Ivan Illich: da expropriação à desmedicalização da saúde

Ivan Illich: from expropriation to demedicalization of health

Livia Penna Tabet Valney Claudino Sampaio Martins Ana Caroline Leoncio Romano Natan Monsores de Sá Volnei Garrafa Sobre os autores

RESUMO

Ivan Illich foi um crítico radical da sociedade industrial, cujas ideias influenciaram a propagação de um movimento contra os cuidados da saúde pela medicina na década de 1970. Em sua obra, a medicina, é vista como empresa médica cuja função é ameaçar a saúde, através da colonização médica da vida, que aliena os meios de tratamento; e do monopólio profissional, que impede a partilha do conhecimento científico. O presente artigo tem como objetivo apresentar aspectos da vida e obra de Ivan Illich, com ênfase em seu livro 'A expropriação da saúde: nêmesis da medicina' (1975), e também de sua segunda crítica social à saúde, com a introdução de novos conceitos em sua obra, em 1985.

PALAVRAS-CHAVE
Relações médico-paciente; Medicalização; Saúde pública

ABSTRACT

Ivan Illich was a radical critic of the industrial society, whose ideas influenced the propagation of a movement against health care, by medicine in the 1970s. In his work, Medicine is seen as a medical company, whose function is to threaten health, through the medical colonization of life, that alienates the means of treatment; and professional monopoly, which prevents the sharing of scientific knowledge. This article aims to present aspects of Ivan Illich´ s life and work, with emphasis on his book 'The expropriation of health: Medical Nemesis' (1975), and also his second social critique to health, with the introduction of new concepts in his work, in 1985.

KEYWORDS
Physician-patient relations; Medicalization; Public health

Introdução

Segundo a mitologia grega, Nêmesis figurava a vingança divina, 'a inevitável'. Nêmesis representa a força encarregada de abater toda desmesura, como o excesso de felicidade de um mortal ou o orgulho dos reis. O termo também é utilizado para designar 'algo/alguém que exige ou inflige retaliação'; ou, por extensão de sentido, um 'rival ou adversário temível' (GASPARETTO JUNIOR, C2006-2017GASPARETTO JUNIOR, A. Nêmesis. c2006-2017. Disponível em: <http://www.infoescola.com/mitologia-grega/nemesis>. Acesso em: 7 jun. 2016.
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).

Na primeira metade dos anos 1970, Illich lançava a crítica mais contundente empreendida contra a medicina da época, logo no primeiro parágrafo de seu 'Nêmesis da medicina' (ILLICH, 1975AILLICH, I. Clinical damage, medical monopoly, the expropriation of health: Three dimensions of iatrogenic. Journal of Medical Ethics, Londres, v. 1, n. 2, p. 78-80, 1975a.), no qual se referia à medicina institucionalizada como grande ameaça à saúde. Segundo o autor, a ampla industrialização da saúde e a medicalização da vida na sociedade moderna, fizeram com que surgissem diversas formas de iatrogêneses ou danos à saúde, com resultantes perdas da capacidade de autonomia das pessoas perante as enfermidades, as dores e o envelhecimento. Anos depois, em uma segunda crítica social à saúde, Ivan Illich relata o surgimento de uma nova iatrogênese, a do corpo (ILLICH, 1992______. In the mirror of the past, lectures and adresses, 1978-1990. Nova Iorque: Marion Boyars, 1992.).

Para melhor entendimento da obra de Ivan Illich, faz-se necessária a revisão dos seus pontos principais, incluindo os conceitos de iatrogênese - iatros (médico) e genesis (origem). Uma doença iatrogênica é aquela que não existia antes do tratamento médico aplicado, ou seja, é provocada pela ação da medicina. O autor divide a iatrogênese em categorias: 1. Clínica, causada pelos cuidados de saúde (o ato médico e sua técnica); 2. Social, que retrata a medicalização da vida e seu efeito social; 3. Cultural/Estrutural, que abrange o uso ilimitado da medicina e a perda do potencial cultural das pessoas para lidar de forma autônoma com a doença, a dor e a morte. Em conjunto, os três níveis de iatrogênese comprometem a autonomia dos indivíduos, que se tornam dependentes do saber de especialistas para o cuidado de sua saúde.

Torna-se importante, também, uma revisão da segunda crítica social de Ivan Illich (ILLICH, 1992______. In the mirror of the past, lectures and adresses, 1978-1990. Nova Iorque: Marion Boyars, 1992.), voltada para a iatrogênese do corpo e às práticas a ele relacionadas, da obsessão pela saúde, por meio de atividades físicas, dietas, cirurgias etc.; com o consumismo e a busca por um corpo sadio tornando-se o maior agente patógeno para a saúde (NOGUEIRA, 2003NOGUEIRA, R. P. A segunda crítica social da Saúde de Ivan Illich. Interface, Botucatu, v. 7, n. 12, p. 185-190, fev. 2003.). Por fim, são levantadas algumas considerações relacionadas ao processo de medicalização e desmedicalização da saúde.

Resumo da biografia

Ivan Illich nasceu em 1926 (Viena, Áustria). De ascendência judia, foi obrigado a abandonar a Áustria aos cinco anos, refugiando-se na Itália. Em 1941, foi expulso da escola em virtude de leis antissemitas que o atingiam. Cursou teologia e filosofia em Roma, e, posteriormente, histologia e cristalografia em Florença. Obteve o título de Doutor em história pela Universidade de Salzburgo. Em 1951, foi ordenado sacerdote, e exerceu a função de vigário em Nova Iorque, entre 1951 e 1956. Em 1961, fundou, no México, o Centro Intercultural de Documentação (Cidoc), que se transformou em um espaço importante para as discussões a respeito do Terceiro Mundo e da América Latina. Suas opiniões sobre a desburocratização da igreja e a desescolarização da sociedade fizeram do Cidoc um lugar de críticas e controvérsias religiosas, o que levou Ivan Illich a abandonar o sacerdócio em 1969. Nos anos 1970, Illich publicou inúmeras obras abordando temas relacionados ao sistema educacional, ao consumo de energia/transportes e à medicina. Em 1976, pelos conflitos com o Vaticano, o Cidoc foi fechado (GAJARDO, 2010GAJARDO, M. Ivan Illich. Recife: Fundação José Nabuco; Massangana, 2010.).

Foi considerado o pai da 'educação sem escola', condenando o sistema escolar. Ao escrever o livro 'A expropriação da saúde: Nêmesis da medicina', Illich começou a abordar problemas políticos e institucionais relacionados à medicina (GAJARDO, 2010GAJARDO, M. Ivan Illich. Recife: Fundação José Nabuco; Massangana, 2010.). Foi diagnosticado com câncer de mandíbula no início dos anos 1990 e, fiel às suas ideias a respeito da medicina moderna, recusou o tratamento administrado por médicos, vindo a falecer na Alemanha, em 2002.

Ivan Illich se encontrava em um contexto histórico particular, o dos anos 1960, caracterizado pela crítica à ordem capitalista e suas instituições sociais. Dono de uma personalidade complexa, era extremamente inteligente, trabalhador incansável, poliglota, cosmopolita; professava ideias que suscitavam controvérsias e o faziam uma das figuras mais emblemáticas da época. O próprio Illich provocava polêmica através de sua personalidade, seu estilo, seus métodos de trabalho e do radicalismo de suas ideias (GAJARDO, 2010GAJARDO, M. Ivan Illich. Recife: Fundação José Nabuco; Massangana, 2010.).

O ato médico e a iatrogênese clínica

Com a expansão industrial da medicina relacionada às grandes doenças no mundo ocidental, a qualidade de vida foi diretamente ligada ao aumento da produção de saúde. Ivan Illich via a empresa médica como um perigo para a saúde, em uma concepção contrária ao mito criado em torno dela mesma. Os sistemas médicos caros não aumentavam a esperança de vida, assim como os atos médicos para reduzir a morbidade global, resultando em uma nova fonte de doença - a iatrogênica. Então, as medidas para neutralizar a iatrogênese tinham um efeito paradoxal, onde a profissão que provoca a doença se encarregava exclusivamente do seu controle (ILLICH, 1975AILLICH, I. Clinical damage, medical monopoly, the expropriation of health: Three dimensions of iatrogenic. Journal of Medical Ethics, Londres, v. 1, n. 2, p. 78-80, 1975a.).

Segundo Ivan Illich (1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.), a primeira ilusão difundida pela empresa médica estava relacionada à história das doenças, caracterizando como um erro o fato de se atribuir somente à eficácia dos procedimentos médicos as mudanças nas taxas de mortalidade globais. Como exemplo, o autor citou a tuberculose, a cólera, a disenteria e o tifo, que conheceram seus ápices e, em seguida, desapareceram, independentemente da ação médica, tendo como explicação para o fato, a melhoria das condições de habitação e nutrição da população. Nos países pobres, a diarreia e as infecções das vias respiratórias superiores são mais frequentes, duram mais tempo e resultam em mortalidade mais elevada quando a alimentação é insuficiente, independentemente do grau de cuidados médicos disponíveis (SCRIMSHAW; TAYLOR; GORDON, 1968SCRIMSHAW, N. S.; TAYLOR, C. E.; GORDON, J. E. Interactions of nutrition and infection. In: ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina . 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1975.APUDILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., P. 14).

Logo, torna-se fundamental a análise dos determinantes do estado de saúde global de uma população, tais como a alimentação, as condições de habitação e de trabalho, o meio social e cultural, ou seja, o modo de vida das pessoas. A má nutrição moderna é capaz de causar sérios danos à sociedade. No entanto, paradoxalmente, a ciência dietética não para de progredir. Adicionalmente, ⅓ da humanidade sobrevive em nível de subalimentação, enquanto mais e mais indivíduos absorvem, nos alimentos, agentes tóxicos e mutagênicos.

A segunda determinante do estado de saúde global é o saneamento: técnicas sanitárias como o tratamento das águas, a fossa séptica e, o uso de sabão possuem mais impacto global do que técnicas sanitárias que exigem a intervenção de especialistas. Illich, com seu pensamento radical, interroga:

Por que preocupar-se em tornar menos mortífero o meio ambiente, já que os médicos estão equipados industrialmente para salvar as vidas humanas? (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., P. 150).

O autor faz uma comparação entre o tratamento de doenças infecciosas e não infecciosas, deixando clara a eficácia do tratamento médico na cura das primeiras, mas, ainda assim, interrogando se o tratamento das doenças infecciosas não seria mais eficaz se houvesse a desprofissionalização somada à incorporação da higiene à cultura popular. O recrudescimento de doenças antes controladas continua a ser frequente, e pode ser consequência do desenvolvimento dos transportes, das redes de energia, da urbanização e da evolução de vetores resistentes, e tal fato independe da eficácia do tratamento médico (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

A iatrogênese clínica abrange toda a imensidão de efeitos secundários, porém diretos, da terapêutica médica instituída: os efeitos nocivos dos medicamentos, incluindo a sua inocuidade e eficácia; o uso abusivo; o uso associado a outras drogas; ou a contaminação/validade dos mesmos. As agressões cirúrgicas, e as doenças não iatrogênicas (fruto da mania pela descoberta de novas anomalias), levam a falsos diagnósticos, muitas vezes realizados através de erros no laboratório de análises, ignorância do médico ou algum mal entendido com o paciente, podendo gerar angústia, exclusão social e sintomas funcionais, entre outros (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

Para exemplificar os efeitos nocivos dos medicamentos, Pande e Amarante (2017PANDE, M. N. R.; AMARANTE, P. D. C. Sobre a epidemia de doenças mentais e a iatrogenia psicofarmacológica. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 41, n. 115, 2017. No prelo.) citam a iatrogenia psicofarmacológica para os transtornos mentais. Segundo os autores, apesar do aumento significativo de substâncias supostamente capazes de combater os chamados transtornos mentais, o número de pessoas com diagnósticos desta natureza tem aumentado. Tal paradoxo é consequência do próprio efeito iatrogênico dos medicamentos.

Illich fez a distinção entre o médico artesão e o médico técnico, no que se refere aos danos infligidos pelos médicos. O médico artesão era aquele que exercia suas habilidades em indivíduos que conhecia pessoalmente, e suas falhas eram vistas como abuso de confiança e falta de moral. Já o médico técnico, atual, aplica regras científicas a categorias de pacientes, e suas falhas são racionalizadas como ocasionais, de equipamentos ou de seus operadores, adquirindo um novo status, o anônimo. As responsabilidades foram transferidas do campo ético para o problema técnico. Logo, "a negligência se transforma em erro humano aleatório, a insensibilidade em desinteresse científico, e a incompetência em falta de equipamento" (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., P. 27).

Para Laguardia . (2016)LAGUARDIA, J. et al. Qualidade do cuidado em saúde e a iniciativa Choosing Wisely. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 1-6, 2016., alguns problemas atuais relacionados à qualidade em saúde envolvem: a angústia frente à incerteza acerca da conduta médica mais adequada, os relatos enviesados de achados de pesquisa nas revistas médicas, a pressão dos pacientes por mais exames e tratamentos, o pagamento por serviços (consultas e prescrições), o marketing da indústria farmacêutica e de equipamentos, e a falta de compreensão do significado das estatísticas de saúde e de risco, entre outros eventos.

Reconhecendo a magnitude do problema da segurança do paciente em nível global, a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2009WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Segundo desafio global para segurança do paciente: cirurgias seguras salvam vidas. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 2009. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/seguranca_paciente_cirurgia_salva_manual.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2016.
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) estabeleceu a Aliança Mundial para a Segurança do Paciente, onde na qual a qualidade em saúde foi definida como o grau em que os serviços prestados diminuíam a probabilidade de resultados desfavoráveis (eventos adversos) e aumentavam a de resultados favoráveis, de acordo com o conhecimento científico corrente. Estima-se que 10% dos pacientes internados em hospitais sofram eventos adversos evitáveis.

Além dos danos e prejuízos causados aos pacientes e às suas famílias, os eventos adversos constituem um encargo financeiro considerável para os sistemas de saúde. No continente europeu, estudos revelaram que um em cada dez pacientes internados são vítimas de eventos adversos em decorrência dos cuidados de saúde recebidos, e 50 a 60% destes eventos são classificados como evitáveis (KOHN; CORRIGAN; DONALDSON, 2000KOHN, L. T.; CORRIGAN, J. M.; DONALDSON, M. S. To Err is Human: Building a Safer Health System. Washington, DC: National Academy Press; 2000.; WHO, 2009WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Segundo desafio global para segurança do paciente: cirurgias seguras salvam vidas. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 2009. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/seguranca_paciente_cirurgia_salva_manual.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2016.
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).

Estima-se que 1 milhão de eventos adversos evitáveis ocorram anualmente nos Estados Unidos (EUA), contribuindo para a morte de 98 mil pessoas. Eventos adversos cirúrgicos e aqueles relacionados ao uso de drogas correspondem às categorias mais frequentes (WHO, 2009WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). Segundo desafio global para segurança do paciente: cirurgias seguras salvam vidas. Rio de Janeiro: Ministério da Saúde, 2009. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/seguranca_paciente_cirurgia_salva_manual.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2016.
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). A bioética até hoje não tinha visto, em sua verdadeira dimensão, o erro na medicina como um problema que afeta a integridade e vida dos pacientes; na qual se põe em jogo um princípio fundamental da ética médica: a não maleficência (MAGLIO, 2011MAGLIO, I. Error y medicina a la defensiva: ética médica y la seguridad del paciente. Revista Bioética, Brasília, DF, v. 19, n. 2, p. 359-65, 2011.).

Hoje, a qualidade do cuidado em saúde está diretamente correlacionada ao volume de procedimentos realizados, com consequente sobreutilização de procedimentos (overuse), que faz com que haja maior chance de provocar dano ao paciente do que benefícios. Já a subutilização de procedimentos (underuse) está relacionada à ausência de prestação de cuidados de saúde, quando estes poderiam produzir benefícios para o paciente. Por fim, a utilização inadequada (misuse) refere-se àqueles problemas preveníveis associados ao cuidado de saúde, e relaciona-se à segurança do paciente (TRAVASSOS; CALDAS, 2013TRAVASSOS, C.; CALDAS, B. A qualidade do cuidado e a segurança do paciente: histórico e conceitos. In: AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Assistência Segura: uma reflexão teórica aplicada à prática. Brasília, DF: Anvisa, 2013. cap. 2. p. 19-27. Disponível em: <https://www20.anvisa.gov.br/segurancadopaciente/images/documentos/livros/Livro1-Assistencia_Segura.pdf >. Acesso em: 7 jun. 2016.
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).

A literatura vem adotando uma subdivisão que discrimina a sobreutilização de procedimentos, sejam eles diagnósticos (overdiagnosis) quando são feitos diagnósticos de condições que nunca causarão sintomas ou danos ao longo da vida do paciente; ou terapêuticos (overtreatment) que resultam de tratamentos feitos de acordo com bases científicas sólidas e as preferências do paciente, mas que não irão ajudá-lo na sua condição clínica. Sendo assim, o overdiagnosis e o overtreatment expõem o paciente a condutas que são pouco ou nada eficazes, além de possibilitarem danos e gastos substanciais (LAGUARDIA 2016LAGUARDIA, J. et al. Qualidade do cuidado em saúde e a iniciativa Choosing Wisely. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 1-6, 2016.).

A campanha 'Choosing Wisely', conduzida pela Fundação norte-americana American Board of Internal Medicine, é uma iniciativa recente, que busca mudar a prática médica ao atribuir a especialistas (equipe multidisciplinar) a tarefa de apontar entre cinco e dez condutas médicas correntes não apoiadas pelas evidências científicas, que não estão livres de danos ou não são necessárias e, portanto, não deveriam ser adotadas. Seu intuito primário é melhorar a qualidade da assistência, embasada em evidências, para aumentar os benefícios e reduzir os malefícios à saúde (LAGUARDIA 2016LAGUARDIA, J. et al. Qualidade do cuidado em saúde e a iniciativa Choosing Wisely. Revista Eletrônica de Comunicação, Informação e Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 1-6, 2016.).

A iniciativa 'Choosing Wisely' engloba as responsabilidades profissionais dos médicos, que incluem o compromisso com a melhoria da formação acadêmica, da qualidade do cuidado em saúde; o aprimoramento da comunicação médico-paciente e a distribuição justa dos recursos à saúde, promovendo um cuidado mais seguro e eficaz (CASSEL; GUEST, 2012CASSEL, C. K.; GUEST, J. A. Choosing wisely. Helping physicians and patients make smart decisions about their care. JAMA, Chicago, v. 307, n. 17, p. 1801-1802, maio 2012. Disponível em: <doi:10.1001/jama.2012.476>. Acesso em: 2 jan. 2017.
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).

Iatrogênese social: medicalização da saúde

A iatrogênese social ocorre com a desarmonia entre o indivíduo e o seu meio social/físico, que tende a se organizar sem ele e contra ele, com consequente perda da sua autonomia. É o efeito social não desejado e danoso da medicina, mais do que o de sua ação técnica direta. O controle da população pelo sistema médico retira progressivamente do cidadão o domínio da salubridade no trabalho e o lazer, a alimentação e o repouso, a política e o meio (ILLICH, 1975AILLICH, I. Clinical damage, medical monopoly, the expropriation of health: Three dimensions of iatrogenic. Journal of Medical Ethics, Londres, v. 1, n. 2, p. 78-80, 1975a.).

O termo medicalização surgiu no final da década de 1960 para referir - se à crescente apropriação dos modos de vida do homem pela medicina. Os estudos nessa área se direcionaram para a análise e intervenção política da medicina no corpo social, por meio do estabelecimento de normas morais de conduta, prescrição e proscrição de comportamentos, tornando os indivíduos dependentes do saber produzido pelos agentes educativo-terapêuticos (GAUDENZI; ORTEGA, 2012GAUDENZI, P.; ORTEGA, F. The statute of medicalization and the interpretations of Ivan Illich and Michel Foucault as conceptual tools for studying demedicalization. Interface, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 21-34, 2012.).

Para Illich (1975B)______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., o volume global da medicalização reduz o nível de saúde. A medicalização do orçamento é indicadora de iatrogênese social, pois reflete a relação do bem-estar com o nível de saúde nacional bruta, e a ilusão de que o grau de cuidados é representado pelas curvas de distribuição dos produtos da instituição médico-farmacêutica. Tal mercantilização faz com que o consumo de seus produtos seja praticamente obrigatório. Outra problemática mostrada pelo autor se refere ao aumento das prescrições medicamentosas e despesas farmacêuticas. As consultas médicas que acabam sem uma prescrição farmacêutica praticamente desapareceram, o que leva ao superconsumo de medicamentos.

Com a medicina curativa, surge outra vertente: a prevenção da doença, através do check-up. Para o autor, a extensão do controle profissional a cuidados dispensados a pessoas em perfeita saúde é uma nova manifestação da medicalização da vida, quando não é preciso estar doente para transformar-se em paciente, submetido à instituição médica para o bem de sua saúde futura (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

Já a medicalização dos grandes rituais também faz parte de um sintoma grave da iatrogênese social, na qual uma percentagem crescente de recursos públicos é destinada ao desenvolvimento de técnicas com o objetivo de prolongar a vida dos que estão à beira da morte. A fascinação pelos avanços médicos, as técnicas da medicina terminal e a morte controlada pelo médico, são sintomas visíveis da iatrogênese social, segundo Illich (1975B)ILLICH, I. Clinical damage, medical monopoly, the expropriation of health: Three dimensions of iatrogenic. Journal of Medical Ethics, Londres, v. 1, n. 2, p. 78-80, 1975a.. A compreensão de tal fato está associada à necessidade humana da vivência do milagre, cujo efeito emociona pessoas e dá a segurança abstrata de que a ciência faz progressos dos quais elas também poderão beneficiar-se um dia, tornando a cura um monopólio de organizações ou de máquinas (ILLICH, 1975AILLICH, I. Clinical damage, medical monopoly, the expropriation of health: Three dimensions of iatrogenic. Journal of Medical Ethics, Londres, v. 1, n. 2, p. 78-80, 1975a.).

Ao catalogar os portadores de anormalidades, a medicina os coloca sob o controle de sua linguagem e de seus costumes. A definição da anormalidade muda de uma cultura para outra, através da qual cada civilização cria as suas próprias doenças, e um mesmo sintoma pode excluir da sociedade um homem, seja executando-o, exilando-o, abandonando-o, encarcerando-o, hospitalizando-o; ou pode acolhê-lo, cercando-o de respeito, donativos e subvenções (VALABREGA, 1970 APUDILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., P. 57).

Com o desenvolvimento do setor terapêutico da economia, um número crescente de pessoas se descobre como 'anormal' em relação a alguma norma desejável, e, portanto, como paciente que pode ser submetido a uma terapêutica. Os resultados disto são uma sociedade mórbida, que exige medicalização universal e uma instituição médica que atesta morbidade universal (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

As dimensões da contraprodutividade institucional

Para Ivan Illich (1975B)______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., a medicalização da vida é apenas um aspecto da dominação que o desenvolvimento industrial exerce sobre a sociedade. Durante um século, acreditou-se que o nível de vida e a extensão do bem-estar dependiam do acesso aos produtos industriais. As pessoas são condicionadas a obter as coisas e não a fazê-las: o aprender é programado; o habitar, urbanizado; os deslocamentos, motorizados; e as comunicações, canalizadas. Todos querem ser educados, transportados, cuidados ou guiados, o que difere de aprenderem, deslocarem-se, curarem e encontrarem seu próprio caminho. Curar suas próprias feridas e mazelas não é mais compreendido como atividade do doente, e se torna cada vez mais um ato daquele que se encarrega do paciente. Quando este outro surge e cobra seus serviços, a cura passa de dom a mercadoria. A medicalização da vida aparece, portanto como parte integrante de sua institucionalização industrial (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

Uma contraprodutividade constitui-se quando uma instituição produz mais barreiras à realização de seu objetivo do que facilidades, o que determina uma duplicação dos esforços. Nos EUA, o conglomerado de saúde - incluindo médicos, hospitais, indústria farmacêutica e um leque de outras instituições - é o mais importante setor econômico imediatamente depois da indústria de guerra. Quando a medicina se torna tão importante, as pessoas são envolvidas em seus rituais, do nascimento à morte (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

Essa perda de autonomia é, ainda, reforçada pela política da saúde, que coloca os cuidados médicos antes de outras opções de cuidado, que poderiam permitir maior autonomia individual. Nos países de mercado livre, a produção de medicamentos e de serviços médicos enriquece os produtores; a medicina é cara e, muitas vezes ruim; a distribuição de medicamentos e o acesso aos serviços médicos se fazem de maneira desigual e arbitrária (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

Quando são analisados os obstáculos que dificultam a utilização do cálculo custo-benefício no setor da saúde, os gastos com cuidados médicos são aleatórios e dificilmente previsíveis; a maioria dos consumidores não os deseja, não está consciente de precisar deles e não sabe previamente quanto lhes custarão, tendo que confiar na palavra do profissional. A mercadoria vendida não é comerciável nem pode ser devolvida, a publicidade dos resultados é praticamente inexistente e as comparações de qualidade são desencorajadas. Uma vez feita a escolha, é difícil mudar de opinião, pois o tratamento já está em curso (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.). A intervenção médica se tornou a maior forma de tratamento à saúde. Depressão, infecções, disfunções e outras doenças iatrogênicas causam mais sofrimento do que todos os acidentes ocorridos na indústria e no trânsito (ILLICH, 2003______. Medical Nemesis. Journal of Epidemiology and Community Health, [S. l.], v. 57, n. 2, p. 919-922, 2003.).

Na coletânea 'Corpus Hippocraticum' atribuída a Hipócrates, é sabido o princípio de não lesar ou danificar as pessoas, de forma geral; e, de modo particular, os enfermos. O modelo de cuidado baseado na tradição hipocrática assume postura paternalista com relação ao paciente, e, em nome da beneficência, não considera a vontade deste. O processo de tomada de decisão baseia-se em uma relação de dominação (médico) e de submissão (paciente). Beneficência significa fazer o bem. No entanto, na ética, não é suficiente fazer o bem, é preciso também preocupar-se com o outro e, compartilhar do seu sofrimento, o que introduz a noção de benevolência, termo que evoca o cuidado fraterno. A beneficência não seria caritativa, mas obrigatória, com exigências maiores ou menores, tornando-se uma das exigências das profissões de saúde; significa aplicar os recursos da medicina para curar, aliviar os sofrimentos, melhorar o bem-estar; ao mesmo tempo em que se constitui enquanto um dever, também é uma virtude, um princípio, um valor (SILVA, 2010SILVA, H. B. Beneficência e paternalismo médico. Revista Brasileira de Saúde Materno Infantil, Recife, v. 10, supl. 2, p. 419-425, 2010.).

Uma série de paradoxos acompanha a história recente da medicina. Por exemplo, espera-se que os sucessos da medicina sejam acompanhados por um aumento no grau de satisfação dos profissionais que escolhem essa careira. No entanto, estudos mostram que um número crescente desses profissionais está mais desiludido e insatisfeito. Um segundo paradoxo está ligado aos benefícios derivados da prática médica, que poderiam reduzir os medos e as ansiedades das pessoas, mas, ao contrário, as tornam mais preocupadas com uma série de riscos atrelados ao seu estilo de vida, em um processo de procura obsessiva por um estado de perfeita saúde (healthism). Outro paradoxo está associado ao fato de que a eficácia e os sucessos da medicina moderna teriam que ser acompanhados pelo desaparecimento das outras formas de medicina (alternativa). Contudo, observa-se um aumento impressionante das medicinas não convencionais em todo o mundo ocidental (BUB, 2005BUB, M. B. Camargo. Ética e prática profissional em saúde. Texto & Contexto, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 65-74, 2005.).

Devem ser considerados o respeito os valores subjetivos do paciente, a promoção de sua autonomia e a tutela das diversidades culturais. Os médicos e o paciente, mesmo pertencendo à mesma cultura, interpretam a relação saúde-doença de formas diferentes; e além dos aspectos culturais, é necessário enfatizar que eles (médicos e pacientes) não se colocam no mesmo plano: trata-se de uma relação assimétrica, na qual o médico detém um corpo de conhecimentos que geralmente exclui o paciente (BUB, 2005BUB, M. B. Camargo. Ética e prática profissional em saúde. Texto & Contexto, Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 65-74, 2005.).

Iatrogênese cultural/estrutural: a colonização médica

A humanidade é a única espécie viva cujos membros têm consciência de serem frágeis, enfermos, sujeitos à dor, à angústia, ao sofrimento e à morte. A consciência da dor faz parte da adaptação autocrítica ao meio. A cultura, na saúde, não é um simples complexo de modelos de comportamento concretos, tais como costumes, usos, tradições, hábitos; e sim um conjunto de mecanismos, projetos, planos, regras e instruções. Ao orientar o comportamento, a cultura determina a saúde, e é somente construindo uma cultura que o homem encontra sua saúde. Para Ivan Illich, este poder gerador de saúde, inerente a toda cultura tradicional, é ameaçado pelo desenvolvimento da medicina contemporânea (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

Segundo Illich (1975B)______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., a instituição médica é uma empresa profissional, que tem como matriz a ideia de que o bem-estar exige a eliminação da dor, a correção de todas as anomalias, o desaparecimento das doenças e a luta contra a morte. O ritual médico e seu mito transformaram a dor, a enfermidade e a morte em uma sequência de obstáculos que ameaçam o bem-estar e obrigam o indivíduo a recorrer incessantemente a consumos produzidos e monopolizados pela instituição médica. O homem, organismo fraco, torna-se um mecanismo vulnerável submetido a constante reparação. A instituição assume a gestão da fragilidade e, ao mesmo tempo, restringe, mutila e paralisa a possibilidade de interpretação e de reação autônoma do indivíduo em confronto com a precariedade da vida. A fidelidade e o servilismo crescente à terapêutica afetam, também, o estado de espírito coletivo e promovem uma, consequente regressão estrutural do nível de saúde, o que é chamado de iatrogênese estrutural.

Ao colonizar uma cultura tradicional, a civilização moderna transforma a experiência da dor, tornando-as sinais de alarme, que apelam para uma intervenção exterior, a fim de interrompê-las. Se, por um lado, a medicina engaja-se na redução do sofrimento, por outro, aumenta a dependência por ela própria. A dor, quando assumida como responsabilidade da vida do homem, torna-se experiência pessoal, enfrentada de maneira autônoma, e não mecânica e constrangedora; experiência cotidiana e comum, pessoal e social, e não artificial e individualista. O sofrimento pode evocar o dever, a separação, a oração, a lamentação, a piedade, a raiva. A cultura estimula a capacidade individual para continuar a viver com a presença ou a ameaça da dor. No entanto, atualmente a dor faz nascer um processo em bola de neve: o indivíduo aprende a ser consumidor de anestesias e se lança à procura de tratamentos que provocam insensibilidade, inconsciência e apatia (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

O caráter individual, os hábitos adquiridos e as circunstâncias determinam o sentido dado pelo homem às sensações corporais, assim como a intensidade de seu sofrimento. Onde o sofrimento é visto como o enfrentamento de uma provação, a dor é respeitada enquanto experiência íntima e incomunicável (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.). A cultura é uma forma particular de saúde, e o ato de sofrer é modelado pela sociedade. Por exemplo: os soldados que sofreram mutilações em campo de batalha terminam a sua carreira militar de maneira relativamente feliz, recusando injeções de morfina, diferentemente de quando a mesma mutilação ocorre em uma sala de cirurgia (ILLICH, 2003______. Medical Nemesis. Journal of Epidemiology and Community Health, [S. l.], v. 57, n. 2, p. 919-922, 2003.). Com a medicalização de uma cultura, as determinantes sociais do sofrimento agem em sentido oposto: em um meio medicalizado, a dor perturba e desnorteia a vítima, sem que ela tenha outros recursos senão entregar-se ao tratamento. A profissão médica decide quais são as dores autênticas e quais as imaginadas ou simuladas (WOLFF; WOLFF, 1970 APUDILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., P. 106).

A formação dos médicos os leva a voltarem a sua atenção aos aspectos da dor que podem ser experimentalmente estudados e manuseados por um agente exterior, e seu condicionamento pelo controle farmacológico e clínico do paciente, reduzindo o ato médico a uma intervenção mecânica (SOULAIRAC; CAHN, 1967 APUDILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., P. 111). Os pacientes aprendem a conceber sua própria dor como fato clínico objetivo, que pode ser submetido a um tratamento padronizado (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

A noção de intervenção biomédica no indivíduo ou no seu meio ambiente era totalmente estranha aos debates políticos em 1790, quando as doenças mais conhecidas pela medicina eram a peste e a varíola. No período seguinte ao Congresso de Viena (1814-1815), os hospitais se multiplicaram, os estudantes afluíram às escolas de medicina, e a descrição das doenças foi se tornando precisa (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.). As afecções se tornam doenças objetivas, distintas e definidas clinicamente, categorizadas e classificadas para os hospitais, arquivos e orçamentos. O recurso à estatística (cada vez mais ampla) para a formulação do diagnóstico e a determinação da terapêutica, mostrava que as doenças, por estarem presentes no meio ambiente, podiam atacar os homens e os infectar (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

Com o interesse do médico deslocando-se do doente para a doença, o hospital se tornou um museu da doença, lugar para estudo e comparação dos casos. Nas primeiras décadas do século XIX, a atitude médica em face do hospital atravessou uma nova etapa, na qual o hospital tornou-se estabelecimento educativo, laboratório de experimentação dos tratamentos e lugar de cura. Durante todo o século XIX, a patologia consistiu na classificação das anomalias anatômicas, e, posteriormente seguiram a definição e a catalogação da patologia das funções (GRMEK, 1964 APUDILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., P. 125). A doença foi levada do paciente e tornou-se a matéria-prima de uma empresa institucional, interpretada de acordo com um jogo de regras abstratas, em uma linguagem que ele não entendia (ILLICH, 1975B______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b.).

Illich (1975B)______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b., também faz uma análise da imagem da morte, que, assim como a doença, é modelada pelas estruturas institucionais, pelos mitos profundamente enraizados, pela textura social. A imagem que uma sociedade cria da morte reflete o grau de independência de seus membros, de sua autonomia e de seu querer viver individual. Tal imagem da morte leva a um controle social, no qual a sociedade torna-se responsável pela sua prevenção, e o tratamento médico, eficaz ou não, é assimilado como um dever. Sendo assim, toda morte que sobrevém na ausência de tratamento médico é suscetível de interessar à justiça.

A segunda crítica social à saúde é a iatrogênese do corpo. Em 1985, na Universidade Estadual da Pensilvânia, Ivan Illich dizia:

Há doze anos, escrevi a Nêmesis da medicina. O livro começava com a afirmação: a medicina institucionalizada transformou-se numa grande ameaça à saúde. Ouvindo isto hoje, eu responderia: e daí? O maior agente patógeno de hoje, acho eu, é a busca de um corpo sadio. (ILLICH, 1992______. In the mirror of the past, lectures and adresses, 1978-1990. Nova Iorque: Marion Boyars, 1992., P. 24).

A partir de então, Illich denomina um novo modelo de iatrogênese, a do corpo, que exalta e promove a produção de um corpo sadio em uma busca patogênica. Assim, o autor desloca o foco dos médicos para as grandes indústrias, os meios de comunicação e outros agentes terapêuticos (ILLICH, 1992______. In the mirror of the past, lectures and adresses, 1978-1990. Nova Iorque: Marion Boyars, 1992.).

Segundo Nogueira (2003)NOGUEIRA, R. P. A segunda crítica social da Saúde de Ivan Illich. Interface, Botucatu, v. 7, n. 12, p. 185-190, fev. 2003., o novo trabalho de Illich é uma segunda crítica social à saúde, e utiliza o termo 'higiomania' - ou a mania com sua própria condição de saúde corporal - para descrever o estilo de vida altamente tecnificado da contemporaneidade (NOGUEIRA, 2001 APUD NOGUEIRA, 2003NOGUEIRA, R. P. A segunda crítica social da Saúde de Ivan Illich. Interface, Botucatu, v. 7, n. 12, p. 185-190, fev. 2003.). Baseia-se na idolatria do corpo e de sua saúde, alimentado pela mídia, pelas academias de cultura física e pela indústria da dieta.

A saúde passa a ter duas vias: ainda se mantém pelo domínio dos profissionais, mas também se dá pelo acesso à cultura do corpo, cada vez mais influente. A importância da medicina institucionalizada dentro da saúde diminui à medida que as medicinas alternativas, as concepções ambientalistas, as correntes diversas da autoajuda, as modas dietéticas e as diversas práticas de corpo passam a influenciar mais o leigo no que diz respeito à saúde (ILLICH, 1992______. In the mirror of the past, lectures and adresses, 1978-1990. Nova Iorque: Marion Boyars, 1992.APUDNOGUEIRA, 2003NOGUEIRA, R. P. A segunda crítica social da Saúde de Ivan Illich. Interface, Botucatu, v. 7, n. 12, p. 185-190, fev. 2003.). Logo, a desmedicalização da saúde também se dá em um processo iatrogênico. Ao invés do ganho de autonomia do sujeito no manejo consciente dos meios para garantir sua saúde, ele institui uma pseudoautonomia iatrogênica. A mídia toma um papel proeminente, pois se torna veículo de difusão para as mais variadas formas de cuidado do corpo; e os gastos com programas integrais de cuidado com a saúde passam a crescer mais rapidamente do que os gastos com a medicina (NOGUEIRA, 2003NOGUEIRA, R. P. A segunda crítica social da Saúde de Ivan Illich. Interface, Botucatu, v. 7, n. 12, p. 185-190, fev. 2003.).

A medicalização e a desmedicalização da saúde

O termo medicalização, exposto anteriormente, indica algo que 'se tornou médico', com a influência da medicina em campos que, até então, não lhe pertenciam. Logo, o raio de ação da medicina foi ampliado, extrapolando o campo tradicional de ação direta sobre as moléstias, transformando aspectos próprios da vida em patologias, diminuindo o espectro do que é considerado normal ou aceitável.

Neste contexto, o processo de desmedicalização é de extrema relevância, pois se relaciona com a busca, tanto da autonomia como do respeito às diferenças, condições fragilizadas pelo processo de medicalização. Um exemplo de movimento social com vistas à desmedicalização é o caso de mulheres, no Brasil, que lutam por terem partos normais em casa, livres da medicalização desnecessária do processo de parturição. Trata-se de uma luta contra o excesso de intervenção médica sobre um processo que consideram 'próprios da vida' (GAUDENZI; ORTEGA, 2012GAUDENZI, P.; ORTEGA, F. The statute of medicalization and the interpretations of Ivan Illich and Michel Foucault as conceptual tools for studying demedicalization. Interface, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 21-34, 2012.).

Apesar de os movimentos, por parte dos sujeitos medicalizados, não serem quantitativamente expressivos no Brasil, há o incentivo do Ministério da Saúde a políticas que se baseiam em uma visão ampliada de saúde, que valorizam a autonomia e as formas de corresponsabilidade solidária, como é o caso da Estratégia Saúde da Família (ESF) que cria a possibilidade da realização de uma atenção à saúde desmedicalizante, e permite uma maior expressão de pequenos movimentos em prol do resgate da autonomia e, da valorização das microculturas locais, conduzindo o paciente a assumir individualmente a responsabilidade por sua saúde, além da reduzir o peso financeiro na assistência à saúde (CASTIEL, 2004 APUDGAUDENZI; ORTEGA, 2012GAUDENZI, P.; ORTEGA, F. The statute of medicalization and the interpretations of Ivan Illich and Michel Foucault as conceptual tools for studying demedicalization. Interface, Botucatu, v. 16, n. 40, p. 21-34, 2012., P. 246).

Conclusões

A capacidade de sentir e perceber o próprio corpo passa por dimensões como aceitação pessoal, autoestima, julgamento crítico e, cultura, entre tantas outras variáveis condicionantes. Sentir-se saudável ou doente transcende uma terminologia médica ou um atestado de saúde. Os contextos histórico, social e econômico no qual os indivíduos estão inseridos interferem decisivamente no modo de lidar com o processo saúde-doença. Assim como Illich (1975B)______. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975b. bem descreveu, é possível ser paciente desde a vida pré-uterina, enquanto gametas manipulados em clínicas de fertilização, até pós-morte em um processo de doação de órgão, por exemplo. Entretanto, o indivíduo, enquanto ser bio-psicos-social e espiritual, que merece ser percebido de modo holístico e complexo neste intervalo de tempo, exige esforço descomunal para não ser um mero instrumento manipulado pelos diversos operadores, sob as pressões social e midiática que o impulsionam na busca da vida perfeita, e pelo máximo de tempo possível, evitando o terrível fim, pelo preço que for necessário. Em vários momentos ao longo da sua vida, o indivíduo submete-se a cuidados e técnicas variadas com a expectativa de uma cura e um alívio, que nem sempre são alcançados. Illich é um personagem que instiga a reflexão e incentiva a busca pela autonomia e a descolonialidade do poder e do saber em um cenário repleto de protagonistas dominadores, que se intitulam detentores do tão desejável elixir ou bálsamo que as pessoas tanto buscam.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    Jan 2017
  • Aceito
    Out 2017
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