiamento do SUS ao Orçamento da Seguridade Social (OSS) precisa ser retomada. Como bem demonstrado por diversos estudos, esse orçamento é superavitário desde a sua origem, crescendo sempre acima do PIB que é vulnerável aos ciclos da economia. Lembrando ainda que um grande avanço da Constituição foi a definição das múltiplas fontes de financiamento para o OSS incluindo as contribuições sobre o capital, ou seja, o lucro e faturamento das empresas, e não apenas sobre o trabalho e do caráter contributivo fiscal. A Carta também propôs que o financiamento da saúde e do SUS integrasse o OSS.
O Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) tem registrado nas suas teses e posicionamentos que as soluções para o financiamento do SUS têm sido paliativas, insuficientes e instáveis. O Movimento da Reforma Sanitária carrega 30 anos de consternações com os seguidos desastres e consequências do subfinanciamento, acoplados à construção de um sistema cada vez menos público, único e não universalista distanciado da base constitucional dos direitos de cidadania.
Talvez seja o momento para que o Cebes retome a defesa da garantia do percentual da seguridade. Essa tese foi abandonada desde os anos 1990 quando o setor saúde perdeu recursos da seguridade, provocando a brutal queda em termos reais do orçamento da saúde, que passou a contar apenas com fontes setoriais, vulneráveis às crises e políticas econômicas e à entrada e saída de novos tributos, como foi o caso da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).
A resistência às reformas da Previdência é também momento oportuno para retomar essa proposta e, quem sabe, por esse caminho, refundar a unificação e o fortalecimento das lutas integradas da saúde, da Previdência e da assistência social, hoje fragmentadas. A crise política e o comando dos retrocessos dos direitos sociais exigem unidade para o seu enfrentamento assim como no combate aos subsídios públicos concedidos aos planos e seguros privados, a presença do capital estrangeiro, a reforma trabalhista e a terceirização do trabalho, todas estas condições convergentes para a piora da qualidade e crescente precarização dos serviços de saúde.
Ana Maria Costa
Diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e editora associada da Saúde em Debate
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Jan-Mar 2017