Trajetórias assistenciais de mulheres entre diagnóstico e início de tratamento do câncer de colo uterino

Priscila Guedes de Carvalho Gisele O´Dwer Nádia Cristina Pinheiro Rodrigues Sobre os autores

RESUMO

O estudo se propôs a analisar as trajetórias na assistência das mulheres residentes no Município do Rio de Janeiro diagnosticadas com câncer de colo uterino que foram encaminhadas para tratamento em unidade de referência na atenção oncológica. Na primeira etapa do estudo, avaliou-se o prazo entre a confirmação do diagnóstico e o início do tratamento das mulheres matriculadas no ano de 2014, tomando como referência o prazo de até 60 dias fixado pela Lei Federal nº 12.372/2012 para início de tratamento do câncer no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Na segunda etapa, analisaram-se as narrativas de cinco mulheres sobre os caminhos percorridos na assistência desde a descoberta do diagnóstico até a primeira intervenção terapêutica, a partir de aspectos do cuidado integral em saúde. Observou-se que 88% dos tratamentos se iniciaram após o prazo de 60 dias e que 65,5% das mulheres foram diagnosticadas com doença avançada. A média para início de tratamento foi de 115,4 dias. Os principais problemas apreendidos na análise das trajetórias foram os relacionados à disponibilidade dos serviços e à integração das ações nos diversos níveis de atenção, bem como a falta de informação sobre a doença e o objetivo da realização do exame preventivo.

PALAVRAS-CHAVE
Neoplasias do colo do útero; Detecção precoce de câncer; Serviços de saúde da mulher; Acesso aos serviços de saúde

Introdução

O câncer de colo uterino é uma das mais graves ameaças à vida das mulheres. Estima-se que mais de um milhão de mulheres sofram da doença no mundo, e a maior parte delas encontra-se em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Ao longo das últimas três décadas, as taxas da doença têm caído na maioria dos países desenvolvidos, em grande parte como resultado dos programas de rastreamento e tratamento das lesões precursoras. Em contraste, as taxas da maioria dos países em desenvolvimento têm permanecido inalteradas ou mesmo aumentaram11 World Health Organization. Comprehensive cervical cancer control: guide to essential practice. 2. ed. Geneva: WHO; 2014 [acesso em 2015 dez 28]. Disponível em: http://www.who.int/reproductivehealth/publications/cancers/cervical-cancer-guide/en/.
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. A doença afeta principalmente as mulheres de nível socioeconômico mais baixo e com dificuldades de acesso aos serviços de saúde. É um reflexo de iniquidade em saúde, uma vez que configura representação de morbimortalidade evitável e injusta22 Rico AM, Iriart JAB. Tem mulher, tem preventivo: sentidos das práticas preventivas do câncer do colo do útero entre mulheres de Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saude Pública. 2013; 29(9):1763-1773,33 Soneji S, Fukui N. Socioeconomic determinants of cervical cancer screening in Latin America. Rev Panam Salud Publica. 2013; 33(3):174-182.

A infecção persistente pelo Papilomavírus Humano (HPV) é a principal causa do desenvolvimento de neoplasia intraepitelial cervical (lesões precursoras) e do câncer do colo uterino. Estima-se que haja 200 genótipos do HPV, dezoito dos quais intimamente relacionados com o desenvolvimento do câncer, com destaque para os genótipos 16 e 18, responsáveis por 90% dos casos44 McGraw SL, Ferrante JM. Update on prevention and screening of cervical câncer. World J Clin Oncol. 2014; 5(4):744-742. Sendo assim, trata-se de doença sensível às ações de Atenção Básica (AB), visto que as tecnologias para o controle – diagnóstico e tratamento de lesões precursoras – já estão estabelecidas e permitem a cura em aproximadamente 100% dos casos detectados nas fases iniciais44 McGraw SL, Ferrante JM. Update on prevention and screening of cervical câncer. World J Clin Oncol. 2014; 5(4):744-742,55 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA, 2017..

No Brasil, o câncer de colo uterino é o terceiro tumor mais frequente na população feminina, após apenas do câncer de mama e do colorretal. De acordo com o Instituto Nacional do Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca), a estimativa de novos casos no Brasil é de 16.370 para cada ano do biênio 2018-2019, com risco estimado de 15,43 casos a cada 100 mil mulheres. Excluindo-se os tumores de pele não melanoma, o câncer de colo uterino é o primeiro mais incidente na região Norte. Nas regiões Centro-Oeste e Nordeste, ocupa a segunda posição e nas regiões Sudeste e Sul, a quarta posição55 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA, 2017..

Os elevados índices de incidência e mortalidade no Brasil justificam a implantação de ações nacionais voltadas para a prevenção e o controle. Dessa forma, é de fundamental importância a elaboração, aprimoramento e implantação de políticas públicas na AB, com ênfase na atenção integral à saúde da mulher66 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Controle dos cânceres do colo do útero e da mama. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013.. A Estratégia Saúde da Família (ESF) assume papel fundamental nesse contexto, uma vez que a prática de articulação entre prevenção e promoção da saúde gera um cenário favorável ao rastreamento. A atuação dos agentes comunitários de saúde torna-se essencial, contribuindo para a identificação da população-alvo e a captação das mulheres que deixam de realizar o exame preventivo77 Gasperin SI, Boing AF, Kupek E. Cobertura e fatores associados à realização do exame de detecção do câncer de colo de útero em área urbana no Sul do Brasil: estudo de base populacional. Cad. Saúde Pública. 2011; 27(7):1312-1322,88 Vale DBAP, Morais SS, Pimenta AL, et al. Avaliação do rastreamento do câncer do colo do útero na Estratégia Saúde da Família no Município de Amparo, São Paulo, Brasil. Cad. Saúde Pública. 2010; 26(2):383-390.

A estratégia definida pelo Ministério da Saúde (MS) para rastreamento do câncer de colo uterino e suas lesões precursoras é o exame citopatológico, ou teste de Papanicolaou, direcionado às mulheres a partir de 25 anos que já iniciaram atividade sexual, prosseguindo até os 64 anos e interrompidos após essa idade, se houver pelo menos dois exames negativos consecutivos nos últimos cinco anos55 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA, 2017.,99 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero: Atualização 2016. Rio de Janeiro: INCA; 2016 [acesso em 2016 jan 22]. Disponível em: http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/agencianoticias/site/home/noticias/2016/diretrizes_para_rastreamento_cancer_colo_utero_consulta_publica.
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. No entanto, observa-se que no Brasil a maior parte das mulheres que realizam o exame está abaixo de 35 anos, apesar de o risco para a doença ser maior a partir dessa faixa etária. Esse padrão de rastreamento é considerado oportunístico, ou seja, o exame é realizado apenas quando a mulher procura o serviço de saúde por outras demandas.

A consequência dessa lógica é a realização de exames em mulheres fora da faixa etária alvo, equivalendo a 20% a 25% dos exames realizados99 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero: Atualização 2016. Rio de Janeiro: INCA; 2016 [acesso em 2016 jan 22]. Disponível em: http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/agencianoticias/site/home/noticias/2016/diretrizes_para_rastreamento_cancer_colo_utero_consulta_publica.
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. Além disso, aproximadamente metade deles é realizada com intervalo de um ano ou menos, quando a recomendação do MS é o intervalo de três anos para os casos de dois exames anuais sem alterações. Esse perfil de rastreamento revela um contingente de mulheres que realizam controle além do recomendado pelas diretrizes nacionais e outro, que não realiza controle algum99 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero: Atualização 2016. Rio de Janeiro: INCA; 2016 [acesso em 2016 jan 22]. Disponível em: http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/agencianoticias/site/home/noticias/2016/diretrizes_para_rastreamento_cancer_colo_utero_consulta_publica.
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O prognóstico no câncer de colo uterino depende da extensão da doença no momento do diagnóstico, estando sua mortalidade fortemente associada ao diagnóstico em fases avançadas. Embora o acesso ao exame preventivo tenha aumentado no Brasil, não foi suficiente para diminuir a tendência de mortalidade. O diagnóstico tardio revela, sobretudo, carência na quantidade e qualidade de serviços oncológicos. Essa realidade é atribuída a dificuldades no acesso aos serviços e programas de saúde; pouca capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS) em absorver a demanda; e dificuldades dos gestores municipais e estaduais quanto à definição de fluxos na assistência que possibilitem encaminhamento adequado das mulheres com exame alterado1010 Brito-Silva K, Bezerra AFB, Chaves FDL, et al. Integralidade no cuidado ao câncer do colo do útero: avaliação do acesso. Rev Saúde Pública. 2014; 48(2):240-248,1111 Panobianco MS, Pimentel AV, Almeida AM, et al. Mulheres com diagnóstico avançado do câncer do colo do útero: enfrentando a doença e o tratamento. Rev Bras Cancerologia. 2012; 58(3):517-523.

Outro aspecto a ser considerado é o tempo entre o diagnóstico e o início do tratamento efetivo. A disponibilidade e a qualidade dos serviços de saúde influenciam diretamente a sobrevida dos pacientes, que é aumentada ou diminuída conforme o acesso aos serviços de saúde, a existência de programas de rastreamento, a eficácia das intervenções e a disponibilidade de meios diagnósticos e de tratamento1212 Santos RS, Melo ECP. Mortalidade e assistência oncológica no Rio de Janeiro: câncer de mama e colo uterino. Esc Anna Nery. 2011; 15(2):410-416. Em 2011, o Tribunal de Contas da União (TCU) divulgou relatório técnico baseado nos dados do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) e nos Registros Hospitalares de Câncer (RHC), indicando que os tratamentos oncológicos providos pelo SUS não ocorriam no tempo adequado1313 Brasil. Tribunal de Contas da União. Secretaria de Fiscalização e Avaliação de Programas do Governo. Relatório de auditoria operacional na Política Nacional de Atenção Oncológica. Brasília, DF: TCU; 2011.. Visando a estabelecer prazos que garantam o tratamento dos pacientes diagnosticados com câncer em momento oportuno, foi publicada a Lei Federal nº 12.732/2012 fixando prazo de até 60 dias contados a partir da data da confirmação do diagnóstico em laudo patológico ou em prazo menor para que o paciente com neoplasia maligna inicie o tratamento no SUS1414 Brasil. Lei nº 12732, de 22 de novembro de 2012. Dispõe sobre o primeiro tratamento de paciente com neoplasia maligna comprovada e estabelece prazo para seu início. Diário Oficial da União. 23 nov 2012..

Diante do exposto, este estudo teve como objetivo verificar se os tratamentos para o câncer de colo uterino em uma unidade de referência em atenção oncológica do SUS no município do Rio de Janeiro ocorreram em momento oportuno. O estudo se propôs ainda a caracterizar as trajetórias na assistência das mulheres que estavam em tratamento da doença, identificar os possíveis motivos interferentes na detecção precoce e os fatores que determinaram o tempo para o início do tratamento.

Metodologia

Este estudo tem caráter qualitativo e quantitativo, sendo desenvolvido em duas fases. A primeira teve como propósito avaliar, por meio da revisão de prontuários, se a primeira intervenção terapêutica ocorreu em tempo oportuno a partir da data do diagnóstico. O parâmetro adotado foi o prazo de 60 dias fixado pela Lei nº 12.732/2012.

A partir dos dados gerenciais da instituição de referência em oncologia, realizou-se o levantamento de todas as mulheres matriculadas no Serviço de Ginecologia no ano de 2014 portadoras de patologia associada ao Código Internacional de Doenças (CID 10) C53, ou seja, neoplasia maligna do colo do útero, bem como a identificação dos municípios de residência das usuárias com tal perfil. Para o cálculo do tempo entre diagnóstico e início de tratamento, selecionaram-se todos os prontuários das mulheres que informaram residência no Município do Rio de Janeiro. Extraíram-se dos prontuários informações referentes à idade, data da matrícula na instituição, data de diagnóstico, data da revisão do laudo pela Anatomia Patológica da unidade de referência, estadiamento clínico da doença, data de início do tratamento efetivo e tipo de tratamento prescrito – cirúrgico, radioterapia e quimioterapia conjugados, radioterapia exclusiva ou quimioterapia paliativa.

Para a descrição dos dados, calcularam-se as frequências absolutas e médias. Tabelas e mapas ilustraram as análises e utilizaram-se os softwares ArcGIS (10.4) e Excel (2013) para construção dos mapas e banco de dados respectivamente.

A segunda fase caracterizou e analisou o percurso das mulheres diagnosticadas com câncer de colo uterino na assistência. Realizaram-se entrevistas com a aplicação de questionário semiestruturado, que abordou a regularidade no uso de serviços de saúde e tipo de serviço utilizado; experiência com exame preventivo e consulta ginecológica; experiência na descoberta do câncer; tempo de espera para confirmação diagnóstica; qualidade do atendimento nos diversos serviços; acesso aos diversos serviços; participação e autonomia na decisão sobre tratamento; e expectativa de melhoria nos serviços.

O uso das metodologias qualitativas tem o propósito de analisar os significados atribuídos pelos sujeitos aos fatos, relações, informações, vivências e práticas relacionadas ao programa ou serviço que se avalia e que nele interagem. Esse propósito é evidentemente compreensivo, ou seja, de reconstrução dos sentidos atribuídos pelos sujeitos com o apoio de suas experiências e representações, que são delimitadas por um conjunto de interações, numa dada situação social e cultural, e que configuram um contexto único e não generalizável. Além disso, tais experiências estão associadas a um projeto político de garantir voz e empoderar os diversos segmentos que participam da avaliação1515 Deslandes SF. Revisitando as Metodologias Qualitativas nas Pesquisas de Avaliação : vertentes, contribuições e desafios. In: Batista TWF, Azevedo CS, Machado CV. Políticas, planejamento e gestão em saúde: abordagens e métodos de pesquisa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. p. 193-217.. A construção dos itinerários terapêuticos como prática avaliativa propõe entrevistas em profundidade, uma vez que se constitui de um conjunto de ações que configuram as opções dos usuários, suas experiências, frustrações e sucesso na resolução das suas demandas1616 Nascimento-Silva VM, Silva Junior AG, Pinheiro R, et al. Trajetória assistencial em Piraí: uma prática avaliativa amistosa à integralidade. In: Pinheiro R, Silva Junior AG, Mattos RA, organizadores. Atenção Básica e Integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC; UERJ; ABRASCO; 2011. p. 225-232..

Tendo em vista a complexidade dessa abordagem, que é transversal às áreas da antropologia, da psicologia, da sociologia e da saúde, optou-se por redimensionar a metodologia e realizar apenas a descrição das trajetórias das mulheres com o uso da teoria dos itinerários terapêuticos como apoio. Dessa forma, apesar de seus limites, a descrição das trajetórias na assistência torna-se oportuna, uma vez que as informações oferecidas são úteis e contribuem para o debate acerca desses percursos quando os usuários procuram e são submetidos aos cuidados dentro dos serviços1616 Nascimento-Silva VM, Silva Junior AG, Pinheiro R, et al. Trajetória assistencial em Piraí: uma prática avaliativa amistosa à integralidade. In: Pinheiro R, Silva Junior AG, Mattos RA, organizadores. Atenção Básica e Integralidade: contribuições para estudos de práticas avaliativas em saúde. Rio de Janeiro: CEPESC; UERJ; ABRASCO; 2011. p. 225-232..

De acordo com as condutas definidas pelo MS, a linha de cuidado do câncer de colo de útero é composta por quatro diretrizes: prevenção e detecção precoce; Programa Nacional de Qualidade da Citologia; acesso à confirmação diagnóstica; e tratamento adequado e em tempo oportuno. A referida linha de cuidado tem o objetivo de assegurar à mulher o acesso humanizado e integral às ações e aos serviços qualificados para promover a prevenção, o acesso ao rastreamento das lesões precursoras, o diagnóstico precoce e o tratamento adequado e em tempo oportuno66 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Controle dos cânceres do colo do útero e da mama. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013.. A condução da análise das trajetórias assistenciais das mulheres entrevistadas foi realizada a partir de duas dessas diretrizes da linha de cuidado: prevenção e detecção precoce e tratamento adequado e em tempo oportuno.

Os critérios de elegibilidade para a entrevista incluíram mulheres com idade a partir de 18 anos, diagnóstico de neoplasia maligna de colo de útero a partir de 1 de janeiro de 2014, residência no Município do Rio de Janeiro e estar em boas condições clínicas.

Este estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa das instituições envolvidas e aprovado sob o CAAE nº40510215.0.0000.5240. As mulheres que cumpriam os critérios de elegibilidade foram convidadas para a entrevista e as que aceitaram, informadas quanto aos objetivos e finalidades do estudo, bem como a seus riscos e benefícios.

Resultados e discussão

Análise do tempo entre data de confirmação do diagnóstico e início de tratamento

Em 2014, foram matriculadas 1587 usuárias no serviço de Ginecologia da unidade de referência em atenção oncológica. Desse total, 839 mulheres tiveram diagnóstico enquadrado no código CID 10 (Código Internacional de Doenças-10) C53 – Neoplasia maligna do colo do útero. Após identificação dos locais de residência informados pelas 839 mulheres, constatou-se que a instituição de referência deste estudo atendeu, em 2014, 838 usuárias de 57 municípios do Estado do Rio de Janeiro. A capital encaminhou 360 usuárias, equivalentes a 43% do total de mulheres encaminhadas à unidade de referência com o CID C53.

O fato de a instituição de referência localizada na capital ter atendido usuárias de 57 dos 92 municípios do Estado do Rio de Janeiro (ou 62%) também sugere uma sobrecarga nas unidades do SUS ou deficit no número de unidades especializadas que realizam o tratamento desse tipo de câncer no interior do Estado, dentre outras causas. Tendo em vista que o tempo é primordial para o início de tratamento, o encaminhamento das usuárias por meio do sistema de regulação para a capital, por ser a região com maior número de unidades habilitadas para o tratamento, é necessário para garantir que esse início ocorra no menor tempo possível.

As 360 mulheres que informaram como local de residência o Município do Rio de Janeiro habitam em 91 bairros diferentes (figura 1 – B). Dessa forma, foi possível determinar o número de usuárias encaminhadas por Área Programática (AP) (figura 1 – A). A Área Programática 3.3, que compreende os bairros da região de Madureira e adjacências1717 Rio de Janeiro. Secretaria Municipal de Saúde. Plano Municipal de Saúde do Rio de Janeiro - PMS - 2014-2017. Rio de Janeiro: SMS; 2013 [acesso em 2015 set 1]. Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/3700816/4128745/PMS_20142017.pdf.
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, encaminhou o maior número de mulheres em 2014. Porém, os cinco bairros que concentraram o maior número de mulheres encaminhadas encontram-se na Zona Oeste do Rio de Janeiro e são Campo Grande com 21 usuárias, Bangu, Realengo, Santa Cruz com 17 usuárias em cada bairro e Guaratiba com 14 usuárias.

Figura 1
Distribuição do número de casos de mulheres encaminhadas para tratamento do câncer de colo do útero na unidade de referência em 2014 segundo o local de residência. (A) Número casos segundo área programática de residência; (B) Número casos segundo bairro de residência

Para o cálculo do tempo entre a confirmação do diagnóstico e o início do tratamento, verificaram-se os registros eletrônicos da instituição de referência e os prontuários físicos das 360 usuárias que informaram residência no Município do Rio de Janeiro. Excluíram-se da análise 139 prontuários por não conterem as informações necessárias ao cálculo de tempo entre a confirmação do diagnóstico e início do tratamento. Sendo assim, selecionaram-se inicialmente 221 prontuários, equivalentes a 61,4% dos prontuários identificados inicialmente.

Os 221 prontuários foram divididos em dois grupos, segundo o resultado do diagnóstico. O primeiro inclui as 47 mulheres diagnosticadas com Neoplasia Intraepitelial Cervical (NIC), como são denominadas as lesões precursoras do câncer44 McGraw SL, Ferrante JM. Update on prevention and screening of cervical câncer. World J Clin Oncol. 2014; 5(4):744-742

5 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA, 2017.
-66 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Controle dos cânceres do colo do útero e da mama. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013.; e o segundo, as 174 mulheres com câncer do colo uterino invasor. Para a análise do tempo entre confirmação do diagnóstico e início de tratamento não se consideraram os prontuários das mulheres diagnosticadas com NIC, uma vez que as lesões pré-invasivas evoluem mais lentamente, além de as condutas para tratamento serem mais simples e demandarem menor complexidade da assistência, diferentemente do que acontece quando já existe um processo invasor em curso44 McGraw SL, Ferrante JM. Update on prevention and screening of cervical câncer. World J Clin Oncol. 2014; 5(4):744-742

5 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Coordenação de Prevenção e Vigilância. Estimativa 2018: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA, 2017.
-66 Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Controle dos cânceres do colo do útero e da mama. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013.. Dessa forma, restaram para análise os 174 prontuários de mulheres diagnosticadas com câncer invasor, conforme figura 2.

Figura 2
Seleção dos prontuários para realização do cálculo de tempo entre confirmação de diagnóstico e início de tratamento

Das 174 mulheres diagnosticadas com câncer invasor, 114 (65,5%) apresentaram doença localmente avançada no momento da avaliação inicial para a definição da conduta de tratamento. O dado é preocupante, dada a redução da possibilidade de cura nesses casos. O diagnóstico tardio resulta em tratamentos mais agressivos e menos efetivos, aumenta o comprometimento físico e emocional da mulher e de sua rede de apoio, eleva os índices de mortalidade pela doença, além de aumentar os custos com internações e uso de medicamentos1111 Panobianco MS, Pimentel AV, Almeida AM, et al. Mulheres com diagnóstico avançado do câncer do colo do útero: enfrentando a doença e o tratamento. Rev Bras Cancerologia. 2012; 58(3):517-523. Tal realidade evidencia a pouca capacidade do sistema de saúde de promover o rastreamento e o controle da doença, uma vez que o tratamento das lesões precursoras impede que progridam para câncer invasor.

A média de idade das mulheres portadoras de câncer invasor foi 49,9 anos, estando a mais nova com 23 e mais velha com 93 anos. A média de idade das mulheres diagnosticadas com Neoplasia Intraepitelial Cervical foi 38, 9 anos, estando a mais nova com 22 anos e a mais velha com 76.

Para o cálculo do tempo entre a data do diagnóstico e início do tratamento, considerou-se a data da confirmação do diagnóstico e a data da primeira intervenção terapêutica. A tabela 1 apresenta a média de dias para início de tratamento de acordo com cada tipo de intervenção.

Tabela 1
Tempo médio em número de dias para início de tratamento a partir da data de confirmação do diagnóstico das mulheres residentes no Município do Rio de Janeiro em 2014

A média de tempo para início de tratamento foi de 115,4 dias, aproximadamente 56 dias após o prazo de 60 dias fixado por lei. Esse achado revela que o sistema de saúde não atendeu à demanda da maioria das usuárias portadoras da doença no que diz respeito ao início de tratamento em tempo oportuno. Apesar de a Lei nº 12.732/2012 ter entrado em vigor em maio de 2013, verificou-se que apenas 21 tratamentos (12%) do total de 174 casos foram iniciados em até 60 dias da data da confirmação do diagnóstico.

O atraso foi observado em todos os tipos de intervenção para o tratamento do câncer do colo do útero. O menor tempo de espera foi verificado com a quimioterapia paliativa (71,3 dias). A espera pelo tratamento cirúrgico e pelo tratamento conjugado – principais intervenções terapêuticas recomendadas1818 Wiebe E, Denny L, Thomas G. Figo Cancer Report 2012: Cancer of cervix uteri. Int J Gynecol Obstet. 2012; 119(supl2):S100-S109. – ultrapassou 100 dias. Em relação ao atraso no tratamento das pacientes que necessitaram de radioterapia, o ano de 2014 foi marcado por inúmeros problemas relacionados à falta de disponibilidade do serviço tanto no estado como no Município do Rio de Janeiro.

Decisão judicial determinou que, a partir de 10 de julho de 2014, todos os pacientes em tratamento com radioterapia nos hospitais localizados no Município do Rio de Janeiro deveriam ser cadastrados em fila única no Sistema de Regulação (Sisreg)1919 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Decisão judicial estabelece fila única para radioterapia no município do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: INCA ; 2014 [acesso em 2015 set 10]. Disponível em: http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/agencianoticias/site/home/noticias/2014/decisao_judicial_estabelece_fila_unica_para_radioterapia_no_municipio_do_rio.
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. Ficou sob responsabilidade exclusiva do gestor municipal tomar as providências quanto ao agendamento das avaliações iniciais junto aos prestadores de radioterapia. A iniciativa de organizar a fila de espera para reduzir o tempo para início de tratamento não foi suficiente para atender à demanda da maioria das mulheres encaminhadas para a unidade de referência.

Trajetórias das mulheres diagnosticadas com câncer de colo de útero na assistência

As entrevistas foram realizadas de setembro a dezembro de 2015 no setor de quimioterapia da unidade de referência, em seu consultório multidisciplinar. No período disponível para a realização das entrevistas, seis mulheres aceitaram participar da pesquisa e duas se recusaram. Uma das mulheres que aceitou a participação, apesar de ter declarado residência no Município do Rio de Janeiro, informou que toda a trajetória na assistência até o encaminhamento para a unidade tinha sido realizada fora desse Município, para o qual mudou-se menos de três meses antes da entrevista, vivendo em casa de familiares, para estar mais próxima do local de tratamento. Por esse motivo, a entrevista não foi considerada para a análise. Assim, analisaram-se as trajetórias assistenciais de cinco mulheres, identificadas nesta pesquisa como M1, M2, M3, M4 e M5. Seguem os quadros 1 e 2 com o perfil das mulheres entrevistadas e a caracterização de cada percurso na assistência.

Quadro 1
Perfil das mulheres entrevistadas na unidade de referência em oncologia em 2014
Quadro 2
Percurso na assistência das mulheres atendidas na unidade de referência em oncologia em 2014

Concepções das mulheres entrevistadas sobre a prevenção e detecção precoce

A dificuldade no acesso ao exame preventivo no SUS foi o primeiro aspecto relacionado à organização dos serviços de saúde da AB e tem impacto direto nas ações de prevenção e detecção precoce. Os relatos de M1 e M2 representam exemplo de barreira de acesso ao exame preventivo no SUS:

[...] eles pediam para fazer o preventivo, tinha que ir para a palestra e não dava, não tinha como ir. Aí eu falava: ou eu vou trabalhar, ou eu vou para a palestra. (M1).

[...] o atendimento está a cada dia mais precário. Moro numa área considerada de risco, por qualquer motivo eles fecham o posto. E aí, como é muito difícil, você vai deixando pra lá. (M2).

Outras barreiras relatadas pelas mulheres para a realização do exame preventivo foram a inserção no mercado de trabalho e a responsabilidade de criar os filhos e sustentar a família. Longas jornadas diárias de trabalho e a sobrecarga do cotidiano podem desestimular a realização do exame com regularidade22 Rico AM, Iriart JAB. Tem mulher, tem preventivo: sentidos das práticas preventivas do câncer do colo do útero entre mulheres de Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saude Pública. 2013; 29(9):1763-1773,2020 Rangel G, Lima LD, Vargas EP. Condicionantes do diagnóstico tardio do câncer cervical na ótica das mulheres atendidas no Inca. Saúde debate. 2015; 39(107):1065-1078

21 Aguilar RP, Soares DA. Barreiras à realização do exame Papanicolau: perspectivas de usuárias e profissionais da Estratégia de Saúde da Família da cidade de Vitória da Conquista-BA. Physis. 2015; 25(2):359-379
-2222 Andrade SSC, Silva FMC, Silva MSS, et al. Compreensão de usuárias de uma unidade de saúde da família sobre o exame Papanicolau. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(8):2301-2310. De acordo com Mattos, quando se procura a organização dos serviços na perspectiva da integralidade, “busca-se ampliar as percepções das necessidades dos grupos, e interrogar-se sobre as melhores formas de dar respostas a tais necessidades”23(62)23 Mattos RA. Os Sentidos da Integralidade: algumas reflexões acerca de valores que merecem ser defendidos. In: Pinheiro R, Mattos RA, organizadores. Os sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Rio de Janeiro: Uerj; IMS; Abrasco, 2001. p. 39-64.. Sendo assim, a organização dos serviços de saúde deve contemplar as mulheres que não podem comparecer dentro do horário normal de funcionamento das Unidades Básicas de Saúde (UBS). Brito-Silva et al.1010 Brito-Silva K, Bezerra AFB, Chaves FDL, et al. Integralidade no cuidado ao câncer do colo do útero: avaliação do acesso. Rev Saúde Pública. 2014; 48(2):240-248 reforçam que a dificuldade de acesso à AB está relacionada à dinâmica de atendimento caracterizada pela baixa flexibilidade no agendamento de consultas e pela burocratização. Essas restrições contribuem para dificultar e desmotivar a procura do serviço pelas mulheres.

A experiência de realização do exame preventivo na saúde suplementar relatada por M2 também demonstrou baixa qualidade no atendimento: “...todas as vezes eu sangrava, por isso eu tinha um trauma, um pânico dessa experiência. Sempre me machucou...”. Além da dor física durante a realização do procedimento, a usuária também relata ter passado por situações de constrangimento, causando desmotivação pelo atendimento ginecológico de forma regular.

Os relatos de M2 corroboram achados de diversos estudos sobre fatores que interferiram negativamente na regularidade da realização do exame preventivo. Experiências de maus tratos ou humilhações sofridas durante a realização do exame associadas à falta de informação sobre o objetivo do preventivo e acesso restrito aos serviços de saúde são fatores que contribuem para a manifestação de sentimentos como vergonha, dor, medo e constrangimento. Os aspectos subjetivos são determinantes na adesão à rotina de prevenção e cuidado, uma vez que experiências ruins e dolorosas afastam e desestimulam a continuidade da rotina de cuidados22 Rico AM, Iriart JAB. Tem mulher, tem preventivo: sentidos das práticas preventivas do câncer do colo do útero entre mulheres de Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saude Pública. 2013; 29(9):1763-1773,2020 Rangel G, Lima LD, Vargas EP. Condicionantes do diagnóstico tardio do câncer cervical na ótica das mulheres atendidas no Inca. Saúde debate. 2015; 39(107):1065-1078

21 Aguilar RP, Soares DA. Barreiras à realização do exame Papanicolau: perspectivas de usuárias e profissionais da Estratégia de Saúde da Família da cidade de Vitória da Conquista-BA. Physis. 2015; 25(2):359-379
-2222 Andrade SSC, Silva FMC, Silva MSS, et al. Compreensão de usuárias de uma unidade de saúde da família sobre o exame Papanicolau. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(8):2301-2310. Nesse sentido, todos os profissionais envolvidos no rastreamento da doença, seja no SUS ou na saúde suplementar, devem estar qualificados para reconhecer e tratar tais questões.

Uma característica comum a todas as mulheres entrevistadas foi a procura pelo atendimento com o ginecologista após o surgimento de sintomas indicativos de alterações ginecológicas. Esse comportamento é comum e expressa concepções de cuidado à saúde pautadas na doença. Alguns dos principais sintomas ginecológicos como dor, corrimento, prurido são abordados como indicação para o exame preventivo, reforçando a atribuição da conduta preventiva a uma queixa, principalmente relacionada às doenças infecciosas2222 Andrade SSC, Silva FMC, Silva MSS, et al. Compreensão de usuárias de uma unidade de saúde da família sobre o exame Papanicolau. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(8):2301-2310. Em contrapartida, sintomas mais graves apresentados pelas mulheres entrevistadas como sangramento vaginal e corrimento de odor fétido podem estar relacionados ao estágio avançado da doença, evidenciando um diagnóstico tardio, com possibilidades mais restritas de cura99 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Diretrizes brasileiras para o rastreamento do câncer do colo do útero: Atualização 2016. Rio de Janeiro: INCA; 2016 [acesso em 2016 jan 22]. Disponível em: http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/agencianoticias/site/home/noticias/2016/diretrizes_para_rastreamento_cancer_colo_utero_consulta_publica.
http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/...
,1111 Panobianco MS, Pimentel AV, Almeida AM, et al. Mulheres com diagnóstico avançado do câncer do colo do útero: enfrentando a doença e o tratamento. Rev Bras Cancerologia. 2012; 58(3):517-523.

A AB, em especial a ESF, deve prover atenção especial às mulheres com histórico de infecção pelo HPV, além de outros fatores de risco associados, como o tabagismo, multiparidade, imunossupressão e início precoce da vida sexual, conforme preconizado pelas diretrizes brasileiras de rastreamento da doença. As campanhas são importantes pelo horário diferenciado e agilidade no atendimento, porém não são suficientes, uma vez que estão direcionadas a responder somente às demandas das mulheres que procuram pelos serviços2121 Aguilar RP, Soares DA. Barreiras à realização do exame Papanicolau: perspectivas de usuárias e profissionais da Estratégia de Saúde da Família da cidade de Vitória da Conquista-BA. Physis. 2015; 25(2):359-379,2222 Andrade SSC, Silva FMC, Silva MSS, et al. Compreensão de usuárias de uma unidade de saúde da família sobre o exame Papanicolau. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(8):2301-2310.

Em relação às práticas preventivas, apesar de duas das cinco mulheres terem sido encaminhadas para tratamento pela ESF (M1 e M5), elas relataram que não receberam orientações dos profissionais de saúde sobre prevenção. A falta de informação das mulheres sobre a finalidade do exame e a periodicidade da rotina de cuidado também foi outro destaque:

Porque eu tinha a ideia de que preventivo era só para ver inflamação e hoje em dia eu sei que não é desse jeito [...] principal objetivo é ver se existem células cancerígenas. (Entrevistada M2).

Eu demorava a buscar exatamente por não ter nenhum corrimento, [...] há onze anos que eu não tinha mais relação sexual. (Entrevistada M3).

Esses relatos confirmam achados de estudos reveladores da falta de conhecimento das mulheres em relação ao objetivo do exame preventivo, que é erroneamente associado à prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e outras doenças ginecológicas22 Rico AM, Iriart JAB. Tem mulher, tem preventivo: sentidos das práticas preventivas do câncer do colo do útero entre mulheres de Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saude Pública. 2013; 29(9):1763-1773,2020 Rangel G, Lima LD, Vargas EP. Condicionantes do diagnóstico tardio do câncer cervical na ótica das mulheres atendidas no Inca. Saúde debate. 2015; 39(107):1065-1078

21 Aguilar RP, Soares DA. Barreiras à realização do exame Papanicolau: perspectivas de usuárias e profissionais da Estratégia de Saúde da Família da cidade de Vitória da Conquista-BA. Physis. 2015; 25(2):359-379
-2222 Andrade SSC, Silva FMC, Silva MSS, et al. Compreensão de usuárias de uma unidade de saúde da família sobre o exame Papanicolau. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(8):2301-2310,2424 Diógenes MAR, Jorge RJB, Sampaio LRL, et al. Barreiras a realização periódica do Papanicolaou: estudo com mulheres de uma cidade do Nordeste do Brasil. Rev APS. 2011; 14(1):12-18. O desconhecimento acerca do exame pode comprometer a ida ao serviço de saúde, uma vez que o Papanicolaou não é associado a uma prática preventiva. Andrade et al.2222 Andrade SSC, Silva FMC, Silva MSS, et al. Compreensão de usuárias de uma unidade de saúde da família sobre o exame Papanicolau. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(8):2301-2310 destacam ainda que essa realidade é observada nas práticas em saúde quando os profissionais priorizam suas orientações no ato da realização do preventivo, dando menor importância à informação sobre sua finalidade. Tal fato associa a realização da ação preventiva ao cumprimento de metas, tornando a atividade meramente obrigatória.

Outra questão envolvida na adesão à prática preventiva está relacionada aos valores morais inseridos nos significados e nas práticas relacionadas à doença. Torna-se mais difícil a visualização do câncer de colo uterino como risco potencial para mulheres com parceiro fixo, idade avançada e ausência de atividade sexual. Dessa forma, as estratégias informações acerca da doença e do objetivo do preventivo são recomendadas a esse grupo de mulheres em especial22 Rico AM, Iriart JAB. Tem mulher, tem preventivo: sentidos das práticas preventivas do câncer do colo do útero entre mulheres de Salvador, Bahia, Brasil. Cad. Saude Pública. 2013; 29(9):1763-1773.

Diante desse cenário, é necessário massificar a informação junto às mulheres da faixa etária alvo sobre a infecção pelo HPV, o rastreamento da doença por meio do preventivo e a periodicidade recomendada para a realização do exame. Campanhas midiáticas são importantes, mas não minimizam a responsabilidade do profissional de saúde de realizar um atendimento humanizado, com abordagem educativa e compreensiva durante as consultas, que atente para o processo saúde-doença do câncer, os sentimentos da mulher em relação ao exame e sua situação socioeconômica e cultural2121 Aguilar RP, Soares DA. Barreiras à realização do exame Papanicolau: perspectivas de usuárias e profissionais da Estratégia de Saúde da Família da cidade de Vitória da Conquista-BA. Physis. 2015; 25(2):359-379.

Concepções das mulheres entrevistadas sobre tratamento adequado e em tempo oportuno

A narrativa das trajetórias das mulheres na assistência demonstrou que a AB atuou ativamente nos encaminhamentos das usuárias M2 e M3. Nesses dois casos, houve participação direta da direção da UBS nos encaminhamentos. Neste estudo, os percursos na assistência de M2 e M3 foram exemplos de coordenação do cuidado efetiva, uma vez que as duas mulheres iniciaram o tratamento no prazo de 60 dias fixado por lei. Percebeu-se, pelo relato das usuárias, o empenho desses profissionais em agilizar o encaminhamento delas junto ao sistema de regulação de vagas. No entanto, cabe ressaltar que, no caso de M3, o encaminhamento foi priorizado em consequência de o diagnóstico ter sido revelado após a realização de procedimento cirúrgico indicado por profissional não especialista, o que agravou sua condição clínica.

As principais questões relacionadas à organização dos serviços de saúde a partir da descoberta do diagnóstico do câncer envolvem o tempo de espera para a realização dos procedimentos de confirmação de diagnóstico pela biópsia e o agendamento para o início tratamento. O relato de M1 expressou as dificuldades encontradas:

Consegui marcar a biópsia uns dois ou três meses depois [...] aí eu tive que ir para Irajá. Porque aí quando você descobre, você já fica na pressa de querer o tratamento. Eu acho que o tratamento tinha que começar mais rápido, porque demora muito. Uma trajetória muito longa, de meses. Eu cheguei aqui em fevereiro (2015) e comecei a tratar semana passada. (entrevista em 28/09/2015).

Os resultados da primeira parte do estudo revelam que a maioria dos tratamentos do câncer de colo de útero das mulheres diagnosticadas com câncer invasor (88%) ocorreu após o prazo de 60 dias. Tal situação foi verificada nas trajetórias de três mulheres dentre as cinco entrevistadas. O início tardio do tratamento compromete a sobrevida das mulheres, uma vez que a progressão da doença limita as possibilidades de tratamento1111 Panobianco MS, Pimentel AV, Almeida AM, et al. Mulheres com diagnóstico avançado do câncer do colo do útero: enfrentando a doença e o tratamento. Rev Bras Cancerologia. 2012; 58(3):517-523.

Outra questão importante destacada pelas usuárias M3 e M5 foi a dificuldade de ter que realizar a radioterapia em unidade diferente daquela em que foi realizada a quimioterapia. No caso dessas duas mulheres, em virtude da fila de espera, foi necessário encaminhá-las para outras unidades da rede SUS e conveniada para agilizar o início do tratamento com sessões de radioterapia. O relato da trajetória de M3 mostrou o desgaste de ter que percorrer grandes distâncias à procura do tratamento. Com frequência, ela saiu da clínica de radioterapia por volta de meia-noite, quando há menor oferta de transporte público, e chegou em sua residência em torno das duas horas da manhã. No entanto, M3 esclareceu que não havia escolha, mas a única opção para iniciar o tratamento mais rapidamente.

As narrativas das trajetórias confirmaram que as desigualdades de acesso expressam um dos principais problemas a serem enfrentados para que o SUS funcione segundo os princípios e as diretrizes estabelecidos2525 Almeida PA, Giovanella L, Mendonça MHM, et al. Desafios à coordenação dos cuidados em saúde: estratégias de integração entre níveis assistenciais em grandes centros urbanos. Cad. Saúde Pública. 2010; 26(2):286-298. Particularmente, as narrativas das mulheres M3 e M5 evidenciaram as principais dificuldades desse percurso. Além do diagnóstico de doença localmente avançada, da prescrição de tratamento que envolve sessões de radioterapia, quimioterapia e braquiterapia, lhes foi imposto também que cada parte do tratamento ocorresse em unidades de saúde diferentes, distantes entre si e de suas residências. A fragmentação do tratamento compromete a integralidade do cuidado e faz com que a trajetória dessas mulheres já fragilizadas pelo diagnóstico da doença seja ainda mais dolorosa.

Conclusões

Os achados deste estudo corroboram uma contradição entre as estratégias de rastreamento e controle do câncer de colo uterino preconizadas pelo MS e a forma de organização dos serviços de saúde responsáveis por essas ações. As percepções das usuárias sobre o acesso ao exame preventivo e as dificuldades relatadas durante a trajetória na assistência reforçam o paradoxo. A análise realizada a partir da verificação do cumprimento do prazo de 60 dias para início do tratamento da doença se mostrou pertinente para afirmar que são necessárias melhorias na articulação dos serviços em seus diferentes níveis de complexidade para garantir que todas as mulheres diagnosticadas tenham acesso às formas de tratamento que necessitam em tempo oportuno.

A caracterização do percurso das mulheres na assistência suscitou reflexões acerca das dificuldades observadas na linha de cuidado do câncer de colo uterino no Município do Rio de Janeiro. Cumpriu a proposta de dar voz às mulheres afetadas pela doença, possibilitando a identificação das principais questões que influenciaram os caminhos percorridos pelas mulheres. O diagnóstico tardio das mulheres que participaram do estudo revelou alguns fatores que impediram a detecção precoce da doença. Esses fatores se relacionam, principalmente, com as dificuldades de acesso ao exame preventivo no SUS em virtude da burocratização dos serviços e da pouca flexibilidade na agenda de atendimento das UBS para as mulheres que têm rotinas de longas jornadas de trabalho. Há a percepção por parte das usuárias que os serviços no SUS possuem baixa resolutividade. Outros achados estão relacionados à falta de informação sobre a doença e a finalidade do exame, além dos fatores subjetivos como medo e constrangimento em relação ao exame.

Dessa forma, para melhorar as ações de prevenção e detecção precoce da doença, os esforços também devem se concentrar no fortalecimento da AB, principalmente na ESF, modelo assistencial que privilegia o cuidado integral e está mais próximo da comunidade. A ESF precisa se responsabilizar pela busca ativa das mulheres assintomáticas e acompanhamento da periodicidade da realização do preventivo pela população alvo do território. Além da busca ativa, também é papel da AB colocar em prática as ações de educação em saúde para esclarecer a população feminina sobre os objetivos do exame de rastreamento.

A ESF no Município do Rio de Janeiro permanece em expansão, embora a cobertura atual esteja em torno de 50%2626 Brasil Ministério da Saúde. Sala de Apoio à Gestão Estratégica. Equipes de Saúde da Família. Brasília, DF: SAGE; 2017 [acesso em 2016 nov 16]. Disponível em: http://sage.saude.gov.br.
http://sage.saude.gov.br...
. A implantação do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) em 2012 pelo MS induziu à ampliação do acesso da população aos serviços e da melhoria na qualidade do atendimento por meio do repasse de recursos vinculado ao desempenho das equipes. A cobertura do exame citopatológico é um dos indicadores de qualidade da assistência contemplados pelo programa. Assim, a tendência é que a cobertura entre as mulheres da faixa etária alvo aumente de acordo com o avanço da cobertura da ESF no Município do Rio de Janeiro. A expansão da AB é desafiadora, visto que a rede de atenção deve estar organizada para absorver a demanda de um número maior de mulheres submetidas ao rastreamento e encaminhar os casos alterados para o tratamento adequado e em tempo oportuno, visando à diminuição da incidência de câncer de colo uterino.

  • Suporte financeiro: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2018
  • Aceito
    24 Jul 2018
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