A REVISTA 'SAÚDE EM DEBATE' TEM SE CONSTITUÍDO, ao longo dos anos, em um veículo importante de divulgação de trabalhos científicos, ensaios e documentos de posicionamento político acerca dos rumos do processo da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) e da tortuosa construção do Sistema Único de Saúde (SUS) em nosso país. Desde as suas origens, o compromisso que anima a publicação da revista se fundamenta na compreensão de que a produção científica não é neutra e que é preciso constituir e defender bravamente os espaços em que se elabora e difunde um 'saber militante'. Isto é, um conhecimento que subsidie a análise crítica da problemática de saúde no Brasil e a elaboração de propostas políticas coerentes com os propósitos que inspiraram a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), em outras palavras, a democratização da saúde e da sociedade brasileira.
Por conta disso, milhares de páginas das revistas publicadas ao longo dessas quatro décadas refletiram a história das lutas pela RSB, começando com os artigos que analisavam os determinantes da 'crise do setor saúde', em meados dos anos 1970, apontavam os limites dos programas governamentais e indicavam caminhos para a mobilização popular em torno das propostas de mudança da política de saúde, no contexto da luta pela democracia.
Seguindo o curso da história, os números publicados na década de 1980 explicitaram os debates travados entre os militantes em torno das estratégias de ação, no contexto da chamada 'transição democrática', processo que implicou o exercício da 'análise política em saúde' e a incorporação criativa de conceitos e métodos de planejamento e gestão em saúde, especialmente em sua vertente estratégica. Cabe recordar que foi nesse período que se difundiu, no âmbito acadêmico, a reflexão sobre as distintas correntes teórico-metodológicas do planejamento em saúde, constituindo o embrião da área de Política, Planejamento e Gestão, um dos eixos articuladores da saúde coletiva. Esse debate subsidiou o desenvolvimento de experiências inovadoras, ainda no período de implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (Suds) nos estados e, nas décadas seguintes, no processo de implementação do SUS.
Apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas ao longo dos últimos 28 anos, o SUS se constituiu como o maior sistema público de saúde do mundo, um exemplo da garra e da determinação com que seus defensores lançaram mão das mais diversas táticas para ampliar o arco de alianças, principalmente no âmbito político-institucional, ou seja, 'por dentro' das instituições gestoras do sistema, ao nível federal, estadual e municipal, aproveitando as oportunidades criadas com a inserção de militantes na administração pública.
Se por um lado esse processo pode ter contribuído para certo estreitamento das bases de sustentação política da RSB, por outro, possibilitou o desenvolvimento de centenas e talvez milhares de práticas inovadoras, não só na reorganização da atenção à saúde, particularmente na Atenção Básica, mas também na gestão, planejamento, programação e avaliação de sistemas, programas e serviços de saúde.
A estreita conexão entre a prática - política, gerencial, organizativa - e a reflexão teórico-metodológica que se alimenta da experiência e se transforma em saber científico tem gerado uma multiplicidade de artigos, entre os quais, os que ora compõem este número temático da revista 'Saúde em Debate'. Dedicado primordialmente à temática da Avaliação em Saúde, este número contempla uma diversidade de trabalhos que traduzem a maturidade que esta área vem adquirindo, desde que começou a ser enfatizada por vários pesquisadores de diversas instituições. Mais que isso, todavia, estes trabalhos expressam a preocupação com a qualidade e o rigor da pesquisa científica, contribuindo para o aperfeiçoamento do debate em torno das políticas, programas e ações governamentais.
Na atual conjuntura, em que assistimos e repudiamos o 'desmonte' das políticas sociais duramente conquistadas nas últimas décadas e nos preocupamos, sobretudo, com o retrocesso que vem ocorrendo na política de saúde, é fundamental contarmos com estudos avaliativos que registrem os avanços e limites do SUS e possam subsidiar a luta política em todos os espaços possíveis. Afinal, ultrapassar o ativismo e a denúncia sistemática dos efeitos perversos que já se fazem sentir sobre o SUS, por conta das decisões adotadas pelo atual governo, exige a incorporação ao debate, de evidências apontadas pela pesquisa científica, dando força à argumentação política, de modo a conquistar os corações e mentes de todos que se preocupam com o futuro do SUS e com a defesa do direito à saúde em nosso país.
Carmen Teixeira
Vice-presidente do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes)
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Mar 2017