RESUMO
Este estudo analisou a integração da equipe de Saúde Bucal (eSB) à equipe de Saúde da Família (eSF) no Distrito Federal. Trata-se de estudo qualitativo onde dezenove entrevistas, observação do trabalho e análise documental foram conduzidas, e a coleta e a análise, em triangulação, basearam-se em categorias analíticas formuladas a partir das políticas públicas que orientam o trabalho em saúde bucal: trabalho em equipe, ações educativas e intersetoriais, vínculo e acolhimento, acesso e coordenação do cuidado, planejamento e educação permanente, participação e controle social, qualificação da assistência e condições de trabalho. Os resultados evidenciam integração dos profissionais da saúde bucal na interconsulta, nas reuniões de equipe, nas visitas domiciliares, nas ações intersetoriais focadas em escolares e de educação em saúde individual e de grupos, num meio onde predomina o modelo biomédico. Os agentes comunitários se destacam como facilitadores da integração, enquanto os técnicos de saúde bucal permanecem na invisibilidade. Conclui-se que a integração da eSB com a eSF é incipiente e limitada por conflitos de normas e pela forma como se organiza o trabalho na eSF no contexto estudado, constituindo-se em uma difícil integração.
PALAVRAS-CHAVE
Atenção Primária à Saúde; Saúde da família; Saúde bucal; Pesquisa qualitativa
Introdução
No Brasil, a Atenção Primária à Saúde (APS) apresenta três importantes características que a diferenciam da maioria dos modelos de outros países: responsabilidade das equipes multiprofissionais por territórios geográficos com população adscrita, a presença singular dos agentes comunitários de saúde e a inclusão da atenção odontológica no sistema público de saúde11 Mendonça CS. Sistema Único de Saúde: um sistema de saúde orientado pela Atenção Primária. In: Organização Pan-americana da Saúde. Inovando o papel da Atenção Primária nas Redes de Atenção à Saúde: resultados do laboratório de inovação em quatro capitais brasileiras. Brasília, DF: OPAS; 2011. p. 23-36.. O fortalecimento da APS tem sido um processo de avanços e recuos, por intermédio da implantação da Estratégia Saúde da Família (ESF), com ênfase na reformulação dos processos de trabalho segundo os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)22 Silva LA, Casotti CA, Chaves SCL. A produção científica brasileira sobre a Estratégia Saúde da Família e a mudança no modelo de atenção. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(1):221-232 ..
A inserção da saúde bucal e das práticas odontológicas no SUS deu-se de forma paralela à organização dos demais serviços de saúde. Apesar de experiências locais exitosas de inserção da saúde bucal na APS terem ocorrido desde 1995, a inclusão dessa equipe na ESF, em âmbito nacional, ocorreu apenas em 200033 Silva SF, Martelli PJL, Sá DA, et al. Análise do avanço das equipes de saúde bucal inseridas na Estratégia Saúde da Família em Pernambuco, região Nordeste, Brasil, 2002 a 2005. Cienc Saude Colet. 2011; 16(1):211-20.. Em 2004, foram publicadas as Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal (PNSB), intituladas Programa Brasil Sorridente, que reforçam a reorganização da atenção à saúde bucal em todos os níveis do SUS e a readequação do trabalho, por meio de interdisciplinaridade e multiprofissionalismo, integralidade da atenção, intersetorialidade, ampliação e qualificação da assistência e definição de padrões para orientar o trabalho44 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília, DF: MS; 2004..
Em 2002, a cobertura populacional das equipes de Saúde Bucal (eSB) na ESF era de 15% da população brasileira, e, em 2017, passou para 38%, o que corresponde a 77,3 milhões de pessoas55 Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Monitoramento e Avaliação. Sala de Apoio à Gestão Estratégica. Redes e Programas [internet]. Brasília, DF: MS; 2017 [acesso em 2018 jun 14]. Disponível em: http://189.28.128.178/sage/.
http://189.28.128.178/sage/... . Para além da ampliação do acesso, a inclusão da saúde bucal na ESF tem se constituído em possibilidade de romper com a prática odontológica excludente, tecnicista e biologicista, representando oportunidade de mudança no processo de trabalho. Nesse contexto, a integração da eSB com a de saúde da família tem sido lacuna nos estudos sobre a atenção à saúde bucal no Brasil66 Nascimento AC, Moysés ST, Bisinelli JC, et al. Oral health in the family health strategy: a change of practices or semantics diversionism. Rev Saúde Pública. 2009; 43(3):455-462.,77 Lucena EHG, Pucca JR GA, Sousa MF. A Política Nacional de Saúde Bucal no Brasil no contexto do Sistema Único de Saúde. Tempus. 2011; 5(3):53-63..
O efeito das eSB no acesso e no tipo de serviço utilizado foi investigado por Pereira et al.88 Pereira CRS, Roncalli AG, Cangussu MCT, et al. Impacto da Estratégia Saúde da Família sobre indicadores de saúde bucal: análise em municípios do Nordeste brasileiro com mais de 100 mil habitantes. Cad Saúde Pública 2012; 28(3):449-462., que apontaram paradoxos, como o fato de esse modelo de atenção não estar produzindo efeitos no sentido de um tratamento mais restaurador e menos mutilador e na ampliação das ações preventivas individuais ou coletivas, ou mesmo um efeito negativo em sete dos doze municípios investigados. Outros estudos que já se debruçaram sobre o processo de trabalho apontam avanços no acesso, acolhimento e vínculo, por um lado, mas poucos resultados nas práticas de promoção de saúde, territorialização e abordagem interdisciplinar66 Nascimento AC, Moysés ST, Bisinelli JC, et al. Oral health in the family health strategy: a change of practices or semantics diversionism. Rev Saúde Pública. 2009; 43(3):455-462.,99 Faccin D, Sebold R, Carcereri DL. Processo de trabalho em saúde bucal: em busca de diferentes olhares para compreender e transformar a realidade. Ciênc Saúde Colet. 2010; 15(1):1643-1652..
O trabalho, quando realizado em equipe e de forma cooperativa, tende a ser mais eficaz no alcance dos resultados almejados, e esse pode ser um indicador a ser utilizado na avaliação da implementação de uma política, como é o caso da saúde bucal. Nesse sentido, após mais de uma década da implementação da política nacional de saúde bucal, este artigo analisou a integração da eSB e da equipe de Saúde da Família (eSF).
Material e métodos
Tratou-se de um estudo multicêntrico nacional, com abordagem qualitativa, sobre a saúde bucal na ESF, sendo este um recorte dos achados no Distrito Federal (DF), um dos pioneiros na inserção da saúde bucal no SUS. Em agosto de 2014, ano deste estudo, o DF apresentava cobertura de atenção básica em saúde e de saúde bucal na atenção básica de 54,4% e 26%, respectivamente. A cobertura de saúde bucal na atenção básica é a soma da cobertura estimada de eSB pertencentes à ESF e da cobertura de saúde bucal na atenção básica de eSB equivalentes na atenção básica tradicional. Nesta, cada 40h de carga horária ambulatorial de cirurgiões-dentistas (clínico geral, saúde coletiva) na atenção básica equivale a uma equipe. O cálculo se dá da seguinte forma: cobertura populacional estimada de saúde bucal na atenção básica = (nº eSB x 3.450) + (nº eSB equivalentes x 3.000)/população estimada. Contudo, a cobertura da ESF era de 30%, e das eSB na saúde da família de 8,5%55 Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Monitoramento e Avaliação. Sala de Apoio à Gestão Estratégica. Redes e Programas [internet]. Brasília, DF: MS; 2017 [acesso em 2018 jun 14]. Disponível em: http://189.28.128.178/sage/.
http://189.28.128.178/sage/... .
Participaram do estudo sete Agentes Comunitários de Saúde (ACS), quatro Técnicos de Enfermagem (TE), dois enfermeiros (E), dois Cirurgiões-Dentistas (CD), dois Técnicos de Saúde Bucal (TSB) e dois Médicos (M) de duas Unidades Básicas de Saúde (UBS), em duas regiões administrativas do DF, o que corresponderia, nos estados, a dois municípios. A escolha do local do estudo e dos participantes ocorreu a partir destes critérios de inclusão: a) equipes completas de saúde da família com eSB, independentemente da modalidade; b) eSF consideradas de bom desempenho pelos gestores, tendo como referência a Política Nacional de Atenção Básica e as Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal; c) equipes que, preferencialmente, tinham como referência Centros de Especialidades Odontológicas (CEO) e/ou Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf); d) equipes que participaram do 1º ciclo do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).
O caráter multiprofissional da amostra teve por objetivo abranger diferentes visões sobre o objeto de estudo, considerando que a saúde bucal não se restringe ao núcleo da odontologia, mas abrange o campo de competências e responsabilidades de outras áreas profissionais1010 Brasil. Ministério da Saúde. Sistema de Nota Técnica do DAB [internet]. Brasília, DF: MS; 2014 [acesso em 2014 Set 15]. Disponível em: http://dab2.saude.gov.br/dab/sistemas/notatecnica/frmListaMunic.php.
http://dab2.saude.gov.br/dab/sistemas/no... . O olhar do pesquisador se voltou para o trabalho em saúde bucal dos profissionais das eSF e das eSB, sem analisar os procedimentos clínicos ou técnicos dos atendimentos assistenciais.
A coleta de dados, orientada por roteiro, foi realizada de janeiro a junho de 2014, por meio de 19 entrevistas semiestruturadas, observação do trabalho e análise das atas das reuniões das equipes. O roteiro buscou conhecer a rotina de trabalho das equipes; composição; processo de trabalho; divisão do trabalho; tomada de decisão; fluxo da assistência e serviços ofertados pela unidade e pela Rede de Atenção à Saúde; organização da UBS; relação do gestor com as equipes; elementos de cooperação; relações entre os profissionais; como a eSB se integra à eSF; e conhecer as ações de saúde bucal desenvolvidas.
O tratamento dos dados, ambos em triangulação1111 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12. ed. São Paulo: Hucitec; 2010., foram guiados por categorias analíticas prévias, construídas por Scherer e Scherer1212 Scherer CI, Scherer MDA. Avanços e desafios da saúde bucal após uma década de Programa Brasil Sorridente. Rev Saúde Pública. 2015; 49(98):1-12. com o intuito de identificar como esses dados se integram para realizar a atenção à saúde bucal, sendo essa a principal questão norteadora do estudo (figura 1).
Os participantes foram identificados por letras, que correspondem à sua categoria profissional (ACS: agente comunitário de saúde, CD: cirurgião-dentista, E: enfermeiro, M: médico, TE: técnico de enfermagem, TSB: técnico de saúde bucal), e por números, que correspondem à quantidade de entrevistados por categoria.
Os recursos disponíveis no software Atlas.ti (Qualitative Research and Solutions), versão 7.1.8, serviram como ferramenta para sistematizar e categorizar os dados e subsidiar a análise qualitativa (figura 2).
O projeto de pesquisa foi aprovado pelos Comitês de Ética em Pesquisa da Universidade de Brasília (Parecer nº 491.461) e da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (Parecer nº 459.739) e seguiu as normas da Resolução nº 466/12, do Conselho Nacional de Saúde.
Resultados
Os resultados revelam como a eSB se integra no trabalho em equipe, evidenciando a presença de ações que propiciam a integração e outras que demonstram a fragmentação (quadro 1).
A integração da eSB à eSF a partir das categorias analíticas prévias e das ações que as equipes desenvolvem no trabalho.
Numa primeira observação, o distanciamento físico entre a eSF e a eSB, revelado devido ao arranjo arquitetônico da UBS, sugere distância também no modo de trabalhar, o que é confirmado nas entrevistas:
Na verdade, é a gente aqui e eles, lá dentro. Então não temos muito envolvimento com eles. Não temos muito contato. Não ajudamos praticamente nada. (TE1).
[...] a gente fica meio que pra cá, né? A gente não tem muito contato com pessoal de lá. (TSB2).
Quando eu cheguei e ainda era Centro de Saúde, a odonto era como se fosse um serviço à parte do posto. Entrar lá? A gente nem entrava. Era como se fosse secreta. A sensação que eu tinha, era como se fosse só deles. (TE3).
A dentista tem um sistema diferenciado de marcação. Não sei te explicar com detalhes como funciona. (TE2).
Momentos de integração entre a eSB e a eSF acontecem em ações coletivas descontínuas, especialmente nas desenvolvidas por iniciativas da equipe de saúde bucal no ambiente escolar:
Com a equipe de saúde bucal, todo evento que o dentista realiza, nós fazemos parte. Nós já fizemos teatro, a gente faz a marcação de consulta, as escovações nas escolas. Primeiro ele ensina a gente, e depois passa para os alunos junto com ele. (ACS4).
Teve a semana odontológica, e eu participei. O dentista se empenhou bastante. Fez teatro e tudo. No que a gente podia ajudar... não necessariamente na área médica, na logística mesmo. (M2).
No ano passado, teve duas ações na escola, e uma delas foi direcionada para a parte odontológica. E eu fui lá colaborar. Não participei diretamente, mas colaborei. (M1).
Entretanto, a forma como se organiza o trabalho na ESF convida o profissional de saúde bucal a sair do isolamento e procurar ser um profissional mais atuante no campo da saúde, na busca da integralidade da atenção.
A gente tenta mostrar para eles que a boca faz parte do corpo inteiro. Que não é para tratar só a boca. (CD2).
Eu tenho vontade de estar abordando essa questão, não só odontológica, mas na saúde mental, psicológica, toda a parte que compõe as necessidades do ser humano, em geral. (TE3).
Observou-se o compartilhamento de saberes nas dúvidas clínicas e no atendimento aos grupos prioritários, que se pode confirmar pelas entrevistas:
Liberdade total. Qualquer dúvida, eu posso entrar na sala de qualquer um e perguntar qualquer coisa, ver a agenda deles. No dia das gestantes, eu pergunto 'deixa eu ver quem são as gestantes?'. Ah, já vieram ou não vieram. E elas também, 'dá uma olhada nesse menino aqui', ou 'a mãezinha quer falar com você'. Então, com o médico também, às vezes medicação no pré-operatório. Principalmente hipertenso e diabético, pode conversar. Pelo menos, com os que passaram por aqui, nunca teve restrição, nenhum obstáculo pra conversar com eles. (CD2).
No trabalho das equipes, predominam aproximações e trocas nas ações individuais realizadas em consultório:
Sempre no atendimento de crescimento e desenvolvimento da criança, quando é a primeira consulta, a gente orienta a passar no dentista para ele dar as orientações. (M1).
Sempre passa por um ou pelo outro. Já teve um caso, mas é um caso ou outro. Teve um câncer bucal que o médico viu e me chamou: 'olha isso aqui'. Aí que eu liguei para o especialista do HRAN, e encaminhamos juntos. (CD2).
[...] eu orientava, eu olhava se havia alguma deformação de palato, alguma má formação na dentição. Nisso, já encaminhava para o dentista, às vezes conversava com ele. Se tivesse que encaminhar, a gente encaminhava, e até crianças maiores, na hora do exame físico, se eu identificasse cárie ou alguma coisa assim, eu questionava a mãe por que estava acontecendo, se realizava escovação, uso do fio dental. Mas, de qualquer maneira, eu já encaminhava para o dentista dar uma avaliada. (M1).
Ou seja, há articulação, todavia, mais focada no saber técnico individual, em detrimento da abordagem coletiva e multiprofissional necessária para enfrentamento dos problemas de saúde e seus determinantes.
Outra dificuldade presente foram os problemas que a população enfrenta de acesso às ações clínicas de saúde bucal. Na observação, foi possível perceber a fragilidade da estratégia de marcação utilizada pelas equipes, por meio de lista de espera e pelo ACS como interlocutor, que resulta em uma grande lista e, segundo os entrevistados, em 'desresponsabilização' do usuário e certa incompreensão dos determinantes sociais como barreira de acesso à saúde bucal:
Aí eu falo para o dentista que tem pessoas há 2 anos na fila. Já teve um caso de um camarada falar que precisava ir ao dentista, aí eu disse que ia colocar o nome dele na lista, aí passou tanto tempo, mas nesse caso a falha foi dele, porque ele foi chamado para uma consulta e não veio. Aí teve outra, ele não veio. Depois de muito tempo eu passei lá e ele disse que tinha que arrumar outra maneira de consertar os dentes. Os dentes já tinham caído, e ele precisava de uma dentadura. (ACS2).
O ACS aparece como um facilitador para o acesso do usuário à saúde bucal, em especial, por ser o elo entre equipe e comunidade. No entanto, os ACS relatam dificuldades nessa função de 'porta de entrada' para a marcação de consulta de saúde bucal:
Então eu vou passando nas casas e nem pergunto mais, porque é uma parte tão sensível de lidar. Eu espero eles me procurarem e explico que vou botar o nome na lista. (ACS6).
A partir da dificuldade de acesso, criam-se diferentes modelos de organização da oferta, que priorizam determinados grupos segundo critérios de problemas de saúde (hipertensão e diabetes) e por ciclos de vida, notadamente, as crianças e as gestantes. Há desafios na incorporação de outras parcelas da população:
Geralmente, os escolares e o Cárie Zero a gente já vai chamando pela nossa lista. O dia da gestante, por exemplo, a gente passa para os ACS. Adulto, adolescente e hiperdia são com os ACS também. Aí a gente passa as vagas, e eles falam 'oh, tem tantas vagas para gestante amanhã', por exemplo. Aí eles mandam para a gente. No caso, a gente não sabe quem vai vir. (TSB2).
Os profissionais de saúde enfrentam obstáculos tanto para estruturação da marcação de consultas odontológicas quanto para a realização do acolhimento à demanda espontânea em saúde bucal, que, durante a observação, mostrou-se pouco estruturada e fragmentada, sugerindo baixa integração da eSB com a eSF para organização do trabalho e definição de estratégias conjuntas.
Perceberam-se, também, dificuldades para a integração da equipe na coordenação e na continuidade do cuidado em saúde bucal na rede de atenção:
Eles mandam as vagas mensais, endodontia, periodontia, cirurgia, pacientes com necessidades especiais, aí eles já mandam o código com o número de vagas, e a gente tem uma lista das necessidades dos pacientes, e vai encaminhando para eles todo fim de mês. Todo mundo tem que ir segunda-feira pela manhã no hospital assistir à palestra, todos no mesmo horário. Depois eles mandam a contrarreferência para continuar aqui a manutenção. Se você não assistiu à palestra ali, você perdeu a vaga. (CD2).
Ainda que o modelo tradicional permaneça, há ressignificações da prática educativa e do seu sentido entre alguns trabalhadores:
Qual o tema que nós vamos falar amanhã? Ah, nós vamos falar sobre amamentação, então ali eu ia pesquisar sobre amamentação, ver o que eu podia falar, transformar aquela linguagem para mais popular possível para as mães entenderem. (ACS5).
Não gosto de chegar à escola e fazer palestra. Cada vez que eu vou na escola eu levo alguma coisa diferente, ou é um filme, ou é um jogo, ou algo pra pintar... Eu gosto disso. (CD1).
Para além da clínica, a prevenção de doenças e a promoção da saúde estão entre as atribuições comuns a todos os profissionais da equipe. Para que elas se efetivem, a identificação de parceiros e recursos na comunidade é preconizada como forma de potencializar as ações intersetoriais e o trabalho integrado:
A ACS conversou com o responsável pela escolinha de futebol e explicou que queríamos fazer uma parceria, e eles adoraram, então nós não estamos fazendo nada de cima para baixo, estamos fazendo junto com os pais, porque senão isso não vai dar certo. (E2).
Então, a gente foi ver o que a gente podia fazer, aí vamos fazer uma parceria com o projeto da escolinha de futebol, fazer uma união com eles e ver o que a gente pode oferecer pra eles. Então, a gente viu que a gente pode oferecer o quê? As consultas de clínica médica aqui na nossa unidade de saúde e o acompanhamento odontológico, que, para muitos, isso é um sonho distante, porque eles lá não tem a menor chance de ter. (ACS5).
As ações intersetoriais, contudo, caracterizavam-se pela manutenção de práticas tradicionais, como o atendimento individual curativo. O trabalho preventivo e de promoção da saúde está centrado nas escolas, e a questão da vulnerabilidade mostra-se como uma dificuldade para atuação dos profissionais:
Fora da unidade, a gente tem o PSE, Programa Saúde na Escola. Mas, assim, esse PSE é mais uma questão assim de educação da saúde, em relação a lavar as mãos, a escovar os dentes, questão de piolho. Não tem essa parte de vulnerabilidade. Apesar de que a gente sabe pelos professores se a criança tem alguma vulnerabilidade. Nessa parte, fica até difícil de intervir. (M2).
A promoção da mobilização e da participação da comunidade para o controle social está entre as ações comuns aos profissionais da saúde da família. As atas das reuniões de equipe registram momentos de estímulo dos gestores para que essa diretriz se efetive, entretanto, os profissionais sentem-se pouco apoiados e desmotivados para participar e fomentar esses processos, evidenciando limites para cumprir o prescrito:
Não temos um conselho de saúde que reúne a comunidade com a equipe para poder ouvir as sugestões. Porque a maioria das sugestões da comunidade é mais para reclamar do que pra ajudar. (CD2).
Com a comunidade, a gente nunca teve uma parceria, de chamar a comunidade, tipo: ah, nós vamos fazer um evento, e o que vocês acham da gente fazer isso? Vocês podem ajudar com quê? A gente nunca teve. (ACS4).
Já recebi vários convites para participar, pois acho que, se a pessoa assumir algo assim, ela tem que assumir com responsabilidade, e eu não me vejo com tempo e responsabilidade para assumir algo assim. (ACS3).
A dificuldade em 'o que fazer' e 'como fazer' para mobilizar a comunidade para participar das atividades coletivas de saúde bucal na unidade básica de saúde é expressa pelos trabalhadores:
Tem quase que implorar para entrar aqui dentro da UBS para assistir uma palestra. Só vem porque ganha consulta. Aqui, nem dando escova motiva. (CD1).
As pessoas, às vezes, não são tão receptivas quando a gente faz as palestras. Mas, os poucos, trazem coisas boas e são bem participativas. E eu acho que é um trabalho de formiguinha, porque não é fácil mudar as pessoas. (TE4).
O processo de planejamento ocorre nas reuniões periódicas da equipe.
Nós temos um período de reunião, onde toda a equipe está presente. Nessa reunião, a gente coloca o que realizou, a dificuldade que teve na semana, a gente procura respostas, procura soluções conjuntas e planeja o que podemos fazer. (ACS4).
Nas reuniões de equipe, é aonde nós planejamos, discutimos, avaliamos as ações realizadas. (E2).
Constatou-se que outros espaços, além da reunião de equipe, são utilizados para o planejamento das ações:
A gente vai ali naquela mesinha (copa da UBS) e planeja. Aí, nossa equipe planeja dizendo que vai ter alguma coisa tal dia. (ACS2).
Geralmente, é na copa. Algumas coisas mais simples se conversa durante o expediente. Se for algo mais complicado, se deixa para quando são realizadas as reuniões de equipe. (ACS7).
Há fragilidade no planejamento de ações comuns da equipe que englobam a atenção à saúde bucal, como, por exemplo, a criação de critérios para definição das visitas domiciliares, cuja peridiocidade é prejudicada pela falta de logística:
Olha, eu vou ser sincera, isso aí quem faz é o dentista. Então, não sei te falar ainda o método que ele utiliza para fazer. (TSB2).
Infelizmente, nem sempre nos dias das visitas a gente sai para fazer visita, o que eu não me oponho, porque nem sempre tem carro disponível. (M2).
Na observação, notou-se que a eSB organiza ações utilizando resultados de levantamentos epidemiológicos. As crianças e os escolares são classificados por condição de risco para atendimento clínico e também por registro em ata e divisão por microárea do ACS. Isso é realizado de forma isolada da eSF, de maneira que essas informações não são utilizadas para o planejamento, monitoramento e avaliação de outras ações, como as de promoção da saúde.
As ofertas de educação para os profissionais da saúde bucal, de nível superior e técnico, são pontuais e, quando acontecem, são isoladas do conjunto da eSF:
Uma vez ao ano, todos da odontologia nos reunimos. Não existe outro movimento de saúde bucal. Abordam atendimento humanizado, procedimentos, como agir em emergência... São coisas mais básicas da odontologia, voltado para o atendimento humanizado mesmo. (TSB1).
O que eu percebo, na verdade, é que, quando eles (gestão) vão fazer esses cursos de atualização, é assim: chama o médico e o enfermeiro. Isso é próprio da secretaria. (M2).
Eu sinto falta dessas capacitações, porque eu acho que seria interessante, conseguiríamos nos aprofundar, aprender mais. (TSB1).
Nos registros de reunião de equipe, os profissionais relatam que experiências de aproximação com instituições de ensino os fortalecem e propiciam transformações nas suas práticas, a exemplo da parceria com estudantes de graduação de enfermagem para auxílio nas atividades intersetoriais por meio do Programa Saúde na Escola (PSE).
Na compreensão do processo de trabalho, é essencial conhecer as condições de trabalho. No contexto estudado, os profissionais relatam que elas nem sempre são adequadas para a realização de um atendimento com qualidade. Eles mencionam a falta de materiais, de equipamentos e de apoio dos gestores para o trabalho no cotidiano do serviço de saúde:
Um apoio maior da gestão com relação as pequenas coisas, às vezes, a falta de material ou, às vezes, a falta até de apoio mesmo, de respaldo que você não tem. (ACS5).
As extrações ficam para as equipes, e nenhum dentista está querendo fazer extração, porque todo mundo alega que não tem uma bomba à vácuo; os consultórios não estão preparados. (CD1).
Contudo, constatou-se na análise documental que os gestores reconhecem o trabalho da equipe e o seu desempenho no 1º ciclo do PMAQ, e enfatizam a conquista de novas tecnologias, como o matriciamento e a ferramenta do Telessaúde para a ampliação das ações e qualificação da equipe, assim como para fomentar possíveis avanços na organização e nas condições de trabalho, questões essas não mencionadas pelos entrevistados.
Discussão
Esse estudo revelou que a integração entre a eSB e a eSF ainda é um desafio para os profissionais, onde o modelo biomédico é hegemônico. O desenvolvimento conjunto de ações comuns, que demandam maior contato e engajamento, ainda é incipiente entre as equipes. A eSB está basicamente envolvida em consultas clínicas, não havendo espaço para atuar com o território, a família e a comunidade de forma integrada com a eSF. Outros estudos já sinalizaram que o trabalho do CD raramente se insere em práticas partilhadas com profissionais de outras áreas, uma vez que suas ações são desenvolvidas de forma autônoma, independente e individualizada1313 Pimentel FC, Albuquerque PC, Martelli PJL, et al. Caracterização do processo de trabalho das equipes de saúde bucal em municípios do estado de Pernambuco, Brasil, de acordo com o tamanho da população: a partir de links da comunidade para a organização dos cuidados clínicos. Cad Saúde Pública. 2012; 28(supl):S146-S157.
14 Chaves MC, Miranda AS. Discursos de cirurgiões-dentistas do Programa Saúde da Família: crise e mudança de habitus na Saúde Pública. Interface. 2008; 12(24):153-167.-1515 Pezzato LM, L'Abbate S, Botazzo C. A produção de micropolíticas no processo de trabalho em saúde bucal: uma abordagem sócio-analítica. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(7):2095-2104.. O mesmo acontece com a eSF, que desenvolve ações de saúde de maneira isolada e fragmentada, com dificuldades de inventar novas formas de se relacionar em equipe de modo a interrogar lugares, saberes e práticas1616 Santos AM, Assis MMA, Nascimento MAA, et al. Vínculo e autonomia na prática de saúde bucal no Programa Saúde da Família. Rev Saúde Publica. 2008; 42(3):464-470.,1717 Sanglard-Oliveira CA, Werneck MZF, Lucas SD, et al. Atribuições dos técnicos em saúde bucal na estratégia de saúde da família em Minas Gerais, Brasil. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(8):2453-2460..
O isolamento da eSB aparece sobretudo nas falas dos técnicos, quando revelam os desconhecimento do trabalho dos demais, sinalizando o isolamento deles próprios no contexto das equipes. Há poucos trabalhos publicados sobre a atuação, a qualificação e a inserção laboral dos profissionais técnicos de saúde bucal, que é lacuna importante para compreender a eSB1717 Sanglard-Oliveira CA, Werneck MZF, Lucas SD, et al. Atribuições dos técnicos em saúde bucal na estratégia de saúde da família em Minas Gerais, Brasil. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(8):2453-2460.. Na pesquisa, as manifestações de integração advêm principalmente dos ACS e dos profissionais de nível superior.
De maneira convergente com outros achados1616 Santos AM, Assis MMA, Nascimento MAA, et al. Vínculo e autonomia na prática de saúde bucal no Programa Saúde da Família. Rev Saúde Publica. 2008; 42(3):464-470., o estudo mostra que os ACS são fundamentais para gerar uma relação de confiança e cumplicidade que se estende aos demais trabalhadores, potencializando o acolhimento, o vínculo, a responsabilização dos usuários. O ACS, por sua proximidade com a comunidade, por vezes, assumiu no estudo o papel de interlocutor para marcação das consultas, o que o coloca em uma posição desconfortável tanto por ser a organização da oferta um nó crítico dos serviços quanto pela complexidade que muitas vezes essa função apresenta66 Nascimento AC, Moysés ST, Bisinelli JC, et al. Oral health in the family health strategy: a change of practices or semantics diversionism. Rev Saúde Pública. 2009; 43(3):455-462..
Cabe destacar que o trabalho é resultado de um debate de normas e de valores do trabalhador/profissional consigo mesmo, de como usar de si e de como estar em condições de gerir a complexidade de questões relacionadas ao trabalho coletivo1818 Schwartz Y, organizador. Reconnaissances du travail: pour une approche ergologique. 2. ed. Paris: PUF; 1998.. A pesquisa apontou para a presença de um paradoxo vivido pelos profissionais das eSB e das eSF, que dificulta a integração. Há um conflito de normas onde eles são orientados para realizar um cuidado integral, organizando o serviço segundo as necessidades de saúde, mas, ao mesmo tempo, devem organizar o serviço de forma fragmentada, por ciclos de vida e agravos22 Silva LA, Casotti CA, Chaves SCL. A produção científica brasileira sobre a Estratégia Saúde da Família e a mudança no modelo de atenção. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(1):221-232 .,44 Brasil. Ministério da Saúde. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília, DF: MS; 2004.. Os profissionais trabalham em meio a prescrições, que apresentam contradições que limitam a atuação integrada da eSB com a da saúde da família: de um lado, são prescritas atribuições comuns a todos os profissionais das equipes, e, ao mesmo tempo, eles constituem duas equipes distintas, ou seja, segundo as normativas, os profissionais de saúde bucal não compõem a eSF, podendo ser incluídos ou não segundo a decisão dos gestores locais.
Os profissionais que atuam na ESF vivenciam tentativas de compartilhar saberes e de transitar entre o multiprofissional e o interdisciplinar1919 Scherer MDA, Pires DEP, Jean RA. Construção da interdisciplinaridade no trabalho da Equipe de Saúde da Família. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(11):3203-3212.. A existência de um trabalho em equipe multiprofissional, que seja integrado, é considerada uma questão básica para o exercício da interdisciplinaridade2020 Scherer MDA, Pires DEP. A interdisciplinaridade prescrita para o trabalho da equipe de saúde da família, na percepção dos profissionais de saúde. Tempus. 2009; 3(2):30-42.. As dificuldades para integração apresentadas convivem com aproximações entre os profissionais, evidenciadas por meio das atividades coletivas coordenadas pela eSB e das interconsultas com atendimento individual e no consultório. A interconsulta é uma estratégia capaz tanto de qualificar o atendimento clínico ao usuário como de aprimorar a atuação do profissional de saúde, por meio do fortalecimento e do exercício de práticas de saúde mais integradas. Ao utilizar a interconsulta, equipes de saúde e gestão lançam mão de uma ferramenta de educação permanente que considera o aspecto pedagógico do trabalho em saúde2121 Farias GB, Farjado AP. A interconsulta em serviços de Atenção Primária à Saúde. Rev Eletrôn Gestão Saúde [internet]. 2015 [acesso em 2016 nov 3]; 6(supl.3):1-19 . Disponível em: http://www.gestaoesaude.unb.br/index.php/gestaoesaude/issue/view/31.
http://www.gestaoesaude.unb.br/index.php... .
Revisão de literatura realizada por Soares et al.2222 Soares FF, Figueiredo CRV, Borges NCM, et al. Atuação da equipe de saúde bucal na estratégia saúde da família: análise dos estudos publicados no período 2001 - 2008. Ciênc Saúde Colet. 2011; 16(7):3169 -3180., que discutia a atuação da eSB na ESF, aponta que para uma atuação consoante com os princípios e diretrizes da ESF são necessárias ações de qualificação da formação, bem como de capacitação dos profissionais de saúde bucal. Por outro lado, estudos no estado de Minas Gerais apontam que há formação 'suficiente', com acesso à qualifição permanente, e que a maioria exerce atividades preventivas/coletivas mais do que assistenciais1717 Sanglard-Oliveira CA, Werneck MZF, Lucas SD, et al. Atribuições dos técnicos em saúde bucal na estratégia de saúde da família em Minas Gerais, Brasil. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(8):2453-2460.,2323 Abreu MH, Sanglard-Oliveira CA, Jaruche AR, et al. A survey of the sociodemographic and educational characteristics of oral health technicians in public primary health care teams in Minas Gerais, Brazil. Human resources for health, 2013; 11(67)..
O modo de organização de encaminhamento dos usuários para especialidades também é um dos desafios que precisam ser enfrentados2424 Nuto SAS et al. O acolhimento em saúde bucal na estratégia de saúde da família, Fortaleza-CE: um relato de experiência. APS. 2010; 13(4):505-509.,2525 Chaves SCL, Vieira-da-Silva LM. As práticas profissionais no campo público de atenção à saúde bucal: o caso de dois municípios da Bahia. Ciênc Saúde Colet. 2007; 12(6):1697-1710., pois a existência de fluxos burocratizados e limitações para o atendimento aos usuários encaminhados pela UBS demonstra obstáculos à coordenação e à integralidade do cuidado, conforme achados do presente estudo e de pesquisa desenvolvida em Natal (RN)2626 Medeiros E. Os Centros de Especialidades Odontológicas como suporte da atenção básica: uma avaliação na perspectiva da integralidade [dissertação]. Natal: UFRN; 2007. 173 p.. Conhecer o itinerário dos usuários e as razões das 'escolhas' e 'possibilidades' pode ser caminho para reorientar os serviços e ampliar o acesso.
Na presente pesquisa, evidenciou-se que os CD não realizam planejamento sistemático das atividades de saúde bucal, convergindo com os resultados de Pimentel et al.1313 Pimentel FC, Albuquerque PC, Martelli PJL, et al. Caracterização do processo de trabalho das equipes de saúde bucal em municípios do estado de Pernambuco, Brasil, de acordo com o tamanho da população: a partir de links da comunidade para a organização dos cuidados clínicos. Cad Saúde Pública. 2012; 28(supl):S146-S157., em estudo realizado em Pernambuco, o que tem dificultado a obtenção de uma adequada assistência odontológica à população. A dificuldade de mudar o processo de trabalho pode estar relacionada com os ajustes desses profissionais ao sistema público de saúde, que é considerada uma questão problemática, haja vista que a atenção odontológica pública demanda outras habilidades e competências de integração, planejamento e programação em saúde, ainda pouco incorporadas às expectativas de mercado dos cirurgiões-dentistas1414 Chaves MC, Miranda AS. Discursos de cirurgiões-dentistas do Programa Saúde da Família: crise e mudança de habitus na Saúde Pública. Interface. 2008; 12(24):153-167..
Conhecer o trabalho do outro é uma das condições para a integração da equipe e para a construção conjunta de uma agenda, possibilitando momentos que, quando articulados, têm potência para promover a integralidade da atenção à saúde. A rotina de trabalho das eSF deve incluir o conhecimento do território e da população, que se constituem em subsídios para o planejamento, monitoramento e avaliação das ações1313 Pimentel FC, Albuquerque PC, Martelli PJL, et al. Caracterização do processo de trabalho das equipes de saúde bucal em municípios do estado de Pernambuco, Brasil, de acordo com o tamanho da população: a partir de links da comunidade para a organização dos cuidados clínicos. Cad Saúde Pública. 2012; 28(supl):S146-S157..
A participação popular e o controle social no setor saúde constituem-se em mais um dos princípios fundamentais para a melhoria da qualidade de vida da sociedade, mas um desafio à sua implementação33 Silva SF, Martelli PJL, Sá DA, et al. Análise do avanço das equipes de saúde bucal inseridas na Estratégia Saúde da Família em Pernambuco, região Nordeste, Brasil, 2002 a 2005. Cienc Saude Colet. 2011; 16(1):211-20.. A apropriação dos temas da saúde bucal pelos espaços do controle social pode contribuir para a efetiva implementação dos serviços de saúde bucal no SUS1515 Pezzato LM, L'Abbate S, Botazzo C. A produção de micropolíticas no processo de trabalho em saúde bucal: uma abordagem sócio-analítica. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(7):2095-2104..
Alguns fatores contribuem para uma organização do processo de trabalho com predominância das ações curativas pelo CD, de maneira isolada e fragmentada da equipe, como o processo histórico de inserção da saúde bucal na ESF, a hegemonia da odontologia de mercado, dificuldades de ajustes desses profissionais ao sistema público de saúde e suas concepções do processo saúde-doença66 Nascimento AC, Moysés ST, Bisinelli JC, et al. Oral health in the family health strategy: a change of practices or semantics diversionism. Rev Saúde Pública. 2009; 43(3):455-462.,99 Faccin D, Sebold R, Carcereri DL. Processo de trabalho em saúde bucal: em busca de diferentes olhares para compreender e transformar a realidade. Ciênc Saúde Colet. 2010; 15(1):1643-1652.. Além disso, o modelo de atenção da própria ESF ainda é pouco focado nas necessidades de saúde do território, na participação comunitária e no enfrentamento dos determinantes sociais de forma intersetorial22 Silva LA, Casotti CA, Chaves SCL. A produção científica brasileira sobre a Estratégia Saúde da Família e a mudança no modelo de atenção. Ciênc Saúde Colet. 2013; 18(1):221-232 .. A identificação na comunidade de outros dispositivos sociais para potencializar e promover suas ações com olhar ampliado sobre o processo saúde-doença e para a integralidade do cuidado é também recomendada2727 Mattos RA. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cad Saúde Pública. 2004; 20(5):1411-1416..
Para avanços no trabalho em saúde bucal na ESF e uma atuação integrada de toda a equipe, faz-se necessário que os profissionais busquem a troca de conhecimentos, reconheçam as habilidades e competências de cada membro e tenham atitudes para a construção coletiva de intervenções. Os valores e a forma como cada profissional compreende as normas orientam suas escolhas e a maneira de agir, com consequências no trabalho coletivo1818 Schwartz Y, organizador. Reconnaissances du travail: pour une approche ergologique. 2. ed. Paris: PUF; 1998.. Além disso, a gestão local na saúde pode ser potencializadora ou não desse processo de integração e melhoria do trabalho coletivo.
O presente estudo apontou fortalezas e fragilidades presentes no trabalho cotidiano das equipes, ora revelando a integração, ora revelando a fragmentação, corroborando a tipologia do trabalho em equipe multiprofissional de Peduzzi2828 Peduzzi M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Rev Saúde Pública. 2001; 35(1):103-109., atuando em certos momentos como 'equipe agrupamento', em que ocorre a justaposição das ações e o agrupamento dos agentes, ora como 'equipe integração', em que ocorre a articulação das ações e a interação dos agentes. Entretanto, a ênfase nas ações curativas individuais convive com características do trabalho preconizadas pelas políticas, apontando a transição do modelo de atenção pela interface da integração.
A integração se efetiva fundamentalmente por meio da participação e da colaboração dos profissionais da equipe. A eSB, no estudo, demonstrou capacidade de coordenação de ações coletivas, que, apesar de acontecerem de modo pouco sistematizado, convocam a equipe de saúde a atuar de forma compartilhada.
A maneira como a eSF é estruturada tem fomentado nos dentistas o olhar mais integral para o processo saúde-doença e experimentações de atuação integrada com os demais profissionais da equipe, com destaque para a realização de interconsultas com médicos e enfermeiros e o trabalho realizado com o ACS. Eles aparecem como importantes facilitadores para o acesso às ações de saúde bucal, apesar das dificuldades relatadas relativas à incipiente organização da oferta dos serviços.
Ainda como potencialidades para a integração, podemos destacar a participação em grupos que ampliam o acesso e a captação precoce em saúde bucal, as reuniões da equipe e a existência de espaços informais no trabalho para o diálogo e as trocas. Esses achados sugerem a existência de características de uma equipe integrada2929 Peduzzi M. Trabalho em equipe. In: Pereira IB, Lima JCF. Dicionário da educação profissional em saúde. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: EPSJV; 2008..
Como fragilidades, foi observado o isolamento físico da eSB dentro da estrutura da unidade de saúde, que reflete e é reflexo do distanciamento no planejamento e na organização do trabalho, produzindo distintos modos de se pensar a organização da oferta dos serviços e do acesso pela população2929 Peduzzi M. Trabalho em equipe. In: Pereira IB, Lima JCF. Dicionário da educação profissional em saúde. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: EPSJV; 2008.. Problemas na integração estão presentes também para efetivação da coordenação do cuidado na relação com os CEO que reproduzem fluxos burocratizados e limitadores de acesso2626 Medeiros E. Os Centros de Especialidades Odontológicas como suporte da atenção básica: uma avaliação na perspectiva da integralidade [dissertação]. Natal: UFRN; 2007. 173 p.,2727 Mattos RA. A integralidade na prática (ou sobre a prática da integralidade). Cad Saúde Pública. 2004; 20(5):1411-1416..
Como lacuna deste estudo, pode-se apontar o fato de ter sido local, com foco em uma realidade específica. Contudo, a produção científica sobre o tema traz indícios da permanência desses achados em outros municípios do País1313 Pimentel FC, Albuquerque PC, Martelli PJL, et al. Caracterização do processo de trabalho das equipes de saúde bucal em municípios do estado de Pernambuco, Brasil, de acordo com o tamanho da população: a partir de links da comunidade para a organização dos cuidados clínicos. Cad Saúde Pública. 2012; 28(supl):S146-S157.,1414 Chaves MC, Miranda AS. Discursos de cirurgiões-dentistas do Programa Saúde da Família: crise e mudança de habitus na Saúde Pública. Interface. 2008; 12(24):153-167.,3030 Emmi DT, Barroso RF. Avaliação das ações de saúde bucal no Programa Saúde da Família no distrito de Mosqueiro, Pará. Ciênc Saúde Colet. 2008; 13(1):35-41..
Conclui-se que a integração da saúde bucal na eSF é incipiente, limitada por conflitos de normas e pela forma com que se organiza o trabalho na ESF no contexto estudado, sendo, portanto, uma integração em construção.
- Suporte financeiro: Chamada MCTI/CNPQ/MS-SCTIE-DECIT Nº 10/2012 - Pesquisa em Saúde Bucal
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Datas de Publicação
- Publicação nesta coleção
Out 2018
Histórico
- Recebido
15 Jul 2018 - Aceito
14 Set 2018