RESUMO
O artigo apresenta indicadores para avaliação da inserção de pessoas com deficiência intelectual na Rede de Atenção Psicossocial, construídos de forma participativa junto a profissionais de serviços de saúde mental. Os resultados indicam prévias barreiras de acesso aos Centros de Atenção Psicossocial quando da constatação da deficiência; itinerários marcados pela institucionalização, tendo a internação como o primeiro acesso ao tratamento; e menor investimento em discussões sobre projetos terapêuticos pelas equipes de cuidado. Os indicadores propostos se apresentam como um dispositivo de revelação da necessária problematização da atenção psicossocial às pessoas com deficiência intelectual.
PALAVRAS-CHAVE:
Avaliação em saúde; Indicadores; Saúde mental; Deficiência intelectual
Introdução
Segundo Minayo (2009)MINAYO, C. Construção de Indicadores Qualitativos para Avaliação de Mudanças. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 33, supl. 1, p. 83-91, 2009., indicadores constituem-se de expressões, tanto numéricas, simbólicas ou verbais para medir, estabelecer parâmetros, ou revelar algum aspecto sobre um fenômeno.
Ainda é restrita a construção de indicadores em saúde mental quando comparada a outras áreas da saúde, seja pela dificuldade em estabelecer consensos para definição de parâmetros seja pela complexidade do próprio objeto, constituído de questões subjetivas, de delicada objetivação e sistematização requerida por um processo avaliativo (ONOCKO-CAMPOS; FURTADO, 2006ONOCKO-CAMPOS, R. T.; FURTADO, J. P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1053-1062, maio 2006.; FURTADO 2013FURTADO, J. P. et al. A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 102-110, jan. 2013.).
Na última década, tem sido possível acessar algumas sistematizações de processos avaliativos (OLIVEIRA , 2014OLIVEIRA, M. A. F. et al. Processos de avaliação de serviços de saúde mental: uma revisão integrativa. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 101, p. 368-378, abr./jun. 2014.) com foco nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) (BANDEIRA, 2002BANDEIRA, M. et al. Escala Brasileira de Avaliação da Satisfação dos Familiares em Serviços de Saúde Mental: SATIS-Br. J. bras. psiquiatr., Rio de Janeiro, v. 5, n. 3, p. 153-166, 2002.; KANTORSKY 2009KANTORSKI, L. P. et al. Avaliação de quarta geração: contribuições metodológicas para avaliação de serviços de saúde mental. Interface, Botucatu, v. 13, n. 31, p. 343-55, out./dez. 2009.), como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) (WETZEL, 2005WETZEL, C. Avaliação de serviço em saúde mental: a construção de um processo participativo. 2005. 291 f. Tese (Doutorado em Enfermagem Psiquiátrica) - Escola de Enfermagem Psiquiátrica, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2005.; SURJUS; ONOCKO-CAMPOS, 2011______. A avaliação dos usuários sobre os centros de atenção psicossocial (Caps) de Campinas, SP. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 14, n. 1, p. 122-133, mar. 2011.; GLANZNER, 2011GLANZNER, C. H. et al. O trabalho como fonte de prazer: avaliação da equipe de um Centro de Atenção Psicossocial. Rev. esc. Enferm. USP, São Paulo, v. 45, n. 3, p. 716-21, jun. 2011.; PITTA ., 2015PITTA, A. M. F. et al. Direitos Humanos nos Centros de Atenção Psicossocial do Nordeste do Brasil: um estudo avaliativo, tendo como referência o QualityRights - WHO. Saúde debate, Rio de Janeiro, v. 39, n. 106, p. 760-771, set. 2015.); Serviços Residenciais Terapêuticos (FURTADO, 2006______. Avaliação da situação atual dos Serviços Residenciais Terapêuticos no SUS. Cienc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 785-795, set. 2006.); serviços da Atenção Primária à Saúde; bem como no uso de medicação psiquiátrica (ONOCKO-CAMPOS 2012ONOCKO-CAMPOS, R.T. et al. Avaliação e estratégias inovadoras na organização da atenção primária à saúde. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 46, n. 1, p. 43-50, fev. 2012.; ONOCKO-CAMPOS, 2012ONOCKO-CAMPOS, R. T. A avaliação do uso de psicotrópicos no programa de saúde da família no Município de Campinas (SP). Campinas: Unicamp, 2012.). Alguns dos estudos mais recentes baseiam-se nas abordagens avaliativas de quarta geração (GUBA; LINCOLN, 2011GUBA, E. G; LINCOLN, Y. S. Avaliação de quarta geração. Campinas: Unicamp, 2011.), cujo diferencial estaria na estruturação de processos inclusivos e participativos (FURTADO, 2001FURTADO, J. P. Um método construtivista para a avaliação em saúde. Cienc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 6, n. 1, p. 165-181, 2001.; WETZEL, 2005WETZEL, C. Avaliação de serviço em saúde mental: a construção de um processo participativo. 2005. 291 f. Tese (Doutorado em Enfermagem Psiquiátrica) - Escola de Enfermagem Psiquiátrica, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2005.; ONOCKO-CAMPOS; FURTADO, 2006ONOCKO-CAMPOS, R. T.; FURTADO, J. P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1053-1062, maio 2006.; KANTORSKY , 2009KANTORSKI, L. P. et al. Avaliação de quarta geração: contribuições metodológicas para avaliação de serviços de saúde mental. Interface, Botucatu, v. 13, n. 31, p. 343-55, out./dez. 2009.).
Com relação às pessoas com deficiência intelectual (PCDI), são escassas as informações brasileiras sobre dados epidemiológicos, condições de emprego, saúde e inclusão social, estando tais dados mais voltados aos processos de inclusão escolar. Os poucos estudos existentes revelam uma realidade de exclusão, abuso, negligência e institucionalização em hospitais psiquiátricos, muitos deles em condições precárias e operadas por órgãos não governamentais (MARTORELL 2008MARTORELL, A. et al. Identification of personal factors that determine work outcome for adults with intellectual disability. J. Intellect. Disabil. Res., Londres, v. 52, n. 12, p. 1091-1101, dez. 2008.).
Embora não constituída claramente como uma questão a ser problematizada no Brasil, dois censos da população moradora de hospitais psiquiátricos brasileiros mostraram grande número de PCDI internadas. Nos estados do Rio de Janeiro (GOMES , 2002GOMES, M. P. C. et al. Censo dos pacientes internados em uma instituição asilar no Estado do Rio de Janeiro: dados preliminares. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, n. 6, p. 1803-1807, dez. 2002.) e São Paulo (BARROS; BICHAFF, 2008BARROS, S.; BICHAFF, R. (Org.). Desafios para a desinstitucionalização: censo psicossocial dos moradores em hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo. São Paulo: Fundap, 2008. 170 p.), tal população configurou-se como o segundo maior percentual por categoria diagnóstica entre os moradores de hospitais psiquiátricos - 26,4% e 30,5%, respectivamente, superado somente pelas psicoses.
Em pesquisa avaliativa dos Caps de Campinas (SP) ( ONOCKO-CAMPOS; FURTADO, 2006ONOCKO-CAMPOS, R. T.; FURTADO, J. P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1053-1062, maio 2006.), evidenciou-se a necessidade de melhor compreender o fenômeno da inserção de PCDI nos Caps III, que, apesar de não ser reconhecidas como demanda adequada à estruturação daqueles serviços, já configuravam naquele momento o terceiro maior percentual da população atendida, por categorias diagnósticas, perfazendo um total de 8,3%.
No que concerne a estudos internacionais recentes, estima-se que mais de um terço das PCDI apresentem concomitantemente diagnósticos de transtornos mentais, prevalência que vem justificando o debate internacional sobre o tema (COOPER , 2006COOPER, S. et al. Mental ill-health in adults with intellectual disabilities: prevalence and associated factors. Br J Psychiatry, Londres, v. 190, n. 1, p. 27-35, dez. 2006.; COSTELLO; BOURAS, 2006COSTELLO, H.; BOURAS, N. Assessment of mental health problems in people with intellectual disabilities. Isr. J. Psychiatry Relat. Sci., Jerusalém, v. 43, n. 4, p. 241-251, 2006.; PICKARD; AKINSOLA, 2010PICKARD, M.; AKINSOLA, T. The association between psychopathology and intellectual disability. In: BOURAS, N.; HOLT, G. Mental health services for adults with intellectual disability: strategies and solutions. New York: Psychology Press, 2010, p. 101-114.; SALVADOR-CARULLA 2000SALVADOR-CARULLA, L. et al. Hidden psychiatric morbidity in a vocational programme for people with intellectual disability. J Intellect Disabil Res., Londres, v. 44, n. 2, p. 147-154, abr. 2000.; SURJUS; ONOCKO-CAMPOS, 2014________. Interface entre Deficiência Intelectual e Saúde Mental: revisão hermenêutica. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 48, n. 3, p. 532-540, jun. 2014.).
Assim, o estudo aqui descrito se desenvolveu com o objetivo de construir indicadores que possam contribuir para a avaliação e monitoramento da inserção de PCDI na Raps.
Metodologia
Como subprojeto da 'Pesquisa avaliativa de saúde mental: indicadores para avaliação e monitoramento dos Caps III do estado de SP', este artigo tomou como campo os municípios que dispunham de Caps tipo III (Caps III), com funcionamento 24 horas, no estado de São Paulo em 2011. Esta pesquisa foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) por meio do Edital Fapesp 'Pesquisa para o SUS: gestão compartilhada em saúde', processo: 2009/53130-3.
A efetiva inserção e participação de atores sociais em contextos de pesquisa vem sendo valorizada de forma crescente. No campo da avaliação de serviços, não somente os de saúde, há ainda desafios em garantir tal participação, vista a diversidade de atores a serem envolvidos e a própria validação e apropriação pelo poder público dos resultados que vêm sendo produzidos por estudos realizados sob tais perspectivas.
Com essa preocupação, a experiência aqui apresentada desenvolveu-se a partir da proposição de um curso sobre avaliação de serviços de saúde mental que propiciasse espaços de assimilação de conceitos e referenciais e de produção de saberes sobre a própria prática, visando à criação de instrumento de avaliação a partir do diálogo direto com profissionais e gestores dos Caps III em um espaço de formação, que permitisse certificação aos participantes. Além disso, a metodologia proposta incentivou a ativação de outros atores, como usuários dos serviços e suas famílias, das equipes de maneira mais ampliada, além de outros serviços e atores do território onde se inseriam os profissionais (FURTADO , 2013FURTADO, J. P. et al. A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 102-110, jan. 2013.).
O curso com duração de um ano abordou questões centrais dos processos avaliativos, incorporando temas próprios aos Caps identificados em estudo anterior, que se voltou para avaliação desses serviços na cidade de Campinas (ONOCKO-CAMPOS, 2006ONOCKO-CAMPOS, R. T.; FURTADO, J. P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1053-1062, maio 2006.; SURJUS; ONOCKO-CAMPOS, 2011______. A avaliação dos usuários sobre os centros de atenção psicossocial (Caps) de Campinas, SP. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 14, n. 1, p. 122-133, mar. 2011.). O curso foi organizado e realizado em parceria da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) com a Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), constituindo dois campos de execução concomitante, envolvendo alunos e docentes de cursos de graduação e pós-graduação em saúde coletiva, além de professores convidados.
Como a pesquisa aqui tratada parte de indicadores, analisadores e dispositivos de avaliação construídos em pesquisa anterior ( ONOCKO-CAMPOS; FURTADO, 2006ONOCKO-CAMPOS, R. T.; FURTADO, J. P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1053-1062, maio 2006.), esse material foi tomado como organizador do planejamento do curso por seus eixos temáticos - Concepção de Caps, Gestão, Atenção à Crise, Formação de Profissionais, Práticas Grupais e Projeto Terapêutico, acrescidos de outros temas que se revelaram críticos e pouco aprofundados naquele momento - Trabalho no Território, Deficiência Intelectual (DI), Utilização de psicofármacos e estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM), Residências Terapêuticas e Reabilitação Psicossocial ou Recovery. Assim, ao longo do curso, o tema da avaliação foi tomado de forma direta em alguns momentos e de forma transversal, perpassando os eixos elencados a compor a programação.
Cada município indicou dois participantes por Caps III, reservando-se uma vaga para o coordenador do equipamento. Solicitaram-se, também, vagas para articuladores de saúde mental das Diretorias Regionais de Saúde (DRS) e realizou-se processo de seleção quando havia mais pessoas a serem indicadas do que as vagas que foram disponibilizadas. Participaram, no total, 50 profissionais e gestores de todos os Caps III do estado de São Paulo, que, naquele momento, possuía 26 serviços em funcionamento com atividades 24h, sendo seis na cidade de Campinas, cinco em Santos, três em Santo André, dois em Casa Branca, três em Diadema, um em Jundiaí, um em Barretos, um em Santa Rita do Passa Quatro, um em Ribeirão Preto, um em São Vicente, um em Rio Claro, e dois na cidade de São Paulo. Apenas um Caps recusou-se em participar.
Os serviços foram distribuídos sob o critério de regionalização, compondo os núcleos de trabalho da seguinte forma: em Campinas, representantes dos Caps III da própria cidade e daquelas de Ribeirão Preto, Santa Rita do Passa Quatro, Bebedouro, Barretos, Casa Branca, Jundiaí e Rio Claro; em Santos, representantes dos serviços da própria cidade, além daquelas de São Vicente, São Paulo, Diadema, Guarulhos, Santo André e São Bernardo do Campo.
A metodologia utilizada no curso permitiu especial qualificação dos atores envolvidos na elaboração dos indicadores, ofertando subsídios para maior domínio de conceitos centrais a processos avaliativos e participativos. Dessa forma, a pesquisa favoreceu a apropriação da linguagem que a sustentou, gerando expectativa concreta de utilização dos produtos que foram coproduzidos. Os profissionais envolvidos retornavam aos seus serviços desenvolvendo debates e reflexões com os demais trabalhadores, usuários e familiares com o objetivo de identificar os critérios que poderiam ser utilizados na avaliação dos serviços. Para tanto, reuniões de equipe e assembleias gerais dos serviços serviram de campo de reverberação e contribuição do e para o processo.
Sendo um dos eixos temáticos da citada investigação (FURTADO 2013FURTADO, J. P. et al. A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 102-110, jan. 2013.; SURJUS; ONOCKO-CAMPOS, 2011______. A avaliação dos usuários sobre os centros de atenção psicossocial (Caps) de Campinas, SP. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 14, n. 1, p. 122-133, mar. 2011.), o tema da DI foi tratado a partir da metodologia do curso, que incluía atividades de imersão em campo em cada uma das cidades envolvidas. Nessa temática específica, as atividades consistiram da identificação da rede de atenção às PCDI na região de abrangência dos serviços, visitação de uma das instituições e realização de análise crítica sobre a inserção de PCDI nos Caps. Tais atividades produziram um mapeamento preliminar acerca das instituições designadas para atendimento nas cidades envolvidas no curso.
A problematização da interface entre os campos da DI e da saúde mental foi proposta a partir da apresentação de experiências prévias em cenários de práticas e de pesquisa que justificavam tal necessidade, corroboradas pelos achados de revisão hermenêutica da literatura (ONOCKO-CAMPOS; FURTADO, 2006ONOCKO-CAMPOS, R. T.; FURTADO, J. P. Entre a saúde coletiva e a saúde mental: um instrumental metodológico para avaliação da rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Sistema Único de Saúde. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 22, n. 5, p. 1053-1062, maio 2006.; SURJUS; ONOCKO-CAMPOS, 2011______. A avaliação dos usuários sobre os centros de atenção psicossocial (Caps) de Campinas, SP. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo, v. 14, n. 1, p. 122-133, mar. 2011.).
A revisão foi apresentada aos participantes em exposição dialogada, a cada núcleo da pesquisa. A discussão e análise aprofundada do tema, bem como a construção de indicadores, ocorreu por meio de Grupos de Apreciação Partilhada (GAP):
Os GAPs surgem da constatação de que um programa ou serviço não pode ser reduzido aos documentos escritos ou ao que foi preconizado por aqueles que os conceberam ou gerenciam, mas que outras fontes devem ser consideradas, incluindo a palavra que circula de maneira informal, não deixando rastro definido. (FURTADO , 2013FURTADO, J. P. et al. A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 102-110, jan. 2013., P. 106).
Esse dispositivo desenvolvido no âmbito das ações de autoavaliação e fortalecimento de organismos comunitários no Canadá e no Brasil (LAPERRIÈRE; ZÚÑIGA, 2007LAPERRIÈRE, H.; ZÚÑIGA, R. Cuando la comunidad guía la acción: hacia una evaluación comunitaria alternativa, Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 19, n. 3, p. 39-45, dez. 2007.) vem sendo utilizado em pesquisas avaliativas qualitativas com vistas a aumentar a participação e envolvimento de diferentes grupos de interesse, produzindo, assim, processos avaliativos que sejam apropriados e apropriáveis pelos principais atores envolvidos com os serviços em questão, processo favorecido por relações mais horizontais e colaborativas com os avaliadores externos - por vezes, geradores de desconfiança e de inibição do grupo a ser 'avaliado', tendo como consequência respostas estereotipadas ao que seria 'desejável'(FURTADO ., 2013FURTADO, J. P. et al. A elaboração participativa de indicadores para a avaliação em saúde mental. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n. 1, p. 102-110, jan. 2013.).
As exposições aconteciam no período da manhã, e no período da tarde eram realizados os GAP, no qual os participantes se dividiam em pequenos grupos; houve seis grupos no total, sendo três em Campinas e três em Santos. Todos os GAP contaram com um condutor e um relator fixos por grupo, entre professores universitários, doutorandos, mestrandos, graduandos em iniciação científica.
Os GAP foram operados de maneira que cada participante compartilhasse a sua experiência acerca de atividades de imersão planejadas de maneira antecipada a cada discussão teórica, propiciando diálogo teórico-prático, produzindo uma síntese coletiva do dia. Todas as discussões foram registradas pelo relator em arquivo visível a todos os participantes, aberto a alterações para que ficassem mais fidedignos ao entendimento do grupo, sendo validados no encontro posterior.
Esse material foi processado pelos pesquisadores com base nos eixos: consensos, dissensos ou proposições que levassem a critérios, dimensões ou pistas voltadas para a construção de indicadores respectivos aos eixos temáticos predefinidos. O material era reapresentado aos grupos no início do encontro seguinte para sua validação.
No eixo DI o curso provocou, por meio da atividade de dispersão, a visitação e o mapeamento das instituições voltadas ao atendimento de PCDI, a análise da demanda e o acolhimento nos Caps, como mencionado, e a proposição de indicadores sob essa especificidade.
A sistematização dos GAP ocorreu de forma conjunta com os participantes, sendo seus núcleos argumentais categorizados. Tal sistematização gerou algumas questões que foram, então, alvo de priorizações, gerando os indicadores iniciais ao debate numa grande oficina de criação de consenso, da qual emergiram os indicadores propostos (quadro 1).
Resultados e discussão
O desenho do estudo realizado, que a um só tempo fez operar ensino, pesquisa e extensão, mostrou-se bastante apropriado aos objetivos traçados, gerando em ambos os campos - Campinas e Santos - boa assiduidade, interesse e envolvimento dos participantes. As tarefas de imersão foram cumpridas com empenho, e houve alguma dificuldade na realização das leituras propostas. Houve também efeitos de movimento e reflexão nas equipes dos serviços envolvidos, a partir dos temas propostos. Revelando-se, assim, tanto o curso como a pesquisa, um espaço estratégico de oferta à saúde mental de aporte de saberes acumulados na saúde coletiva para a construção de avaliação de serviços.
Acreditamos que tal desenho resgate o sentido de coletividade, propiciando aos trabalhadores conhecer as diferenças e semelhanças entre serviços das diversas regiões do estado de São Paulo, dos quais esperávamos encontrar mais em comum que a absoluta diversidade compartilhada de suas práticas.
O mapeamento das instituições de apoio às PCDI durante a imersão em campo explicitou uma oferta de serviços composta, em sua totalidade, por instituições de caráter filantrópico, educacional especial, pouquíssimo variada, sendo composta por associações de familiares e única instituição pública presente no mapeamento voltada para longa permanência, evidenciando, ainda, lacuna de diretrizes políticas e um cenário fragmentado, de poucas articulações (SURJUS; ONOCKO-CAMPOS, 2013SURJUS, L. T. L. S.; ONOCKO-CAMPOS, R. T. Deficiência Intelectual e Saúde Mental: Quando a Fronteira Vira Território. Rev. Polis e Psique, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 82-96, 2013.).
Cabe ressaltar que essa perspectiva se consolidou mundialmente a partir de mudanças advindas da Segunda Guerra e do nascimento do Estado social, quando surgem as associações de famílias que se propõem a tutelar os parentes com deficiência e a administrar serviços específicos. Não obstante o fato de tais movimentos se constituírem em propulsores de superação de teorias religiosas e místicas, acabaram por produzir nos serviços posturas predominantemente protetoras e modelos educativos inevitavelmente infantilizadores, influenciados pela cultura médica marcada pelo ideal da reabilitação em lugares específicos, com o intuito de uma hipotética e futura cura (LEPRI, 2012LEPRI, C. Viajantes inesperados: Notas sobre a inclusão social das pessoas com deficiência. Campinas: Saberes, 2012.).
Durante os debates nos GAP, explicitaram-se sensíveis dúvidas em relação à pertinência da inclusão das PCDI nos Caps, relegando o acesso ao serviço à sensibilidade do profissional destacado para o acolhimento inicial do dia. Em alguns serviços, o fato dos profissionais se depararem com a questão da deficiência, parece antecipar a negativa da inserção nos serviços, antes mesmo de avaliação mais qualificada dos motivos pelos quais foram acessados.
De outro lado, em algumas instituições de apoio às PCDI, os problemas de saúde mental são apontados como critério de exclusão ao acesso, chegando tal informação a constar em protocolos vigentes. É flagrante, porém, que a descrição dos casos que chegam aos Caps revela preocupante a inversão do percurso proposto na estruturação da Raps a partir da Lei nº 10.216/2001, onde a internação seria recurso último a ser acionado.
Evidenciou-se que muitas das PCDI têm, ainda hoje, a internação em hospitais psiquiátricos como primeira oferta no campo da saúde mental, sendo justificadas por graves situações que envolvem ausência total de suporte para as famílias e a completa exclusão das possibilidades de convívio social. Relata-se a recorrência de situações de abuso e a importante vulnerabilidade social das pessoas atualmente inseridas nos Caps. É percebida como recente pelos participantes a chegada de casos oriundos dos Caps infanto-juvenis.
A lógica substitutiva ao modelo asilar, que tem nos Caps a expectativa de articulador da Raps, fica em suspenso quando a insegurança dos profissionais, justificada pelo vazio assistencial de serviços de referência para DI, não lhes permite vislumbrar parceiros para tal atenção, explicitando preocupações de que o Caps não reproduza segregação social. Porém, por vezes ficou nítido o movimento, anterior ao acolhimento dessa população nos Caps, de ações restritas ao esforço de identificação das instituições para as quais encaminhar essa população, havendo pouquíssima crítica a esta cultura.
O estudo de Montobbio e Lepri (2008)MONTOBBIO, E.; LEPRI, C. Quem eu seria se pudesse ser: a condição adulta da pessoa com deficiência intelectual. Campinas: Saberes, 2008. reflete os efeitos da manutenção de concepções cristalizadas e da oferta de espaços artificiais sob a intenção de integração, e o consequente reforço de as PCDI serem condenadas à infantilização eterna. Reflete o mundo do trabalho formal como a única forma consistente de produzir, a um só tempo, os processos de emancipação das PCDI e a mudança da representação social a respeito de perspectivas futuras para essa população.
A reprodução da percepção estereotipada acerca das necessidades de uma PCDI somente foi revisitada pelo grupo de profissionais participantes quando reconhecem sintomas associados à categoria de doenças mentais. Contudo, a inserção dessa população nos Caps tem se restringido aos espaços de convívio, sem grandes investimentos para discussão dos casos em reuniões de equipe ou construção de Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) (SURJUS; ONOCKO-CAMPOS, 2013SURJUS, L. T. L. S.; ONOCKO-CAMPOS, R. T. Deficiência Intelectual e Saúde Mental: Quando a Fronteira Vira Território. Rev. Polis e Psique, Porto Alegre, v. 3, n. 2, p. 82-96, 2013.).
Reconhecemos que não é raro, em processos de mudanças paradigmáticas, a coexistência contraditória de diferentes perspectivas acerca das ofertas de apoio e cuidado tanto às pessoas com deficiência como às pessoas com transtornos mentais, dentre concepções caritativas ou tutelares, criminalizantes e biomédicas (LEPRI, 2012LEPRI, C. Viajantes inesperados: Notas sobre a inclusão social das pessoas com deficiência. Campinas: Saberes, 2012.; FOUCAULT, 2006FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006.). Vale lembrar que, paradoxalmente, no período no qual mais se avançou em distintas classificações entre loucura e idiotia ou retardamento mental, foi também o que abriu de vez as portas dos manicômios às PCDI (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, M. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006.).
Data da década de 1990, no entanto, a consolidação de um modelo de compreensão biopsicossocial, inspirado em experiências exitosas próprias da superação dos manicômios e de instituições educacionais especiais que concebe a deficiência como resultante de múltiplas dimensões - biomédicas, psicológicas, sociais, culturais e políticas - relacionadas entre si (LEPRI, 2012LEPRI, C. Viajantes inesperados: Notas sobre a inclusão social das pessoas com deficiência. Campinas: Saberes, 2012.). Tais dimensões foram materializadas pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) (WHO, 2001WORLD HEALTH ORGANIZATION (WHO). International Classification of Functioning, Disability and Health: ICF. Genebra: WHO, 2001.) e pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (BRASIL, 2009BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Diário Oficial [da] União. Brasília, DF, 26 ago. 2009. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D6949.htm>. Acesso em: 7 nov. 2016.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_At... ), e que ainda não encontraram suficiente apropriação pelos profissionais atuantes no campo da atenção psicossocial.
Muitos países desenvolvidos têm transitado de um modelo de grandes instituições e casas de saúde para ambientes menores dentro da comunidade, juntamente com o crescimento do movimento de vida independente. Países como a Noruega e a Suécia, e outros do leste europeu, já superaram abordagens predominante baseadas nas instituições, implantando serviços de cuidados comunitários, incluindo centros de tratamento diurnos, adotando suporte domiciliar para pessoas com deficiência decorrente de processos de desinstitucionalização, promovendo, também, a descentralização da gestão para governos locais e a expansão e diversificação dos serviços sociais e dos prestadores de serviço, o que, no Brasil, fica mais evidente nas propostas da Raps do que no campo da deficiência.
Alguns profissionais dos Caps reconhecem, no entanto, que a população com DI já se encontra sob o cuidado nos Caps, lançando mão de estratégias como grupos específicos para efetivar propostas mais adequadas, avaliando os ganhos relacionais a partir da inserção no serviço, ofertando também suporte às famílias e problematizando junto a elas o que esperam como bons resultados. Há também a identificação de recentes buscas de parcerias com as instituições para DI para ações voltadas aos egressos de hospitais psiquiátricos, moradores dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT).
Consideramos exitoso, frente a tantas dimensões emergentes no percurso formativo proposto, que, numa pauta inédita, três indicadores tenham sido priorizados acerca da temática da deficiência dentre os 17 elaborados ao todo, incluindo os diversos temas trabalhados na pesquisa avaliativa; quantitativamente, este tema foi equivalente à importância dada, por exemplo, ao eixo 'projeto terapêutico'.
Conclusões
Apesar de não abarcar todas as vertentes a serem exploradas, acreditamos que os indicadores priorizados aqui apresentam potencial de evidenciar a gestores e profissionais a relevância da questão, tirando da invisibilidade e do silenciamento a que tem sido reduzida com o objetivo de contribuir para o aprofundamento necessário à estruturação de respostas mais adequadas e efetivas.
De fato, a problematização provocada no curso foi, para a grande maioria dos participantes, o primeiro momento de contato com a temática da atenção psicossocial às PCDI, gerando consenso sobre a necessidade de evidenciar e desnaturalizar a chegada, a inserção e o cuidado dessas pessoas na Raps. A constatação do percurso de institucionalização nos hospitais psiquiátricos reafirma a responsabilidade do Caps como articulador de uma rede substitutiva ao modelo asilar. Contudo, frente a uma problematização tão inicial, optamos por não definir um parâmetro ao que seria esperado em termos de inserção das PCDI nos Caps. Mesmo ponderando que pudéssemos transpor, na ausência de estudos similares, a estimativa de 40% oriunda de pesquisas acerca da prevalência de problemas de saúde mental das PCDI, o primeiro indicador proposto teve o intuito de produzir uma aproximação mais qualificada quanto às demandas desta população, potencialmente produzindo novas evidências. Para tanto, propõe o registro, de tais dados, favorecendo que a equipe melhor compreenda e avalie as necessidades de busca pelo serviço, permitindo maior conhecimento da realidade, e produzir informações que possam promover futuros estudos comparados.
A inclusão das residências terapêuticas como locus de mapeamento de PCDI na Raps decorreu da constatação que uma parte importante da população em processo de desinstitucionalização, muitas vezes, distanciada do próprio cuidado no Caps, tem DI, fato que raramente é levado em consideração na proposição de projetos de cuidado e inclusão. Aqui, propomos que a partir do monitoramento do indicador construído no intervalo de tempo proposto, as equipes possam, além do conhecimento das necessidades específicas dos moradores, produzir informações acerca da ampliação do acesso dessa população aos processos de desinstitucionalização desencadeados.
Quanto à possibilidade de parceria com as instituições de apoio para PCDI, um dos indicadores foi proposto com o objetivo de evidenciar a falta de suporte social das famílias, bem como impulsionar os Caps a buscar parcerias desconhecidas e talvez subaproveitadas pelo território. Propomos que, em relação a tal indicador, se promova a aproximação entre a maior parte dos casos sendo acompanhados, em parceria com a rede de cuidados à pessoa com deficiência.
Durante o processo do curso, percebemos que a possibilidade de trocas entre os atores das diferentes unidades repercutia imediatamente no cotidiano dos serviços. Formas de lidar com determinadas questões, modos de organização e gestão das práticas, bem como possibilidades de operar a clínica, eram partilhadas, sendo o aprendizado em processo multiplicado pelos participantes, com relatos de importantes mobilizações e mudanças provocadas pelo desenho proposto. Assim, pudemos verificar uma postura proativa dos profissionais participantes, mais atentos ao contexto de suas práticas, às demandas e problematizações acerca das necessidades psicossociais das PCDI.
Nos GAP, da mesma forma, os encontros serviram como momento para maior conhecimento e reflexão sobre a própria configuração da rede substitutiva em cada território ou município. Quando, por exemplo, compartilhavam os equipamentos que compunham a rede de cuidados à DI, vários participantes surpreenderam-se ao 'descobrirem' outros serviços que poderiam compor o cuidado ampliado a essa população, gerando outras potências no processo de trabalho e propostas clínicas. A percepção crítica acerca dos Caps e os desdobramentos a partir de olhares avaliativos cresceram.
Podemos afirmar que a complexidade do desenho da pesquisa foi uma exitosa estratégia para a efetivação da participação dos diferentes atores, constituindo-se tanto em espaço de geração de informações para a pesquisa como em fórum de discussão, apropriação e intervenção sobre o curso da organização dos serviços, no interior do qual se pode lançar mão de diferentes possibilidades de fomento de debate e interação grupal. Nosso estudo evidencia também que profissionais e gestores da saúde mental podem construir indicadores e consensos se bem apoiados por uma metodologia adequada e participativa.
- Suporte financeiro: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Processo: 2009/53130-3
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Mar 2017
Histórico
- Recebido
Abr 2016 - Aceito
Set 2016