O livro 'Atenção Primária à Saúde: conceitos, práticas e pesquisa', organizado por Maria Helena Magalhães de Mendonça, Gustavo Corrêa Matta, Roberta Gondim e Ligia Giovanella, foi publicado em 2018 pela Editora Fiocruz11 Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, Giovanella L, organizadores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2018.. Nele, um coletivo de autores apresenta o conhecimento produzido com provocações reflexivas que incentivam o leitor a (re)pensar e debater criticamente a Atenção Primária à Saúde (APS) no percurso de seu desenvolvimento histórico, da complexidade organizativa, de modelos e em distintos contextos políticos das últimas décadas.
A produção desse coletivo de 50 autores, profissionais, pesquisadores e gestores dedicados aos estudos da APS expressa seus pensamentos e conhecimentos individuais e institucionais, compartilhando-os pelo diálogo, experiências, vivências acadêmicas de ensino, pesquisa, gestão e de práticas no território. A realização de oficinas e elaboração coletiva do termo de referência para o livro propiciaram que as especificidades de cada autor e instituição interagissem na produção de novos conhecimentos norteados pela reflexão ampla, dialógica e interlocução coletiva sobre a APS, originando uma publicação construída de vários saberes, escutas e vozes.
Com instigante diversidade de referenciais teóricos, metodológicos e de práxis, configura-se como coletânea que faz minuciosa análise da APS, sinalizando obstáculos, enfrentamentos e intervenções necessárias à sua consolidação; bem como apontando caminhos que se adensam com a Estratégia Saúde da Família (ESF) em intrínseca relação com o Sistema Único de Saúde (SUS) com o desafio de garantir acesso da população aos serviços de saúde e de se constituir como política social estratégica, tendo saúde como direito universal. Seus autores assumem usar 'atenção primária à saúde' ou 'atenção básica à saúde' como 'sinônimos' para facilitar a leitura. Compreendem, entretanto, como Cecilio e Reis22 Cecilio LCO, Reis AAC. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cad Saúde Pública. 2018 ago; 34(8):1-14.>, a preferência pelo uso do termo 'atenção básica à saúde' pela especificidade do contexto conceitual e ideológico do movimento sanitário brasileiro.
Seu conteúdo, com mais de 600 páginas, organiza-se em três partes: (1) Componentes estratégicos para a conformação da APS no SUS, com dez capítulos, destacando os principais elementos constitutivos da APS em sua organização no Brasil e criação de um sistema de saúde público e universal aliado a políticas de enfrentamento da determinação social da saúde e das iniquidades; (2) Processos de trabalho e práticas profissionais em APS, com cinco capítulos sobre as categorias que compõem as equipes de saúde da família, suas práticas e interações entre si, na equipe e em outros níveis de gestão, incluindo a lógica matricial dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf); e (3) Panorama da pesquisa em APS no Brasil, com quatro capítulos, em que os autores assinalam um estado da arte com objetos e foco da pesquisa priorizando indagações, identificando ferramentas, indicadores, contribuições, desafios e argumentos de contestação apontados pela avaliação da APS.
Ao expressar a inserção da APS na conformação das redes de atenção à saúde, são revisados os processos mediados pelo financiamento, gestão do cuidado em saúde, modelos de gestão, informação em saúde e às aprendizagens que imprimem relevância da formação de profissionais e da população.
Na integralidade da atenção e do cuidado em saúde na APS, são enunciados e problematizados componentes essenciais, como: territorialidade, a dimensão local de atuação da APS; intersetorialidade, agir articulado e comprometido de profissionais, gestores, serviços, programas, setores e território pelo bem-estar das pessoas; promoção da saúde, não restrita ao referencial médico e de mudanças de comportamento, mas construída por governança democrática e participativa na produção da saúde; e participação popular, como prática social de interação das equipes da ESF com comunidade, seus interesses, demandas e conflitos propiciando mudanças a partir da vivência e dinâmica do território.
São analisados os processos de trabalho e práticas de profissionais como médico, enfermeiro, agente comunitário de saúde, odontólogo e de profissionais dos Nasf. Ao médico, é pretendido o papel de generalista, como especialidade, não no modelo tradicional, mas de um especialista integral em Medicina de Família e Comunidade com abordagem clínica centrada na pessoa e práticas holísticas em que a doença é vista social e culturalmente ligada à experiência de vida. Ao enfermeiro, como mediador (muitas vezes, gestor) da APS, da equipe, da unidade e outros serviços, é indicado que exerça sua gestão atuando e consolidando a produção de práticas que rompam com injustiças sociais e desigualdades de acesso a ações e serviços de saúde. Para os agentes comunitários de saúde, realizadores da visita domiciliar, pretende-se que aproximem e conectem equipes e comunidade com habilidade de interlocução participativa, superando as constantes mudanças de suas atribuições. Em relação ao profissional de saúde bucal, por processos de especificidade instrumental, espera-se que interaja no conjunto da equipe ESF evitando seu isolamento em modelo restrito de equipe de saúde bucal na APS. Assinalam ainda a insuficiência de profissionais, gestores e trabalhadores qualificados para implementação de política transformadora do modelo assistencial no País, reivindicando o estratégico investimento na formação e qualificação desses atores para mudança do perfil de equipes da ESF e garantia de atenção integral à saúde, essencial ao sucesso da APS como ordenadora do cuidado.
A coletânea apresenta questões relativas a conceitos e referenciais, explora pesquisas em APS, destacando relevância da avaliação para análise de políticas, estudo de práticas e modelos e o dimensionamento da APS como política social que impacte a redução das desigualdades e iniquidades sociais e econômicas, comprometida com desenvolvimento e democracia. São apontadas ferramentas validadas e aplicáveis para avaliação dos serviços com atributos essenciais à APS e discutida a efetividade dos serviços por indicador de Internações por Condições Sensíveis à Atenção Primária (ICSAP) e por fatores externos e internos relacionados com a cobertura da saúde da família em um país como o Brasil, de dimensão continental e da heterogeneidade de cada município e região. Enfatiza a execução do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica que permitiu avanços dos processos avaliativos de novos modelos assistenciais da APS com abrangência nacional. Ao citarem os instrumentos de autoavaliação e a pactuação de indicadores de desempenho, os autores discutem processos e obstáculos nas diferentes fases de seus ciclos e do importante papel da Rede Pesquisa em APS33 Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde [internet]. Rio de Janeiro: Abrasco; c2018 [acesso em 2018 ago 5]. Disponível em: www.rededepesquisaaps.org.br.
www.rededepesquisaaps.org.br... > na avaliação externa.
O leitor encontra nessa coletânea caminhos para compreender a APS em suas significativas questões, acrescidas da expertise, conhecimento e senso crítico de profissionais, gestores e pesquisadores que a percorreram com estudos aprofundados, holísticos e multidisciplinares. Suas perguntas investigativas ao longo do tempo e conjunturas sociopolíticas aguçam a percepção e buscam respostas sobre processos de evolução da APS em sua historicidade, formulação, implantação e implementação como política.
A abordagem, entretanto, não é linear. Considera reflexões com mudanças de trajetória, marcadas por eventos de natureza e interesses distintos ou conflituosos que, para bem ou mal, catalisam a evolução da APS enquanto programa e política de saúde; tais como: Conferência de Alma Ata (1978), Política Nacional de Atenção Básica (PNAB/2006), revisada em 2011 e 2017, e recentes políticas de austeridade fiscal de contenção e redução de gastos governamentais com políticas sociais (EC.95), direcionadas à interrupção da ESF, dos preceitos da reforma brasileira, da consolidação do SUS e contra os direitos sociais.
Obra indispensável que se traduz em convite para todos, usuários e profissionais do SUS, a reagirem diante da ação ardilosa que golpeia duramente a construção da APS/ESF e do próprio SUS no Brasil. Leitura que permite identificar e rever desafios e enfrentamentos que busquem o pleno potencial da APS com construção de agenda, priorizando a integralidade da atenção e cuidado em saúde e o acesso universal aos serviços para todo cidadão em pleno exercício democrático de seus direitos. Situação agravada, como aponta Giovanella44 Giovanella L. Atenção básica ou atenção primária à saúde? Cad Saúde Pública. 2018 ago; 34(8):1-5., pelo contexto de sérias ameaças ao SUS e à atenção básica por um governo ilegítimo, com política de ajuste fiscal.
Com abordagens da área de política, planejamento, gestão e das ciências sociais, o campo da saúde coletiva é enriquecido com publicação proficiente em contribuir para pensar e apreender a responsabilidade do vínculo entre profissionais, família e comunidade nos territórios; bem como de fomentar em suas atividades de formação, ensino e pesquisa a urgente retomada da reforma política e sanitária que fortaleça o SUS, o desenvolvimento, a democracia e os direitos.
Torna-se, pois, leitura essencial no percurso de formação crítica e comprometida com a saúde coletiva, com a APS e com o SUS, para profissionais, pesquisadores, gestores, estudantes de graduação e pós-graduação, trabalhadores e usuários do SUS com os quais se supõe compor processos de resistência e de repúdio a políticas excludentes e injustas impostas, recentemente, ao povo brasileiro.
Trata-se de uma obra que cria inferências sobre a relação APS com outros programas de saúde e políticas sociais que têm nela recorte de atuação - como o Programa de Saúde na Escola (PSE)55 Brasil. Presidência da República. Decreto no 6.286 de 05 de dezembro de 2007. Institui o Programa de Saúde na Escola - PSE, e dá outras providências. Diário oficial da União. 6 Dez 2007., que exemplifico aqui66 Silva CS, Bodstein RC. Referencial teórico sobre práticas intersetoriais em promoção da saúde na escola. Ciênc Saúde Colet. 2016; 21(6):1777-1778.,77 Pedrosa JI. Educação Popular e Promoção da Saúde: bases para o desenvolvimento da escola que produz saúde. In. Brasil. Ministério da Saúde. Escolas Promotoras de Saúde: experiências no Brasil. Brasília, DF: OPAS; 2007. p.77-95., para reforçar avanços nos processos de fazer saúde sob princípios da APS; e outros, como o Programa Bolsa Família88 Magalhães R, Ramos CL, Bodstein R, et al. Análise da Implementação de ações intersetoriais: desafios e alternativas metodológicas. In: Silveira CB, Fernandes TM, Pellegrini B, organizadores. Cidades Saudáveis? Alguns olhares sobre o tema. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p. 225-242., com contrapartidas e condicionalidades acompanhadas pelas equipes da ESF; bem como os consultórios de rua99 Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe "Consultórios de Rua" de Manguinhos, Rio de Janeiro Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc Saúde Colet. 2016; 21(6):1839-1848., para abordagem de populações vulnerabilidazas. Todos representam múltiplas demandas de famílias e comunidades em contextos diferentes e buscam o cuidar dessas pessoas cujas respostas podem ser facilitadas nos moldes da APS, de característica estruturante dos serviços e programas e de visão holística de como compreender o cidadão e suas relações de vida, por si só intersetoriais.
Amplia-se, portanto, o desafio da APS que, além de superar sua inserção integrada e integral ao sistema de saúde compartilhando responsabilidades em cada nível de gestão, terá ainda que interligar, por sua capilaridade nos territórios em que as pessoas vivem, estudam, trabalham e a vida ocorre, muitas possibilidades do agir integrado e intersetorial na produção da saúde. Com isso, a APS cria circunstâncias mais favoráveis à ação transformadora pretendida na intersetorialidade de atuação com o conjunto de outros equipamentos, instituições e programas presentes nos territórios, como as escolas de ensino fundamental, equipamentos de apoio social, organizações e movimentos sociais. Essa colaboração intersetorial com equipes da ESF pressupõe atos e atores promotores da saúde e do bem-estar, contrapondo-se ao modelo médico terapêutico, hegemônico. Tais programas, na lógica e princípios da APS, contribuem, pois, para a ação transformadora no território.
Nesse sentido, considerando a mudança de paradigma pela APS, os leitores instigados pela produção desse especial coletivo de autores hão de sugerir novas ideias, questões, investigações e produtos nos referenciais da APS no Brasil: conceitos, práticas e pesquisas. Boa leitura!
- Suporte financeiro: não houve
Referências
- 1Mendonça MHM, Matta GC, Gondim R, Giovanella L, organizadores. Atenção Primária à Saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2018.
- 2Cecilio LCO, Reis AAC. Apontamentos sobre os desafios (ainda) atuais da atenção básica à saúde. Cad Saúde Pública. 2018 ago; 34(8):1-14.
- 3Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde [internet]. Rio de Janeiro: Abrasco; c2018 [acesso em 2018 ago 5]. Disponível em: www.rededepesquisaaps.org.br
» www.rededepesquisaaps.org.br - 4Giovanella L. Atenção básica ou atenção primária à saúde? Cad Saúde Pública. 2018 ago; 34(8):1-5.
- 5Brasil. Presidência da República. Decreto no 6.286 de 05 de dezembro de 2007. Institui o Programa de Saúde na Escola - PSE, e dá outras providências. Diário oficial da União. 6 Dez 2007.
- 6Silva CS, Bodstein RC. Referencial teórico sobre práticas intersetoriais em promoção da saúde na escola. Ciênc Saúde Colet. 2016; 21(6):1777-1778.
- 7Pedrosa JI. Educação Popular e Promoção da Saúde: bases para o desenvolvimento da escola que produz saúde. In. Brasil. Ministério da Saúde. Escolas Promotoras de Saúde: experiências no Brasil. Brasília, DF: OPAS; 2007. p.77-95.
- 8Magalhães R, Ramos CL, Bodstein R, et al. Análise da Implementação de ações intersetoriais: desafios e alternativas metodológicas. In: Silveira CB, Fernandes TM, Pellegrini B, organizadores. Cidades Saudáveis? Alguns olhares sobre o tema. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2014. p. 225-242.
- 9Engstrom EM, Teixeira MB. Equipe "Consultórios de Rua" de Manguinhos, Rio de Janeiro Brasil: práticas de cuidado e promoção da saúde em um território vulnerável. Ciênc Saúde Colet. 2016; 21(6):1839-1848.
Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Set 2018
Histórico
- Recebido
30 Ago 2018 - Aceito
03 Set 2018