Avaliação do trabalho na Atenção Primária à Saúde do município do Rio de Janeiro: uma abordagem em saúde do trabalhador

Assessement of labor in Primary Health Care in the municipality of Rio de Janeiro: an approach on worker's health

Mariana Monteiro de Castro Simone Santos Oliveira Sobre os autores

RESUMO

O objetivo deste estudo foi analisar a avaliação do trabalho na Atenção Primária à Saúde do município do Rio de Janeiro, com foco na saúde do trabalhador. Participaram da pesquisa 62 trabalhadores inseridos nas Equipes de Saúde da Família de três unidades de saúde, localizados na Área Programática 2.1. Parte-se do ponto de vista da atividade utilizando o dispositivo ergológico Encontro sobre o Trabalho. Lançou-se mão do Questionário de Saúde e Trabalho no Setor de Serviço. O estudo evidenciou que a avaliação do trabalho deve ser fundamentada no conhecimento específico do real da atividade, acessível apenas pela vivência do indivíduo que trabalha e pela mobilização subjetiva dos trabalhadores tanto individual como coletiva.

PALAVRAS-CHAVE
Atenção Primária à Saúde; Avaliação; Estratégia Saúde da Família; Saúde do trabalhador

ABSTRACT

The aim of this study was to analyze the assessement of labor in the Primary Health Care in the city of Rio de Janeiro, focusing on worker's health. 62 health workers participated in the analysis inserted in Family Health Teams of three health units, located in the Programmatic Area 2.1. We start from the point of view of activity using the ergologic device called Meetings on Labour. We betake the Health and Work Survey in the Service Sector. The study showed that the evaluation of the work must be based on specific knowledge of the real, concrete activity, which is accessible only by the experience of the individual who works and the subjective mobilization of the workers both individually and collectively.

KEYWORDS
Primary Health Care; Evaluation; Family Health Strategy; Occupational health

Introdução

A avaliação é um grande desafio para o aprimoramento dos serviços de saúde. Dentre as iniciativas do Ministério da Saúde para utilização da avaliação no SUS, destaca-se a institucionalização de instrumentos nacionais de avaliação e monitoramento. Essas iniciativas são baseadas em indicadores selecionados, como no caso do Pacto da Atenção Básica e, recentemente, na avaliação do escopo da Estratégia Saúde da Família (ESF) (SANTOS FILHO, 2010SANTOS FILHO, S. B. Avaliação e Humanização em Saúde: aproximações metodológicas. Ijuí: Unijuí, 2010. ).

Se por um lado a avaliação pode contribuir para melhoria dos serviços e sua eficácia, por outro, quando o foco é o trabalho, na avaliação de desempenho profissional, grande parte do trabalho realizado, da mobilização do trabalhador para atingir essa eficácia, não é apreendida. Como alerta Dejours (2008)DEJOURS, C. Trabalho, Tecnologia e Organização: críticas aos fundamentos da avaliação. São Paulo: Blucher, 2008., ao abordar o trabalho efetivo, há de se compreender que os métodos de avaliação jamais darão conta de mensurar o real do trabalho.

A avaliação dos desempenhos torna-se, em determinadas situações de trabalho, totalmente desconectada da realidade e necessidades. Dessa forma, pode se revelar em práticas burocráticas, prescritivas e punitivas, ainda podendo ser fonte de sofrimento e mal-estar para os trabalhadores, por se tratar de uma lógica de valorização do aumento da produção (SCHERER; PIRES; SCHWARTZ, 2009).

A mobilização subjetiva baseia-se em uma dinâmica contribuição-retribuição. Em troca da contribuição que cada trabalhador traz à organização do trabalho, espera-se uma retribuição. Tal processo de retribuição não está atrelado à dimensão material (salário, promoção, premiações), e sim à dimensão simbólica do trabalho traduzida no reconhecimento. De outro modo, não havendo o reconhecimento, o trabalho pode levar ao sofrimento, com descompensações psíquicas e adoecimentos (DEJOURS, 2008DEJOURS, C. Trabalho, Tecnologia e Organização: críticas aos fundamentos da avaliação. São Paulo: Blucher, 2008.).

Destaca-se que a concepção de trabalho parte de uma análise que reúne três realidades que são dependentes uma das outras: a atividade, as condições e o resultado da atividade, e, portanto, uma avaliação do trabalho, requer a avaliação desse sistema e do seu funcionamento, sem separar essas três realidades que compõe o trabalho (GUERIN 2001GUERIN, F. et al. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Blucher; Fundação Vanzolini, 2001.).

Esta análise mostra que a complexidade do trabalho não é imediatamente apreendida por uma observação direta e que quaisquer que sejam os métodos empregados, o trabalho efetivo, real nunca poderá ser trazido totalmente à visibilidade, pois o trabalho está integralmente atribuído à subjetividade do trabalhador e às suas habilidades técnicas (DEJOURS, 2008DEJOURS, C. Trabalho, Tecnologia e Organização: críticas aos fundamentos da avaliação. São Paulo: Blucher, 2008.).

O investimento do trabalhador da saúde nas suas práticas de trabalho, com suas iniciativas e escolhas, implica um debate de normas em um universo de valores que é fundamental para o sucesso do serviço, produção de resultados e mudança na condição de saúde dos usuários dos serviços (SCHWARTZ, 2011SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, p. 19-45, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-77462011000400002&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 2 jun. 2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S198...
).

A avaliação do trabalho na Atenção Primária à Saúde (APS) do município do Rio de Janeiro está estruturada em um modelo de gestão compartilhada, entre a Secretaria Municipal de Saúde/RJ (SMS) e Organizações Social de Saúde (OSS), em que o contrato de gestão com indicadores e metas é o instrumento de avaliação de desempenho dos trabalhadores das equipes (CARNEIRO; MARTINS, 2013).

A reforma da APS no município foi significativa nos últimos anos, a partir da expansão da ESF para todo o território municipal, a fim de ampliar o acesso aos cuidados de saúde e garantir a assistência com qualidade aos usuários do SUS. Segundo o histórico de cobertura de saúde da família, em dezembro de 2008, o município contava com 124 equipes implantadas, o que correspondia a um percentual de cobertura em saúde de 6,4% da população. Já no ano de 2014, havia 800 equipes implantadas, ou seja, 45% dos residentes na cidade com acesso à ESF. O objetivo da SMS/RJ é garantir a cobertura de 70% da ESF até o ano de 2017 (CAMPOS; COHN; BRANDÃO, 2016CAMPOS, C. E. A; COHN, A.; BRANDÃO, A. L. Trajetória histórica da organização sanitária da Cidade do Rio de Janeiro: 1916-2015. Cem anos de inovações e conquistas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232016000501351&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 3 jun. 2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141...
).

Para concretização da proposta de reforma da APS, por intermédio da SMS e mediante seleção pública, firmou-se um contrato de gestão com as OSS com vistas à regulamentação do desenvolvimento e execução das ações e serviços de saúde, dos equipamentos no Território Integrado de Atenção à Saúde (Teias) destinados à ESF. No contrato de gestão, estão definidas as ações e serviços de saúde que contemplariam o escopo de atribuições da OSS contratada, bem como suas obrigações e responsabilidades. A SMS/RJ construiu uma carteira de serviços para nortear as ações de saúde na APS e garantir que todos os itens especificados nesse documento fossem implementados em todas as unidades de saúde. O contrato de gestão é norteado por indicadores de desempenho estabelecidos pela SMS/RJ, organizados por linha de cuidado em APS e com o objetivo de induzir à boa prática nas atividades das Equipes de Saúde da Família (EqSF).

A efetivação da avaliação de desempenho se dá na divisão em três níveis: variável 01, variável 02 e variável 03, e em sua análise dos resultados dos indicadores e metas, como segue: 'Parte variável 01' - tem como objetivo induzir boas práticas na gestão da OSS e alinhá-las às prioridades definidas pela SMS. 'Parte variável 02' - refere-se ao desempenho da unidade de saúde sendo constituída por 18 indicadores, agrupados em quatro grandes áreas: acesso, desempenho assistencial, qualidade percebida e desempenho econômico. O cumprimento desses indicadores pela unidade de atenção primária destina um valor trimestral preestabelecido segundo o número de equipes, a ser aplicado na própria unidade. 'Parte variável 03' - consiste em um recurso pago trimestralmente aos profissionais das EqSF e saúde bucal, tendo como valor de referência o salário-base de cada profissional. O limite máximo por trimestre é de 300 de unidades contábeis (UC), o que corresponde a 10% da soma dos salários-base do trimestre (equivale a 10% do salário-base mensal). A quantidade de UC a ser repassada está condicionada ao cumprimento de indicadores específicos relacionados com cada Equipe de Saúde da Família e saúde bucal (RIO DE JANEIRO, 2011).

A SMS/RJ como responsável pelo acompanhamento do contrato de gestão com as OSS criou uma Comissão Técnica de Avaliação (CTA), em que o repasse do recurso financeiro é efetivado com base nos resultados de desempenho alcançados pela OSS, unidades de saúde e EqSF. Ao final de cada trimestre do ano, ocorre a reunião da CTA para avaliação dos indicadores, pontuação do quadro de indicadores de acompanhamento, avaliação das metas e validação do repasse do incentivo financeiro pelo alcance das metas do referido contrato.

A incorporação do método de pagamento por desempenho nos serviços de saúde é uma das estratégias de flexibilização da nova dinâmica de gestão do trabalho encontrada tanto no setor público quanto no setor privado. Esse método prevê a remuneração composta pela combinação de salários fixos com complementação de desempenho ou performance do trabalhador a partir dos resultados dos indicadores alcançados (CARNEIRO; MARTINS, 2013).

Com base nesse contexto, considerando o método de avaliação de desempenho para a organização do trabalho da ESF, este estudo busca analisar a avaliação do trabalho na Atenção Primária à Saúde do município do Rio de Janeiro, com foco na saúde dos trabalhadores.

Metodologia

O estudo conjugou abordagem quantitativa e qualitativa. Parte-se do ponto de vista da atividade para compreensão da relação trabalho-saúde. De acordo com a perspectiva ergológica, o ponto de vista da atividade compreende a experiência e os saberes acumulados pelos trabalhadores, que são considerados protagonistas de uma realização parcial ou original do cotidiano do trabalho. Nessa perspectiva, os trabalhadores não são vistos como meros executantes de instruções e procedimentos, pois "a atividade de trabalho é sempre o lugar, mais ou menos infinitesimal, de reapreciação, de julgamentos sobre os procedimentos" (SCHWARTZ, 2011SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, p. 19-45, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-77462011000400002&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 2 jun. 2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S198...
, P. 33).

A perspectiva ergológica se desenvolve a partir da ergonomia da atividade que possibilitou a compreensão da defasagem existente entre o trabalho prescrito e o trabalho real. O ponto de vista da atividade em termos de método consiste em uma "abordagem teórica e prática que permite um contínuo ir e vir entre a atividade de trabalho e o conjunto de seus determinantes" (GUERIN 2001GUERIN, F. et al. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Blucher; Fundação Vanzolini, 2001., P. 38).

O trabalho prescrito faz referência ao que se é esperado na esfera de um processo de trabalho específico, dotado de suas particularidades, e atrelado às regras, objetivos e condições estabelecidas pela organização do trabalho. Já o trabalho real está "vinculado ao pressuposto de que as prescrições são sempre recursos incompletos" (BRITO, 2011BRITO, J. A Ergologia como perspectiva de análise: a saúde do trabalhador e o trabalho em saúde. In: MINAYO, C. et al. (Org.). Saúde do trabalhador na Sociedade Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 479-494., P. 482).

Optou-se pelo Método de Interpretação de Sentidos como proposta de análise do Encontro sobre o Trabalho e o Questionário de Saúde e Trabalho no Setor de Serviço (QSATS) (GOMES, 2010GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S. et al. (Org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.). Foram eleitas categorias pelo critério de segmentos de atores, que, no caso desta pesquisa, são os trabalhadores das EqSF. Dessa forma, a análise se estruturou em quatro eixos temáticos: Organização e Condições de Trabalho; Avaliação do Trabalho; Sentidos do Trabalho. Para operacionalização do método, estão definidos princípios:

buscar a lógica interna dos fatos dos relatos e das observações; situar os fatos, os relatos e as observações no contexto dos atores; e produzir um relato dos fatos em que seus atores se reconheçam. (GOMES, 2010GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S. et al. (Org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2010., P. 100).

O campo empírico

Foram selecionadas três unidades de saúde. O critério de seleção das unidades foi baseado na análise dos resultados trimestrais dos Relatórios Gerenciais da CTA de 2014, que continham as informações de produção e desempenho das EqSF e o resultado da avaliação para o alcance das metas das variáveis 02 e 03.

Todos os trabalhadores que compõem a equipe mínima da ESF: médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS) das unidades de saúde previamente selecionadas, foram convidados a participar da pesquisa. No total, aceitaram participar 62 trabalhadores, contratados entre os anos de 2010 e 2014, de um universo de 99 trabalhadores inseridos nas EqSF das três unidades de saúde da Área Programática 2.1 (AP 2.1).

Para o diálogo com os trabalhadores, foi utilizado o dispositivo ergológico denominado Encontros sobre o Trabalho (EST) que privilegia o ponto de vista da atividade. O EST está respaldado na proposta de ergogestão oriunda da ergologia (DURRIVE, 2010DURRIVE, L. Pistas para o ergoformador animar os encontros sobre o trabalho. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e Ergologia: conversas sobre a atividade humana. 2. ed. Niterói: Eduff, 2010.), que pressupõe um modelo de gestão mais democrático, aberto ao diálogo, com a possibilidade de reconhecimento dos limites e alternativas dos gestores e dos trabalhadores na implementação do método de gestão participativa (SOUZA, 2009SOUZA, W. F. Gestão em Saúde, uma perspectiva ergológica: com quantos gestos se faz uma gestão. 306 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.).

Para a produção de dados, lançou-se mão do QSATS que foi aplicado nas três unidades de saúde previamente selecionadas e do roteiro semiestruturado aplicado em duas EqSF de apenas uma unidade de saúde, que permitiu ao entrevistador explorar determinadas temáticas, relatos de experiência e pontos de vista.

O QSATS é uma versão atualizada do Inquérito de Saúde e Trabalho em Serviço (Insats), que foi elaborado a partir de adaptações feitas ao questionário desenvolvido em Portugal, denominado Insat - Inquérito Saúde e Trabalho, versão 2007. Este instrumento possibilita um encontro entre o trabalhador e o seu trabalho, promove reflexões acerca do trabalho e reflexões sobre o processo saúde-doença (BRITO; GOMES; OLIVEIRA, 2013BRITO, J.; GOMES, L.; OLIVEIRA, S. INSATS: uma contribuição para a Saúde do Trabalhador. In: SEMINARIO INTERNACIONAL SAÚDE NO TRABALHO, 2013, Porto. Anais... Porto: Universidade Porto, 2013.). Ele apresenta três características: foco sobre o trabalho e a saúde; valorização da experiência do trabalhador; e perspectiva compreensiva de análise. Considera importante identificar não apenas as patologias, mas todos os problemas de saúde que expressam a nocividade das condições de trabalho (BARROS-DUARTE; CUNHA; LACOMBLEZ, 2007BARROS-DUARTE, C.; CUNHA, L.; LACOMBLEZ, M. INSAT: uma proposta metodológica para análise dos efeitos das condições de trabalho sobre a saúde. Laboreal, Porto, v. 3, n. 2, p. 54-62, dez. 2007. Disponível em: <http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=37t45nSU547112311:499682571>. Acesso em: 2 jun. 2016.
http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php...
). O QSATS está estruturado em cinco tópicos que contemplam: caracterização pessoal e profissional; aspectos da organização do trabalho; das condições de trabalho; da vida familiar; e da saúde.

O EST é o espaço para retrabalho dos saberes, intercâmbio de experiências, que a partir da sua circulação revela os momentos de criação, construção e aprendizagem no coletivo. Lugar onde os saberes ocultos poderão ser formulados e existir socialmente (DURRIVE, 2010DURRIVE, L. Pistas para o ergoformador animar os encontros sobre o trabalho. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e Ergologia: conversas sobre a atividade humana. 2. ed. Niterói: Eduff, 2010.). Nos encontros, foram discutidas questões que contemplaram o trabalho na ESF, suas condições e desenvolvimento, os métodos de avaliação do trabalho, as percepções sobre o pagamento por desempenho e os sentidos do trabalho. Nesses encontros, procurou-se, observar cautelosamente, os diálogos buscando uma interação entre experiências e conhecimentos para elucidar a singularidade do trabalho em saúde.

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz - Ensp/Fiocruz (parecer do Comitê de Ética em Pesquisa da Ensp - CAAE: 43969015.4.3001.5279), bem como da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS/RJ).

Resultados e discussão

Dos 62 trabalhadores que participaram desta pesquisa: 44 eram ACS, 06 enfermeiros, 03 médicos e 09 técnicos de enfermagem. Desse total, 88,7% dos trabalhadores eram do sexo feminino, e 40% tinham entre 25 e 34 anos de idade.

Em relação às atividades administrativas e assistenciais, 85,48% dos trabalhadores sentem-se bem orientados quanto à forma de realizarem as atividades; 67,74% informaram que dispõem de guias, protocolos ou manuais de orientação; 58% dispõem de recursos técnicos necessários; 72,58% acreditam que as metas a cumprir são definidas claramente; 35,48% afirmam ser boa a proporção entre o número de trabalhadores e as tarefas; e 93,54% dos trabalhadores informaram que é comum à realização de encontros regulares para a discussão da equipe.

As equipes fazem uso do prontuário eletrônico para registro das informações em saúde produzidas no cotidiano da atividade e têm a avaliação do trabalho atrelada a sua plena utilização.

Existe uma parte do trabalho que é toda burocrática, esse programa Vita Care [prontuário eletrônico] que a gente tem que obedecer. A enfermeira pode definir melhor, mas são os hipertensos, a ficha, a variável, os indicadores, então a gente depende de um programa que tem que obedecer se não os indicadores caem. (Médico - Equipe A).

No entanto, os trabalhadores desenvolvem atividades que não estão definidas em normas e protocolos e nem são passíveis de registro em prontuário eletrônico, pois são fruto do seu envolvimento no trabalho, na confiança nos atributos da APS e nos preceitos do SUS. É possível ter acesso a esse conhecimento do trabalho, mas, para isso, é preciso considerar a subjetividade dos trabalhadores e compreender que o trabalho comum não é acessível à observação direta e que o trabalho efetivo jamais será integralmente trazido à realidade.

Eu estava com um usuário que tinha muita coceira, então fui buscá-lo, ele era morador de rua. E precisei ir junto para o hospital de Ipanema porque o paciente não consegue falar [...] não sabe conversar [...] tem alguns casos que a gente vai [...] isto não está na carteira de serviços, mas a gente faz, porque a gente sabe que ele vai e não vai conseguir nada porque ele não fala, porque tem vergonha. Muita coisa assim, se fosse falar, se fosse valer, mas não vale. Vale para gente, porque a gente fica feliz com o resultado. (ACS 4 - Equipe A).

As variabilidades que ocorrem nas situações de trabalho fazem com que o prescrito seja a todo o momento colocado à prova. Exigem mudanças que, no dia a dia dos serviços, os trabalhadores repensam o trabalho e traçam novas formas e estratégias para conduzir uma determinada demanda, mesmo que sejam situações já vividas, pois cada usuário carrega consigo um rol de particularidades e, portanto, novas exigências ao trabalhador. Cada trabalhador também carrega consigo seus valores, conhecimentos e experiências, que são determinantes na forma de condução de cada caso encontrado no trabalho.

Tendo como análise o ponto de vista da atividade, os trabalhadores encontram-se sempre imersos em uma pluralidade de normas e valores e, constantemente, vivenciam um confronto com elas (SCHWARTZ, 2011SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, p. 19-45, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-77462011000400002&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 2 jun. 2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S198...
). Esse debate de normas é experimentado pelos trabalhadores na atividade, munidos de valores e dotados de uma capacidade que lhes permite transformar-se à medida que produzem outras normas.

O processo de trabalho das equipes da ESF deve estar pautado na implementação de atividades com prioridade para a solução dos problemas dos usuários dos serviços e em sua resolutividade com responsabilidade. A narrativa a seguir representa a dedicação, o cuidado e a disponibilidade do trabalhador da saúde no exercício da prática do cuidado integral.

Eu e a outra ACS, nós vivenciamos uma situação com um paciente de tuberculose. Nós já pegamos esse paciente quase morto. Ele chegou aqui bem ruim, num estado já de quase convulsionando, né. Me lembro que a outra ACS veio até a sala pegou aqueles lençóis colocou em cima dele, e ele já bem ruinzinho. E a gente falava: esse cara vai morrer! E nós duas saímos com ele até a UPA [Unidade de Pronto Atendimento] para bater um raio-x, e ele estava com tuberculose [...] ele fez todo o tratamento e no término do tratamento ele veio e me abraçou e chorou e me falou assim: se não fosse você e a sua amiga eu estaria morto hoje. E isso que é gratificante, o sorriso do paciente, o reconhecimento. Aquilo marcou lá embaixo para sempre. (ACS 2 - Equipe B).

Na efetivação da atividade de trabalho, Schwartz (2011)SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, p. 19-45, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-77462011000400002&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 2 jun. 2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S198...
indica que os trabalhadores vivenciam as dramáticas 'do uso de si' e do 'uso de si pelos outros' e precisam fazer escolhas que orientam a tomada de decisões. Na gestão dos elementos envolvidos no trabalho, a cada momento, os trabalhadores tomam decisões que nem sempre correspondem ao prescrito.

Essa situação ficou evidenciada no estudo de Silva e Athayde (2008, P. 35)SILVA, A. C. B.; ATHAYDE, M. O Programa de Saúde da Família sob o ponto de vista da atividade: uma análise das relações entre os processos de trabalho, saúde e subjetivação. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 33, n. 117, p. 23-35, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0303-76572008000100004&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 2 jun. 2016.
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S030...
quando os profissionais de saúde com os usuários,

frente ao 'vazio de normas' gerado pelas lacunas da organização prescrita do trabalho, renormatizavam seu meio de trabalho, criando instrumentos, sistemas de informação e comunicação e procedimentos.

Avaliação do trabalho

É inegável atualmente a compreensão de que o processo de trabalho em saúde está orientado por princípios que renunciam a subjetividade em prol da rentabilidade e, consequentemente, a favor da competição, com perda do sentimento de confiança entre os trabalhadores como também do prazer no trabalho.

Às vezes a gente vê que a gente trabalha muito e outra equipe não, mas a variável fica maior nesta equipe. Fica maior do que a da minha equipe e, eu fico tentando entender. Isso desanima! Gente, como assim? Essa equipe nem tem médico fixo! Não desmerecendo a equipe, não desmerecendo os ACS, porque a gente tem uma amizade muito grande, mas não tem como estar melhor que a gente, não tem como uma equipe que está sem médico fixo há dois anos estar melhor que a gente no accountability! Não é desmerecendo a equipe, é porque não é uma realidade. (ACS 4 - Equipe A).

Esse fato se manifesta no predomínio de avaliações quantitativas e objetivas do trabalho, com o propósito de instituir a gestão do trabalho e de enfrentar a relação entre custo e resultados com a população usuária dos serviços (DEJOURS, 2008DEJOURS, C. Trabalho, Tecnologia e Organização: críticas aos fundamentos da avaliação. São Paulo: Blucher, 2008.).

Hoje a forma de avaliação é quantitativa, acho que deveria ter outro método para avaliar a qualidade da equipe e não só o número. Porque se avaliarem a nossa equipe, irão ver toda a qualidade que tem nela. Porque nós temos um trabalho permanente e contínuo. Então, eu pergunto: porque só o número? Por que a qualidade poderia ser vista se tivesse outras avaliações, e seria comprovado que a realidade não bate com o número. Porque tem equipe que o número está bom, mas na qualidade a equipe é ruim. (ACS 5 - Equipe A).

O trabalho das EqSF não pode ser visto apenas como resultado final medido por intermédio de indicadores e metas. Os trabalhadores produzem, na atividade, uma perspectiva cuidadora por meio de uma relação direta com o usuário e sua família, pautada no vínculo, diálogo, escuta, acolhimento, responsabilização, respeito e aproximação com a realidade que vive cada usuário da ESF.

O sistema cobra número, ele quer saber do número, então isso é muito complicado. Então quando ele quer cobrar um determinado número, ele apita para cobrar a gente e aí a gente corre atrás do paciente. [...], por exemplo, o cartão de vacina é o mais complicado é o que a gente fica correndo mais atrás e a gente tem que brigar com certas mães pra vir para a vacina e explicar o que acontece se ela não vier. E não pode ter conversa mole não, tem que falar sério, falar do conselho tutelar, da matrícula na escola, são coisinhas que se não brigar a mãe não aparece. Tem que ser brigão. (ACS 2 - Equipe B).

A referência a uma pressão pela produtividade permeia grande parte das falas dos entrevistados, e percebe-se que a intensidade do trabalho pode comprometer a qualidade dos serviços prestados e gerar sofrimento na atividade.

Os Gerentes da unidade começam assim, a variável tal precisa alcançar tantos por centos. A variável eles querem 40%, eles querem 80%. Isso dói um pouco. Então, você tem que misturar emoção com uma coisa que é a estatística. Emoção e estatística é uma coisa que é difícil de você misturar. Emoção, estatística e a porcentagem, a gente sofre nesse momento. Mas às vezes a gente acaba que esquece essa contabilidade, esse accountability, que é um trauma pra todo mundo. (Médico - Equipe A).

Este posicionamento foi encontrado em ambas às equipes, de que suas atividades não estão atreladas à produtividade, e sim ao acompanhamento dos indivíduos e famílias e, portanto, o alcance das metas se daria por consequência desse ato. Para isso, de acordo com os critérios previstos no contrato de gestão, é necessário o empenho dos trabalhadores de forma individual e coletiva para realizarem o devido preenchimento das informações no prontuário eletrônico. Esta é determinante para fazerem jus ao repasse do recurso para pagamento por desempenho.

A narrativa que segue traz apontamentos sobre a prestação de contas à sociedade estabelecida pela atual gestão do município.

O accountability vê o lado que não é o do humano. A gente sabe que o accountability é importante, e eu tento me convencer que é importante. Mas o lado humano e o lado do número é complicado você casar isso, é duro, é duro. Porque na verdade, você está numa época que tudo tem os indicadores, porque tem que ser assim e a população triplicou. Você cuida em massa na saúde pública, né. Eu acho que o que é difícil é o humano e o número, e, depois contabilizar isso em indicadores. (Médico - Equipe A).

Os trabalhadores relataram que a accountability vem sendo utilizado como ferramenta que exige responsabilidade objetiva, isto é, trata-se da responsabilidade de uma pessoa ou organização perante outra, fora de si mesma. No entanto, essa responsabilidade tem consequências, que implicam recompensas, pelo seu cumprimento, e quando o inverso é constatado, estão sujeitos a penalidades.

Na prática da avaliação, está incluída a prestação de contas, conhecida pelo termo accountability, associada ao controle de programas a partir da responsabilização para melhoria dos programas e da sociedade (FIGUEIRÓ; FRIAS; NAVARRO, 2010FIGUEIRÓ, C. A.; FRIAS, P. G.; NAVARRO, L. M. Avaliação em Saúde: Conceitos Básicos para a Prática nas Instituições. In: SAMICO, I. et al. (Org.). Avaliação em Saúde: bases conceituais e operacionais. Rio de Janeiro: MedBook, 2010. p. 1-13.).

As tensões originadas das exigências contraditórias entre as demandas de cuidado integral aos usuários dos serviços e as práticas de gestão criam obstáculos para atividade de trabalho. Conforme indicado por Tambasco (2016)TAMBASCO, L. P. et al. Satisfação no trabalho da equipe multiprofissional que atua na Atenção Primária à Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, 2016. No prelo., os níveis de satisfação dos trabalhadores resultantes do relacionamento e comunicação vertical na APS sugerem necessidades de mudanças na organização do trabalho, com uma gestão mais participativa que propicie aos trabalhadores a oportunidade de interagirem mais em atividades criativas e implementação de projetos novos.

Levando em consideração os aspectos analisados, tornam-se pertinente e propositivo os pensamentos de Dejours (2008)DEJOURS, C. Trabalho, Tecnologia e Organização: críticas aos fundamentos da avaliação. São Paulo: Blucher, 2008. e suas contribuições ao afirmar que a avaliação carrega a possibilidade, para o trabalhador, de um retorno de informação sobre a utilidade e a qualidade do que ele oferece de si e ao trabalho. Sendo assim, a avaliação do trabalho depende de meios que sejam capazes de elucidar o trabalho real.

Entre as possibilidades de uma avaliação, que não seja por meio do acesso racional à objetividade, pode-se ter a avaliação equitativa. A equidade visa levar em conta não somente

critérios relativos à verdade das circunstâncias no mundo objetivo, mas também critérios de justiça relativos à saúde de cada indivíduo que trabalha. (Dejours, 2008DEJOURS, C. Trabalho, Tecnologia e Organização: críticas aos fundamentos da avaliação. São Paulo: Blucher, 2008., P. 82).

O pagamento por desempenho

A avaliação do trabalho baseada no pagamento por desempenho não apresenta conexão com a realidade de trabalho por não existir proporcionalidade entre trabalho e desempenho como afirma Dejours (2008)DEJOURS, C. Trabalho, Tecnologia e Organização: críticas aos fundamentos da avaliação. São Paulo: Blucher, 2008.. Essa concepção vai ao encontro das narrativas dos trabalhadores da ESF:

Então a gente não era ligado mesmo a número e aos indicadores. Não adianta! E se tinha metas a bater a gente nem sabia [...] mesmo porque a gente se atentava com a família, porque quando a gente corria atrás de um hipertenso que não vinha às consultas médicas, a gente se preocupava com a família! A família que tinha uma pessoa que diz a assim o pai bebia de domingo a domingo e maltratava, a gente corria atrás. (ACS 2 - Equipe B).

A nossa equipe sempre trabalhou pegando aquelas famílias mais vulneráveis. E a gente consegue bater a meta, por conta de um trabalho que a gente já estava fazendo desde 2010 (com a mesma equipe). E acho que quando você trabalha em equipe, dá certo. (ACS 2 - Equipe B).

Os trabalhadores das equipes A e B apontaram que, no cotidiano do trabalho, organizam a assistência à saúde dos usuários cadastrados nas equipes, baseados no grau de vulnerabilidade e no monitoramento dos indivíduos e famílias acompanhadas em cada linha de cuidado. Assim, o trabalho de ambas as equipes não estava atrelado aos indicadores de produtividade do contrato de gestão.

Sobre esse assunto, Santos Filho (2007) afirma que, pelo o que se entende como avaliação de desempenho profissional, não se pode tomar como parâmetro apenas indicadores relacionados com a produtividade ou de eficiência, de maneira descontextualizada.

Fruto desse modelo, a competição entre os trabalhadores da saúde da família está presente no cotidiano dos serviços e pode ser exemplificada pelas narrativas dos ACS.

A gente sempre bate as variáveis e é um incomodo, ao ponto de às vezes quererem enforcar a gente. [...] eu vejo que a gerência tem uma falha nisso tudo, porque elas falam para todos que só a nossa equipe bateu a meta. (ACS1 - Equipe B).

A gente não dá ouvidos, porque se a gente parar pra ouvir o que eles falam a gente não vai trabalhar. (ACS 2 - Equipe B).

Fomentar a competição e a concorrência no ambiente de trabalho diminui as chances do trabalho em equipe se efetivar, para a produção compartilhada nos processos que exigem a corresponsabilização dos trabalhadores.

A gente tem que trabalhar a alimentação do sistema, se a gente focar um pouquinho mais no sistema a gente pode ganhar. (ACS 2 - Equipe C).

Nós temos as metas para atingir e os indicadores, e algumas equipes conseguem e outras não. (Enfermeiro - Equipe A).

Nesse sentindo, esses trabalhadores encontram-se diante de um dilema, o de atender com qualidade mais pessoas e com menos tempo.

A gente tem um cansaço, até porque todo mundo gostaria que fosse uma demanda menor [...] se a gente tivesse menos paciente suportaríamos mais [...] a gente tem uma demanda absurda [...] temos que ter resolutividade porque temos uma demanda grande [...]. (Médico - Equipe A).

A gente já começa o atendimento bem cedo porque o nosso fluxo é grande, então não dá para reunir com a equipe pelas manhãs para organizar o trabalho daquele dia. (Enfermeira - Equipe A).

Os trabalhadores das equipes da ESF relataram um aumento expressivo na demanda para assistência médica e de enfermagem nos últimos anos, e que apesar da predominância das doenças crônico-degenerativas, as doenças transmissíveis ainda desempenham um papel importante. Ao mesmo tempo, os trabalhadores reconhecem que a população esteve por anos com acesso restrito aos cuidados de saúde.

Destaca-se que cada microárea das EqSF possui uma característica e realidade social dentro do território da unidade de saúde. Essa condição se apresenta na narrativa a seguir de um ACS:

Na minha área tem bastante usuário de meia idade né [...] então, nas visitas domiciliares, vou às casas dos hipertensos [...], aí no outro dia vou visitar os diabéticos, e eu tenho uma ou outra criança. (ACS 4 - Equipe A).

Em virtude dos fatos mencionados, pode-se considerar que a incorporação das OSS na gestão dos serviços de saúde na APS do Rio de Janeiro introduz transformações no processo de trabalho em saúde marcado pelo modelo gerencial, baseado no controle sobre o trabalhador, na produtividade por meio de um sistema de metas e serviços orientados para atendimento aos usuários.

Cabe ressaltar que a avaliação nos serviços de saúde, e no caso desta pesquisa, nos serviços da ESF, tem por objetivo responder por informações relevantes a respeito da dimensão da saúde e satisfação do usuário. Deve-se valorizar e pautar a informação em seu potencial de mobilizar os trabalhadores e EqSF em torno de dados objetivos e de todos os demais tipos de dados e informações que emergem do e no processo de produção de saúde.

Eu faço um trabalho que não é reconhecido, e sabe por que não é reconhecido? Porque de repente eu tenho essa responsabilidade junto com a enfermeira de preencher de uma maneira correta o programa de prontuário eletrônico, porque se não a gente faz um trabalho que não é contabilizado, não contabiliza o indicador [...] isso é bem difícil! Porque envolve todo um conjunto, que vai da dor do paciente até a parte de registro no prontuário eletrônico. Para ser visto, tem que estar tudo casadinho. (Médica - Equipe A).

Nessa fala, o médico observa uma fragilidade em seu processo de trabalho no que tange ao preenchimento das informações de produção de saúde no prontuário eletrônico. Devido ao fato do não registro das informações, essa Equipe de Saúde da Família teve impacto negativo nos resultados dos indicadores e, em consequência, no alcance das metas pactuadas no contrato de gestão.

Tendo em vista essa especificidade do processo de trabalho, e ressaltando o dilema entre o registro da informação e o cuidado ao usuário, é necessário salientar que o próprio comprometimento com a qualidade do serviço e produção do cuidado está atrelado à análise e percepção dos resultados do próprio trabalho. Quando esse resultado não é coerente com o esforço empreendido, contribui para a desmotivação e sofrimento no trabalho.

Pelos dados do QSATS, constatou-se que 55% dos trabalhadores acreditam que a cobrança pela produção interfere na qualidade do seu trabalho.

De repente somos chamados para uma reunião e a Gerência fala das variáveis e suas metas, tantos por cento e avisam que temos que atingir e perguntam: Porque vocês não atingiram? Aí, todo mundo desmonta. Então a gente tem que ter um pouquinho de casca grossa pra aturar isso. Mas ao mesmo tempo a gente vai vendo que a nossa área está bem, estamos realizando o nosso trabalho juntos [...] tem o monitoramento das famílias [...] tem a promoção da cidadania [...] temos um grupo com os usuários que funciona como um colegiado gestor [...] e a gente está caminhando e a gente sabe que tudo é uma construção, que uma hora o nosso trabalho aparece. (Médica - Equipe A).

Para Dejours (2008)DEJOURS, C. Trabalho, Tecnologia e Organização: críticas aos fundamentos da avaliação. São Paulo: Blucher, 2008., antes de se ter o reconhecimento, é necessário que haja conhecimento do trabalho avaliado. Dentro dessa ótica, o referido autor enfatiza que o reconhecimento diz respeito ao fazer, não ao ser; ao trabalho, e não às pessoas.

Durante todo o processo do EST, os trabalhadores de ambas as equipes reafirmavam que a maior gratificação do e no trabalho, está no reconhecimento do usuário. Todo o empenho no trabalho visa garantir o cuidado à saúde da população usuária do serviço.

A gratificação que a gente tem é tu vir para casa e sabe qual é o presente que tu ganha? É uma esponja, um quilo de feijão fradinho, uma lata de Nescau, uma manteiga do norte, um pano de prato. Cada um dá aquilo que ele tem e aí você tá com o teu feijão fradinho na bolsa e tu entra numa casa e a pessoa não tem o que comer. Toma o feijão fradinho! Aí o paciente te pergunta assim: e aí você já fez o feijão? E você diz: fiz! Estava uma delícia. (ACS 1 - Equipe B).

A gente sabe que a gente faz a diferença quando a gente sai de férias e o paciente fala: eu não tinha te visto, eu pensei que você tinha me abandonado. E eu sei que é assim na área de todo mundo. No meu aniversário do ano passado, eu não sabia, e elas comentaram com a paciente, e ela me trouxe um bolo! São coisinhas assim que fazem a diferença no trabalho. (ACS3 - Equipe B).

Dessa forma e sob tal complexidade, pode-se afirmar que é graças ao trabalho e seu reconhecimento, que o sujeito - trabalhador - pode obter benefícios pelo seu esforço para a construção da sua identidade pessoal em que

trabalhar deixa de significar apenas produzir, mas também transformar-se. A motivação fundamental da mobilização no trabalho é a expectativa do sujeito em relação à própria realização. (DEJOURS, 2008DEJOURS, C. Trabalho, Tecnologia e Organização: críticas aos fundamentos da avaliação. São Paulo: Blucher, 2008., P. 84).

E tem portas e mais portas nesse trabalho, mas podem ter certeza que a gente vira essa chave. (ACS 1 - Equipe B).

Considerações finais

Neste estudo, evidenciou-se que a avaliação do trabalho deve ser fundamentada no conhecimento específico do real, da atividade concreta, que é facilmente acessível por indicadores.

Os trabalhadores das equipes citam como componentes importantes de seu trabalho: atuarem em equipe; terem a responsabilidade com indivíduo e família baseada no vínculo e no cuidado; conhecimento detalhado do território de abrangência da equipe e forte adesão da população ao serviço; resolutividade na assistência e prestação de cuidado integral, ampliação das ações de promoção da saúde no território; fortalecimento da cidadania; aumento do acesso à informação; garantia de acesso à saúde para uma população desassistida por anos; atuação efetiva da equipe através do diagnóstico precoce das doenças seguido de tratamento adequado, acompanhamento e monitoramento do usuário.

Explicita-se que o ato de cuidar é capaz de proporcionar a diminuição do impacto do adoecimento, e sua falta pode gerar o isolamento social do usuário, uma vez que ele sente o descaso, o abandono e o não acolhimento de suas demandas e necessidades especiais em saúde que o fez procurar o serviço.

A cobrança de maior produtividade por parte da gerência da unidade torna-se grande constrangimento para os trabalhadores. Esse fato se deve ao modelo de gestão estabelecido na APS que tem como principal compromisso a assistência à saúde pautada na produção de procedimentos, para posteriormente traçar um comprometimento com as necessidades dos usuários. Os trabalhadores afirmaram que essa dedicação integral ao trabalho repercute em prejuízos a sua saúde e que trabalham no limite do seu corpo e mente.

Considera-se que a capacidade de agir desses trabalhadores está relacionada dialeticamente com o contexto da rede de serviços, com o modo de fazer a gestão, com as condições gerais de trabalho nas unidades de saúde e com a sua capacidade de mobilização subjetiva a cada situação de trabalho.

Para que a avaliação do trabalho não se reduza a uma perspectiva administrativa de averiguação de cumprimento de metas e pagamento por desempenho, faz-se necessária a valorização dos trabalhadores e, portanto, a construção de indicadores que alcancem as informações sobre as transformações na esfera da produção dos sujeitos, considerando: autonomia, crescimento, criatividade, mobilização, protagonismo e satisfação.

Em suma, a aposta na avaliação do trabalho de forma participativa aponta para possibilidades de um novo olhar para o agir dos trabalhadores da ESF.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • BARROS-DUARTE, C.; CUNHA, L.; LACOMBLEZ, M. INSAT: uma proposta metodológica para análise dos efeitos das condições de trabalho sobre a saúde. Laboreal, Porto, v. 3, n. 2, p. 54-62, dez. 2007. Disponível em: <http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=37t45nSU547112311:499682571>. Acesso em: 2 jun. 2016.
    » http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=37t45nSU547112311:499682571
  • BRITO, J. A Ergologia como perspectiva de análise: a saúde do trabalhador e o trabalho em saúde. In: MINAYO, C. et al. (Org.). Saúde do trabalhador na Sociedade Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 479-494.
  • BRITO, J.; GOMES, L.; OLIVEIRA, S. INSATS: uma contribuição para a Saúde do Trabalhador. In: SEMINARIO INTERNACIONAL SAÚDE NO TRABALHO, 2013, Porto. Anais... Porto: Universidade Porto, 2013.
  • CAMPOS, C. E. A; COHN, A.; BRANDÃO, A. L. Trajetória histórica da organização sanitária da Cidade do Rio de Janeiro: 1916-2015. Cem anos de inovações e conquistas. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 21, n. 5, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232016000501351&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 3 jun. 2016.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-81232016000501351&script=sci_abstract&tlng=pt
  • CARNEIRO, C. C. G.; MARTINS, M. I. C. Novos Modelos de Gestão do Trabalho no Setor Público de Saúde e o Trabalho do Agente Comunitário de Saúde. Trabalho, Educação e Saúde. Rio de Janeiro, v. 13, n. 1, dez. 2014. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1981-77462015000100045&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 2 jun. 2016.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S1981-77462015000100045&lng=pt&nrm=iso
  • DEJOURS, C. Trabalho, Tecnologia e Organização: críticas aos fundamentos da avaliação. São Paulo: Blucher, 2008.
  • DURRIVE, L. Pistas para o ergoformador animar os encontros sobre o trabalho. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (Org.). Trabalho e Ergologia: conversas sobre a atividade humana. 2. ed. Niterói: Eduff, 2010.
  • FIGUEIRÓ, C. A.; FRIAS, P. G.; NAVARRO, L. M. Avaliação em Saúde: Conceitos Básicos para a Prática nas Instituições. In: SAMICO, I. et al. (Org.). Avaliação em Saúde: bases conceituais e operacionais. Rio de Janeiro: MedBook, 2010. p. 1-13.
  • GOMES, R. Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. In: MINAYO, M. C. S. et al. (Org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
  • GONÇALVES, C. R. et al. Recursos humanos: fator crítico para às redes de atenção à saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 38, n. 100, p. 26-34, jan./mar. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v38n100/0103-1104-sdeb-38-100-0026.pdf>. Acesso em: 2 jun. 2016
    » http://www.scielo.br/pdf/sdeb/v38n100/0103-1104-sdeb-38-100-0026.pdf
  • GUERIN, F. et al. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. São Paulo: Blucher; Fundação Vanzolini, 2001.
  • RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil. Superintendência de Atenção Primária. Guia de Referência Rápida: Carteira de Serviços: Relação de serviços prestados na Atenção Primária à Saúde. Rio de Janeiro: SMSDC, 2011. Disponível em: <http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/137240/DLFE-228987.pdf/1.0>. Acesso em: 2 jun. 2016.
    » http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/137240/DLFE-228987.pdf/1.0
  • SANTOS FILHO, S. B. Avaliação e Humanização em Saúde: aproximações metodológicas. Ijuí: Unijuí, 2010.
  • SANTOS FILHO, S. B. Indicadores de Valorização do Trabalho e Trabalhadores da Saúde: construindo o conceito de valorização a partir de uma perspectiva analítica. In: BARROS, M. E. B.; SANTOS FILHO, S. B. Trabalhador da saúde muito prazer: protagonismo dos trabalhadores na gestão do trabalho em saúde. Ijuí: Unijuí, 2007.
  • SCHERER, M. D. A.; PIRES, D.; SORATTO, J. O trabalho na estratégia saúde da família. In: SOUSA, M. F.; FRANCO, A. S.; MENDONÇA, A. V. M. Saúde da Família nos municípios brasileiros: os reflexos dos 20 anos no espelho do futuro. Campinas: Saberes, 2014. p. 521- 572.
  • SCHWARTZ, Y. Conceituando o trabalho, o visível e o invisível. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, supl. 1, p. 19-45, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-77462011000400002&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 2 jun. 2016.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1981-77462011000400002&script=sci_abstract&tlng=pt
  • SILVA, A. C. B.; ATHAYDE, M. O Programa de Saúde da Família sob o ponto de vista da atividade: uma análise das relações entre os processos de trabalho, saúde e subjetivação. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, v. 33, n. 117, p. 23-35, 2008. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0303-76572008000100004&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 2 jun. 2016.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0303-76572008000100004&script=sci_abstract&tlng=pt
  • SOUZA, W. F. Gestão em Saúde, uma perspectiva ergológica: com quantos gestos se faz uma gestão. 306 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
  • TAMBASCO, L. P. et al. Satisfação no trabalho da equipe multiprofissional que atua na Atenção Primária à Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, 2016. No prelo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    Ago 2016
  • Aceito
    Dez 2016
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde RJ - Brazil
E-mail: revista@saudeemdebate.org.br